sexta-feira, janeiro 16, 2015

O nosso país


Há uns anos, referi-me por aqui a um dos "pecadilhos" tradicionais de alguns diplomatas: ficarem convencidos com os argumentos dos países onde estão acreditados e tenderem a explicar ao seu próprio governo as razões dos seus anfitriões. Chama-se a isso, na gíria diplomática, "to go native". Quando um diplomata se deixa cair nesta atitude, a melhor solução é retirá-lo de imediato do posto. Não se paga a ninguém para representar os interesses dos outros, porque a regra primeira da diplomacia é "my country, right ou wrong". Ao longo da minha carreira foi-me sempre perfeitamente indiferente se o país que me acolhia tinha ou não razão numa questão bilateral connosco. Eu estava lá para defender a nossa posição, por mais absurda que ela fosse. Quem não perceber isto e assim não pensar é melhor escolher outra profissão.

Lembrei-me disto hoje, ao almoço, ao ouvir o embaixador americano em Lisboa, Robert Sherman, que tive o gosto de ter como meu convidado para uma tertúlia de amigos. Contava ele que o antigo "Secretary of State" (designação dada ao ministro dos Negócios Estrangeiros, nos EUA), George Shultz, tinha no seu gabinete um grande globo, com o desenho de todos os países do mundo. Quando recebia alguém que havia sido nomeado embaixador dos Estados Unidos da América para um determinado posto, costumava pôr o globo a rodar e, quando ele parava, perguntava ao recém-designado chefe de missão: "Aponte aí o seu país". O homem (ou a mulher), que havia estudado bem a sua lição, até para poder passar no exigente escrutínio pelo Congresso, logo descortinava e designava no globo o Estado em cuja capital iria servir nos próximos tempos. Shultz corrigia-o de imediato: "Está enganado! O seu país chama-se Estados Unidos da América!".

Uma bela lição!

5 comentários:

Anónimo disse...

"to go native": diplomatas afectados pelo síndroma de Estocolmo.
Eduardo

Isabel Seixas disse...

Faz sentido.

patricio branco disse...

boa história.
houve em 1975 um embaixador de portugal no maputo, o primeiro aliás, que levou essa posição do go native ao extremo, pois tornou-se, conta quem viveu isso, um defensor a ultranza de moçambique contra portugal.
houve finalmente uma rebelião dos seus colaboradores diplomatas na embaixada, que denunciaram a lisboa a cumplicidade intolerável do homem com o governo moçambicano e o embaixador (de nome albertino, nomeação politica)acabou por ser afastado (ou se demitiu) e regressou a lisboa.
não lhe foi mandado fazer antes o teste do globo.

Joaquim de Freitas disse...

O que sempre me admirou na função de embaixador, não é tanto o facto que ele defenda os interesses do patrão! Mas quando os interesses do patrão vão até ao desprezo do regime que dirige o país no qual é acreditado, complotando para eventualmente o fazer cair por meios violentos , isso sim, revolta-me.
Um embaixador americano é frequentemente um espião ao serviço dos interesses do seu país. Como o é também um embaixador russo ou doutras nacionalidades, mas estes sem o mesmo poder.

Em Portugal qual foi a influência de Carlucci no desenvolvimento da Revolução de Abril?
E na América Latina, por exemplo em Santiago do Chile?
A associação das noções de espionagem e de diplomacia , frequente no caso dos USA, concede ao embaixador duma grande potência uma imagem ambígua, de honorabilidade e de interferência criminosa.

Mas a diplomacia duma grande potência pode acusar falhas espectaculares como aquela que se verificou há dias em Paris. A arrogância americana que considera que quando a América é atacada pelo terrorismo internacional o mundo inteiro deve reagir para a defender, não permitiu à sua diplomacia de considerar que a presença em Paris de Obama, Kerry ou Biden se impunha. A presença da embaixatriz americana em França, Jane Hartley, passou despercebida num cortejo de 1 milhão de pessoas.
O que levou Kerry a vir ontem a toda a pressa depor algumas flores em frente do supermercado kasher onde os Judeus foram assassinados, e a fazer uma visita ao Eliseu. Il vaut mieux tard que jamais! Mas , o mal está feito!

Anónimo disse...

"complotando" é uma palavra linda!

Entretanto, e como é hábito do seu fanatismo, o Freitas, no meio de tudo isto, só se consegue preocupar com os EUA...

Ai Europa!

E se a Europa conseguisse deixar de ser um anão político e desse asas ao gigante económico que é?