quarta-feira, novembro 16, 2016

Uma dúvida incómoda


Na trapalhada em que se converteu, a propósito das questões que envolvem a sua administração (desde a humilhante recusa pelo regulador do formato inicialmente proposto, passando pelos montantes salariais até chegar à saga das declarações de rendimentos), a questão da Caixa Geral de Depósitos parece ter esquecido dois aspetos importantes e, estranhamente, nunca ter suscitado a resposta a uma outra dúvida essencial.

O primeiro ponto, que a espuma dos dias parece ter feito diluir, foi o imenso sucesso em que o processo de recapitalização se converteu. De "tabu" para as instituições europeias, como argumentava falsamente a antiga maioria, que assim foi deixando irresponsavelmente afundar a instituição, talvez com vista a força a sua privatização, a Caixa viu aprovado o processo de reforço do seu capital, sem que essa operação venha a contar para o défice (embora nele se reflita de forma limitada, pelo impacto inevitável no serviço da dívida). Mário Centeno e António Costa nunca foram devidamente saudados pelo país por essa importante vitória.

O segundo é um tema em que só alguns "teimosos" insistem ainda em suscitar. Parece haver fortes sinais de que o estado a que a Caixa tinha chegado, para além das naturais decorrências operacionais de qualquer instituição financeira, se ficou a dever a erros e vícios de gestão de algumas das administrações "políticas" que nela preponderaram nas últimas décadas. Como essas administrações o foram no âmbito de um "bloco central" PSD/PS (alargado pontualmente aos centristas), parece ter-se agora gerado um "omertà" no sentido de passar uma esponja sobre esse passado, numa lógica de "o que lá vai lá vai". 

Ora isto é muito injusto para gente competente e eticamente impoluta que passou pela administração da Caixa, embora ligada a partidos, cuja gestão proba não pode ser confundida com a de alguns "apparatchik" que, por incompetência ou dolo, tomaram decisões danosas para o interesse público, que importa conhecer em detalhe, chamando de uma vez por todas os bois pelos nomes. É fundamental separar as águas e, com toda a franqueza, não consigo vislumbrar a menor validade no argumento de que uma sindicância ao passado pode vir a afetar a estabilidade da instituição, agora que a recapitalização está adquirida. O silêncio conluiado sobre as zonas sombrias desse mesmo passado é que afeta a dignidade da Caixa e dos agentes políticos que nada tenham a temer - até porque essas seriam lições para um futuro que se deseja não prossiga na mesma linha de irresponsabilidade e fuga às mais elementares regras prudenciais e até de "compliance".

Dito isto, resta-me uma imensa dúvida.

A Caixa foi capitalizada com capitais públicos, como devia ser, fugindo às tentações de quantos pareciam apostar na sua fragilidade para fazer entrar dinheiro privado no seu capital social. Mas se o Estado "meteu" dinheiro público na Caixa, pelo qual todos vamos pagar juros, foi, seguramente, com o objetivo de que o funcionamento futuro da instituição se oriente pelo interesse público, isto é, que a Caixa venha a ser um instrumento operativo das políticas públicas, naturalmente dentro das regras de gestão básicas que qualquer instituição bancária deve seguir.

Ora o que tenho lido daquilo que se espera da nova equipa não é bem isto: a narrativa em torno da Caixa baseia-se na ideia de que uma gestão "independente" deve transformar a instituição num banco "como qualquer outro", razão pela qual a "despolitização" da gestão foi a preocupação central do novo modelo de governança. 

E é aqui que a minha dúvida assenta: se a Caixa passa a ser um banco "como qualquer outro", isto é, orientado apenas para ter lucros nessa atividade, sendo essa a razão pela qual que se foi escolher uma gestão profissional "pura", por que diabo o Estado foi lá colocar mais dinheiro? Que me interessa a mim, ou ao leitor, ser transformado num "investidor" numa banca igual à privada, pagando juros pelo capital investido e entregando a gestores técnicos o modo de gerar futuros lucros? 

António Domingues é um profissional reconhecido pela sua excecional competência, mas é também conhecido por ter feito parte da administração do BPI, de onde aliás trouxe alguns colegas, uma instituição com uma excelente gestão, mas que sempre seguiu, talvez por virtude da composição do seu capital acionista, uma filosofia muito própria em matéria de crédito, bastante longe daquela que se espera de uma entidade como a Caixa, nomeadamente no que respeita ao crédito às empresas, em especial das pequenas e médias. Circunstância que se torna mais premente, agora que já se perceberam os limites dessa estranha criatura que (não) é “Banco de Fomento”.

O país não precisa de ter uma Caixa Geral de Depósitos que seja, muito simplesmente, uma "máquina" para fazer dinheiro, como é normal ser o desiderato da banca privada. Precisa de ter um banco público que, sem ceder às manipulações político-partidárias e de compadrio que, no passado, iam provocando a sua desgraça, prossiga uma orientação em matéria de política de crédito determinada pelos poderes públicos legitimamente eleitos. Uma gestão prudencial não é contraditória com a circunstância de estarmos perante um banco ao serviço do Estado e dos interesses que este tem obrigação de implementar nas instituições que tutela. Quero com isto dizer, de forma clara, que a nova administração da Caixa não pode ter as "mãos livres" como alguns parece pretenderem que tenha, talvez como passo para um dia reclamarem de novo a sua privatização.

(Artigo que hoje publico no jornal "Público")

O grande dia adversativo


Ele aí está, o imenso dia adversativo, as horas encavacadas, em que oposição, e os seus comentadores económicos encartados, irão engolir em seco.

É demasia areia para aquela carroça: são as estatísticas económicas favoráveis aos objetivos do governo para o país, é a luz verde ao orçamento por Bruxelas, é o fim da ameaça da suspensão dos fundos comunitários e, no topo do bolo, a cereja do anúncio do abandono, dentro de algum tempo, do procedimento por défices excessivos. É demais para um só dia, concedo!

Hoje, para todos esses deserdados das más notícias, é o dia dos muitos e diversos MAS.

Vão ser aos montes os "porém", os "no entanto", os "não obstante" e coisas assim, às vezes travestidas de sábia prudência, na disfarçada esperança de que o 4° trimestre, afinal, acabe por não ajudar à festa da Geringonça.

Não vai ser fácil o dia de hoje para a rapaziada do MAS, para os viúvos da austeridade. Bruxelas e o INE - esses ingratos! - deixaram-nos cair. Isto não se lhes fazia.

Estejam bem atentos, ouçam-nos e leiam-nos com atenção. E se acaso descobrirem algum desses opinadores - um só! - que seja frontal e não tenda a relativizar os números, prometo fazer a minha penitência.

terça-feira, novembro 15, 2016

Universidade


Gostei muito do exercício em que estive envolvido esta manhã, na Universidade de Aveiro. A convite do respetivo Conselho Geral, presidido por Eduardo Marçal Grilo, e do Reitor, Manuel Assunção, tive oportunidade de dar a minha perspetiva sobre os principais desafios portugueses no quadro internacional, concentrando-me, em especial, no papel do ensino universitário nesse contexto. Foram quase duas horas de muito interessante debate, no qual também deixei refletida a minha experiência (2009/2012) como presidente do Conselho Geral da UTAD, bem como as funções consultivas (Coimbra e Nova) e docentes (UAL e Europeia) que atualmente exerço noutras universidades.

A Universidade de Aveiro, onde no passado já orientei teses de mestrado, é hoje uma das mais dinâmicas do país e foi muito curioso constatar que as interrogações que atravessam o seu Conselho Geral refletem a maturidade da reflexão que nela tem vindo a ser empreendida.

No âmbito da Fundação Calouste Gulbenkian, com figuras como Marçal Grilo e Júlio Pedrosa, tenho igualmente integrado, desde há alguns anos, um trabalho sobre a inserção regional do tecido universitário e politécnico, ligando autarcas e empresários - um caminho que parece essencial para um melhor aproveitamento da fantástica rede educativa superior que a nossa democracia criou.

Por modesta que esta contribuição possa ser, acho ser meu dever tentar dar alguma utilidade àquilo que tive o privilégio de aprender, em quase quatro décadas de serviço público dedicado à ação externa.

segunda-feira, novembro 14, 2016

A idade da lua


Dizem que a lua que hoje nos está a maravilhar a noite, e que há pouco vislumbrei por cima da Fraga da Almotolia, arrasando em luminosidade a concorrência local (na minha infância, de um carro com grandes faróis dizia-se: "parece o arraial da Senhora da Pena!", mas esta lua...! ), só terá tido um exempłar similar em 1948. Ainda bem. Gosto da ideia de que a mais bela lua antes desta teve o privilégio de nascer comigo. E, melhor ainda, gosto bastante de andar por cá a ver esta. E espero ainda ver "muitas luas", como dizem os índios que têm o senhor Trump por presidente. Mas esta é lindíssima, de facto!

Miguel Veiga


Morreu um homem livre, que pensava exclusivamente pela sua cabeça, mesmo que isso o obrigasse a ficar sozinho, contra tudo e contra todos. O que algumas vezes aconteceu. Tinha a coragem própria dos que não dependem dos outros, de quantos não mendigam lugares ou prebendas, tendo como única ambição serem eles mesmos. Social-democrata de gema, num espaço político-partidário onde essa espécie quase já só se encontra à lupa, era um saudável heterodoxo, senhor de um discurso afiado e irónico, onde ao traquejo da barra se somava uma convivência íntima com os clássicos e um mundo de debate criativo onde sempre brilhava.

Como pessoa, era uma figura encantadora, culta, cosmopolita, muito agradável, com histórias deliciosas. Gostava das coisas boas da vida, era um epicurista felizmente incurável. E era um cultor feroz da amizade.

Um dia de dezembro de 2002, no Porto, num jantar oficial, num tempo em que eu fora objeto público de uma vilania, aproximou-se de mim e disse: "Meu caro, vi o que lhe fizeram. Deixe-me dar-lhe um abraço forte, com a minha solidariedade". E, como homem do Norte que era, deixou na conversa um qualificativo adequado aos fautores da patifaria. Nunca esqueci esse gesto, vindo de quem vinha.

Estive com Miguel Veiga, pela última vez, na evocação de Artur Santos Silva (pai), que ele fez com brilho, na Fundação Mário Soares, há cerca de dois anos. Senti-o já bastante frágil, longe da graça, quase adolescente, que era a sua imagem de marca. Mas sempre com a inteligência viva e a palavra certa.

Homens livres como Miguel Veiga fazem muita falta ao país cinzento e burocrático que aí anda.

domingo, novembro 13, 2016

Diplomacias

É um "bem elaborado telegrama", com antes se dizia nas Necessidades, aquele que o embaixador britânico nos Estados Unidos enviou, ao final da passada 3a feira, ao seu governo, analisando a vitória de Donald Trump. Nele faz, por exemplo, delicadas avaliações sobre a personalidade do futuro presidente e discretas recomendações sobre o modo como o seu governo deverá atuar perante ele.  Estou certo que, ao escrevê-lo, o diplomata estava longe de pensar que eu ia ler o seu texto, caso contrário não se teria permitido o tipo de comentários que fez, convencido como estava de que a sua análise iria permanecer no secretismo próprio deste tipo de comunicações. Só que assim não aconteceu: eu vim a conhecer o telegrama e, agora, posso dar-me ao luxo de especular abertamente sobre um trabalho profissional que não era previsível que tivesse lido. Eu e os largos milhares de leitores do "Sunday Times", o jornal britânico que, há horas, comprei no aeroporto de Munique, onde vem escarrapachado o texto assinado por sir Kim Darroch.

Fazer diplomacia desta forma, sujeito a estes percalços, não deve ser fácil. A minha sincera solidariedade vai para o diplomata britânico.

sábado, novembro 12, 2016

Berlim, os aviões e eu


Tenho pena que o aeroporto de Tempelhof, aqui em Berlim, onde estou hoje, tenha acabado . E parece que não estou sozinho. Até Angela Merkel terá votado, sem sucesso, contra o fim daquele símbolo da Guerra Fria, um belíssimo edifício do tempo nazi que, desde há alguns anos, permanece sem préstimo, com as pistas transformadas em jardins. As imagens da ponte aérea dos anos 60 do século passado vinham-me sempre à imaginação, nas várias vezes que tive de apanhar aviões em Tempelhof. Por que diabo não tirei uma fotografia de um desses momentos?

Mas não era sobre os aviões a aterrar em Berlim que eu hoje queria aqui falar. Era sobre aviões de papel. A sério!

Entre 1997 e 1999, coube-me coordenar, por Portugal, sob a orientação do primeiro-ministro António Guterres, as negociações financeiras do orçamento comunitário, que viria a vigorar entre 2000 e 2006. Foi um trabalho interessantíssimo, em que Guterres e Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, se foram progressivamente envolvendo, à medida o processo saiu do terreno técnico e passou a estar no domínio das decisões políticas. A conclusão dessa negociação iria caber à Alemanha, durante a sua presidência da União Europeia, no primeiro semestre 1999. (Sendo o principal financiador da União - também o maior ganhador, há que lembrar - é sempre "confortável" ver a Alemanha a assinar os cheques...) A administração alemã fazia, por esse tempo, a sua transição entre a antiga capital, Bona, e Berlim. 

Recordo-me de, nesses escassos meses, ter feito várias viagens a ambas as cidades alemãs. Os meus interlocutores foram variando, nesse período em que a nova coligação no poder, entre o SPD e os Verde, revelava fortes dificuldades de coordenação entre si. 

Nunca esqueci uma tarde, em Bona, em que, saído da Chancelaria Federal, onde tinha ido falar com um colaborador de topo do primeiro-ministro Gehrard Schroeder, recebi um telefonema de um alto responsável do ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, estrutura que tinha sido afastado dessa fase na negociação, pretendendo saber ... o que me tinha sido dito na sede da chefia do governo do seu país! E ainda dizemos nós que somos descordenados!

Mas voltemos ao avião de papel.

Gunther Verheugen, o ministro adjunto para os Assuntos Europeus, passou, na fase derradeira da negociação, a ser o meu contraparte quase diário. A sua relação com o seu ministro "verde" Joshka Fischer não era das melhores, mas o primeiro-ministro Schroeder, como ele socialista do SPD, tinha-o por colaborador direto. E a palavra de Verheugen, a partir de certa altura, era "his master's voice". E isso, para nós, era o essencial.

A negociação tinha uma multiplicidade de vetores, desde as políticas estruturais às questões agrícolas. Foram muitos meses de trabalho, porque partíamos de uma muito má proposta da Comissão Europeia, que foi necessário retificar, quase ponto por ponto. A presidência alemã, depois de um início bastante hesitante, percebeu bem o nosso problema e ajudou-nos, muito graças ao modo construtivo como António Guterres se comportou - procurando identificar e promover os interesses dos outros parceiros que não fossem contraditórios com os nossos.

Os dias finais de Berlim - em Conselho Europeu muito "dramático" - foram muito complexos. Pela nossa parte, tentávamos obter verbas para diversos setores (do leite ao trigo duro e muitos outros produtos, cuja produção nacional desejávamos que fosse apoiada financeiramente). A soma final era importante, até porque seria sempre comparada com o período anterior - e isso não era indiferente politicamente, como se compreenderá. 

Portugal tinha aquilo que Guterres considerava ser um "número mágico" (que não revelávamos) - nosso objetivo ideal. Mas, chegados a Berlim, uma SMS que recebi de Verheugen não nos sossegava. O número que a presidência alemã nos dedicava estava ainda distante do nosso. Recordo ter-lhe respondido, com uma adaptação da frase do Marquês de Sade, na "Filosofia de Alcova": "Alemans, encore un éffort!". Nunca cuidei em saber se ele percebeu a graça...

No dia seguinte à nossa chegada, para a reunião decisiva dos líderes, Guterres, Gama e eu reunimos com Schroeder, Fischer e Verheugen. Verheugen ficou à minha frente na mesa. A conversa era em inglês, entre Guterres e Schroeder, com este a entrecortar com frases em alemão, traduzidas já não sei por quem. 

A certo passo, vi Verheugen pegar numa folha branca de A4 e começar a fazer o que me pareceu ser um avião de papel. E era. Ninguém notara, a não ser eu, que olhava para a cara risonha do meu contraparte, entretido no processo construtivo, com aqueles óculos muito grossos que eram a sua imagem de marca. No final, o "avião" cruzou, baixo, a nossa mesa, aterrando à minha frente. Fiquei com a ideia de que todo o lado alemão não notou. Vi que Guterres ficou curioso, mas não mais do que eu, que, estudadamente, sem qualquer pressa, abri o avião. Lá dentro, havia um número, com dois algarismos: melhor do que o que ele me enviar na véspera, quase igual ao nosso objetivo máximo. 

Olhei para o meu amigo Gunther Verheugen e, com um sorriso, fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça. A tática a isso obrigava. Guterres, à minha direita, continuava curioso. Antes de lhe passar o papel, com o número, recomendei, sussurrando: "Faça uma cara descontente". Guterres olhou para Vereugen, também sorriu e fez um discretíssimo "não". Puxei o papel para mim. Do outro lado de Guterres, vi surgir o rosto impassível de Jaime Gama: naturalmentr, queria saber o que era aquela semiologia. Por detrás de Guterres, passei-lhe o número. Não reagiu. Do lado alemão, atento às palavras de Schroeder, ninguém parecia ter notado o avião de papel de Verheugen. Ou talvez eu esteja errado.

A negociação só terminaria já muito dentro da madrugada do dia seguinte. Para a pequena história, vale a pena registar que conseguimos algo mais do que o nosso "número mágico", um número acima do montante que "aterrara" no avião de papel que Gunther Verheugen me enviara. 

De toda a forma, para mim, Berlim ficou para sempre muito ligado à memória de aviões. E agora, se me permitem, vou imprimir os cartões de embarque para o regresso à pátria.

sexta-feira, novembro 11, 2016

Alfredo Bruto da Costa


Morreu Alfredo Bruto da Costa, um grande homem de bem, uma figura muito rara em termos de consciência social, de preocupação com os mais pobres e desfavorecidos - um imenso lutador contra as desiguadades.

Portugal perde uma personalidade cujo modo sereno e responsável de refletir sobre as grandes divisões sociais lhe grangeava uma natural consideração e um merecido prestígio. Pessoalmente, perco alguém que tinha o privilégio de ter como amigo, com quem, nas últimas décadas, fui mantendo um contacto regular, que sempre me enriqueceu.

O elefante na sala


E se escrevesse sobre Pedro Dias, que a mediocridade mediática promoveu no dia errado? E por que não sobre a Caixa e as suas trapalhadas? Ou, então, a "cultura de balneário" em Alvalade, depois do último jogo? Por fim, fui tentado a adiantar alguma coisa sobre aquilo que, ontem, disse em Berlim, sobre segurança europeia. Mas escrevesse eu fosse sobre o que fosse, o "elefante na sala" ia impor-se: lá está ele a fugir às coisas incómodas!

Falemos então do "elefante", símbolo do Partido Republicano, cujo inesperado representante acaba de ganhar a liderança, por quatro anos, da principal potência mundial. 

Donald Trump ganhou com toda a legitimidade, por muito que isso custe a ouvir. É claro que a sua campanha assentou em propostas e ideias marcadas por um imenso primarismo, por muitas mentiras e meias verdades, pelo apelo a sentimentos básicos, a preconceitos e mensagens perigosas e divisivas. Mas a América é um país livre, onde tudo se pode dizer. Trump teve contra si imensos setores da comunicação social, que, embora em alguns casos sem grande entusiasmo, favoreceram a sua competidora.

E, no entanto, Trump venceu. Venceu porque soube representar, à sua maneira, essa imensa, e pelos vistos maioritária, massa de descontentes, os deserdados da globalização, os temerosos da imigração, os incomodados com o novo curso do “melting pot” que fez o seu país e, principalmente, os enraivecidos com a máquina federal que Trump diabolizou e a que, agora, ironicamente, vai presidir. Trump é a vitória da democracia, no seu lado mais sombrio.

A vitória de Trump tem, para além de tudo o resto, que é muito, um “side effect” perverso, na minha perspetiva. É que ele, e aquilo que ele representa, são a condenação explícita de tudo quanto a presidência Obama trouxe para a América -  a tolerância, o equilíbrio, a atenção às dimensões sociais e étnicas que a “selva” tinha condenado. É o regresso de uma outra América, feita de uma agenda negativa de medos, disposta à clivagem e ao confronto. Mas – repito, para que se não esqueça – essa América é hoje maioritária e, pelas mesmas razões por que nos desagradava a ideia de Trump de que não aceitaria um resultado que lhe fosse desfavorável, as regras da democracia obrigam todos a respeitar esta escolha.

Agora, há que viver com Trump, ou melhor, há que saber desenhar o modo como nos relacionaremos com a América de Trump. Desde logo, na Europa, onde o exemplo do que se passou nos EUA deve ser bem refletido, no caminho para sufrágios que aí vêm. Vai ser um tempo estranho, inédito. Mas o mundo é assim, embora, com Trump, seguramente vá ser um mundo muito mais difícil.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, novembro 10, 2016

Os neo-americanos

Estiveram silenciosos, quase sempre, durante a campanha eleitoral americana. A diabolização de Trump e a expressão maioritária de uma vontade de eleição de Hillary Clinton manteve-os discretos. Dizer bem de Trump e daquilo que ele representava não era politicamente correto. Agora, estão "vingados". Trump ganhou e eles, pouco a pouco, vão emergir dessa clandestinidade. Já podem dizer mal de Obama, sentem-se confortados democraticamente pelo resultado de Trump. E aí surgem  eles nos comentários, cavalgando a onda da nova América, "free-riders" daquilo que ontem mudou. São os "neo-americanos". Alguns colaram-se à agenda dos "neocons" no tempo de Bush, agora aí os veremos colados à nova conjuntura de Trump. O oportunismo sabe adaptar-se às cores dominantes. Nada que seja surpreendente, mas que vale a pena lembrar.

quarta-feira, novembro 09, 2016

Outro mundo


Há não muitas semanas, num seminário na Ucrânia, ouvi da boca de Leon Panetta, figura grada de administrações democráticas, a afirmação de que Donald Trump teria “muito fortes possibilidades” de vir a ser o próximo presidente americano. Devo dizer que, até esse momento, dava a hipótese completamente por absurda, irracional, sem sentido. Talvez porque, como muitos, transformei em certezas os meus desejos, num processo mental que os anglo-saxónicos designam por “wishful thinking".

Os impactos negativos potenciais de uma vitória de Trump eram para mim tão evidentes, a fragilidade das suas propostas tão óbvia, que qualquer racionalidade mínima tornava o cenário implausível. Só que a nossa racionalidade não se impõe à liberdade do voto secreto, por muito que às vezes sejamos tentados a desvalorizar a sua legitimidade.

Talvez mais do que um feito a crédito de Trump, a sua vitória é a constatação, clara e chocante, de que uma parte importante da América se rege por estímulos extremamente simples, assentes em ideias-chave quase caricaturais, por inseguranças e medos, por preconceitos e crenças, muitas vezes incapazes de passarem no teste da verdade dos factos. 

Sabia-se que essa América existia, ironizava-se com esse mundo bizarro que víamos nos filmes, herdeiro moderno das “vinhas da ira”. Não se pensava que a cumulação de todos esses múltiplos fatores de descontentamento e de mal-estar viesse a ter uma expressão tão forte. Trump teve a arte de saber captar em seu favor a chave para transformar esses sentimentos em votos. E, goste-se ou não, a democracia também é isto.

E agora? Trump presidente terá, com toda a certeza, um discurso diferente de Trump candidato. Mas até que ponto? Conseguirá a máquina republicana rodeá-lo com gente responsável, que ajude a transmutar uma caricatura num estadista? Em que medida algumas das suas propostas radicais, nas políticas internas ou na ordem internacional, irão claudicar no contraste com a realidade? Grande parte do mundo, para quem a liderança americana não é de todo indiferente, está agora em estado de choque. Eu também, confesso. Mas é a vida! Agora, temos de aprender a viver com Trump.

(Artigo publicado no "Publico" online)

terça-feira, novembro 08, 2016

O que aí pode vir

A emergência na eleição americana, com hipóteses reais de sucesso, de um candidato com um perfil fora do sistema suscita uma questão de fundo sobre a própria essência do modelo político em vigor nos EUA.

Ninguém pode colocar em causa a representatividade de Donald Trump, o facto das suas propostas configurarem uma agenda de preocupações que atravessa largas faixas do eleitorado americano. Pode argumentar-se que algumas dessas ideias assentam numa perspetiva preconceituosa e caricatural, num primarismo perigoso, às vezes apoiado em mentiras e distorções.

E quem é o juiz nessa avaliação? Se o maior dos ignorantes tem um voto idêntico ao do mais sábio dos cidadãos, então há que convir que o valor político das ideias de ambos, por muito diferente que seja a respetiva informação, se equipara democraticamente no momento do sufrágio.

Nos EUA, no passado, as elites republicana e democrata foram sempre capazes de produzir candidatos oriundos do sistema, com um perfil que respeitava uma espécie de ideologia do "mainstream", não obstante as suas diferenças. Um voto radical de qualquer dos lados acabava por ser recolhido pelo candidato que lhes estava mais próximo, embora ele próprio estivesse longe de traduzir uma agenda extrema.

Nesta eleições, a candidatura democrática conseguiu (pela última vez?) preservar esse modelo de seleção. Hillary Clinton foi capaz de derrotar nas "primárias" Bernie Sanders, uma figura com uma agenda “liberal” (na leitura americana da palavra, que se aproxima da europeia “esquerda”) algo radical. Agora, Clinton espera que os potenciais votantes em Sanders, quanto mais não seja para travar Trump, a apoiem, isto é, reforcem no sufrágio a candidata da elite democrática.

O mesmo não sucedeu no campo republicano: por uma "desblindagem" do processo de seleção, somada à emergência de uma concorrência medíocre nos candidatos da elite republicana, Trump acabou por ser o escolhido. A sua agenda programática acaba por ser uma tradução mecanicista (perdoe-se-me o conceito marxista) da vontade das bases. No fim de contas, poder-se-á mesmo dizer que, em termos de representatividade, Trump está mais próximo da vontade da esmagadora maioria de quantos o apoiam do que Clinton. É chocante escrever isto, mas é uma realidade.

O futuro do sistema político americano poderá vir a depender desta eleição.

Se Clinton ganhar, há quem sustente que a máquina republicana irá repensar o seu sistema de seleção, de modo a evitar novos Trump, mesmo com as consequências que isso possa vir a ter na revolta de franjas republicanas. Trump assusta muitos republicanos, muito embora o seu sucesso tenha contribuído para consagrar aquela que já era uma acentuada radicalização conservadora, a qual num passado recente, afetou seriamente a governabilidade do país. Uma vitória de Clinton, em si mesma uma presidente que entraria na Casa Branca sem a menor onda de entusiasmo ou prestígio mobilizador, se não vier a ser acompanhada por uma mudança no Senado favorável aos democratas, poderá converter os EUA num país bloqueado na sua decisão interna.

Se Trump ganhar, os Republicanos não mudarão, pelo que a assustadora deriva do sistema irá aprofundar-se, tanto mais que, no campo oposto, Clinton só conseguiu o apoio de Sanders pela promessa de que futuras “primárias” reflitam mais diretamente os “humores” populares. Uma “desblindagem” do Partido Democrático, num tempo presidencial de Trump, abriria a América a uma bipolarização que faria com que a eleição presidencial de 2016 acabasse por ficar para a História como o debate “civilizado” que esteve muito longe de ser.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

segunda-feira, novembro 07, 2016

François Hollande


Com a publicação de um livro da autoria de dois jornalistas, em que são reportados comentários de François Hollande a várias figuras e instituições francesas, o atual ocupante do Palácio do Eliseu deu uma machadada final naquela que era já uma muito remota hipótese de recandidatura. A França é muito dada a este tipo de indiscrições escritas, pelo que o livro de José António Saraiva nunca seria um escândalo por lá. 

(Tenho algures um outro livro, também de dois jornalistas, com conversas com Nicolas Sarkozy, igualmente "politicamente incorretas", mas que não iam tão longe como as do político socialista e que, se bem me recordo, em nada contribuiram para a sua derrota, em 2012. Contra Hollande, recorde-se.)

Sei que isto não deve ser muito popular, mas devo confessar que gosto de Hollande como pessoa. Conheci-o em Lisboa, creio que em 1999, quando cá veio a uma conferência no Hotel Ritz, numa iniciativa promovida por Mário Soares e António José Seguro, em que ambos falámos sobre o estado da Europa. Revelou-se um homem cordial e afável, brincalhão e bem disposto. Tenho um fraco por pessoas assim.

Politicamente, Hollande nunca foi "grande espingarda". Assessor de Mitterrand, nunca por este (nem por Jospin) foi levado para o governo, o que pode querer dizer alguna coisa. Gestor hábil da máquina socialista - um "saco de gatos" muito difícil - acabou por emergir como uma espécie de "média aritmética" nas primárias que levaram à sua seleção como candidato da esquerda às eleições presidenciais, numa França então muito cansada da hiperatividade arrogante de Sarkozy. Ganhou com um discurso bastante mais à esquerda do que presidência que depois faria. Portugal deve-lhe uma política fiscal contra os "ricos", que fez com que para cá emigrasse muito capital, que comprou meia Lisboa.

Como presidente, Hollande demonstrou não ter uma estratégia clara para os problemas internos do país, da questão da competitividade à integração social das comunidades, dando sinais contraditórios com algumas escolhas que fez para o executivo. Mas portou-se bem nas questões da segurança. No plano externo, revelou um elevado sentido das responsabilidades globais que competia à França assumir - de que a sua ação no Sahel fica como um marco significativo. Na área europeia, não conseguiu disfarçar a crescente fragilidade da França. O saldo global, como se vê com os seus 4% (!) de aprovação, é, contudo, abaixo de medíocre.

Custa-me dizer isto de um país de que gosto muito: o problema francês, isto é, a inadequação que me parece evidente das suas ambições face à realidade, tornam o seu problemático futuro - quem que seja quem a dirige - numa questão para todos quantos dependem da sua capacidade como poder para reequilibrar a balança europeia, principalmente agora que dizemos adeus a Londres no quadro comunitário.

Em 2012, François Hollande afirmou querer ser um presidente "normal", para contrastar com a imagem de Sarkozy. Infelizmente, acabou por ser um presidente banal, tocando mesmo alguma vulgaridade, em especial no modo como geriu as dimensões públicas da sua vida sentimental. 

Posso estar a ser simplista, mas, nestas derivas afetivas, creio ter vislumbrado em Hollande algum "mitterrandismo" tardio, uma teatralização à Feydeau da vida meio-política-meio-pessoal em que os franceses são mestres, a qual não deixa de colher os favores da minha nostalgia. É que Hollande manteve sempre em tudo isso um registo humano com que não consigo deixar de simpatizar. É também por isso, para além das dimensões políticas, que tenho pena que acabe por sair da cena da História desta maneira.

domingo, novembro 06, 2016

"Não problema"

Perguntado sobre quais eram as três questões, tidas como prioritárias, para o seu país, no contexto europeu, aquele deputado estónio foi claro: "Rússia, Rússia e Rússia". Nenhuma surpresa. Se a pergunta tivesse sido formulada a um letão ou a um lituano a resposta seria seguramente a mesma. E imagino que um polaco não reagiria de forma muito diversa. 

O imenso receio da Rússia, a incerteza quanto à sustentação de uma atitude de firmeza da União Europeia face a Moscovo e a ideia de que a NATO (isto é, os Estados Unidos) permanece como o principal fator em que assenta a sua segurança marcam muito do pensamento dos países do Báltico nos dias que correm. A isso acresce um novo sinal de preocupação: os sinais de reforço militar russo em Kalininegrado (antigo Koningsberg), a península russa separada do resto do país, com fronteira com a Lituânia e com a Polónia.

Desde a recuperação da independência, a relação dos bálticos com Moscovo nunca viveu momentos fáceis. E o estatuto das minorias russas nestas três Repúblicas mantém-se com problemas (sendo hoje o caso letão talvez o mais preocupante). A liderança de Putin e o autoritarismo interno na Rússia - com o comportamento de Moscovo na Geórgia e na Ucrânia a funcionarem como elementos de prova - servem hoje de forte desculpa para a firmeza nacionalista nos três países. E para a recolha de apoios de outros parceiros europeus para solidariedade com essa linha política.

Um jovem intelectual estónio de origem russa resumiu bem o seu dilema: "Sou russo mas sou cidadão estónio, tenho uma lealdade total ao meu país mas quero ajudar a garantir que os russos que nele vivem têm um estatuto de cidadania plena e que o facto de o serem não os transforma em vítimas colaterais permanentes da tensão que a Estónia mantém com a Rússia. Os russos da Estónia são estónios, não são uma "quinta coluna" da Rússia."

Esta perspetiva, que parece ter toda a lógica, pressupõe a aceitação, pelos bálticos não russos, de que há um problema com as minorias russas, que é preciso reconhecer e ajudar a resolver. Mas não é exatamente assim: o mesmo deputado estónio que referi no início do texto, perguntado separadamente sobre o tema, respondeu-me, com uma frieza irritada: "esse é um não problema". 

Este tipo de questões, envolvendo origens que conflituam com o estatuto nacional onde as pessoas vivem, é de muito difícil perceção para alguém que vem de um país como o nosso, com fronteiras com quase nove séculos, uma identidade indiscutível e indiscutida, bem como uma um maioria étnica esmagadoramente coincidente com a sociedade nacional. Que percentagem de pessoas de outra origem étnica tem a sociedade portuguesa? - perguntava-me um outro estónio (não russo), que chegou a pertencer ao parlamento soviético. Respondi que eram cerca de 5%. "Os problemas só começam a aparecer depois dos 10%", replicou-me com total segurança.

Nunca conseguiremos entender por completo os problemas - e também os preconceitos - dos outros. Mas tentar refletir sobre eles é meio caminho andado para compreendermos o que é diferente e para ajudar reforçar a nossa cultura de tolerância. 

Outro mundo?


A Estónia é um dos países mais informatizados do mundo, ao que consta. O "governo eletrónico" é aqui uma realidade poderosa e o iPhone 7 (que julgo que ainda não chegou a Portugal) vende-se em todo o lado.

Ontem, quis comprar o "The Economist" e o "International New York Times". Percorri várias tabacarias de Tallinn e não encontrei jornais ou revistas em inglês (muito menos o "El Pais" ou o "Le Monde", que são vulgares na maioria das capitais). Tentei no "lobby" dos principais hotéis e... nada! 

Por fim, perguntei na receção do meu próprio hotel como poderia adquirir imprensa estrangeira. A reação foi interessante: "Em papel?". Sim, em papel, era o que eu queria. "Isso é muito difícil. Talvez só no aeroporto..." E o "estadulho" loiro acrescentou: "Mas não tem um laptop ou ou iPad? Em alternativa pode usar o desktop do "business centre" ". Não soube como lhes traduzir "até aí chegou o Neves!". E quando pedi para me imprimirem os cartões de embarque para o voo de regresso, nem imaginam o sorriso complacente com que o rapaz atendeu o meu pedido.

Isto vai bonito, vai...

sábado, novembro 05, 2016

Alarme


Tocou um alarme durante a nossa reunião, aqui na Estónia. Por um minuto, ninguém se mexeu: todos temos a tendência de pensar, pela prática, que, quando um alarme toca, "nunca é nada!". Passado esse minuto, um certo desconforto começou a atravessar a sala. Duas ou três pessoas levantaram-se e foram-se encaminhando para a porta. 

Um português, irónico: "Se calhar, chegaram russos. Se assim for, tanto faz ficarmos na sala ou não..." Não eram os russos. Não era incêndio. Afinal não era "nada"! Como "sempre"...

sexta-feira, novembro 04, 2016

Em português


Já se percebeu: o caso da Guiné Equatorial não mais vai perder o seu lugar cativo na atenção mediática sobre a CPLP. De agora em diante, por mil coisas da maior utilidade que a organização venha a conseguir fazer, nada distrairá os nossos plumitivos da coreografia do senhor Obiang, sobre quem o cumprimentou ou não, e, claro, sobre a existência oficial da pena de morte naquele país africano. Questão sobre a qual, aliás, o MNE Santos Silva disse o que havia que ser dito.

Sem com isso pretender absolver o sinistro regime político que vigora naquele país -  esse sim, um imenso e escandaloso problema – talvez um destes dias valesse a pena esses jornalistas se debruçarem sobre as largas dezenas de Estados em que essa prática se mantém, entre os quais figuram alguns com os quais mantemos simpáticas relações: Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, China, etc. Não me consta, aliás, que a subsistência da pena de morte nesses países figure nas agendas das nossas conversas bilaterais com eles.

Para além desse «fait-divers», a recente Cimeira da CPLP trouxe algo de novo? 

Raramente me permito um grande otimismo no tocante àquela organização, mas devo dizer que, em geral, gostei do modo como o Brasil «agarrou» a sua presidência rotativa. Várias vezes tenho expressado a ideia de que o futuro da CPLP dependerá sempre muito do modo como o seu país membro mais relevante à escala global souber usar a organização em benefício da sua própria estratégia. No passado, o Brasil não parecia ter interesse em explorar as potencialidades deste grupo político-linguístico. Mas talvez agora, num momento em que o país caiu «na real» (como por lá se diz), em que o seu glamour como emergente empalideceu um pouco, em que a sua excelente diplomacia procura fazer esquecer tempos de conflitualidade interna fragilizante, em que a sua economia passa por um tempo de lenta recuperação – talvez agora a CPLP lhe possa servir para alguma coisa. E nisso fico contente pela memória de José Aparecido de Oliveira.

Se houve facto interessante e inédito nesta «cúpula» ou «cimeira», como as diferentes versões da nossa língua impõem, foi a presença muito oportuna de um convidado que se chama António Guterres. Com ele em Brasília, talvez o país anfitrião do encontro tivesse constatado que, afinal, o «primo pobre» europeu pode ainda produzir alguns fatores de relevo na cena internacional, que não estão distantes dos interesses do próprio Brasil, como António Costa também teve o ensejo de sublinhar no tocante a um possível acordo UE-Mercosul. 

Em português, há muitas coisas que podem ser feitas em conjunto. Desde que haja vontade política, lealdade e uma linha de ação mínima em que todos nos encontremos. Mesmo tendo à ilharga o senhor Obiang, o qual, repescando O’Neill, acaba por ser um pouco o «remorso de todos nós».

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, novembro 03, 2016

Talin não tem S


Quando ontem disse a um amigo que hoje ia à Estónia, ele advertiu-me: "Não ponhas um S antes do nome da capital. Eles não iriam gostar..."

Nightmare


Foi uma tradição de décadas: numa noite em cada ano, no Bar Procópio, o Nuno Brederode Santos passava para o lado de dentro do bar e elaborava um famoso cocktail a que dava o nome de "Nightmare" (pesadelo). O segredo da mistura mantinha o mesmo grau de secretismo que o druida Panoramix guardava para a sua poção mágica, na aldeia de Asterix. Os "happy few" a quem a mistela era servida dividiram-se sempre quanto ao nível do paladar final do combinado. Havia mesmo quem dissesse que, a cada ano, o Nuno tinha uma "fórmula" diferente, fruto dos humores da conjuntura e talvez dos níveis dos alcoóis que a Alice destinava às prateleiras.

O Nuno deixou de ir ao Procópio e eu também tenho sido muito relapso no meu pousio das almofadas da "mesa dois". O "Nightmare" já não sai há uns bons anos e, que se saiba, o Nuno não passou o segredo a ninguém - se é que segredo havia...

Agora, com a hipótese de uma vitória de Trump - não quero acreditar, mas a possibilidade existe - fica criado um cenário de pesadelo, de "nightmare". Se esse infausto acontecimento ocorrer, porei o meu fígado de castigo por umas horas e pedirei à Alice para me deixar fazer um "Nightmare" à minha maneira. Chamar-lhe-ei "Trump". Terá, pela certa, bourbon e vodka. E será "explosivo", garanto.

quarta-feira, novembro 02, 2016

Iskra


À margem de um encontro internacional, fui um dia apresentado à mulher do então ministro sueco do Comércio, Leif Pagrotsky. Sabendo-me português, dirigiu-se a mim num espanhol com ressonância latino-americana. Tal como o seu marido, era muito pequena de estatura e também muito morena, num contraste evidente com o estereótipo da sueca. Explicou-me ser de origem uruguaia e chamar-se Iskra. Não consegui conter a curiosidade e perguntei-lhe, um tanto a medo: "O seu nome tem alguma coisa a ver com um jornal?...". Ela sorriu, surpreendida: "Conhece o Iskra?" Confirmei que, como alguém com passado marxista, não me era estanho o nome do "Iskra", um jornal editado por Lenine. A simpática uruguaia-sueca, arquiteta de profissão, revelou-me que a sua mãe, comunista uruguaia e devota de Stalin, decidira dar-lhe esse incomum nome.

O jornal Iskra, publicado na clandestinidade, teve uma existência breve, nos primeiros anos do século XX. A palavra "iskra", em russo, significa "centelha" ou "faúlha" e o lema do jornal era "da centelha surgirá a chama", simbolizando a propagação da ideia revolucionária.

Lembrei-me do Iskra há horas, na RTP, antes de entrar no ar para uma conversa com Ana Lourenço, ao ver imagens da agitação que abala Marrocos.

Há seis anos, um vendedor de fruta tunisino Mohamed Bouazizi imolou-se em protesto. Começou aí a "primavera árabe" que levou à deposição do ditador Ben Ali e ao sucesso da democracia no país. Ele foi a "iskra" que espoletou todo o movimento.

Agora, num cenário político diverso, mas nem por isso sem algumas similaridades óbvias, um vendedor de peixe marroquino está a suscitar ondas de protesto no nosso segundo vizinho mais próximo (embora, em linha direta, a distância de Rabat a Lisboa seja menor do que a que separa as capitais portuguesa e espanhola). 

Poderá este incidente ser a "iskra" para um movimento de natureza idêntica? E há a certeza de que o resultado de uma mudança política em Marrocos se fará no sentido do reforço da experiência democrática que por lá hoje vigora? Quando se lança o fogo numa pradaria, nunca se sabe para que lado acabará por soprar o vento.

terça-feira, novembro 01, 2016

Os nossos


O que sobrou em nós dos nossos mortos? Nestes dias em que, por um ritual também deles herdado, os evocamos intimamente, talvez valha a pena interrogarmo-nos sobre se soubemos construir, em nós mesmos, alguma coisa com aquilo que eles nos deixaram, à hora da morte, como tributo daquela que foi sua vida. É que se "isto" tem algum sentido, esse sentido só pode ser a consagração dos valores que deveriam ter transitado para nós. Se isso não aconteceu, se não fomos fiéis a essa herança (e todos encontraremos alibis conjunturais para o não termos sido), então talvez alguma da saudade que sentimos seja apenas um mal-estar íntimo por esses mortos estarem, afinal, já muito distantes daquilo que hoje, em realidade, somos.

Hipocrisia

Nas hostes da antiga maioria, levantou-se um escarcéu sobre a projetada redução das verbas atribuídas ao ministério da Educação, no orçamento do próximo ano.

É minha impressão ou trata-se da mesma oposição que acha que é importante reduzir os gastos públicos, que o controlo do défice deve fazer-se, não pelo aumento de impostos, mas pela contenção da despesa, pela redução do número de funcionários, por ataque às "gorduras" do Estado? E agora condena quem está a fazê-lo?

Se o ministério da Educação tivesse tido um programa orçamental do qual viesse a originar um impacto negativo no cumprimento das metas do défice e um encargo maior na dívida, aposto que viria logo uma acusação de "despesismo", de "irresponsabilidade", de estar a "fazer o frete" ao sindicato do Mário Nogueira e coisas assim.

segunda-feira, outubro 31, 2016

O professor Coutinho

Anda por aí a polémica sobre os "doutores" que, afinal, não o são, que inventaram títulos, talvez para adocicarem o "Vai um cafezinho, shotôr?", lá pelos ministérios.

Há muitos anos, na Pompeia, em Vila Real, no tempo em que não havia telemóveis e, nos cafés, os clientes eram chamados em voz alta, quando surgia uma chamada telefónica para eles, havia um "caramelo" com ar pomposo, alto e de poupa, que era useiro e vezeiro na utilização desse tipo de serviço. Andava na Escola do Magistério Primário, mas, ao que se sabia, estava ainda bem longe de ter concluído o curso que lhe daria direito ao título de professor. Não obstante, era frequente ouvir-se "Chamam ao telefone o professor Coutinho". O nosso homem, estrategicamente colocado do outro lado do café, levantava-se pausadamente e, solene, atravessava a sala em direção ao aparelho preto, pousado sobre a lista telefónica, que o meu amigo Neves facultava ao uso dos clientes. E por ali ficava, uns minutos, enrolado sobre si próprio, emitindo sons ininteligíveis.

A frequência regular das chamadas, naquela hora de enchente depois de almoço, levou à desconfiança: aquilo era "montado" para consagrar, por usucapião auditivo, o título antecipado do grau académico do Coutinho.

Um dia, depois de uma taina no Choco, o Pinto, colega do Coutinho no "Magistério" (os homens, por lá, contavam-se pelos dedos de menos de duas mãos), descaiu-se e confirmou que sabia do caráter deliberado das chamadas para homem,  para "armar", como então se dizia. Eram feitas à sucapa por uma criada da casa onde o Coutinho se hospedava, perto da Cardoa, com a qual ele mantinha uma "amitié particulière". A partir desse dia, a história correu em mesas da Pompeia e, sempre que o Coutinho era chamado ao telefone, havia quem organizasse uma caçoada algo barulhenta. Mas a coincidência desse ruído com o "perpwalk" pós-pandrial do Coutinho parece ter tido sucesso: as chamadas desapareceram!

Que será feito do professor Coutinho?

UP


A revista UP, que a TAP oferece aos seus viajantes, convida todos os meses uma personalidade diferente a escrever o seu editorial. A ideia é elaborar uma curta mensagem personalizada, em português e inglês, que estimule quem nos visita a conhecer algo mais sobre o país.

Tive o prazer de ser convidado a ser o "anfitrião" da UP do mês de novembro, que estará em distribuição a partir de amanhã. Tenho assim o privilégio de juntar-me a figuras como Miguel Sousa Tavares, Gonçalo M. Tavares, Clara Ferreira Alves, Lídia Jorge, João Lobo Antunes e muitos outros.

No meu texto, optei por estimular os visitantes para olharem para Portugal para além dos "clichés" dos guias turísticos e, muito em particular, a chamar a atenção para Trás-os-Montes, uma zona do país que a maioria estrangeiros, mas também muitos portugueses, ainda desconhecem - e não sabem o que perdem!

Mas é melhor lerem:

Uma vida passada em grande parte fora de Portugal fez de mim um quase obsessivo turista no meu próprio país. Por décadas, parte importante das minhas férias era passada a recuperar o que perdia no resto do ano. E essa viagem nunca mais parou.

Nessas visitas, fui criando uma espécie de mapa, humano e cultural, do meu Portugal afetivo. Frequentemente, dei por mim a testar, junto de amigos e conhecidos estrangeiros que nos visitavam, esse meu íntimo guia sentimental. Para tal, era importante transmitir-lhes alguns instrumentos para a compreensão do país. E nada melhor, para isso, do que revelar o modo como eu próprio me comportava no meu eterno regresso a Portugal.

São coisas bastante simples, como o atentar no movimento num largo principal de uma aldeia recôndita, na alegria de uma festa popular numa vilória, no silêncio de uma paisagem, de um miradouro improvisado. Mas, igualmente, o gosto de nos sentarmos no «café central» das cidades de província, olhando a coreografia social, o prazer em descobrir restaurantes e tascas em locais recônditos, onde nos servem vinhos que não conhecemos, doces que por ali se conservam por tradição. E também aquilo que se aprende ao entrar em pequenas lojas, fora dos grandes circuitos de comércio, onde se encontram coisas insólitas, entrecruzadas com conversas e amena simpatia.

É que, longe dos locais turísticos que os guias apontam ao visitante minucioso, existe um Portugal sereno que, sem se impor, se oferece discretamente a quem o visita. E em que vale a pena um visitante perder-se.

Desse Portugal, que não sendo imenso é, ainda assim, muito diverso, o que é que eu selecionaria para apontar, como um destino seguro, a um visitante estrangeiro disposto seguir o meu conselho? Um país feito de dureza de vida, de beleza única, de gentes fortes e de caráter: Trás-os-Montes.

Trás-os-Montes é a natureza mais bravia que Portugal tem para oferecer. Situado, como o nome indica, por detrás das grandes serras nortenhas, é um mundo de paisagens deslumbrantes, de uma culinária preciosa, de cidades cheias de história. Miguel Torga, o poeta que por lá nasceu, chamou-lhe, imodestamente, “o reino maravilhoso”. E talvez não tenha exagerado. Para lhe dar razão, basta atentar no rio Douro, que desenha a fronteira sul da região, obra ímpar da natureza e do homem, no colorido das vinhas que são a sua riqueza, na majestade dos seus vales profundos.

Vá a Trás-os-Montes! Arrisque perder-se naquilo que Portugal tem de mais autêntico, genuíno e belo. E, depois, diga-me se eu não estava certo.

domingo, outubro 30, 2016

Liberdade


Há dias, a propósito de um comentário feito ao ressurgimento de um comentador azedo, e de outros que o emulam, fui crismado de "comuna" para cima, nuns blogues de seita.

Agora, porque disse o que pensava sobre as "liberdades" em Cuba, caiu sobre mim, em páginas do Facebook, um ror de insultos, em que o de "reacionário" foi o mais benévolo.

Pensar pela própria cabeça tem um preço, mas é muito agradável, podem crer.

Bernardino Gomes



Era um homem cordial, agradável, com sentido de humor e de oportunidade, na inteligência culta das intervenções públicas que fazia. Alguém que olhou a relação transatlântica como o vetor central e inescapável da equação geopolítica do país. Civicamente, soube sempre estar no lugar certo, olhando a vida coletiva de uma forma solidária, com opções há muito assumidas e a que se mantinha coerentemente fiel.

Morreu hoje Bernardino Gomes.

A hora dos mencheviques

Mudou hoje a hora. Nem sempre tivemos este regime horário. Por exemplo, entre 1992 e 1996, a nossa hora acompanhava a da Europa central. Foi o primeiro governo de António Guterres que decidiu reintroduzir o modelo da hora atual. A decisão não foi totalmente pacífica, no Conselho de Ministros em que foi tomada. Eu estava casualmente por lá, substituindo Jaime Gama, e manifestei-me contra, com base num conjunto de argumentos que não vêm para o caso. A defesa da medida que acabaria por ser adotada foi feita, com brilhantismo, por Eduardo Marçal Grilo, ministro da Educação e do Ensino Superior. Guterres era um grande adepto da alteração mas, nem por isso, havia conseguido convencer pessoas que lhe eram muito próximas, como foi o caso de António Vitorino e Joaquim Pina Moura. Fomos, recordo, as três vozes postas em minoria naquele Conselho de Ministros. À saída, Pina Moura, com o seu imenso humor, de que sinto muita falta, disse-me: "Por uma vez, fazemos parte dos mencheviques".

sábado, outubro 29, 2016

Marta Neves

Ontem, quando tratava de um assunto num balcão de um hospital de Lisboa, olhei para o nome que a funcionária trazia ao peito: Marta Neves. Um nome comum, o daquela jovem mulher, bonita e elegante. Mas que me dizia alguma coisa.

Por um instante, fui tentado a perguntar-lhe se era ela quem tantas cartas me havia mandado, durante anos, com alguma regularidade. Ia queixar-me, finalmente, do tom impessoal daquelas missivas manuscritas a tinta azul, da sua falta de um mínimo de intimidade, como se a mesma carta pudesse ser dirigida a mim como a qualquer outra pessoa. E dizer-lhe que tinha uma bela letra, fácil de ler, reveladora de serenidade.

Mas não, a Marta Neves que estava diante de mim não tinha idade para me ter escrito cartas que, com toda a certeza, eu tinha recebido ainda antes dela nascer.

Eram sempre cartas simpáticas, otimistas. As cartas da Marta Neves traziam sempre boas notícias e vinham em envelopes cheios de papelada, às vezes até traziam uma prometedoras "chaves", mas em plástico...

Marta Neves era o nome ficcionado que assinava a correspondência que, por muitos anos, as Seleções do Reader's Digest nos mandava, a anunciar os livros e discos que editavam. Vim a saber um dia que a "Marta Neves" era, na realidade, a escritora Rita Ferro.

Olhei para a sorridente e eficaz empregada do hospital, ponderei as pessoas na fila que estavam "desertas" para que eu lhes desse lugar no balcão e decidi não lhe falar nessa outra Marta Neves. Ia ser complicado "to make a long story short" e, no final, talvez ela não achasse nenhuma graça. E quem estava à espera, seguramente, ainda acharia bem menos. Como ela não deve ler blogues, que é mais vício de rebujentos, fica por aqui a minha história epistolográfica com a Marta.

Bica


Recomendo vivamente a nova revista "Bica", que pode ser consultada livremente aqui.

São 212 páginas onde se fala muito de Lisboa (meto por lá a minha "colherada", nas páginas 25 e 26), que esta publicação trimestral pretende tratar com muita atenção e cuidado, e de que apresenta um guia precioso. Ah! E também Viseu, com um dossiê especial.

sexta-feira, outubro 28, 2016

Amizade


Os verdadeiros amigos não são para as ocasiões. São para sempre. Aprendi isso numa existência aos solvancos geográficos, pelas terras em que vivi e onde os fui criando. Parte deles foi deixada ficar para trás no tempo, porque não transitaram para o quotidiano seguinte, às vezes por descuido, outras porque nós próprios mudamos e não sabemos sobreviver, mutuamente, à usura da ausência. Uma parte desses amigos, contudo, foi permanecendo, nessa decantação progressiva do tempo. E a esses foram-se somando novos, que ficaram tanto ou mais amigos do que aqueles que vinham do passado. No seu conjunto, os meus amigos são a riqueza que guardo a meu crédito, fazem parte da minha conta a prazo da vida.

Lembrei-me disto há uma semana, quando me foi dado partilhar a felicidade de dois amigos. É que a alegria dos nossos amigos constitui uma parte da nossa própria alegria. E, se não estou enganado, é a isso que se chama, muito simplesmente, essa coisa bonita e insubstituível que é a amizade.

(Dedico este post à Rusa e ao Zé Luis)

28°


Gosto destes dias de fim de junho. Maio foi muito bom, mas o Verão que aí vem já promete. Ontem, jantei numa esplanada. Hoje, estou a pensar passear ao fim da tarde no jardim da Estrela. Que belo tempo! 

Estranho, contudo, esta ideia de andarem a vender, por estes dias, castanhas assadas. Não é coisa que se coma num tempo tão quente! Antes, só se viam à venda no Outono. Agora é isto! O que é que pensarão os turistas de calções que enxameiam Lisboa?

Marcelo e Fidel


Entendo o prazer que Marcelo Rebelo de Sousa deve ter tido ao encontrar-se com Fidel de Castro, durante a sua visita a Cuba. Ele pertence a uma geração para quem as referências da História são importantes, independentemente da lateralização ideológica das figuras que a encarnam. Por isso, poder falar, ainda que no seu ocaso, com um dos protagonistas do mundo contemporâneo, deve ter sido uma experiência marcante. De certo modo, invejo-lhe esse momento, não obstante Fidel não ter nunca feito parte das minhas mitologias.

Castro e a revolução cubana foram um expoente para uma certa geração radicalizada que antecedeu a minha – que é, aliás, a mesma de Marcelo. A heroicidade da luta contra o agressor “yankee”, que tentava limitar o grito de liberdade saído da Sierra Maestra e que se empenhava em suportar sinistros déspotas, por toda essa América Latina sujeita à tutela cínica da Doutrina Monroe, foi uma bandeira que excitou as várias esquerdas mundiais. E também por cá.

Cuba, depois, foi o que foi. De um farol de liberdade, que Guevara ainda tentou exportar, transformou-se numa ditadura triste, em grande parte prolongada graças ao alibi dado pelo bloqueio americano, o qual, aos olhos benevolentes de alguns, lhe absolve todos os pecados.

Raramente tive uma experiência tão desagradável, como turista, como quando há uma década, sem guias nem mentores, passeei pela pobreza das ruas de Havana, então uma cidade de gente sem esperança, a que nem a graça que alguns acham à decadência dava alguma franca alegria.

Fidel libertou os cubanos do bordel dos Estados Unidos em que Baptista convertera o país, mas prendeu-os num pesadelo de vida que condenou gerações à penúria. E não me venham com a conversa do “orgulho” nacional, como se isso pudesse alguma vez substituir a possibilidade de dizer, alto-e-bom-som, podendo também escrevê-lo fora do “Granma”, o que se pensa, bem ou mal, dos dirigentes, que se querem eleitos e contrastantes.

A vida ensinou-me a deixar de ser complacente com a crueldade dos sonhos radicais, do “socialismo real” do Leste europeu a todos os modelos que relativizam o interesse em preservar as liberdades “burguesas”, reféns de amanhãs que o tempo veio o provar ser, infelizmente, muito similares o outros “ontens” que quero esquecer.

Para mim, guardarei para sempre o olhar triste daquela pintora cubana, uma mulher jovem, num subúrbio de Havana, que me contava ter vendido quadros seus em exposições nos Estados Unidos, e a quem, inadvertidamente, perguntei se tinha gostado da viagem: “Eu? Eu não fui! Eu não posso sair daqui. Eu nunca vou sair daqui...”. Aquele desencantado e nem sequer revoltado “nunca” marcou-me para sempre.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Jogar pelo seguro


Salvo para alguns inimputáveis, preparados para brincar com o fogo, não existe uma real alternativa de bom senso na eleição presidencial americana. Se Hillary Clinton está muito longe de entusiasmar as hostes, é em geral reconhecido tratar-se de um “safe pair of hands” que garante que a potência determinante à escala global fica sob um controlo responsável. Este texto parte, assim, do pressuposto que Hillary Clinton será a próxima presidente americana.

Depois das aventuras da administração Bush filho, os dois mandatos de Obama mostraram uma América num dos seus ciclos regulares de retração estratégica. Sair logo que possível do Afeganistão e do Iraque, readequar o discurso da guerra anti-terrorista e tentar sarar algumas feridas abertas pela administração divisiva que o precedera – tal era o projeto visível de Obama pelo mundo. A Europa deixara aparentemente de figurar nas prioridades essenciais de uma política externa que olhava a Ásia e o Pacífico como o destino futuro de atenção. A Rússia parecia controlável nas suas ambições.

Os acontecimentos, esse regular obstáculo dos políticos, atrapalharam as previsões. O destino desigual das “primaveras árabes” e a desregulação do Iraque, gerou impactos imprevisíveis em todo o Médio Oriente, criando um caos cuja resolução não era conforme com a política de “no boots on the ground” que os EUA se obstinavam em manter. Os aliados ressentiram-se. Israel e a Arábia Saudita desconfiaram da eficácia do apaziguamento de Washington com as ambições nucleares do Irão. A Turquia mostrou-se um parceiro errático. A Rússia de Putin afirmou-se como uma potência oportunista, jogando na certeza de que a resposta ocidental aos seus avanços estratégicos ficaria sempre aquém das armas. Provou ter razão na Ucrânia, como já testara na Geórgia. A NATO, esse heterónimo militar dos EUA na Europa, teve de reganhar agressividade verbal e visibilidade do seu dispositivo. Os EUA não conseguiram recuar tanto quanto tinham planeado, o que também não foi facilitado por uma União Europeia descredibilizada e crescentemente dividida.

Oito anos depois de um ridículo prémio Nobel da Paz, dado “avant la lettre” como uma espécie de investimento na esperança, o balanço da política externa de Obama é claramente pífio. O mundo não está mais seguro do que estava na data da sua posse. É indiferente se a culpa é ou não de Obama, o que contam são os resultados. E esses são maus.

Hillary Clinton não herda a diplomacia de Obama, recebe também o resultado dos erros que ela própria cometeu, de que o caos na Líbia é talvez o caso mais flagrante na nota de culpas que merece pelo tempo em que geriu o Departamento de Estado. Quando aí chegada, Clinton olhava a prioridade Ásia-Pacífico como central na estratégia diplomática pós-Bush. O “braseiro” do Médio Oriente impôs-se e estragou esse desígnio. O seu saldo não foi brilhante.

Que fará Hillary Clinton pelo mundo, uma vez chegada à Casa Branca? A mais republicana candidata que os democratas podem produzir vai, ao que tudo o indica, agravar as tensões com a Rússia, que dá sinais de estar já a contar com isso. Se assim acontecer, uma parte da União Europeia exultará, outra hesitará em acompanhá-la até ao fim. A União pode dividir-se neste particular e a América, que se mantém um poder europeu, confirmará o seu tropismo para partir ou unir o velho continente, de acordo com os seus interesses. Nada que seja verdadeiramente novo.

Mas o grande teste imediato de uma administração Clinton passa pela Síria e pelo modo como aí lidará com uma Rússia que já mostrou que prefere ser temida a respeitada. Há quem diga que a Turquia pode funcionar como ”subcontratado” dos EUA na região. Recuperar a confiança do mundo sunita (com a Arábia Saudita à cabeça) e de Israel é outra das tarefas essenciais na região.

Resta... o resto: o futuro dos acordos comerciais inter-regionais, a substância efetiva da política Ásia-Pacífico e o modelo de relação futura com a China (com o crescente problema da Coreia do Norte no horizonte) e com a India nuclear, as alianças preferenciais numa Europa pós-Brexit, a definição da filosofia de ação externa, entre o proselitismo democrático e a “realpolitik”, etc.

Tempos interessantes, como diz a velha expressão chinesa que os ocidentais adotaram. E perigosos, pelo que vale a pena jogar pelo seguro e o seguro é Hillary Clinton.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

BOAS FESTAS!

  A todos quantos por aqui passam deixo os meus votos de Festas Felizes.  Que a vida lhes sorria e seja, tanto quanto possível, aquilo que i...