Era um encontro a quatro. O embaixador tinha-me encarregado de passar pelo hotel e trazer, para jantarem na sua residência, dois funcionários de umdepartamento do Estado português que tinham ido àquele país negociar um instrumento jurídico bilateral e que, dois dias decorridos e com a missão cumprida, se aprestavam para regressar a Portugal, no dia seguinte. À chegada, como era de bom tom, tinham passado pela embaixada a cumprimentar o embaixador e este retribuía agora a gentileza no termo da missão, convidando-os para uma refeição, que era também uma oportunidade para os "debriefrar" sobre o seu trabalho.
O chefe dessa pequena delegação era um funcionário já de uma certa idade (na minha memória, mas provavelmente era mais novo do que sou hoje), com forte experiência na matéria que tinha ido tratar, o que se revelava no modo competente e profundo como a abordava. O jantar correu animado, com o embaixador e o seu principal convidado a tomarem conta da conversa.
A certo passo, um de nós inquiriu sobre quanto tempo demoraria a entrar em vigor aquilo que ficara acordado. Notei que o homem foi apossado de um súbita irritação, que não nos era dirigida, mas que relevava, como logo viemos a constatar, da morosidade dos trâmites que, tradicionalmente, aquele tipo de assuntos sofria, nos corredores oficiais de Lisboa. Ouvimos então dele uma litania sobre a "via sacra" de pareceres e vistos, a expressão triste do país de burocratas que Portugal era.
A certo passo, um de nós inquiriu sobre quanto tempo demoraria a entrar em vigor aquilo que ficara acordado. Notei que o homem foi apossado de um súbita irritação, que não nos era dirigida, mas que relevava, como logo viemos a constatar, da morosidade dos trâmites que, tradicionalmente, aquele tipo de assuntos sofria, nos corredores oficiais de Lisboa. Ouvimos então dele uma litania sobre a "via sacra" de pareceres e vistos, a expressão triste do país de burocratas que Portugal era.
"O senhor embaixador não imagina as más vontades que, por vezes, temos de defrontar", disse o técnico. E, para ser mais enfático e preciso, citou um determinado ministério, arriscando mesmo uma confidência: "Por exemplo, só ali, há um cretino, que tem lá um lugar importante, que há anos que me boicota tudo". E disse o nome do burocrata sabotador.
Olhei para o embaixador. Estava sereno. E, no entanto, o nome referido pelo homem vindo de Lisboa era precisamente o seu, nome aliás muito pouco comum, o que reduzia quase a zero a possibilidade de não haver uma relação de patentesco com a pessoa indicada. Mas o embaixador mantinha-se impassível, continuando a participar na conversa como se nada de estranho se tivesse passado.
O jantar terminou, sempre em excelente ambiente. Conduzi os dois visitantes ao hotel e, no caminho, perguntei ao líder da missão se acaso sabia o nome do embaixador.
"Ainda bem que me pergunta isso! É que não sei mesmo! Ia até pedir-lhe o nome dele para, logo que cheguemos a Lisboa, eu lhe enviar uma carta a agradecer toda a gentileza que teve para conisco. É uma simpatia, este seu embaixador!"
No segundo seguinte, quando lhe referi o apelido do embaixador, que coincidia com o do tal burocrata que ele tratara por "cretino", julguei que ia dar "uma coisa" ao nosso homem! Percebeu, logo aí, a imensidão da "gaffe" que cometera e que, na prática, seria difícil de retificar.
A situação - confesso, sem pudor - estava a dar-me algum gozo, mas não queria fazer transparecer esse meu divertimento, porque isso seria quase ofensivo, face à atrapalhação do homem, cuja noite presumi que já não iria ser muito sossegada. Que iria ele fazer? Pedir desculpa por carta? Telefonar ao embaixador? A dizer o quê? Até chegarmos ao hotel, entrou num embaraçado mutismo.
No dia seguinte, na embaixada, a vida correu normalmente. A certa altura, o embaixador entrou no meu gabinete, o que costumava fazer a meio de todas as manhãs. Comentou o jantar do dia anterior, sem denotar ter sido tocado pelo incidente. Pelo contrário, elogiou o chefe da delegação: "É um homem muito inteligente e competente".
Eu estava "em pulgas" para ver a sua reação à "gaffe", pelo que adiantei, um pouco a medo: "Foi um pouco desagradável aquela referência que o homem fez... Seria por acaso alguém da família do senhor embaixador?"
Notei um ligeiro sorriso na cara do meu chefe. "Ele referia-se ao meu irmão, mas nem devia saber o meu nome, caso contrário, estou certo que não teria feito o comentário". Confirmei-lhe isso mesmo, referi-lhe a atrapalhação do homem no carro, quando percebera a dimensão da "argolada". Sem perder o sorriso, o embaixador retorquiu: "O meu irmão é um grande chato. O homem até deve ter razão na crítica que lhe faz". E, sem perder o sorriso, regressou ao seu gabinete.
2 comentários:
muito boa estória
João Vieira
História deliciosa. E quanto se deve aplicar a tantas relações de consanguinidade.
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