domingo, janeiro 11, 2015

Tempos da Europa

Os acasos da internet levam-nos a descobrir coisas antigas. Ontem, deparei com um artigo de Isabel Arriaga e Cunha, no "Público", em 30 de junho de 2000, no termo da presidência portuguesa da União Europeia. E encontrei este curioso pedaço de texto: 

"Apesar de ter cumprido de forma honrosa o mandato que recebera dos Quinze para lançar e desbravar o terreno das negociações para a reforma do Tratado da UE, Portugal não conseguiu convencer os seus parceiros sobre o seu real empenhamento neste processo. "Portugal estava visivelmente incomodado com o exercício", resumiu um diplomata europeu, considerando que o país "exerceu honestamente a presidência embora sem toda a motivação que outros países poderiam ter tido". Conduzida por Seixas da Costa, secretário de Estado dos Assuntos Europeus, esta negociação constituía, do ponto de vista do governo, um foco potencial de conflitos num país sem um grande entusiasmo integrador mas simultaneamente obrigado a fazer prova da máxima neutralidade na busca de consensos. A contradição não passou despercebida, e o secretário de Estado saiu uma ou outra vez do seu papel de presidência para assumir posições defensivas enquanto Estado membro. Ao longo dos meses, "Seixas da Costa tornava-se progressivamente mais português e menos presidente", resumiu um dos negociadores. Mas, ao mesmo tempo, os países que partilham as reticências portuguesas, nomeadamente em matéria de flexibilização das cooperações reforçadas - o mecanismo que permitirá a integração europeia a várias velocidades entre diferentes grupos de países - criticam em privado a ausência de empenhamento da presidência para tentar definir desde já os limites deste exercício. Portugal saiu assim desta missão com o rótulo de país euro-hesitante, senão mesmo euro-resistente, o que tenderá a dificultar a imposição das suas posições durante os seis meses que restam à negociação antes do acordo previsto para a cimeira de Nice, em Dezembro. Esta dificuldade far-se-á sentir igualmente no debate de fundo sobre o futuro da Europa recentemente lançado pela Alemanha, logo seguida da França, que corre o risco de evoluir num sentido contrário à sua visão. Com a agravante de que várias delegações notaram alguma falta de coordenação nas posições assumidas pelos três representantes portugueses neste debate - Seixas da Costa, Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, e António Guterres."

Passaram quase 15 anos. Já não interessa, nos dias de hoje, revisitar esta questão e, eventualmente, tentar explicar aquilo que motivou os comentários da (antiga) jornalista, talvez a mais conhecedora correspondente de imprensa que alguma vez passou por Bruxelas, o que não impediu que, ao longo de mais de cinco anos, eu com ela tivesse divergências fortes. Mas não deixa de ter graça reler este texto - o próprio artigo completo - à luz da muita água que, depois disto, passou sob as pontes europeias. Desde logo, o próprio Tratado de Nice, onde, contrariamente ao previsto no texto, Portugal "levou a água ao seu moínho", muito para além daquilo que, à data em que o texto foi escrito, era expectável que acontecesse.

Em perspetiva, poderia a atitude portuguesa na negociação ser muito diferente da que assumiu? Não sei, mas, sem prejuízo de alguns acertos, julgo que não. Sem dar por adquirida a justeza dos restantes comentários, uma coisa foi sempre para mim evidente: não obstante diferentes modos de formular a linha política portuguesa, os três nomes referidos no final do texto nunca tiveram posições estratégicas divergentes. No que toca às táticas adotadas, admito que possam ter dado uma ilusão de descoordenação. Que nunca existiu, isso posso assegurar.

Olhar agora para estas coisas torna-as quase "pré-históricas".

6 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

"Conduzida por Seixas da Costa, secretário de Estado dos Assuntos Europeus, esta negociação constituía, do ponto de vista do governo, um foco potencial de conflitos num país sem um grande entusiasmo integrador...


Senhor Embaixador: Só por curiosidade, pois que não seguia nesses tempos a política europeia de Portugal, poderia , por favor, explicar quais eram os argumentos evocados então para justificar a frase : " num país sem um grande entusiasmo integrador ". Muito obrigado.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Joaquim de Freitas: a frase não é minha, é de IAC. O que eu creio que ela quis dizer é que a posição portuguesa de então não era favorável a uma perspetiva de evolução federal da Europa, para a qual não havia consenso político interno (e recordo que o governo não tinha maioria na AR). Mas as divergências conceptuais são aqui importantes. A meu ver, "entusiasmo integrador" não é necessariamente sinónimo de abertura ao modelo federal. Tudo isto é História: a Europa de hoje já perdeu as ilusões federais e é um condomínio onde um dos inquilinos, praticamente sozinho, decide as obras que se fazem no prédio e os outros limitam-se a segui-lo ou a refilar, embora, por ora, sem grande efeito

Anónimo disse...

Muito interessante. Não foi nunca tema a que desse muita atenção mas acho muito curioso o que a Jornalista refere sobre a posição de Portugal. Deve ser fascinante conhecer mais por dentro a diplomacia portuguesa. Mas já não vou a tempo...

Anónimo disse...

Posso estar enganado mas dá-me a impressão de que todos os tratados dos quais nós beneficiámos, têm o nome de localidades estrangeiras (Zamora, Tordesilhas, Nice), enquanto que o único de que me lembro que tem um nome português (Lisboa), não nos foi lá muito favorável.

Ass.: Catinga, sem paciência para fazer login.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Catinga: eu não diria que Nice nos beneficiou. Foi um tratado em que, pela nossa parte, se procurou suster o agravamento das desigualdades entre os Estados membros, que manifestamente estava em preparação. Na minha perspetiva, o Tratado de Lisboa aceita aquilo que Nice não contemplou nesse dominio. Se quiser saber o que penso sobre o Tratado de Lisboa, pode ler aqui: http://ou-quatro-coisas.blogspot.pt/2008/01/um-tratado-para-outra-europa_01.html

Jose Martins disse...

Senhor Embaixador,
Como poderia lá estar se na altura o barra Martins da Cruz era o “patrão grande” do Palácio das Necessidades, muito ocupado, com a Diplomacia Económica. Uma página negra da história da diplomacia portuguesa durante o Governo de Durão Barroso que será para esquecer.
Saudações de Banguecoque

Obrigado, António

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