sábado, janeiro 10, 2015

Em memória de Alphonse Peyradon

Vai para dois anos, escrevi por aqui isto:

"Nos anos 60, na Sociedade Nacional de Belas Artes, teve lugar uma (falsa) conferência, creio que apresentada por uma personalidade que se apresentava como um académico estrangeiro, o qual, a meio da sua apresentação era "assassinado". Tudo não passou de um exercício teatral quase surrealista, mas que era um pouco ousado para a "séria" sociedade portuguesa de então. Por um qualquer lapso de interpretação, a agência de informação portuguesa para África, a "Lusitânia", terá dado a notícia como tendo-se tratado de um real assassinato (ou tentativa, já não recordo bem). Alguma imprensa portuguesa das colónias (ou seria da África do Sul?) publicou a história, como se ela correspondesse a um crime verdadeiro. Outros órgãos de informação estrangeiros terão também repescado a notícia, dando-a como boa. O assunto começou a constar em Lisboa. Porém, em Portugal, nada surgiu nos jornais, porque a censura não deixou*. Assim, a história correu num boca-a-boca, tendo sido dessa forma que eu a soube".

Relatei esta historieta e fiz o desafio a quem soubesse algo mais para nos ajudar a fixar a realidade (tão irreal!) dos factos. Sempre achei notável que a sociedade portuguesa de então, na chatice dos seus dias, fosse capaz de criar episódios deste género, numa saudável demonstração de que a ironia e a criatividade ainda por aí andavam à solta. Alguns comentadores deram certas pistas. Há semanas, o blogue Ecosfera - magnífico repositório de memória do jornalismo português - trouxe finalmente bastos pormenores do assunto. Não se dispensando a sua consulta, deixo aqui uma síntese do que nele fica registado.

Na primavera de 1970, um divertido grupo de amigos decidiu montar uma "operação" com laivos teatrais, destinada a "apanhar em falso uma certa elite que então brotava no mundo das artes e que primava pelo discurso hermético e oco". Tratou-se de uma sessão de homenagem ao "sábio" belga Alphonse Peyradon, organizada na Sociedade Nacional de Belas Artes, a convite do "Círculo de EStados da Massificação Urbana (em organização)". O "sábio" (Peyradon era um nome que recordava "pai Adão/père Adam") fez uma intervenção notável, misturando física com filosofia, chegando ao ponto de defender que havia vestígios de música popular portuguesa em peças de Bach e Beethoven, que o advogado Vasco Vieira de Almeida interpretou ao piano. A sessão terá decorrido de forma animada, até que o arquiteto Hestnes Ferreira, que antes havia glorificado a múltipla qualidade de Peyradon (representado por Leite de Faria), como "musicólogo, filólogo, filósofo e deficiente motor", passou a acusá-lo, de "revisionismo", o que provocou um conflito com o orador e homenageado. O presidente da sessão, o advogado João Esteves da Silva, declarou então que a homenagem passaria a "póstuma" e tentou dar dois "tiros" no sábio, que estava remetido a uma cadeira de rodas. Por um lapso organizativo, os fulminantes não funcionaram. As luzes da sala fecharam-se então e estabeleceu-se uma confusão, embora a prevista "morte" acabasse mesmo por ter lugar, o que suscitou, de imediato, que fosse tocado um fado dedicado ao passamento do sábio, com uma letra muito oportuna. A sessão terminaria em aplausos das duas centenas de presentes, nessa fantástica noite lisboeta (a que nunca me perdoarei de não ter assistido, não obstante a informação antecipada pelo "Diário de Lisboa", que, à época, religiosamente sempre lia).

A cena e o "assassinato" teriam ficado por ali, não fora o jornalista Fernando Assis Pacheco ter publicado um divertidíssimo texto, dias depois, precisamente no "Diário de Lisboa", com chamada de primeira página. Trata-se de uma peça muito irónica, que só por lapso de leitura pode levar um incauto a acreditar na realidade daquilo que nela era relatado. O autor insere uma frase magnífica, para descrever o "assassinato", um verdadeiro "overkill": "o primeiro tiro matou-o logo. O outro feriu-o à superfície". Leia-se, com vantagem, o notável relato feito pelo blogue Ecosfera, para ter dados deliciosos da patranha, em que intervieram, para além das personalidades já citadas, António Vaz, Francisco Keil do Amaral, José Palla e Carmo, Eugénio Cavalheiro, etc.

No dia seguinte à publicação da "notícia", um qualquer estagiário da agência noticiosa "Lusitânia", que operava essencialmente para o "Ultramar", tomou-a a sério e redigiu um "take" nesse registo. Em Angola, alguns jornais levaram-no à letra e deram conta do "trágico" sucedido. A "Lusitânia" viria a corrigir o tiro, mas era já tarde.

Uma bela história, com um grupo divertido, num Portugal de outro tempo. Mais uma vez, obrigado ao Ecosfera pela oportuna memória. Dele extraio a foto do "assassinato", inserida na "notícia" do saudoso "Diário de Lisboa".

* Não pude confirmar este pormenor. Ao que me constou - mas isto vale o que vale -, a censura terá decidido não deixar que o assunto fosse especulado, nem num registo de anedota. Bem lhe teria bastado a "notícia" do "Diário de Lisboa".

9 comentários:

Anónimo disse...

Esquerda caviar!

Gonçalo Pereira disse...

Agradeço-lhe as simpáticas referências ao Ecosfera. Gostei muito deste desafio e da oportunidade de reabilitar a memória de um jornal especial como o DL.
Tomo entretanto a liberdade de lançar novo repto. Há largos anos, entre as décadas de1960 e 1970, alguém enganou um repórter do "Diário Popular", comunicando-lhe que a solução para a guerra do Vietname residia nas mãos de uma princesa vietnamita misteriosamente refugiada em Lisboa. O jornalista acreditou e publicou a história. A menina (bem bonita, por sinal) era dançarina exótica na boite Nina e a história fora um logro do princípio ao fim.
Conseguirão os leitores do seu notável blog ajudar a datar esta saga e a encontrar os recortes do caso?
Saudações cordiais.

Francisco Seixas da Costa disse...

Ao Anónimo das 15.14. Caviar sim, mas Beluga, por favor! Não me venha com Sevruga e coisas assim. Há quem não goste, mas acompanhado de um Ruinart 96 vai muito bem. Se for mais dado ao vodka, aconselho-lhe o Belvedere, um excelente polaco que tenho experimentado ultimamente. A esquerda, não sei se sabe, não é só bagaço, embora o haja muito bom. Por exemplo, experimente a aguardente do Palácio da Brejoeira e não se arrependerá. Não tem nada que agradecer, ora essa!

Anónimo disse...

Ao anônimo das 15:14. Devo dizer que o melhor caviar nao e nem o da direita nem o da esquerda: e o da frente no nosso prato. Dito isto, de onde vem essa ideia de que esquerda nao pode ter hábitos de luxo. Deduzo que seja do Evangelho, pois e o único texto que condena a riqueza. A esquerda mais dura e ate contra a caridade. Era bom acabar com os esteei tipos da ignorância. Como respondeu Olof Palm a um conselheiro da revolução que lhe dava como o objectivo do MFA acabar com os ricos, "tem graca, e o contrário do socialismo, que e acabar com os pobres".

Fernando Neves







Anónimo disse...

Chico

Duas ou três coisas...

Penso que pelo resultado alcançado o anónimo (termo de que não gosto nada, absolutamente nada) só tem uma saída: Direita cavar! E rapidamente...

Nos anos 70 encontrava-me em Angola, depois de ter passado à peluda, pois lá a "benemérita" PIDE não me chateava tanto como cá. Por isso falhei esta estória deliciosa, bem como o 25 de Abril (in loco) Um dia ainda hei-de contar o 25 de Abril em Luanda; tem alguma piada...

Também ouvi o meu grande Amigo Olof Palme dar essa resposta, pois eu estava lá. Desse "anónimo" Fernando Neves - gosto

Abç

Correia da Silva disse...

Salut.
Dom Pérignon.










Anónimo disse...

A propósito do comentário de Fernando Neves, lembro-me de ter dito ao meu Pai, quando acabaram com a primeira classe na linha do Estoril depois do 25 de Abril, que deviam era ter acabado com a segunda. Ele concordou. Será isto a esquerda caviar?
JPGarcia

Isabel Seixas disse...

oh... Com a verdade vos engano
urdidos sereis por fingimento
a voz que vos entoa profano
será púdica atrás do manto

ser rico é o sonho do pobre
assim na terra, vivo, como nos céus
Deus só na campanha lhe acode
com a salvé rainha dos pigmeus


querer também verão no inverno
e as virtudes da abastança
humanizar o pobre inferno
com a absolvição da bonança



ARD disse...

Esquerda caviar frio (de preferência apresentado numa taça grande de gelo moído (atitude altamente esquerdizante) e não num qualquer recipiente de metal proto-fascista.
Sobre blinis "de gauche", evitando burguesas torradinhas ou bolachas-de-água-e-sal de tendência neo-revisionista.
Acompanhar com um proletário "brut" Moët et Chandon, evitando o tintol (direita) ou a bejeca (inaceitavelmente de extrema direita).
Sobretudo, numa atitude frontalmente revolucionária, não partilhar com imbecis, sejam de direita ou sejam de esquerda.

PS - lembro- me da história da princesa vietnamita.

Livro