Só depois dos trinta anos é que fiz o meu primeiro amigo espanhol. Chamava-se (e chama-se) Rafa e conhecemo-nos em Oslo, na Noruega, onde ambos nos estreávamos como diplomatas em posto no exterior. Um dia, Rafa e a mulher convidaram-nos para um jantar em casa, com o seu embaixador, também acompanhado da mulher. Ele era um velho diplomata (às tantas, era mais novo do que eu sou hoje!), com um ar de Dom Quixote, falas pausadas e enfáticas, uma imagem de um certo estilo da carreira, já então perdida um tanto no tempo. Nós, em Portugal, também tinhamos uma figuras e figurões equivalentes. A senhora podia ter saído de um quadro de Velásquez, cabelo armado, cabeça altiva e uma afetação a mimar o estilo dos "grandes de España" (e, se calhar, era mesmo dessa casta aristocrática que tanto entretem alguns diplomatas em posto em Madrid).
O jantar foi simpático, recordo, com o embaixador a contar cenas da sua vida vivida pelo mundo, recheada de pormenores picarescos, de figuras desenhadas com o exagero da retórica, episódios ensaiados e testados mil vezes, para públicos diversos. Em grau variado, com o decurso dos anos, ficamos quase todos assim, podem crer...
Nessa noite, eu mantinha-me num relativo silêncio, não tanto por timidez, mas essencialmente porque, à época, o meu castelhano era muito primário e hesitante. Das vezes em que intervim, dirigindo-me ao velho embaixador, tratava-o por "Señor Embajador, usted...". Para minha grande surpresa, Rafa fazia-o de uma forma bem mais solta e íntima: "Embajador, tu...". Estranhei muito aquela forma de se dirigir ao seu chefe, de quem o separava uma imensa diferença de idade, e disse-lho mais tarde. O meu amigo riu-se e fez-me notar que, na tradição da carreira diplomática espanhola, o tratamento por "tu", o "tuteo", é aceite e generalizado, mesmo com superiores hierárquicos. Mas esses "tus" são muito diferentes, uns são mais respeitosos que outros, pelo que importa perceber que a a formalidade entre as pessoas não é quebrada necessariamente pelo uso do "tu". No fundo, acontece o mesmo com a necessidade de bom senso na aplicação do "you" anglo-saxónico. E também aprendi entretanto que, por vezes, o "usted", em lugar de ser um modo educado, pode também ser visto às vezes como algo agressivo e até deselegante, uma marcação artificial de distância.
A que propósito vem isto? Refiro-o para notar um vício que anda por aí em muito boa (?) gente que, estando longe de nos tratar por tu, sendo mesmo cerimoniosos à moda portuguesa, a meio de uma conversa, um pouco "à espanhola", mete coisas como "se tu te distrais..." ou "e quando tu vais comprar um jornal...". Posso estar enganado, mas sinto que é já uma influência, entre nós, da construção espanhola das frases: o Ronaldo ou o Mourinho falam assim... Na realidade, o que essas pessoas quereriam dizer, respetivamente, seria "se nos distraímos..." ou "quando vamos comprar um jornal...". Não notaram?
Este tema das formas de tratamento é um mundo fascinante, que já por aqui abordei por mais de uma vez. E, sempre, recordando a frase de François Mitterrand quando um amigo (relativo) se lhe dirigiu um dia, à cata de intimidade, sugerindo: "François, on se tutoie?". A resposta do antigo presidente, com algo de deliciosamente snobe, ficou histórica: "Si vous voulez..."
7 comentários:
Quanto ao snobismo, estamos bem servidos !!!!!!!!
Obrigado.
Senhor Embaixador,
Creio que, em tempos, o Conde de Barcelona, quando interpelado com o "usted", terá respondido: "A mi me tratas por tu o por señor, pero nunca usted!"
a) Henrique Souza de Azevedo
Essa forma de tratamento, "Título, tu..." é de extremo respeito e reserva-se precisamente para aqueles por quem se deve ou se tem uma muito razoavel deferência. Toda a conversa decorre inevitavelmente num tom de muito notório respeito pelo mais velho ou mais categorizado. É muito diferente de dizer "Pero mira, oye,..." e seguir usando os verbos na segunda pessoa do singular. É uma nuance da sociedade Espanhola particularmente interessante de apreciar e dificilmente entendida por quem não conhece com alguma profundidade estas quase nimiedades. Infelizmente está a cair em desuso o uso correcto da forma "Titulo, tu...".
"tratar-te por tu
já não se usa,
só em castelhano"
gnr, grupo novo rock.
Muito rebuscado, este post.
Houve tempo em que, entre o tu e o senhor, a opção recaía no enfático "vós". Jamais esquecerei um encontro que tive em plena avenida da liberdade, nos meus dezanove anos, com um senhor de Moncorvo que se me deparou num descendente passeio. "Vós por aqui?... Quereis alguma coisa para os pais?...". Depois de olhar para os lados entendi que o vós era a minha real pessoa.
um abraço,
José Ricardo
V. Exa anda muito melindrável, ultimamente. Não gosta de ler umas verdades?
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