Não ouvi a canção que Portugal levou este ano ao festival da Eurovisão. Mas acho o título deliciosamente português: "Há dias assim". Mais ou menos "assim" são quase sempre os dias das nossas noites na Eurovisão...
Sou de um tempo em que o festival português da canção e, depois, o da Eurovisão, paravam o país, comigo incluído, bem entendido. Lembro-me bem de uma noite de 1967, no Porto, em que só uma réstea de bom-senso me fez optar por ir para o "galinheiro" do Palácio de Cristal, ver um Portugal-Espanha em hóquei, em vez de assistir, na sala de TV do Centro Universitário, à vitoria de "O vento mudou", de Eduardo Nascimento. No ano seguinte, colaborei com o júri que, em Vila Real ("Aqui vão os votos do júri de Vila Real: canção número 1..."), certificou a escolha de "Verão", de Carlos Mendes. Em 1969, Simone de Oliveira quase que trasladou para a final da Eurovisão, em Madrid, a "alma" do país, com a "Desfolhada". A dimensão popular da sua recepção em Santa Apolónia derrotou a chegada do Porto de Humberto Delgado, em 1958, e estabeleceu uma fasquia a que Mário Soares não conseguiu estar à altura, quando regressou do exílio, em 1974.
Esse foi também o início do cíclico, angustiado e também muito lusitano tempo das "vitórias morais", da denúncia das sinistras conspirações internacionais contra as nossas inspiradas obras, pela óbvia perfídia dessa Europa a que já havíamos aderido vocalmente "avant la lettre". Tempo que passou a consagrar, com a vitória interna, a saudável presença de José Carlos Ary dos Santos nestas lides musicais. A textos seus se ficaram a dever alguns dos melhores momentos do festival.
A canção vitoriosa em 1974 foi a senha da Revolução de abril, com Paulo de Carvalho a cantar "E depois do adeus". O adeus à ditadura foi, para mim, o início do adeus ao festival. Em 1975, um capitão de Abril (!) representou Portugal na Eurovisão, num escusado pleonasmo político-musical. Seguiram-se dois anos de canções militantes para, finalmente, o nosso país passar a eleger coisas com títulos tão significativos como "Dai-li, dai-li dou", "Sobe, sobe, balão sobe" ou outros com idêntica profundidade. Nuns anos, ainda houve recaídas para o cançonetismo de "mensagem", noutros, há que reconhecer, aconteceram momentos musicais com alguma graça e qualidade. Muito poucos.
A presença da canção portuguesa nos festivais da Eurovisão é, desde o primeiro dia, desde 1964, um dos raros momentos do ano em que a política externa portuguesa é assumida pela generalidade dos cidadãos do nosso país: "vamos a ver se os "nuestros hermanos" votam ou não em nós!"; "ainda estou para saber para que serve a velha Aliança? Os "bifes" deixaram-nos cair"; "espero que os nossos emigrantes ponham a França a nosso favor"; ou "e deixámos nós aqueles tipos entrar para a Europa para agora não nos darem nem um pontinho...". E só registo os comentários publicáveis, claro. João Abel Manta retratou como ninguém, em tempos de ditadura (e, julgo, teve um ridículo processo censório por isso), esse "musicopatriotismo", como a imagem acima atesta.
"Há dias assim..."? Há, são sempre assim os dias "eurovisionários" dos portugueses, os quais, como dizia o Dr. Salazar, que disso manhosamente se aproveitava, "gostam de viver habitualmente".
5 comentários:
Que maravilha!!!
Uma delicia "assim" so poderia vir daqui! Espantosa a sua arte de contar e que memória Senhor Embaixador! Esta noite regalei-me à conta do Douro, do festival da canção e do João Abel Manta! "Há dias assim":)!
Sublime!!!
Eu diria que também 'Há festivais assim". Não sou do tempo das grandes baladas portuguesas que Portugal levou nos anos 60, porque já nasci em 'cima' da década de 80. Mas sou - ou era - uma espectadora atenta da eurovisão. Tenho perdido o interesse ao longo dos anos, e não sei até que ponto Portugal não deveria desistir ou colocar a eurovisão em stand-by. Há anos em que levamos concorrentes muito maus, mas também anos houve em que levamos coisas muito boas, recordo a Vânia Fernandes em 2008. Tenho a sensação que quase que somos obrigados a levar uma música em inglês e ainda assim temos que lutar contra a nossa 'pequenez', modesta importância na política internacional e eternas politiquices e 'mafias de leste' que dominam o sistema de votação. Não acho essencial que Portugal se faça representar, e em 43 anos de nada ganhar talvez devêssemos 'arrumar as botas'.Esta não é de todo uma opinião pessimista. Peço desculpa pelo comentário demasiado longo...
Que saudades do João Abel!
Adorei este seu post.
Ao lê-lo rememorei os seroes de Festival da Cançao em que prenchiamos uma grelha familiar com as nossas votaçoes. E no dia a seguir brincava com as amigas aos festivais da cançao.
Gosto imenso de "O Vento Mudou" mas tenho uma predilecçao pela versao pop dos "Delfins".
Mas tudo muda...e no passado sabado adormeci no sofa : ( e quando acordei à 1h da manha foi so para perguntar : Quem ganhou ?
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