Há uns anos, uma pessoa minha conhecida viu-se obrigada a passar algumas horas num sofá num corredor do Palácio das Necessidades. Dessa circunstância de involuntária "seca" resultou-lhe uma curiosidade: o que é que significava o regular trânsito de umas senhoras, de bata cor de cinza, que andavam, de um lado para o outro, com umas caixas de madeira na mão?
Confesso que, num primeiro momento, não identifiquei o cenário descrito, talvez porque o não isolava no meu quotidiano. Depois, pus-me a pensar e decifrei o mistério.
Confesso que, num primeiro momento, não identifiquei o cenário descrito, talvez porque o não isolava no meu quotidiano. Depois, pus-me a pensar e decifrei o mistério.
As principais comunicações escritas entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e as nossas embaixadas, missões e consulados são chamadas de "telegramas", o que resulta do facto de, no passado, tais mensagens seguirem por via telegráfica. Porque então os telegramas se pagavam à letra ou à palavra, e para evitar custos, a regra era serem redigidos numa linguagem sujeita a uma severa economia de artigos e proposições. Isso criou mesmo, na nossa profissão, um tipo de escrita que alguns tradicionalistas pretendem ainda preservar, porque a identificam como fazendo já parte de uma nobre liturgia da "carreira".
Os tempos mudaram, do uso dos correios passou-se ao telex, agora ao e-mail, mas o nome de "telegrama" permanece no jargão da casa. Largas centenas de mensagens desse género constituem hoje a nossa "telegrafia" interna, impressa em papel laranja no caso dos textos recebidos e em papel verde para os expedidos (a futura passagem à transmissão em suporte informático, sem impressão, vai depender da capacidade de modernização dos nossos quadros diplomáticos). Assim, os "telegramas" partem da "Secretaria de Estado" (nome que, ritualmente, entre nós, damos ao Ministério, em Lisboa, e que alguns confundem com as diversas secretarias de Estado nele existentes) e são recebidos dos postos no estrangeiro, sendo difundidos pelos diversos departamentos internos, em função dos temas neles abordados.
Os tempos mudaram, do uso dos correios passou-se ao telex, agora ao e-mail, mas o nome de "telegrama" permanece no jargão da casa. Largas centenas de mensagens desse género constituem hoje a nossa "telegrafia" interna, impressa em papel laranja no caso dos textos recebidos e em papel verde para os expedidos (a futura passagem à transmissão em suporte informático, sem impressão, vai depender da capacidade de modernização dos nossos quadros diplomáticos). Assim, os "telegramas" partem da "Secretaria de Estado" (nome que, ritualmente, entre nós, damos ao Ministério, em Lisboa, e que alguns confundem com as diversas secretarias de Estado nele existentes) e são recebidos dos postos no estrangeiro, sendo difundidos pelos diversos departamentos internos, em função dos temas neles abordados.
As tais misteriosas senhoras de cinzento, a que se referia esse meu conhecido, eram parte, nem mais nem menos, do "pelotão" de contínuas que iam e vinham entre o serviço da cifra (a maioria das nossas comunicações são "cifradas", para evitar a furiosa curiosidade de terceiros sobre os nossos grandes segredos...) e os vários departamentos geográficos ou temáticos, onde o respetivo chefe era o poderoso detentor de uma pequena chave que abria a caixa de madeira e que lhe dava acesso à "telegrafia" que lhe era destinada.
Ontem, ao passar por um gabinete do Ministério, vi chegar, pelas mãos de um matulão já sem qualquer farda e com uma dignidade de vestimenta de quem poderia estar a entregar pizzas ou coisas afins, uma mala toda modernaça, metalizada, com um código que o destinatário utilizou para receber o "molho" de telegramas.
Não tenho nenhuma saudade particular das malas de madeira (até porque "herdei" a da foto, não me perguntem como...) e, reconheço isso com facilidade, os novos recipientes metálicos parecem bem mais seguros. Mas, depois de algumas décadas de casa, deixem-me sentir um pouco nostálgico daquela antiga coreografia, feita da silenciosa circulação de tais senhoras, vestidas de um discreto cinzento, percorrendo sem pressas os longos corredores alcatifados do palácio, portadoras inconscientes de grandes segredos do nosso pequeno mundo diplomático.
9 comentários:
Deu para sentir o «cheiro» à coisa... Daria uma bela atmosfera para um conto, ou um poema, mas seria obrigatório que a «pessoa conhecida» fosse uma mulher. Para mim era... :)
Abraço.
Quanto à dita "linguagem telegráfica" dos diplomatas, creio que hoje não tem qualquer razão de ser, face aos avanços da técnica. Dizia-me alguém do meio que ela apenas se mantém para ocultar a incapacidade de escrever bom português de um número apreciável de diplomatas.
Foi lida com apreço digressão memorialista Vexa. Apraz-nos informar não, repito não, está horizonte SE, desaparecimento "senhoras cinzento", cuja manutenção em funções, agora, eventualmente, com distinta identificação cromática, muito tem contribuído para preservação clima placidez e adequada rapidez leitura telegrafia quotidiana.
Nestas circunstâncias, poderá Vexa levar conhecimento seus leitores SE continua ter conta tradicional regra enunciada M. Talleyrand-Perigord, Príncipe de Benevento, como alicerce actividade diplomática: "Surtout, pas trôp de zèle".
Na verdade, ainda hoje continuam a circular as tais malas de madeira. Talvez não tantas como noutros tempos, mas que o digam alguma senhoras que acarretam com elas e os seus destinatários. Ainda outro dia, de passagem por Lisboa, lá vi uma a entrar e outra a sair da porta do Departamento da Cifra. Mas mais extraordinária relíquia, já há muito fora de uso, mas “em exposição” na dita Cifra, eram aquelas velhas máquinas de cifra de origem sueca, onde se escrevia os tais telegramas em Posto e ia saindo uma fita estreitinha de papel, em texto cifrado, que por sua vez era recebido em Lisboa, na tal Secretaria de Estado, na Cifra e um funcionário decifrava. Acontece que como o processo de cifrar e sobretudo de decifrar telegramas através das tais máquinas era moroso, as instruções eram claras para que se evitassem comunicações longas. Uma vez, ainda um simples 2º Secretário de Embaixada e então nas funções de “Encarregado de Negócios a.i”, com o Embaixador em férias, redigi um “Tel.” demasiado longo e recebi logo uma “rabecada” de Lisboa e bem merecida!
Bem gostava de ter conseguido obter, para recordação, uma dessas maletas de madeira.
“Adido de Embaixada”
Senhor Embaixador
Afinal o "cunho público" não difere muito de casa para casa.
Na minha, o Banco de Portugal, quando para lá entrei, as ditas senhoras trajavam de bata azul. Só que essa bata - igualitária - não se destinava apenas às contínuas. Era de âmbito mais vasto.
A mala, essa, servia para transportar os envelopes dos salário que, à época, recebíamos em espécie!
Entre os verões de 2005 e 2006 - ano em que habitei o 3º andar do MNE - vinha às vezes ao corredor ver o bailado das senhoras e das suas malinhas de madeira que passavam, duas vezes por dia, de e para a cifra. Desses momentos ficavam sempre sentimentos contraditórios, entre a graça daquele movimento quase perpétuo e a fúria do Séc. XXI não conseguir entrar no Palácio das Necessidades. Pouco terá, aparentemente, mudado.
Estava a pensar...
Que o Sr. nos desvenda a sua dimensão saudosista do Presente com saudades do Futuro e do passado.
Porquê de madeira?
Por analogia e eventualidade da transformação em "Cinzas" para complementar o apogeu da coreografia num final como se quer de impacto, o lado ardente das cinzas está no percurso esse o do corredor...
Depois, a mim também me parece uma caixa dissimulada de mala, só porque tem asa.
Adotando o ponto de vista de Klatuu o embuçado(também acho interessante ter-se batizado assim a si próprio) para mim ou é homem...Ou uma mulher Maria/Rapaz...
Como é possivel não perceber o desconforto de transportar uma "mala" "caixa" de madeira... Espero bem que não seja maciça, muito menos pau santo...
Hum ... parece ...
Agora não sei qualificar se foi sem querer...Mas vou toda contente e convencida... Vestir um fato.
Isabel Seixas
Ah! Cinzento com uma subtil lista rosa, lilás, rosa velho... Poderia ser outra cor qualquer
Irrelevante o que eu gostei foi da dignidade.
Na minha actividade de investigação li muitos telegramas em papel rosa ou verde no Arquivo do MNE e devo dizer que a regra de mera economia no custo dos mesmos se reflectia muito positivamente na concisão e até na clareza das mensagens, assim libertas de muita ganga, tradicional nas comunicações entre gente lusitana. Não me tinha ocorrido o problema do custo, tanto mais que os CTT são do Estado. Eu pensava que era uma questão de economia de tempo e de trabalho, sobretudo para os cifradores/decifradores, já nem falo dos ocupadíssimos destinatários.
Abraço
Zé Barreto
Zé Barreto tem provavelmente razão.
Quem ainda trabalhou com diccionários ou com a máquina de rotor (como se chamava? C-qualquer coisa...)sabe o tempo que demoravam as operações cifrar/decifrar, muitas vezes executadas letra a letra.
O custo do telegrama teria influência - lembro a Zé Barreto que o telegrama era, muitas vezes, enviado do exterior e, portanto, utilizando serviços diferentes dos CTT. Mas, sem dúvida, a dificuldade suplementar das operações cifrar/decifrar se fosse usada "linguagem normal" era o factor essencial.
Jubilado
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