O Brasil é, por estes dias, um país estranho. A divisão esquerda-direita, que faz as delícias da caricatura política pela Europa, não funciona por lá exatamente da mesma forma, no instante do voto. E na memória das pessoas.
Vou contar um episódio passado em Salvador da Bahia, em 2006. Numa reviravolta política que, à época, pareceu surpreendente para muitos, o PT tinha acabado de ganhar, na pessoa de Jacques Wagner, o governo do Estado, simultaneamente com a reeleição de Lula para a presidência da República. O anterior governador, Paulo Souto, fora copiosamente derrotado. Ele era, a nível local, a face mais evidente da força de um grande “cacique” político, António Carlos de Magalhães, conhecido por ACM, que acabara de sofrer talvez a sua maior derrota política.
ACM era uma figura muito polémica. Fora um “filho” da ditadura militar, membro da Arena, o “partido” dos militares, que a democracia viria a converter em PFL e, depois, no DEM, que hoje existe. ACM era tudo isso mas, para nós, fora sempre um amigo de Portugal, fiel em momentos difíceis. E o embaixador português, nesse momento de derrota do velho político, não podia esquecer isso.
Nessa manhã, o novo governador, o “petista” Jacques Wagner, dera-me uma receção de luxo - aliás, portar-se-ia impecavelmente connosco, ao longo do período do seu mandato em que com ele coexisti. No final do encontro no palácio do governo, não longe do aeroporto, onde o fui cumprimentar, escassos dias depois da sua retumbante vitória (eu queria ser o primeiro embaixador a fazê-lo), deixei as coisas bem claras: “Gostava que soubesse que, esta noite, no hotel Convento do Carmo, onde ficarei, vou oferecer um jantar a ACM. Sempre foi um bom amigo de Portugal e nós não esquecemos isso”. Wagner olhou-me, da sua barba quase cubana num perfil sereno de burguês, e comentou: “Faz muito bem, embaixador. O ACM é um político que faz parte da história do Brasil. Teve a gentileza de me ligar na noite das eleições. Eu era amigo do seu filho, o Luiz Carlos, que morreu. Um destes dias, vou encontrar-me com o ACM. Preciso de conversar com ele”.
Nessa noite, a jornalista Maria João Avillez, que por acaso estava na Bahia, testemunharia a confirmação que ACM me fez da amizade e respeito entre o seu filho e Jacques Wagner, por cima da política que os dividia.
Nessa noite, a jornalista Maria João Avillez, que por acaso estava na Bahia, testemunharia a confirmação que ACM me fez da amizade e respeito entre o seu filho e Jacques Wagner, por cima da política que os dividia.
Continuei depois a viagem para o hotel, no carro do governo. O motorista era um homem bem disposto, com quem fui trocando impressões sobre a vida, sobre Salvador. A certa altura perguntei-lhe: “Está contente com a vitória do Lula?” O presidente tinha acabado de ser reeleito, com uma forte votação na Bahia. “Muito! O Lula é excelente! É um grande presidente. Vai fazer muito pela Bahia”. Continuávamos pela estrada que nos levava ao centro da cidade, com muita obra de infraestrutura à vista. E não resisti: “E o ACM? O que é que as pessoas, aqui na Bahia, acham do ACM?” A pergunta ia em claro contraciclo do elogio que o homem acaba de fazer a Lula, adversário jurado do político baiano. Mas eu é que estava equivocado, porque, para ele, a resposta era muito simples: “O ACM? Foi ele quem nos deu tudo isto! O ACM foi um grande homem. Devemos-lhe muito!” E continuou a conversa.
Hoje, o “Público” cita um alegado familiar de Francisco da Costa Gomes a dizer: “O que temos devemos aos militares”. Partindo do princípio de que não estava a falar do apelido comum, mas da herança da clique fardada que deu ao país mais de vinte anos de ditadura, só podemos concluir que, em política, o Brasil está longe de ser um país linear.