Na trapalhada em que se converteu, a propósito das questões que envolvem a sua administração (desde a humilhante recusa pelo regulador do formato inicialmente proposto, passando pelos montantes salariais até chegar à saga das declarações de rendimentos), a questão da Caixa Geral de Depósitos parece ter esquecido dois aspetos importantes e, estranhamente, nunca ter suscitado a resposta a uma outra dúvida essencial.
O primeiro ponto, que a espuma dos dias parece ter feito diluir, foi o imenso sucesso em que o processo de recapitalização se converteu. De "tabu" para as instituições europeias, como argumentava falsamente a antiga maioria, que assim foi deixando irresponsavelmente afundar a instituição, talvez com vista a força a sua privatização, a Caixa viu aprovado o processo de reforço do seu capital, sem que essa operação venha a contar para o défice (embora nele se reflita de forma limitada, pelo impacto inevitável no serviço da dívida). Mário Centeno e António Costa nunca foram devidamente saudados pelo país por essa importante vitória.
O segundo é um tema em que só alguns "teimosos" insistem ainda em suscitar. Parece haver fortes sinais de que o estado a que a Caixa tinha chegado, para além das naturais decorrências operacionais de qualquer instituição financeira, se ficou a dever a erros e vícios de gestão de algumas das administrações "políticas" que nela preponderaram nas últimas décadas. Como essas administrações o foram no âmbito de um "bloco central" PSD/PS (alargado pontualmente aos centristas), parece ter-se agora gerado um "omertà" no sentido de passar uma esponja sobre esse passado, numa lógica de "o que lá vai lá vai".
Ora isto é muito injusto para gente competente e eticamente impoluta que passou pela administração da Caixa, embora ligada a partidos, cuja gestão proba não pode ser confundida com a de alguns "apparatchik" que, por incompetência ou dolo, tomaram decisões danosas para o interesse público, que importa conhecer em detalhe, chamando de uma vez por todas os bois pelos nomes. É fundamental separar as águas e, com toda a franqueza, não consigo vislumbrar a menor validade no argumento de que uma sindicância ao passado pode vir a afetar a estabilidade da instituição, agora que a recapitalização está adquirida. O silêncio conluiado sobre as zonas sombrias desse mesmo passado é que afeta a dignidade da Caixa e dos agentes políticos que nada tenham a temer - até porque essas seriam lições para um futuro que se deseja não prossiga na mesma linha de irresponsabilidade e fuga às mais elementares regras prudenciais e até de "compliance".
Dito isto, resta-me uma imensa dúvida.
A Caixa foi capitalizada com capitais públicos, como devia ser, fugindo às tentações de quantos pareciam apostar na sua fragilidade para fazer entrar dinheiro privado no seu capital social. Mas se o Estado "meteu" dinheiro público na Caixa, pelo qual todos vamos pagar juros, foi, seguramente, com o objetivo de que o funcionamento futuro da instituição se oriente pelo interesse público, isto é, que a Caixa venha a ser um instrumento operativo das políticas públicas, naturalmente dentro das regras de gestão básicas que qualquer instituição bancária deve seguir.
Ora o que tenho lido daquilo que se espera da nova equipa não é bem isto: a narrativa em torno da Caixa baseia-se na ideia de que uma gestão "independente" deve transformar a instituição num banco "como qualquer outro", razão pela qual a "despolitização" da gestão foi a preocupação central do novo modelo de governança.
E é aqui que a minha dúvida assenta: se a Caixa passa a ser um banco "como qualquer outro", isto é, orientado apenas para ter lucros nessa atividade, sendo essa a razão pela qual que se foi escolher uma gestão profissional "pura", por que diabo o Estado foi lá colocar mais dinheiro? Que me interessa a mim, ou ao leitor, ser transformado num "investidor" numa banca igual à privada, pagando juros pelo capital investido e entregando a gestores técnicos o modo de gerar futuros lucros?
António Domingues é um profissional reconhecido pela sua excecional competência, mas é também conhecido por ter feito parte da administração do BPI, de onde aliás trouxe alguns colegas, uma instituição com uma excelente gestão, mas que sempre seguiu, talvez por virtude da composição do seu capital acionista, uma filosofia muito própria em matéria de crédito, bastante longe daquela que se espera de uma entidade como a Caixa, nomeadamente no que respeita ao crédito às empresas, em especial das pequenas e médias. Circunstância que se torna mais premente, agora que já se perceberam os limites dessa estranha criatura que (não) é “Banco de Fomento”.
O país não precisa de ter uma Caixa Geral de Depósitos que seja, muito simplesmente, uma "máquina" para fazer dinheiro, como é normal ser o desiderato da banca privada. Precisa de ter um banco público que, sem ceder às manipulações político-partidárias e de compadrio que, no passado, iam provocando a sua desgraça, prossiga uma orientação em matéria de política de crédito determinada pelos poderes públicos legitimamente eleitos. Uma gestão prudencial não é contraditória com a circunstância de estarmos perante um banco ao serviço do Estado e dos interesses que este tem obrigação de implementar nas instituições que tutela. Quero com isto dizer, de forma clara, que a nova administração da Caixa não pode ter as "mãos livres" como alguns parece pretenderem que tenha, talvez como passo para um dia reclamarem de novo a sua privatização.
(Artigo que hoje publico no jornal "Público")
(Artigo que hoje publico no jornal "Público")