quarta-feira, março 28, 2018

“Cumué?”


No regresso pascal à cidade de origem, os encontros de rua com gente da minha geração têm rituais sedimentados, por décadas. A anteceder o abraço forte e franco, surge quase sempre a frase: “Então, cá por cima?” ou, numa variante, “Então, vieste à Bila?” (com “b”, claro). Alguns, menos crentes de que a minha visita se possa fazer sem sacrifício das “delícias” da capital, acrescentam ainda: “Tem que ser, não é?”. 

Ontem, num passeio pela rua Direita, a antiga artéria principal da cidade, hoje transformada num cemitério ou quase de lojas comerciais, mas que tenho por ritual percorrer sempre que venho à cidade, fui surpreendido por outra expressão, que já não ouvia há alguns anos, mas que fez escola por muito tempo: “Como é?” (”cumué?”). É uma pergunta que não exige resposta, equivalente a um “Atão?”. 

Fez-me muito bem ouvir isto. E deu-me uma ideia. Um destes dias, em Lisboa, vou testar a expressão à chegada a uma reunião que tenha grande formalidade. Sempre quero ver qual será a cara de alguns fabianos...

O Bragança


Não era um homem muito simpático, diga-se. Vendia jornais, revistas, tabaco e meias-folhas de papel selado, nesta loja, no centro de Vila Real. Tinha uma empregada muito pequenina, faladora e agradável, que compensava, em atitude, o défice de comportamento afetivo do patrão. 

Mas estou a ser um pouco injusto: o Bragança (o “senhor Bragança”, como eu naturalmente o chamava) tratava-me bem. Durante anos, fui o “menino”. Depois, já eu matulão, deixei por um tempo de ter designação. Com a ida para a universidade, passei a “senhor Costa”. E assim fiquei, que me lembre, até entrar no governo. Uma tarde, numa visita a Vila Real, o Bragança recebeu-me com um raro sorriso rasgado: “Tenho aqui uma entrevista que o senhor doutor deu ao Notícias”. E mostrou-me duas folhas do JN, já com meses, que amavelmente guardara. O seu já então episódico cliente vinha nos jornais. E subira um furo mais na designação.

Na adolescência, comprava por lá, religiosamente, “A Bola”, então a minha bíblia desportiva trissemanal. No final dos anos 60, nas férias da universidade, o Bragança guardava-me, a cada semana, “A Vida Mundial” e um dos três exemplares do “Diário de Lisboa” do dia anterior que, ao final da manhã, chegavam à cidade, e que eu ia logo devorar para o café. Mais tarde, reservava-me o “Expresso” e “O Jornal”.

Com o Fernando “Choco” e o Albertino “dos jornais”, muito antes do Pelinhos engraxador (e comunista) na Avenida, o Bragança era um dos grandes fornecedores de imprensa à cidade. 

O local era também um lugar de tertúlia, como o eram a Farmácia Barreira, na rua Direita, e a relojoaria do Salgueiro, na rua Central. Nas conversas no Bragança lembro-me que preponderava o Dr. Elísio Neves, oftalmologista, bom amigo do meu pai, no triângulo do seu trânsito da Pompeia, o café em frente, para o consultório, sobre a pastelaria Gomes. 

Filho de um velho “chofér” de praça que recordo com o boné preto da profissão, o Bragança, que sempre estava elegante, de fato e gravata, era casado com uma senhora loira, com um ar muito arranjado, redonda de carnes, que mantinha uma loja de cabeleireiro de senhoras no piso superior, com entrada pela tabacaria. Estava longe de ser o cabeleireiro “top” da cidade, mas a localização era imbatível. O Bragança tinha fama de ser um homem rico, presumo que não pelos jornais que vendia, mas pelos edifícios de que era proprietário ou que herdara, alguns “na marginal”. 

Tenho ainda a imagem do Bragança e da mulher, ambos de costas muito direitas, de braço dado, a caminharem, a passo lento, ao final da tarde, com as lojas a fechar e as luzes a abrir, pelas ruas já quase desertas da cidade, a caminho de casa, cruzando-se comigo, a sair do bilhar do Excelsior e a dizer-lhe: “Boa noite, senhor Bragança”.

Por que é que agora me lembrei disto? Passei pela tabacaria do Bragança, ontem à tarde. Está fechada, no estado que a fotografia mostra, aliás não muito diferente de imensas outras casas no centro histórico de Vila Real. É um ambiente algo desolador, mas bem comum a muitas terras portuguesas.

Verdade seja que, nos últimos anos, já depois do próprio Bragança ter desaparecido da circulação, o interior da loja, que noutros tempos fora ordenada e era um espaço bastante decente, apresentava o aspeto de um verdadeiro caos: a imprensa amontova-se no balcão e pelo chão. Algumas revistas velhas, amarelecidas, jaziam espalhadas a esmo pela indescritível montra. 

O anúncio da morte a prazo da tabacaria começou a ser dado pelo caráter errático da sua abertura. Presumia-se que a loja estava aberta se, no exterior, surgia pendurada uma régua de madeira com molas, de onde pingavam algumas revistas já sebentas e datadas, incompráveis, naquele estado. 

Um dia, sei lá quando, a loja não abriu mais. A cidade nem se terá dado conta, outros locais de venda de jornais há muito a substituíam. Acabou “o Bragança”, a vida continuou. 

Só a mim passou pela cabeça recordá-lo. Logo eu, que o não achava muito simpático. Mas é talvez, subliminarmente, a maneira de me penitenciar pela crueldade da minha memória. É, deve ser isso.

Arnaud Beltrame


Não me sentiria bem se não deixasse aqui uma fotografia, em jeito de singela homenagem, a alguém que soube dar um exemplo limite do sentido de dever público e que foi capaz de transformar um gesto espontâneo e extremo de solidariedade num raro exemplo cívico.

terça-feira, março 27, 2018

Coimbra B


O comboio acaba de fazer uma breve paragem em Coimbra B, no caminho ferroviário entre Lisboa e o Porto. Para quem não saiba, convém esclarecer que Coimbra tem uma estação no centro da cidade, designada por Coimbra A, de onde se toma uma ligação para Coimbra B. É, daqui, acede-se “ao mundo”...

(Historicamente, era em Coimbra B que os “caloiros”, arribados à universidade da cidade, eram pela primeira vez chamados de “doutor”, pelos carregadores de bagagem, à espera de uma gorgeta pelo “elogio”, que inchava esses incautos novatos.)

Mas hoje trago Coimbra B à baila por outra razão: uma anedota que se contava no meu tempo de liceu.

Alguém de Coimbra quis, um dia, ir de comboio até Qianjin, uma cidade no norte da China. Dirigiu-se à bilheteira da estação de Coimbra A, bem no centro da cidade, e pediu um bilhete. O homem do guichet respondeu-lhe: “Para isso, só em Coimbra B. Eles é que têm as ligações internacionais”. 

Chegado a Coimbra B, a resposta não foi muito mais promissora: “Só na Pampilhosa, meu amigo. Lá é que os comboios ligam a Espanha. Ali é que o podem informar”. 

Na Pampilhosa, de facto, as coisas começaram a compor-se, ainda que não em definitivo: “Vendemos-lhe um bilhete para Paris. Depois, eles lá o encaminham para a China”.

E o homem assim continuou. De Paris foi mandado para Moscovo, dali para Pequim e um dia lá chegou a Qianjin. E por ali ficou o tempo que tinha de ficar, sabe-se lá bem a fazer o quê.

Um dia, o coimbrão decidiu regressar. Dirigiu-se então ao guichet da estação ferroviária de Qianjin. A fila de pessoas era grande (tudo o que mete pessoas, na China, como se sabe, é “em grande”). Esperou pela sua vez e, quando esta chegou, pediu um bilhete para Coimbra, que explicou ser uma cidade em Portugal. Contava-se - mas “vendo-a como ma venderam”, como soe dizer-se - que o chinês, com um ar impaciente, lhe perguntou: “Mas o meu amigo acha que aqui não temos mais nada que fazer? Seja mais preciso, homem! Quer um bilhete para Coimbra A ou para Coimbra B?”

Como disse, passei há minutos por Coimbra B. Lembrei-me do homem e da precisão dos chineses. E acreditem: por este andar, um destes dias, vão chegar “palettes” de chineses a Coimbra. A questão persiste: A ou B?

Lula


É óbvio que Lula vai ser preso. Até pode haver razões legais sólidas para isso e, se as houver, que a justiça se faça. Não tenho conhecimento suficiente do processo para me pronunciar, num sentido ou noutro. Acho contudo infame o processo mediático-político que está hoje em curso no Brasil, pretendendo pressionar a justiça, tentando criar um ambiente na opinião pública para inviabilizar qualquer hipótese de uma outra decisão que não seja a prisão de Lula.

Diplomatas & Russos


Não tenho tempo para escrever muito. Só dá para estes “5 pontos”, como o Amadeu Lopes Sabino fazia na sua saudosa coluna no “Diário de Lisboa” (quem se lembra?):

1. O governo português esteve muito bem ao não fazer parte do grupo de países que anunciou ir expulsar diplomatas russos. Portugal teve atitude idêntica a 10 países da NATO e 13 da UE. As expulsões de diplomatas que estão no exercício de funções bilaterais fazem-se nos contextos bilaterais próprios, tanto mais que não se gerou uma posição conjugada no âmbito da UE, como a que, no passado e noutro contexto, levou à fixação de sanções comuns contra a Rússia.

2. Dito isto, é evidente que o regime de Putin não merece o menor benefício da dúvida, no tocante à plausibilidade de ter mandado cometer o crime. O modo como na Rússia são liquidados ou intimidados os adversários de Putin, naquele sistema que hoje é já um “genérico” de democracia, legitima fundadas suspeitas.

3. Acho patético como alguma esquerda lusitana (parte da qual nem sequer foi, no passado, pró-soviética) assume hoje a Rússia - autoritária, desrespeitadora do Direito Internacional, com escasso apreço pelas minorias e pelos Direitos Humanos - como o seu “campeão” na ordem internacional, apenas movida por um anti-americanismo primário. Tudo à Rússia é perdoado, Putin tem sempre “razão” - na Síria, na Geórgia, na Ucrânia.

4. Ora a Rússia, as vezes, tem de facto razão, como o teve na inaceitável provocação ocidental que levou à desestabilização da Ucrânia, como o tem quando reage às provocações insensatas da NATO nas suas fronteiras.

5. Pena é que essa razão seja titulada por uma figura política que faz da arrogância (também há por cá quem goste do estilo) e da jactância jingoísta a sua imagem de marca. Pode não se gostar de Trump sem ter de se gostar (mais) de Putin.

(Já adivinho os adeptos dos pontos 1 e 4 a não gostarem dos pontos 2, 3 e 5 - e vice-versa. Este é um triste mundo a-preto-e-branco, o das redes sociais, onde o iraniano Maniqueu é rei e senhor)

segunda-feira, março 26, 2018

Evocações


Não guardo papéis e, muito menos, comunicações oficiais. Tenho pena, no entanto, de não ter ficado com fotocópia de um determinado “telegrama” que enviei de Londres, ao tempo em que era “encarregado de negócios”, na ausência do embaixador. Mas ele estará nos arquivos da embaixada e do MNE.

O tema era Gibraltar e o eterno problema que o rochedo constitui para as relações do Reino Unido com a Espanha, que reivindica a posse do território. O governo de Londres instituiu, desde o final dos anos 60, um dispositivo legal que condiciona qualquer evolução do estatuto de Gibraltar à decisão maioritária dos gibraltinos. Como estes, à evidência, preferem manter-se sob a tutela britânica a fundirem-se com a Espanha, o impasse está garantido.

Num dia dos anos 90, o “chief minister” de Gilbraltar, o trabalhista Joe Bossano, foi notícia em Londres, por umas quaisquer declarações, fortemente anti-espanholas. Como a presidência portuguesa das instituições comunitárias de 1992 iria ter esse tema na sua agenda, decidi referir o incidente numa comunicação a Lisboa.

Nesse tempo, os “telegramas” seguiam por fax. Escrevendo nós o texto em computador, dentro de um modelo pré-arranjado, sabíamos exatamente o formato em que Lisboa iria ler os nossos textos e em que página exata ficaria cada linha que escrevêssemos. O meu telegrama tinha uma primeira página de texto e, depois, apenas umas escassas linhas na segunda página. Eu medira tudo ao milímetro e já verão porquê.

Na página principal, descrevi a questão que o “chief minister” de Gibraltar tinha suscitado. Depois, aproveitei para traçar um perfil do político gibraltino. Nas última parte dessa primeira página, devo ter escrito qualquer coisa como isto: “Joe Bossano é um populista, quase demagogo, de verbo fácil, de quem localmente é arriscado discordar. Detém um desmesurado poder sobre o serviço público de Gibraltar, com fama e proveito de ser praticamente o “dono” da região. Tem, além disso, uma palavra muitas vezes cáustica para os adversários, agressiva para a comunicação social que não lhe agrada e, quando lhe apraz, o seu discurso volta-se com facilidade contra o país de que a região depende, bem como contra os políticos da sua capital. Com este perfil, V. Exa. não estranhará, com certeza, que esta mercurial figura, autoritária, arrogante e de uma proverbial rudeza, nos convoque imediatamente à memória um outro líder político bem conhecido, de uma ilha dirigida, anos e anos, sob forte arbítrio pessoal, num estilo desafiador dos próprios equilíbrios democráticos”.

A primeira página terminava aqui. Um amigo, no Ministério, em Lisboa, disse-me, que sentiu um frémito pela espinha, no dia seguinte, ao ler este texto, e pensou para consigo: “Este tipo endoideceu! Fazer estas insinuações, com o governo PSD no poder, é suicida!” 

E lá foi, já em pânico, ler a segunda e última página do “telegrama”. Tinha poucas linhas e dizia qualquer coisa como isto: “Refiro-me naturalmente ao antigo líder de Malta, Don Mintoff, cujo estilo autoritário e o modo atribiliário de governo se constituiu num fator de tensão permanente, na gestão local e na agressividade constante perante Londres, que deu origem a crises recorrentes nas relações com os governos britânicos”. E fechava o texto com a minha assinatura. E o meu amigo logo reduziu a taquicardia que o tinha assaltado...

Dizem-me que o meu telegrama foi lido, com algum gozo, em vários setores do MNE. E não querem ver que, entre algumas pessoas, naturalmente com óbvia má fé, houve mesmo quem pensasse que, no que eu havia escrito na primeira página, podia haver alguma insinuação sobre a figura de um lider regional português?! Há imaginações delirantes!

domingo, março 25, 2018

Manuel Reis


Cruzei-me com Manuel Reis duas ou três vezes na vida, a última das quais, creio, há mais de uma década. Mas, embora conhecendo-o pessoalmente muito mal, acho da maior justiça destacar o papel decisivo que teve na modernidade de Lisboa. Sem Manuel Reis, uma certa Lisboa acabaria por acontecer na mesma, mas não era a mesma coisa.

Máxima


“Um jornal de véspera só serve para embrulhar peixe” 

(máxima do jornalismo, antes de surgir a ASAE)

“Expresso”


Vou, daqui a pouco, ler o “Expresso”, que ontem foi posto à venda, mas que só hoje adquiri. 

Leio o jornal desde o número 1, em 1973. Em alguns sábados da vida, andei dezenas de quilómetros para comprar o “Expresso”.

Que se passou? O que é que matou a urgência da leitura do “Expresso”? Por que será que tenho a (ainda) inconfessada sensação de que, se perdesse um número do jornal, isso não teria a menor importância? Fui eu quem mudou ou foi o jornal?

Em baixa

Ao ver o Alemanha-Espanha, ainda que “a feijões”, dou comigo a rever “em baixa” as expetativas, que já não eram muito elevadas, sobre as nossas hipóteses no próximo mundial de futebol na Rússia.

Catalunha

Não tenho a menor simpatia pela causa da independência catalã. Mas indo por este caminho, a Espanha vai acabar por criar um bando de mártires e, a prazo, vai pagar um preço caro. Um ato de amnistia daria força moral a Madrid, mas com o rei que não tem tudo tenderá a correr mal.

Prior Velho


Prior Velho não é, embora possa parecer, um sacerdote idoso. Trata-se de um arrabalde depois do Figo Maduro, próximo de Camarate, onde uma ideia peregrina, na noite do dia do Pai, com os restaurantes lisboetas a abarrotar, levou um grupo de que eu fazia parte a ir tentar jantar a um daqueles sítios “onde um amigo me disse que se comia magnificamente”. 

Um instantâneo olhar “impressionista” exterior sobre o local da possível amesendação foi suficiente para percebermos que era um restaurante “inível” (isto é, onde não se podia ir), pelo que regressámos à capital, ainda que correndo o risco de prolongar a fome coletiva.

(“For the record”, diga-se que acabámos numa improvável visita à Churrasqueira do Campo Grande, onde se comeu assim-assim, com um serviço caótico, do género empregado-para-dez-mesas, um modelo agora muito em voga e que satisfaz o bolso no patronato).

Lembrei-me desta frustrada incursão ao Prior Velho ao ver ontem nas televisões as imagens de um restaurante daquela localidade que acabava de ser invadido por um gangue de motards, que ali foi agredir um distinto grupo rival, numa cena de “far-west“ onde também entra um gangster da extrema-direita lusa, não fosse por ali o terreno de eleição (no duplo sentido) do vereador racista de Loures. 

Ficou-me, contudo, uma questão: com tanta e tão distinta frequência, seria afinal o restaurante que foi cenário da pancadaria um local do Prior Velho onde teríamos comido bem naquela noite, ou arriscávamo-nos a “comer” pela medida grande? 

Pelo sim pelo não, e talvez injustamente, não tenho o Prior Velho nas minhas prioridades de visitas gastronómicas próximas.

Portugal e colónias



Estou a ler um livro magnífico, uma obra que, em poucos dias, me ajudou a “juntar” algumas peças políticas que mantinha soltas, há vários anos. É um volume extenso, de mais de 800 páginas, mas é um “fresco” indispensável, e muito bem escrito, para entender um dos períodos mais importantes da história política portuguesa no século XX.

Recomendo vivamente, mesmo com entusiasmo, “Contra o Vento - Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, de Valentim Alexandre, um investigador que produziu já vasta e interessante obra sobre o sistema colonial português. Trata-se de uma edição do “Círculo de Leitores” e, estando longe de o ter terminado, dei por muito bem empregue o que paguei pelo livro.

sábado, março 24, 2018

Fraturas expostas


Tenho 5.000 amigos no Facebook, o limite máximo, não podendo entrar mais nenhum enquanto outros não saírem. Há sempre uma solução fácil para provocar a "abertura de vagas”: abordar, em tom radical, um tema fraturante ou divisivo. Há logo alguns que se zangam e saem porta fora. 

Sócrates e o Acordo Ortográfico são sempre, como temas, um "must". Trazer Salazar à baila dá também imenso jeito. Touradas e República/monarquia é dinheiro em caixa. Falar do Sporting, Benfica ou Porto, em tom sectário, traz muitos 'likes" (e "deslikes") garantidos. Há uns meses era a Catalunha, tema em que metade do país queria abrir trincheiras nas Ramblas, com a outra metade a querer, como titulou Rossif, "Mourir à Madrid". Por estes dias, a Catalunha é tão "sexy" como falar da chuva. Varoufakis já foi tema “fraturante”, quando eu gozava com aquelas camisas “à lavradeira”, a moto “à maneira”, a degustação com a “piquena” e vinho francês, com a Acrópole em fundo turístico. 

Só hoje, com o tema Camilo Mortágua, já tomaram a decisão de se “desarriscar" (como se dizia ao tempo da minha escola primária) lá no Facebook alguns "amigos", da minha valiosa quota conservadora, espécie de que por ali temo a extinção. Já fiz entrar quatro que estavam no "banco", tendo cuidado em que tivessem origem ideológica similar, senão a página fica sem graça e baixa o nível de insultos e de polémica para um "share" preocupante (tenho aprendido imenso sobre isto nas minhas funções na RTP). Não é fácil, a gestão disto, podem crer!

Ah! E nunca acreditem que algo se passa por acaso. Ou será que houve algum inocente que pensou que as ironias anti-esquerda no post sobre o neorealismo estavam desligadas, por contraponto, do tom do post Mortágua? ("Mas ele estará mesmo a falar a sério?"). Como dizia a outra senhora, nos títulos dos seus romances: "Sei lá!". É que "Não há coincidências"...

Toninho Drummond


Tinha 82 anos. Sabia-o doente. Acabam de me dizer que morreu. Quando cheguei a Brasília, em 2005, amigo que ele era de outros amigos meus, recebeu-me de braços abertos. Organizou então um jantar que juntou “meia Brasília”, tudo quanto contava na vida política da capital - desde um antigo presidente da República a ministros, de chefes de importantes órgãos federais a figuras do jornalismo, do empresariado e da advocacia. Numa noite, poupei meses na criação da rede de contactos que é essencial ao trabalho de qualquer embaixador. “Só não consegui trazer o Lula”, brincou então.

António Carlos Drummond, conhecido por toda a gente como Toninho Drummond, nasceu em Minas Gerais e era mineiro de alma e coração. Foi jornalista e, em Brasília, por décadas, foi o homem da Globo, reconhecido por ter ajudado a mudar radicalmente a face do jornalismo televisivo na capital federal. 

Era um homem encantador, uma figura cordialíssima, muito generosa, sempre com aquele sorriso bom, com histórias magníficas de um Brasil que passou por muitos e diversos tempos, de que foi testemunha e ator privilegiado. Guardo noites deliciosas a ouvi-lo, com o Tonico Portugal e o Pedro Borio, no jardim da nossa residência ou da sua belíssima casa junto ao lago. E recordo almoços que tivemos a dois no Piantella, o restaurante onde “tudo se passa” na capital brasileira, onde me apresentava àqueles que eu “também tinha de conhecer”, de deputados a “opinion makers”, refeições onde ele me “traduzia” a complexidade do emaranhado político local. Devo ao Toninho muito do razoável conhecimento de Brasília que consegui criar. Mais recentemente, no “gozo” das nossas mútuas reformas, juntávamo-nos em Cascais, na “multidão” selecionada dos excelentes amigos que por cá tinha.

Vou ter muitas saudades do meu amigo Toninho Drummond. Deixo um beijo de grande pesar à Palmira e a toda a família.

Mortágua


Joana Mortágua escreveu um post infeliz sobre o Cristo Rei. Podemos perceber que a estátua, e a sua simbologia, nada diga à deputada do Bloco de Esquerda. A mim também diz muito pouco, mas sinto-me na obrigação de respeitar quantos - e são muitos, sendo mesmo uma maioria, entre nós - alimentam crenças religiosas, as quais, goste Joana Mortágua ou não, são parte integrante e legítima do património de ideias deste país.

Em reação ao comentário, um menino conservador teceu graçolas no Facebook sobre o pai da deputada, Camilo Mortágua. Fê-lo utilizando o mesmo tipo de argumentário que a ditadura usava para desqualificar quantos lutaram contra ela, no mesmo registo que as folhas-de-couve do fascismo utilizavam para vilificar os lutadores pela liberdade. Lembro-me bem dos turiferários oficiais a espumarem raiva na única televisão, das “notas oficiosas” onde se falava do “denominado partido comunista” e misérias similares. Demos-lhes a resposta devida num certo dia de abril de 1974.

Camilo Mortágua, pai de Mariana Mortágua, foi e é - porque, felizmente, está vivo - um valente lutador contra a ditadura, participou no assalto ao navio mercante “Santa Maria”, no desvio do avião da TAP de Casablanca para Lisboa, no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, bem como em outras ações revolucionárias com as quais, como português e democrata, me sinto perfeitamente solidário e cuja execução lhe agradeço e louvo - e que isto fique aqui escrito, preto-no-branco, porque é preciso não ter medo de dizer as palavras justas.

Só a imprensa de uma ditadura que foi culpada por imensos mortos, por uma criminosa guerra colonial, por décadas de perseguições, torturas e prisões que arrasta no seu cadastro histórico, com a PIDE e a censura cobardemente a seu lado, teve o desplante de qualificar como crimes comuns alguns atos justamente praticados, como hoje está mais do que provado, para enfraquecer o regime que iria cair de podre e de ridículo perante a História no 25 de abril. E aproveito o ensejo para prestar uma homenagem a essa outra figura de homem de bem que se chamou Hermínio da Palma Inácio, diabolizado pelos caluniadores anti-democratas.

Alguma direita portuguesa, que nunca conseguiu fazer o exorcismo do Estado Novo, vive ainda uma orfandade envergonhada desses tempos, disfarçada na proclamação da “honestidade” de Salazar, nas acusações, canalhas e comprovadamente falsas, ao desvio das verbas do assalto na Figueira da Foz, numa equiparação miserável das ações da LUAR a delitos comuns - usando precisamente a mesma linguagem que a PIDE utilizava. Aqui pelo Facebook (como se verá em alguns comentários, de forma direta ou ínvia) há ainda muito quem se sinta solidário com a narrativa da António Maria Cardoso.

O meninote que impunenente ataca o nome honrado de Camilo Mortágua não tem culpa, foi provavelmente educado dessa forma. Seguramente que os pais não lhe ensinaram que foi graças a lutadores como Mortágua que hoje usufrui da liberdade que lhe permite escrever as patetices que escreveu. Ou talvez eu esteja enganado: se nada tivesse mudado, ele teria, com certeza, a hipótese de manter exatamente esse mesmo discurso, porque esse era o discurso da ditadura em que se sentiria bem.

Realismo socialista


Houve um tempo da vida em que, como muitos da minha geração e de outras antes, me deixei enternecer pela escola estética do “realismo socialista”, essa arte militante que nos pintava ora figuras prenhes de otimismo ensolarado, caminhando pelas sendas dos “amanhãs que cantam”, ora mostrando as vítimas dos algozes económicos e políticos, desenhadas nos tons sombrios das desigualdades. Na literatura, houve imensos romances maniqueístas, a-preto-e-branco ideológico, que adubaram, por décadas, o nosso imaginário revoltado. E houve imensa poesia, adjetivada de raiva, transbordando de “povo” e de revolução, declamável de peito feito, alimento rimado que nos conclamava a ajustar contas definitivas com o inimigo de classe, ao virar da esquina de uma História que (então) só tinha um sentido. 

Sobraram, é verdade, algumas (poucas) coisas bonitas desse tempo estético, mas outras (muitas) são hoje apenas uns monos que só a afetividade nos inibe de arquivar na prateleira medíocre do património do que, por cá, se chamou “neo-realismo” - porque, “no tempo da outra senhora”, designar isso por “realismo socialista” era insensata ousadia. Com os anos, confesso, passei a achar tanta graça à arte “política” como a alguma “música” militar...

Às vezes, pergunto-me se não teremos mesmo de atualizar a linguagem e se “realismo socialista”, numa “versão” moderna do conceito, não deve também significar, ironicamente, que temos de ser realistas quanto à “quantidade” de socialismo que afinal acabaremos por poder vir a ter...

sexta-feira, março 23, 2018

As soluções e os rótulos


Com assinalável elegância, o deputado europeu do CDS Nuno Melo expressou ontem neste espaço a sua discordância com o que entendeu ser a minha perspetiva “federalista” sobre o processo europeu. E reagiu à “farpa” que eu lhe tinha endereçado, por virtude da sua atitude perante as propostas do primeiro-ministro português.

O senhor deputado está enganado. Nem eu sou federalista, nem a dicotomia europeia essencial, nos dias que correm, opõe os chamados federalistas aos que defendem outras perspetivas sobre o modelo futuro da União. No Parlamento Europeu, uma câmara onde as caricaturas mimetizam o mundo real, alguns desses mitos permanecem de forma retórica. Mas é preciso assumir que há muito mais Europa fora desse areópago viajante entre Bruxelas e Estrasburgo.

A Europa verdadeira já não é assim. Só alguns idealistas acreditam ainda que será possível chegar a uns Estados Unidos da Europa. Só uns escassos dependentes dos esquemas teóricos do passado estão convencidos de que o processo europeu caminhará para o modelo federal, no formato que “vem nos livros”. Os saltos e sobressaltos por que esse processo passou, nas últimas duas décadas, mostraram que o pragmatismo, mesmo no plano do desenho das instituições, é hoje a verdadeira regra do jogo. 

Por muito que isso desagrade a alguns, constata-se que a Europa, por estes dias, se dedica a uma navegação à vista. Os governos que se sentam à mesa do Conselho dependem, a nível nacional, de maiorias muito diversas, têm uma força relativa muito desigual, para além de serem democraticamente obrigados a ter de representar agendas de interesses ou preocupações muito díspares e, não raramente, contraditórias entre si. 

Por isso, os “mandatos” desses governos, autorizando-os a poderem agregar-se na defesa de políticas ou de desenhos institucionais ousados, são quase sempre muito limitados, muitas vezes gerados “à beira do abismo”, em situações limite de sobrevivência do projeto. Mas, por vezes, os países são mesmo confrontados com a necessidade de fazerem essas opções, se quiserem que a Europa realmente vá funcionando, na defesa daquilo que os protege.

Dentro em breve, ao que tudo indica, Portugal pode vir a ter de decidir se quer ou não vir a associar-se à criação de estruturas cumulativas às que hoje enquadram a gestão da moeda única. Elas acarretarão, naturalmente, novas partilhas de soberania. Também os efeitos do Brexit podem vir a justificar modelos criativos de financiamento do orçamento da União, essenciais para a sustentação de políticas que são vitais para os nossos interesses. É isso um salto federal? Confesso que, nos tempos que correm, estou bem mais interessado na eficácia soluções do que no peso semântico dos rótulos.

quinta-feira, março 22, 2018

So long, Dick Haskins!


Se eu escrever que morreu António de Andrade Albuquerque, um cavalheiro de 88 respeitáveis anos, que hoje será enterrado, quase de certeza que isso deixará muita gente indiferente. No entanto, se alertar para o facto de ter desaparecido Dick Haskins, haverá, provavelmente, algumas pessoas que lamentarão que um prolífico escritor de romances policiais nos tenha deixado.

Dick Haskins era o nome literário de Andrade Albuquerque - tal como Ross Pynn foi o de Roussado Pinto ou Dennis McSchade o de um belo escritor que muitos conheciam como Dinis Machado, o autor do magnífico “O que diz Molero” (com a qualidade, um pouco menos notável, de ter sido meu vizinho). 

A literatura policial, por uma qualquer razão, prestou-se bastante ao uso de pseudónimos. Desde logo, a grande Agatha Christie (Mary Westmacott) e Ellery Queen (os primos Manfred Lee e Frederic Dannay). Mas, tendo eu vivido a minha adolescência “embrulhado” em romances policiais (cheguei a ganhar um concurso da revista “Tintin” nesse âmbito), aprendi que alguns dos meus escritores preferidos nesse género tinham nascido com nomes que, eventualmente, achavam vulgares, optando por isso por coisas mais sonantes como S. S. Van Dine ou Ed McBain.

Dick Haskins publicou 24 romances e foi editado em 30 países, o que o coloca no grupo restrito dos escritores portugueses com grande difusão internacional. Ainda no estrangeiro, foram feitos um filme e uma série televisiva baseados em romances seus. O seu primeiro livro foi publicado em 1958, na coleção Enigma, criada na saudosa Ática (onde li Pessoa pela primeira vez e que recordo ter uma pequena e simpática livraria na rua Alexandre Herculano, em Lisboa). Haskins passou também, com naturalidade e justiça, pela histórica “Coleção Vampiro”, que foi, entre nós, um mostruário ímpar da literatura policial internacional.

Deixei há muito o “vício” dos policiais, não sendo mesmo grande adepto desses que agora vêm “do frio”, dos autores nórdicos. Às vezes, numas férias ou em casa de amigos, acabo por pegar num velho “Vampiro” e, nessas alturas, lembro-me de mim noutros tempos a devorar os Simenon ou um belo Hammett. Mas perdi para sempre, já há décadas, o vício de espiolhar os policiais que iam saindo e que, em Vila Real, procurava quase sempre no Libório. Porquê no Libório, o menos simpático dos livreiros da cidade, numa loja esconsa incrustada nas traseiras da Capela Nova? Nunca me esclareci.

Homenageemos Dick Haskins. Como? Lendo-o. Eu vou fazer isso.

Nota

Alguns comentadores deste blogue, por coincidência sempre aqueles que vivem refugiados num confortável anonimato ou em pseudónimos, procuram...