terça-feira, outubro 14, 2014

Anomia

A palavra não é muito usada, mas a expressão cunhada por Durkheim é a única que me ocorre para simbolizar o que hoje atravessa Portugal. Ausência de objetivos, diluição de identidade, descrença num sentido coletivo de vida são os sinais contemporâneos que nos revelam um país à deriva. Não se deduza daqui um derrotismo catastrofista, porque estamos sempre a tempo de mudar o rumo às coisas e, contrariamente ao que vulgarmente se pensa e diz, já atravessámos crises bem piores. Mas, para mudar, é necessário perceber como e por onde andamos e, em especial, evitar passos irreversíveis.
O que se tem passado nos últimos tempos na máquina do Estado, se bem que previsível, ultrapassou todos os limiares de razoabilidade e da incompetência aceitável. As crises no sistema educativo e na Justiça, somadas a afloramentos de ruturas em várias outras políticas públicas, mostram que a aposta no desmantelamento do Estado, que este governo levou a cabo com um zelo sem precedentes, está a “funcionar”: o estado do Estado é já o que se vê.
Para isto juntou-se uma agenda ideológica de liberalismo simplista, servida por um pessoal político em geral impreparado, um cocktail de “jotas” com homens de aparelho, acolitados por tecnocratas cínicos e por deslumbrados com MBA, com uma agenda geracional agressiva, que se sentaram à mesa da desorçamentação do Estado atulhados de preconceitos: o Estado é hoje gerido por quem o odeia e despreza. No início, obedeciam ao “script” dado pelo Memorando, que, com aparente alegria doutrinária, haviam herdado e que iam mesmo polindo com o zelo dos neófitos. A palavra de ordem era desregular, “desblindar”, acabar com as “golden shares” que perturbavam o livre fluir do mercado, privatizar tudo quanto fosse possível. Ah! e fazer tudo isso tão depressa quanto viável, antes que o país aturdido acordasse e os devolvesse à procedência.
Ao fim de uns meses pelos corredores do poder, percebeu-se logo que esse pessoal se achava possuído de uma “filosofia”: uma espécie de otimismo visionário e profético, uns novos “amanhãs que cantam” que pediam meças à credulidade determinista do “socialismo real”. Alguns parece que chegaram a acreditar piamente na bondade dessas soluções e, como também ocorreu do outro lado do espelho ideológico, encaravam as vítimas da conjuntura – os velhos, os reformados, os doentes, os excluídos, os desempregados – como uma espécie de inevitáveis “colateral casualties”. Sem remorsos, porque o “homem novo” estaria ao virar da esquina a salvar-lhes as consciências. E o seu futuro, claro.
Depois, foi, não o que se viu, mas o que está a ver-se. A dívida disparou, o desemprego também (na melhor das hipóteses fixá-lo-ão ao nível que o governo Sócrates o deixou), fazem uma coreografia anual para colocar o défice tão próximo dos objetivos quanto as malabarices financeiras o permitem, o Estado está no estado em que está e quem vier a seguir que feche a porta. Agora, atrapalharam-se no BES, deixaram a PT ir ao fundo sem um ai tempestivo, estão ainda a pensar se têm tempo para dar cabo da TAP.
E o país? O país, pelo que mostra, permanece em anomia, se acaso disso ainda restasse a menor dúvida. E se acordar?

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

13 comentários:

Um Jeito Manso disse...

Belo artigo, Embaixador, e quase concordo consigo.

'Quase' porque não acho que seja ideologia. Hoje estou certa que é apenas burrice.

Se me permite, deixo-lhe o link para o que acabei de escrever:

http://umjeitomanso.blogspot.pt/2014/10/psd-e-cds-esta-gente-falhou-em-tudo-e.html

GARAGEM DE AMIGAS disse...

Subscrevo na íntegra e partilhei na minha página do Facebook. Ana Filgueiras

Anónimo disse...

O problema é que no MNE foi o PS com Amado e a sua delegação de competências a um chefe de gabinete de Relvas para gerir a política de recursos humanos que foi parte desta anomia. Enquanto que nos tempos de Rosa Lã não se chegava a embaixador em Paris sem primeiro ter feito Bissau com Amado começou o salto à vara, intrinsecamente perverso, de lançar jovens turcos diretamente para Embaixadores vindos imediatamente antes de simpáticos postos como Barcelona ou Boston. Eu, socialista, me confesso: não votarei PS sem ter garantias de que Amado não regressa ao MNE para tornar a dar abébias aos jotas do PSD.

Portugalredecouvertes disse...

então não devia ser a UE a dar um rumo a todos?

Anónimo disse...

O grande problema é que para além do total descrédito na classe política vigente, a esperança que a oposição viesse fazer alguma coisa esbateu-se com a vitória de Costa e a eleição de Ferro para líder parlamentar. Se Seguro não era bom. Costa é o prolongar de Sócrates. Alguém que jamais deixará saudades. Precisamos de sangue novo. De novas ideias. De novas pessoas que não estejam conotadas com o sistema.
Quando vemos que CML dá € 40.000 à Fundação de Mário Soares, como poderá o País não sofrer de anomia.
Com € 40.000 a CML limpava todas as sargetas do País e ainda sobrava dinheiro. O que faz a Fundação Soares pelos olissiponenses que a mim ainda não fez????

Anónimo disse...

é preciso evangélica paciência para ouvir logo pela manhã as futuras viúvas passistas saudosas do seu seguro de vida...

Anónimo disse...

“colateral casualties” é muito bonito... Só isto já era suficiente para dar credibilidade ao texto.

Joaquim de Freitas disse...

Não acordará Senhor Embaixador. Depois de séculos de grandeza graças às descobertas e às riquezas arrancadas das terras conquistadas, onde o ouro serviu para decorar as igrejas e comprar ninharias nos países que se tinham industrializado, tais como a Flandres e a Inglaterra, em vez , precisamente, de desenvolver o pais e primeiramente o seu povo, Portugal, após esta era faustosa para os exploradores do Império, caiu no obscurantismo salazarista e meio século se perdeu assim. Meio século durante o qual o povo será obrigado a partir mais uma vez para o estrangeiro, não como conquistadores mas como mão de obra barata.

Após o obscurantismo veio o tempo das conquistas sociais e , antes de mais, da liberdade, que a Revolução tinha prometido.

Mas "semear" a liberdade em terra" pobre", antes de fertilizar a terra com valores tais como os deveres e os direitos, sem que ninguém saiba onde começam uns e acabam os outros, isto é: criar cidadãos antes de criar votantes dotados do espírito cívico correspondente, e criar beneficiários antes de criar uma economia que os suporte, sem tocar nos privilégios da minoria dominante que açambarcou desde sempre a riqueza da Nação, levou à situação que hoje conhecemos.

Os ideais da Revolução foram simplesmente escamoteados. E os anseios do povo, ignorados.

Para mais, quando o dinheiro chegou do estrangeiro facilmente, os mesmos oportunistas de séculos e séculos, os mesmos de ontem, cá estavam para o desviar para os seus próprios interesses. A corrupção, o roubo descarado , acabou por ser a opção adoptada por aqueles que na politica e nos negócios querem ganhar mais e mais depressa.

Vemos bem que o Dinheiro pode ser o pior inimigo da democracia. Ele é também a condição de existência.

Caso para perguntar se a democracia representativa ainda é capaz de representar os cidadãos nas sociedades desmanteladas , entaladas entre uma massa cada vez maior de excluídos e os privilegiados, estes cada vez mais arrogantes e mais poderosos.

Mais que nunca, o Estado moderno é o instrumento da exploração do povo pelo Capital. Na república dita democrática, a riqueza exerce o seu poder, duma maneira indirecta mas, hoje, ainda mais segura , numa aliança objectiva entre o governo e o dinheiro.

A república democrática é a melhor forma politica possível do capitalismo. O Capital , depois de a ter conquistado, estabelece o seu poder tão solidamente, que este não pode ser abalado por nenhuma mudança de pessoas, de instituições ou de partidos.

Anónimo disse...

Passistas???

Onde houve comentários desses?

Esse....nunca devia ter tido um minuto de atenção.

Se houve uns que abriram largamente a cova, esse cavou-a bem fundo.

Anónimo disse...

Na hora:

"Cacilheiro de Joana de Vasconcelos, pode atracar finalmente na Praça do Comercio.
Na sequencia das inundações provocadas em Lisboa por sucessivos casos "atipicos" originados por nuvens que não respeitaram o que está definido no plano urbanoarquito-correcto, resultado das intensas comissões e estudos sobre a questão dos rios subterrâneos e suas ligações eescondidas á tronitroancia dos magarefes instalados nos diversos pátios-com-cheiro a bafio de séculos.

Portugalredecouvertes disse...

permita-me que penso no que escreve o Sr. Defreitas:
"O Capital , depois de a ter conquistado, estabelece o seu poder tão solidamente, que este não pode ser abalado por nenhuma mudança de pessoas, de instituições ou de partidos."
Assim também penso que Portugal sempre se desgastou para manter as colónias, em geral lá se vivia melhor do que cá, assim disse o meu pai que esteve algum tempo em Angola antes da guerra, para esses territórios longínquos se enviava os melhores artistas, e grande parte das pessoas trabalhadoras do país para criar as quintas, e construir as cidades mais airosas e cheias de monumentos do que no continente, enquanto o pais se despovoava durante séculos isso aconteceu, tendo em conta o numero reduzido de habitantes;
então "o capital" como diz não se compadece de nada

EGR disse...

Senhor Embaixador: integralmente de acordo quanto a substancia e sugestivas qualificações quanto aos "meritos" de quem desgraçadamente nos governa.

opjj disse...

A despesa nunca poderia diminuir. Pedem-se; juízes, trabalhadores judicias,polícias de todo o género,professores, militares,finanças,etc. entram uns milhares.Pede-se tb dinheiro fora para logo sair na compra de 180.000 carros só este ano.
Nem a assembleia da república deu o exemplo comprando português de Palmela.
Bonitos discursos não mudam nada.
Cumps.

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