quarta-feira, agosto 12, 2009

Memória de Agostos (III) - 1974

Estávamos nos últimos dias de Agosto de 1974 e os agentes da polícia política PIDE/DGS (os “pides”), presos desde o 25 de Abril na cadeia penitenciária de Lisboa, haviam iniciado um novo motim. Era um movimento em tudo idêntico ao que tinham desencadeado no início do mês e que provocara a constituição de uma “comissão de inquérito”, composta por um representante de cada um dos três ramos das Forças Armadas, da qual eu era relator, enquanto oficial miliciano do Exército.

Tinha assumido essas funções na qualidade de assessor do general Galvão de Melo para as questões do desmantelamento da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa. Galvão de Melo, da Força Aérea, era um dos sete membros da Junta de Salvação Nacional, que então dirigia o país, e, seguramente, a figura mais à direita dentro daquele órgão. Por uma singular ironia, competia-lhe a tutela da Comissão de Extinção da polícia política do anterior regime, tarefa que o não entusiasmava por aí além. E, por outra singular ironia e fruto de diversas circunstâncias, coube-me em rifa ser seu assessor.

Os pides consideravam então estar a ser vítimas de uma imensa “injustiça”, seriam totalmente infundadas as inúmeras acusações de torturas e atentados aos Direitos Humanos que sobre eles impendiam, a esmagadora maioria jurava nunca ter feito outra coisa que não fosse estar nas fronteiras a pôr carimbos nos passaportes. Uns anjos, em suma. Poder-se-á dizer que a sua posterior não indiciação quase colectiva pela Justiça provou que tinham razão?

Descontentes com o prolongamento da sua detenção e respectivas condições, mobilizados por um pretexto conjuntural, os pides tomam alguns guardas da Penitenciária como reféns, abrem o “gradão”, a porta de ferro que lhes permite invadir a parte central da prisão, e anunciam que estão “à disposição” do general Galvão de Melo, que acabara de fazer uma polémica e ultraconservadora proclamação televisiva, que lhes terá ressuscitado a esperança de uma libertação rápida.

No auge desta nova crise, o chefe da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, comandante Conceição e Silva, foi de helicóptero ao Algarve, com o seu adjunto Alfredo Caldeira, para tentar obter orientações de Galvão de Melo. Na conversa, o general, enfadado por ver interrompido o concurso hípico da Penina, terá deixado os seus interlocutores de mãos a abanar. Estávamos assim, num domingo à tarde, reunidos no gabinete do director da Penitenciária, a discutir o que fazer a seguir.

Esgotadas algumas hipóteses de solução, o José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete de Galvão de Melo, decide tomar o assunto em mãos: “Eu vou lá dentro falar com os pides. Quem é que quer vir comigo?”. A idade tem destas coisas e a precipitação é uma delas. Por isso, disse de imediato: “Eu vou contigo”. Arrependi-me no segundo seguinte, mas já era tarde: cinco minutos depois estava a seguir a figura alta e corajosa do então major (hoje general) Costa Neves e a entrar no meio de uma chusma de pides, que sabíamos que tinham armas retiradas aos guardas e desconhecíamos se tinham a intenção de também ficar connosco como reféns.

Enquanto o mar de pides se abria como as águas do mar Vermelho, para ambos podermos chegar ao centro da prisão, comigo numa taquicardia de tardio bom senso, recebo um leve toque num ombro e volto-me, sobressaltado. Dou de caras com o “Navalhas”, um colega de escola primária em Vila Real, que eu não via há muito e desconhecia ter escolhido tão distinta opção profissional.

“'Tás porreiro? Então por aqui?”, saiu-me, num registo social, como se o estivesse a encontrar no Rossio, à porta da Suíça. Apertei-lhe a mão, quase caloroso, para me dares ares de confiança bem à vista do grupo, que tinha já cem olhos sobre mim, com o “Navalhas” a retorquir-me: “É verdade! Quem também cá está é o “Bilrau”, mas não aderiu”. O “Bilrau” era também um antigo colega de liceu que, do mesmo modo, eu desconhecia ter enveredado pela prestigiante carreira de pide. E o meu convívio social-pidesco estendeu-se então, com a maior naturalidade, ao ausente “Bilrau”: “Ó 'Navalhas', dá um abraço meu ao 'Bilrau'… e tive imenso prazer em ver-te, pá!”.

Esta rápida sequência de vénias de cordialidade passou-se, aparentemente, sem que o Costa Neves nada notasse, entretido que estava já a lidar com os cabecilhas do motim e a transmitir ao selecto auditório as presumidas orientações de Galvão de Melo. Dez minutos depois, para meu imenso alívio, estávamos cá fora, sãos e salvos. Os pides acabaram por não se render na sequência da nossa esforçada diligência e só foram “convencidos”, horas mais tarde, pela chegada de um pelotão de “fuzos”, os Fuzileiros Navais que o Conceição e Silva mandou vir do Alfeite.

Desde esse inesquecível mês de Agosto de 1974, nunca mais vi o “Navalhas” ou o “Bilrau”. Coitados, com o acordo de Schengen, até ficaram sem fronteiras para praticarem a sua nobre profissão. Eles que só punham carimbos em passaportes...

Política Agrícola Comum

O antigo órgão oficial do Partido Comunista Francês, o L'Humanité, ataca a decisão das autoridades de Paris de obrigar os agricultores franceses a devolverem aos cofres comunitários ajudas indevidamente recebidas entre 1992 e 2002. Juridicamente, não há a menor sombra de dúvida de que estas ajudas falsearam a posição francesa no mercado comum europeu - como o próprio Governo francês não tem dificuldade em reconhecer e o Le Monde esclarece com serenidade.

O que não deixa de ser interessante é ver os comunistas franceses sublinharem o argumentário das associações de agricultores, que vêm agora lembrar outras ajudas que a Europa concedeu, aquando da entrada de Portugal e da Espanha nas então Comunidades Europeias. O "internacionalismo" já não é o que era...

Alguns agricultores franceses parece esquecerem três realidades.

A primeira é que as ajudas recebidas pelos novos aderentes foram a contrapartida natural da abertura desses países aos produtos e agentes económicos europeus - e também franceses -, muitos dos quais repatriaram tais ajudas em lucros e obtenção de quotas de mercado, nos produtos agrícolas, industriais e nos sectores de serviços.

A segunda é a de que um país como Portugal, pela estrutura da sua matriz agrícola e pelo modo como ela foi projectada na negociação da adesão, tem vindo a ser um "contribuinte líquido" da Política Agrícola Comum (PAC), isto é, paga percentualmente mais para o orçamento comunitário do que recebe através das respectivas ajudas no sector.

Finalmente, esses agricultores parece não se lembrarem que a França foi sempre, bem de longe, o maior beneficiário europeu da PAC, política desenhada ao sabor dos seus interesses, muito antes de Portugal ser sequer candidato à integração. E que essas vantagens vão manter-se até 2013, naquilo que foi o curioso acordo em Conselho Europeu que, em 2002, "congelou" mais de 40% do orçamento comunitário até essa data, bem antes de ter sido fixado o orçamento plurianual (2007/2013) da UE.

A posição do Governo francês nesta questão concreta tem sido de um impecável respeito pelas regras comunitárias. E é importante que, de futuro, tudo possa continuar a ser assim, para o que um país como Portugal necessita, mais do que nunca, de uma Comissão Europeia forte, independente e sem medo dos Estados membros. Quem não perceber isto não percebe a Europa.

terça-feira, agosto 11, 2009

Enfim, juntos

José Mário Branco, Fausto e Sérgio Godinho anunciaram três espectáculos conjuntos no mês de Outubro, sob o título de "Três Cantos / Enfim Juntos".

País feliz, Portugal!

segunda-feira, agosto 10, 2009

Memória de Agostos (II) - 1969

O ano de 1969 anunciava-se decisivo. Em Agosto de 1968, Salazar caíra da cadeira. Marcello Caetano substitui-lo-ia no mês seguinte. Começara a “primavera marcelista”, um logro político que parecia evidente para muitos, mas que, para outros, ainda era visto como uma oportunidade a explorar para a mudança no regime.

Nos meios em que, à época, me movimentava, as esperanças na “abertura” marcelista eram nulas. A confirmá-lo, se necessário fosse, estava a “não homologação” ministerial dos resultados da eleição para a direcção associativa universitária, de que eu próprio fazia parte, e que deu mesmo origem a uma divertida reunião com o ministro José Hermano Saraiva (que um dia contarei). Dentre outras movimentações, nesse importante ano político, há ainda que destacar a grave crise académica em Coimbra. O país andava bem agitado.

E iria ficar mais. Em Outubro de 1969, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. Em Lisboa, tinha já andado envolvido em algumas movimentações preliminares, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas da Oposição se separaram. À esquerda, ficava a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e a franjas mais radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade.

Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, sou contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista) para integrar a estrutura local da CDE. Foi um período intenso de reuniões e mais reuniões, redacção de artigos e manifestos, agitação dos meios da juventude, alguma tensão ideológica intergeracional. Mas, algum tempo mais tarde, lá estou eu, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.

Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque amplamente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, eram atenuadas pela necessidade de arrebanharmos todas as vozes contestatárias. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o entusiasmo quase “anarca” do João "Bouquet", a grande alma da logística da CDE de Vila Real. E algumas outras figuras (não éramos muitos…) que não cabe aqui elencar.

Esse mês de Agosto de 1969 e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas, discussões épicas na Gomes (o principal café da cidade), chamadas à polícia, censura de artigos na imprensa, dificuldades nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, colagem de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas por parte de turiferários do regime, a necessidade de fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral preparava então os seus próprios boletins, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar pessoalmente a cada eleitor, porta-a-porta, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.

Foi um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer.

domingo, agosto 09, 2009

Paris Plage

Há alguns anos, o "maire" de Paris, Bertrand Delanoë, lançou aquilo que, à partida, parecia ser uma ideia um tanto louca: criar, durante algumas semanas de Verão, um espécie de zona balnear junto ao rio Sena, reproduzindo um ambiente de "praia". Por lá há areia, jogos, piscinas, locais de lazer, áreas de pic-nic, espectáculos musicais e de circo, brincadeiras para crianças, "bistrots" improvisados e uma imensidão de outras amenidades que garantem grande êxito à iniciativa. Interessante também é o crescente empenhamento nas dimensões ambientais, no favorecimento do acesso às pessoas com deficiência, no apoio à economia solidária.

Paris continua a ser a mais procurada cidade turística do mundo e este tipo de genialidades tem tido um papel importante para ajudar a manter esse estatuto, mesmo em tempos de crise.

Ao passar ontem pela "Paris Plage", não pude deixar de lembrar-me que, afinal, sempre haveria alguma razão para a velha frase do Maio 68: "Sous les pavés, la plage"...

Caçadores Cinco

Ninguém bate os amantes da pesca em exageros. Ou melhor, talvez só os caçadores. Aquele meu colega, um embaixador cordial e sempre bem-humorado, hoje reformado, era, de facto, e ao que se sabia, um excelente caçador. Mas, como todos os seus pares, "pintava" imenso as histórias.

Diplomata em Cuba, há algumas décadas, chegou mesmo a ir à caça com Fidel de Castro, de quem dizia, com alguma sobranceria: "O Fidel disparava muito mal. Até eu lhe emprestar a minha Purdey, nunca conseguiu caçar coisa de jeito...". Mas acrescentava: "Já o Raul, era bem melhorzinho".

A conversa que vou relatar, teve-a esse meu colega com um seu colaborador, que o conhecia há pouco tempo e que, por um acaso, não estava familiarizado com as qualidades de caçador do seu novo chefe.

Um dia, veio à baila, num diálogo entre os dois, o tema da caça e interlocutor inquiriu: "O senhor embaixador caça?!". O nosso homem abriu os olhos, como que escandalizado com o indesculpável desconhecimento que a pergunta revelava, e esclareceu, impante: "Se eu caço?! Essa agora?! Eu sou um dos três melhores caçadores da Europa!".

Porém, meio segundo depois, o embaixador teve uma hesitação: "Espera aí!" O tratamento por "tu" é a sua regra normal de relacionamento, logo que conhece alguém, o que o torna ainda mais simpático. O interlocutor, por um instante, achou que ele ia retratar-se do exagero, que a frase lhe saíra precipitada e que iria moderar a dimensão da sua importância como caçador.

E tinha toda a razão. O embaixador logo rectificou: "Eh! pá, três não, "põe" cinco. É que há dois gajos que não são federados".

A modéstia, quando sincera, mesmo que tardia, é sempre uma enorme qualidade...

sábado, agosto 08, 2009

Raul

Este blogue é pessoal, pelo que entendo que nele há sempre lugar para assinalar aquilo que respeita aos meus amigos. Mas, mesmo que assim não fosse, a desaparição de Raul Solnado teria, obrigatoriamente, que merecer uma nota de destaque.

Solnado foi uma das grandes figuras do humor português, que marcou gerações. Hoje, pelos jornais, rádios e televisões, muitos lembrarão as suas divertidas histórias em disco, as revistas do Parque, o Zip-Zip, a Cornélia, o Villaret e outras tantas aventuras de uma vida rica que a Leonor tão bem descreveu na sua biografia. Pode dizer-se que, com a sua palavra, o Raul acabou por se transformar, por assim dizer, num amigo íntimo de muitos portugueses, ao longo dos muitos anos que lhes entrou em casa. Para os mais novos, há também um Solnado televisivo e o seu magnífico retrato do polícia Covas em "A Balada da Praia dos Cães". E há, ainda, o Solnado da Casa do Artista, uma obra grande a que tanto se dedicou. E gostava de notar que, no Brasil, por onde andei uns tempos, encontrei sempre um imenso respeito em torno do nome de Raul Solnado - um dos poucos nomes da cultura contemporânea portuguesa que lá dispõe de grande popularidade.

Uma nota mais pessoal. Há muitos anos que o Raul era um dos nossos comparsas da "mesa dois" do Procópio, esse bar lisboeta onde actualizamos o país, numa tertúlia assumidamente irresponsável, marcada pela ironia e pela amizade. Tive a honra de ser, com ele e outros, co-autor da "biografia" editada do Procópio, onde procurámos desenhar as décadas de boa disposição que o "Retiro da Dona Alice" nos proporciona e a que o Raul tanto ajudou. Tivemos o Raul como integrante dos jantares que, em cada Dezembro, juntaram o pessoal da "dois" e que, este ano, se irá fazer sem ele. Na "dois", onde fica para sempre o seu retrato, desenhado pelo Chico Caruso, vamos agora perder, pelas noites, as suas belas historietas. E, mais do que isso, a sua amizade e ternura. Sem o Raul, as coisas passam a ter muito menos graça.

sexta-feira, agosto 07, 2009

O chapéu

Uma das rotinas mais interessantes dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi, durante muitos anos, o chamado "correio de gabinete". Tratava-se de transportar uma mala diplomática, portadora de documentos de elevada confidencialidade, função de que eram quase sempre encarregados os diplomatas mais jovens. Todas as semanas, um funcionário circulava entre várias capitais, levando consigo uma pasta, fechada com selos de chumbo. Era normalmente pequena, mas também podia acontecer ter dimensões bem maiores, sendo nesse caso complicado (embora sempre obrigatório) assegurar o seu transporte na cabine dos aviões, nunca perdendo o volume de vista.

O roteiro de quem ia "de mala" foi variando, em função de diversos factores e conjunturas. Na Europa, recordo ter-me deslocado, por mais de uma vez, a Londres, Bruxelas, Viena e até a Belgrado. Madrid, Paris e Estocolmo, se bem me lembro, também foram abrangidas pelo circuito deste tipo de "malas acompanhadas". Viena era o centro de contacto com as nossas embaixadas das capitais "comunistas" e os colegas nelas colocados estavam sempre ansiosos para dar um salto à capital austríaca, para buscar ou trazer essa correspondência. Fora da Europa, ia-se a Nova Iorque e a Washington.

Há que confessar que era uma tarefa bastante agradável: uma semana de dispensa de serviço e uma viagem, com ajudas de custo, por cidades simpáticas, embora um pouco numa correria (em Londres ficava-se um dia mais e eramos alojados num pequeno quarto, no edifício da chancelaria). Embora houvesse como que uma escala na atribuição deste encargo, existiram sempre, no Ministério, os chamados "papa-malas", que tinham meios de obter informação prioritária sobre a indisponibilidade pontual dos funcionários escalados e, de imediato, se voluntariavam para os substituir. Às vezes, chegado o bom tempo, até diplomatas bem mais velhos, já mesmo conselheiros de embaixada, faziam um pouco discreto lóbi para "irem de mala", pela vontade de efectuarem uma bela viagem à custa do erário.

Hoje, vistas as coisas à distância, tendo a concordar que uma das vantagens concretas desta instituição dos "correios de gabinete" , num tempo em que se viajava muito menos, era ajudar a aculturar os jovens diplomatas com o mundo exterior, ainda antes de serem colocados no seu primeiro posto.

A história que vou contar, verídica e clássica nas Necessidades, passa-se em Lisboa, numa determinada repartição, creio que no início dos anos 60.

Um velho e prestigiado embaixador está à conversa numa sala onde trabalham diversos diplomatas. A certo momento, fica a saber-se que um dos jovens secretários presentes vai "de mala" na semana seguinte. O rumo da conversa, por uma qualquer razão, deriva para a questão dos trajes e fala-se de usar ou não do chapéu. O embaixador volta-se, então para o jovem secretário que irá "de mala" e inquire: "E o colega, usa chapéu?".

Ser tratado por "colega" por um embaixador "chevronné" era uma distinção que, à época, deixava os mais novos orgulhosos e, desde logo, quase obsequiosos. O rapaz, um tanto aturdido, responde que ainda não, que nunca tinha usado chapéu. O embaixador, experiente, adianta: "Meu caro amigo, usar chapéu, na Carreira, não é obrigatório. Mas é um hábito que fica sempre bem, que dá muita classe. Se o meu amigo quer um conselho, compre um chapéu. Vai ver que, em algumas ocasiões, isso lhe dará uma grande elegância".

Seduzido pela atenção que lhe era dispensada por tão alta figura da "Casa", o jovem diplomata deixa escapar que, pensando bem, vai acabar por comprar um chapéu. Aliás, recorda-se que até já tinha pensado nisso, mas nunca se tinha decidido, em definitivo. Mas agora, "já que o senhor embaixador recomenda", vai mesmo comprar um.

Nesse instante, o embaixador exclama: "Olhe lá! Lembrei-me agora: você vai a Londres! Não há melhor cidade do mundo para chapéus. Mais do que isso: estamos na época dos saldos! E, em Londres, onde você encontra estupendos chapéus é no Bates, ali na Jermyn Street. São magníficos! Porque não aproveita? Você vai estar lá dois dias, dá uma saltada ao Bates e compra um chapéu".

O jovem secretário sente-se impulsionado, entre o rápido convencimento e uma subliminar intimidação, e concede: "De facto, é uma boa ideia. Vou passar por lá e compro um chapéu.". "Faça isso, homem, faça isso, é uma bela oportunidade!", diz o embaixador, dando ares de se encaminhar para a porta de saída da sala.

De repente, porém, o embaixador estaca. E, voltando-se para o jovem colega, inquire: "Então você vai mesmo comprar o chapéu?". "Vou, vou" diz o outro, já num tom entre o decidido e o resignado, começando a estranhar a insistência. Aí, o velho diplomata lança-lhe: "E vai ao Bates? Excelente! É, de facto, a melhor opção! Aliás, dá-se uma coincidência curiosa, de que agora me recordo: eu tenho um chapéu encomendado, precisamente no Bates. Se o colega lá vai comprar o seu, podia levantar o meu chapéu e trazer-mo. Já está pago. Tem aqui talão. Fico-lhe muito grato...."

Guantánamo

Concretizando a disponibilidade anunciada em Dezembro de 2008. no sentido de poder receber prisioneiros detidos no campo americano de Guantánamo, na ilha de Cuba, sobre os quais não impendessem acusações susceptíveis de serem presentes à Justiça, o Governo português acaba de divulgar que vai acolher, no seu território, dois cidadãos de nacionalidade síria.

No comunicado há momentos emitido, Portugal anuncia que vai conceder a estes dois ex-detidos um visto especial, no quadro da sua legislação nacional. E adianta que o encerramento de Guantánamo, onde a anterior administração americana encerrou os "combatentes inimigos" a quem se recusava conceder os direitos previstos nas Convenções de Genebra, é "uma vitória para todos os que defendem e promovem o respeito pelos Direitos Humanos no quadro da luta contra o terrorismo".

Gostava de recordar que o Governo português foi o primeiro, no seio da comunidade internacional, a anunciar a sua disponibilidade de ajudar os Estados Unidos da América a pôr fim à base de detenção de Guantánamo.

Com este gesto, Portugal demonstrou saber assumir plenamente as suas responsabilidades políticas no quadro internacional e, em especial, os interesses da comunidade política e de valores que regem a relação transatlântica.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Benfica

Num jogo desta sua (excelente) pré-temporada, o Benfica fez alinhar, ao que parece pela primeira vez na sua história, 11 jogadores estrangeiros. Nada a dizer, num domínio em que a nacionalidade já hoje é praticamente irrelevante, salvo no caso das naturalizações oportunistas para integrar selecções nacionais.

Só que o caso do Benfica tem, apesar de tudo, uma característica diferente. Durante muitas décadas, a equipa da Luz orgulhava-se de nunca ter recrutado jogadores estrangeiros e terá sido, em Portugal, a última a abandonar essa prática. É claro que eram outros os tempos, tempos em que o pé-de-obra colonial trazia por aí Eusébios, Colunas ou mesmo Costa Pereiras, quase a preços de saldo. A "exploração colonial" tinha estas dimensões mais benévolas.

Neste contexto, seria agora interessante reflectir sobre o que significa este fenómeno da adesão a um emblema, seja quem for que o esteja a representar. Trata-se de um curioso mas complexo processo de construção de afectividade, que deriva de uma total irracionalidade, embora favorecida por factores de natureza conjuntural (região, família, grupos). Aliás, a prova mais irrefragável dessa mesma irracionalidade, assumida frequentemente com ares de seriedade, é detectável na substância do "argumentário"- esse sim, caricatural e supostamente racional - com que o facciosismo pretende explicar as motivações profundas de uma qualquer opção clubística.

Este é um tema fascinante, com a única garantia de ser, como sabemos, o início de uma discussão sem fim.

quarta-feira, agosto 05, 2009

Música

Já tinha dado por isso, em anteriores ocasiões, mas só na passada segunda-feira senti vontade de sentar-me, com alguma calma, para apreciar a música ao vivo que o belo Aeroporto do Porto oferece aos seus utentes.

Naquele ambiente por regra agitado, onde intimamente vivemos na permanente angústia de poderem ter mudado a hora e a porta de embarque, em que somos tentados a queimar tempo e dinheiro com uma nova revista internacional que (não) vamos ler ou com a compra de um perfume que (não) nos faz falta, que bom que foi perder (ou ganhar, depende da perspectiva) um quarto de hora para ouvir dois intérpretes de música portuguesa.

Curiosamente, tive muitos poucos companheiros nesta sessão, com a maioria dos passageiros a olharem à distância, como que desconfiados e temerosos de que, no final, lhes viessem estender um boné para recolha de moedas.

Da próxima vez que um atraso me apanhar no Porto, lá estarei à espera que me dêem música. Desta vez foi uma guitarra e uma viola, há meses ouvi por lá jazz e há ainda no local um piano que abre interessantes pespectivas. Humanizar lugares por natureza desumanos é uma nobre iniciativa.

Portugueses


Fui ontem a Limoges transmitir um abraço de solidariedade aos nossos compatriotas que aí estão hospitalizados, na decorrência do terrível acidente de viação que, no sábado, matou cinco pessoas, entre os quais um cidadão holandês, e deixou um grande número de feridos, alguns deles ainda em situação delicada. Antes de partir de Paris, fui avisado de outro acidente, poucas horas antes, com mais um morto e muitos feridos, desta vez na zona de Bordéus.

Este tipo de ocorrências tornou-se quase como uma sina anual dos nossos emigrantes, no seu regresso sazonal ao país. Ao longo de décadas, um imenso número de portugueses deixou o seu sonho de vida, e o dos seus familiares, pelas estradas de França, Espanha e Portugal, por razões diversas, e às vezes cumulativas, que vão desde a velocidade, a imperícia, o cansaço e outros estados físicos impróprios para a condução, bem como deficiências nas viaturas.

Campanhas de advertência têm sido levadas a cabo por entidades francesas ou da comunidade portuguesa - como foi o caso da "Cap Magellan" -, mas os seus efeitos são sempre limitados. É que alguns pensam que estas coisas acontecem apenas aos outros.

À noite, no meu regresso de Limoges, desembarquei na Gare de Austerlitz. E não pude deixar de lembrar-me que estava a chegar a Paris pela mesma estação ferroviária onde, há algumas décadas, muito provavelmente, haviam desaguado, pela primeira vez, alguns daqueles que agora desapareceram. Ironias deste destino português em França.

terça-feira, agosto 04, 2009

Memória de Agostos (I) - 1967


Uma derradeira boleia deixou-me na Porte d’Italie. Nessa manhã, tinha partido de Blois, depois de cinco dias com diversas paragens, condicionadas pelas disponibilidades de transporte. O mapa de Paris que trazia comigo, obtido no turismo francês em Portugal, era o então conhecido “Paris à vol d’oiseau”, com desenhos dos prédios e um recorte do centro da cidade que nos dava a ilusão de podermos “conhecer”, por antecipação, os monumentos e artérias principais. Mal eu sabia, ao chegar à Porte d’Italie, que a capital francesa era muito e muito mais do que isso. E ainda hoje continuo a aprender...

Eu havia preparado, com muito cuidado, essa minha saída de férias pela Europa, depois de um ano académico pouco feliz. A boleia era então um método de viagem muito comum, particularmente para quem tinha menos de 20 anos e queria conhecer o mundo europeu, sem grandes encargos, com uma mochila às costas. O Inter Rail estava para ser inventado e os tempos que então se viviam eram suficientemente calmos para gerar confiança em quem nos abria, com simpatia, as portas das suas viaturas. E, pela parte de quem solicitava boleia, o sentimento de segurança era quase generalizado. Nessa que foi a primeira de algumas viagens do género que fiz pela Europa, o meu objectivo era ir de Portugal à Noruega, com Paris como uma incontornável escala.

Cheguei aqui no dia 4 de Agosto de 1967, faz hoje precisamente 42 anos. Lembro-me de nesse dia ter apanhado, creio que pela primeira e última vez, um daqueles autocarros com uma plataforma aberta nas traseiras, que agora só se vêem nos filmes. Descobrir lugar para uma dormida compatível com aquilo que tencionava gastar, numa tarde de um Agosto turístico, revelou-se uma tarefa muito difícil. Corri “seca e meca”, mas todos os “auberges de jeunesse” que os livros indicavam estavam mais que cheios. E o final da tarde aproximava-se.

Foi então que alguém me falou do Centre International de Séjour, na Porte de Vincennes. De metro, fui lá parar, defrontando-me logo com uma fila de espera considerável. O processo de registo era assegurado por dois funcionários, cujo gesticular revelava já um certo cansaço, seguramente provocado pela pressão e pelo calor intenso do dia. Longos minutos decorreram e a fila pouco andava. A certo passo, um dos funcionários soltou uma sonora e impublicável imprecação… em castiço português. Não resisti e, lá de trás, do fundo da fila, mandei-lhe um “boa tarde”. O homem olhou-me à distância, com cara de poucos amigos, mas logo lançou, num berro: “Você aí! Avance!”. Um tanto atrapalhado, ultrapassei a longa fila, com imensa gente a protestar, a caminho do balcão. O nosso patrício, com uma lata incomensurável, mas bem olímpico no seu desplante, limitou-se a informar os contestatários, bem alto, desta vez em francês, da óbvia evidência: “Este senhor tem reserva!"

Não seria esta a última vez que ser português me traria vantagens na obtenção de dormida em Paris.

segunda-feira, agosto 03, 2009

Fome

A visita oficial estava prestes a chegar ao fim. O jovem membro do Governo português tinha concretizado a sua primeira deslocação a África, a um país de expressão francesa. As coisas haviam corrido bastante bem e o embaixador havia decidido organizar um jantar final de “estadão”, para retirar legítimos dividendos do sucesso. Convidados para o repasto estavam, entre outras personalidades, todos os interlocutores do nosso político. Porém, a mais ansiada presença era a do homem poderoso do regime, o ministro das Finanças, com o qual não fora possível marcar um encontro, na agenda da visita. Ora a resolução de algumas questões bilaterais passava essencialmente por ele e, por essa razão, tê-lo à mesa seria muito importante.

Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças local não havia meio de aparecer. Comecei a detectar alguma inquietação no seio da delegação portuguesa, tanto mais que o jovem político era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.

A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de ter dito ao embaixador que seria importante passarmos à mesa. “Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquiu-me, embaraçado. Eu compreendia que era uma pena perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. “Vou telefonar ao ministro!”, disse. Ora aí estava uma excedente ideia. E lá desapareceu para uma sala anexa.

Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. O jovem político, pouco dado a absorver contrariedades, mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente. E o jantar acabou por correr bem.

No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. E o nosso embaixador, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.

No contacto, perguntou ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite. A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um político português e que estava muito grato por ter sido convidado. Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...

domingo, agosto 02, 2009

Camarões

Portugal tinha-se manifestado algo intransigente em aceitar uma proposta, creio que em matéria agrícola, que os países da África, Caraíbas e Pacífico (ACP) tinham apresentado, no quadro das suas negociações comerciais com as então Comunidades Europeias. Era uma situação um pouco delicada, dada a nossa conhecida atitude favorável aos acordos com os países em desenvolvimento. Porém, as instruções recebidas de Lisboa eram imperativas e não podíamos "levantar a reserva" - como se diz no linguarejar negocial.

A questão técnica era assegurada, no âmbito da delegação portuguesa àquela reunião no Luxemburgo, por um especialista cuja familiaridade com as línguas estrangeiras estava longe de ser o seu mais notório atributo. Apesar disso, achou-se importante que fosse ele a explicar as nossas razões ao presidente de turno do grupo dos países ACP, o embaixador dos Camarões em Bruxelas. E combinou-se um encontro.

Tudo correu bastante bem, o nosso homem exprimiu-se de forma razoavelmente compreensível e, o que era mais importante, ficou passada a mensagem da nossa boa-vontade e empenhamento em ser encontrada, a curto prazo, uma solução para o problema. Estava salva a honra do convento! O breve encontro terminou e, em jeito de conversa já social, o embaixador perguntou ao nosso homem: "Et vous avez déjà visité mon pays?". Com um sorriso simpático, o interlocutor português respondeu ao embaixador dos Camarões: "Non, M. l'Ambassadeur, je n'ai jamais visité les Crevettes"!

Não peçam para descrever a cara do camaronês...

sábado, agosto 01, 2009

Ásia

JustifierSó quem visitou alguns países da Ásia pode testemunhar o modo extremamente positivo como a herança histórica portuguesa aí sobreviveu. Descontadas as desventuras da descolonização dos territórios na Índia, que suscitou reacções que ainda hoje emergem acidamente em sectores residuais do tecido sócio-político de Goa, a imagem geral de Portugal nas paragens asiáticas é muito acarinhada. Mesmo em países como a Indonésia, que connosco mantiveram uma conflitualidade recente por virtude da questão de Timor-Leste, a memória portuguesa aparece citada por toda a parte e é-nos constantemente lembrada, com simpatia, a nossa contribuição no léxíco e nos costumes locais, bem como, frequentemente, no seu património arquitectónico, militar e religioso.

A imagem que um país e os seus cidadãos provoca nos outros é um importante factor constitutivo da sua identidade internacional. Por isso, quando positiva, torna-se num valor imaterial sem preço, porque, na maioria dos casos, não resulta de uma criação artificial, mas de uma longa decantação da História. E, por essa razão, é um fenómeno mais genuíno e mais duradouro.

Falo hoje desta questão porque, numa conversa, há dias, alguém me referia o facto de, aparentemente, não ter havido celebrações condignas dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Sri Lanka. E de se aproximar, a passos largos, idêntica data relativa à Tailândia. E, ainda ontem, um amigo me falava, com entusiasmo, do que encontrou de referências portuguesas, numa sua ida recente ao Japão.

Portugal é um país cuja riqueza histórica é incomensuravelmente superior à sua capacidade de a projectar no mundo contemporâneo. Não temos meios financeiros para provocar a produção de filmes, publicações, cátedras, visitas e outras medidas de "promoção", à altura da qualidade daquilo que ficou inscrito no nosso passado. Veja-se o que fazem os espanhóis com Cristóvão Colombo, para termos um termo de comparação.

No tempo da ditadura, a História portuguesa foi utilizada como instrumento de adubamento da ideologia do regime. A hagiografia em torno de certas figuras, por vezes com um exagero que roçou o ridículo, bem como a hiperbolização megalómana dos feitos gloriosos do nosso passado foi feita, durante algumas décadas, de uma forma tão caricatural e simplista que, não raramente, acabou por afastar as pessoas do apreço que lhe era realmente devido. O papel da História portuguesa no imaginário nacional sofreu imenso com esse descarado oportunismo político e, a meu ver, isso ainda se faz sentir em muitos sectores da sociedade portuguesa.

Voltando ao que interessa: a Ásia actual, a meu ver, continua a ser um terreno magnífico para assentar uma redescoberta serena dos tempo em que os portugueses por lá andaram.

sexta-feira, julho 31, 2009

Luas

Ao ver reportada, há dias, a persistente existência de alguns cépticos, por esse mundo fora, que ainda não acreditam na chegada do homem à Lua, em Julho de 1969, não pude deixar de recordar um episódio anedótico anterior, passado em Portugal.

Estávamos em 1957 e a União Soviética anunciara a colocação em órbita do seu primeiro satélite, o Sputnik. Este primeiro passo na aventura espacial, hoje considerado decisivo para tudo o que se lhe seguiu, não foi muito bem visto por alguns sectores oficiais portugueses, quiçá tementes que, com esse êxito, as doutrinas políticas que emanavam de Moscovo pudessem ter o seu caminho facilitado no nosso país.

Ora uma voz da “ciência” portuguesa, o astrofísico professor Varela Cid, concluíra uma teoria sobre o tema que agradava ao regime. E recordo que aí tivemos, com direito a quadro negro e explicações a giz, a demonstração pelo nosso “sábio” luso, na nascente RTP, da "impossibilidade" prática de um satélite poder ser posto em órbita.

Não há limites para o ridículo.

quinta-feira, julho 30, 2009

Assinatura

Há uma velha teoria segundo a qual os diplomatas passam metade da vida a escrever aquilo que os outros assinam e uma outra metade a assinar aquilo que os outros escrevem.

As coisas não serão bem assim, mas a tendência funcional é para que isso aconteça. Por mim, continuo a esforçar-me para não dar razão à segunda parte da frase, escrevendo ainda a maioria das coisas que assino.

quarta-feira, julho 29, 2009

Estátuas

Umas férias no "Portugal profundo" dão-nos mais tempo para observar, com cuidado, o novo património escultórico que enxameia as localidades portuguesas.

Não coloco em causa a importância de dar trabalho a alguns esforçados artistas, mas confesso quee me sinto chocado pelo mau-gosto que impera em algumas cidades e vilas, frequentemente em locais com grande dignidade.

Dou o exemplo de uma terra a que estou muito ligado, Viana do Castelo: dois mostrengos estão a estragar, respectivamente, a intocável Praça da República e o Largo de S. Domingos. No primeiro caso, é uma feiíssima alegoria a uma temática brasileira. No segundo (vejam...) é uma figura a cavalo (parece um burro...), desproporcionada e monstruosa.

Não é possível lançar uma campanha nacional para abolir estes monos?

segunda-feira, julho 27, 2009

Bela definição

Rei Juan Carlos definindo a "profunda sintonia" entre Portugal e Espanha" na inauguração do Instituto Ibérico de Nanotecnologia: "Nem podia ser de outra maneira entre duas nações antigas, vizinhas, amigas, sócias e aliadas".

domingo, julho 26, 2009

"Literatura"

A vida editorial francesa, para além de coisas sérias e profundas que estão na génese de uma sociedade onde o valor das coisas intelectuais é muito respeitado, tem um "outro lado", com sucesso garantido. São livros fáceis, de um género perecível, ao final de algumas semanas.de exposição. Mas é um mercado muito rentável, a julgar pelos "tops" de vendas.

Este tipo de volumes, assentes nos "affaires", é, em si mesmo, muito francês. Nos últimos anos, contudo, parece haver uma crescente tendência para se ir para além da fronteira do mero "voyeurisme" político, passando para um terreno que mistura cada vez mais a alcova com a intriga. Dir-me-ão que isso sempre existiu; é verdade, mas agora há, claramente, mais.

Curiosamente, a imprensa francesa, sempre muito atenta à "petite histoire", pareceu, durante algum tempo, relativamente imune às histórias sentimentais clandestinas, contrariando a prática da sua congénere anglo-saxónica. Agora, começa também a mudar.

Em Portugal, este género de literatura tem escassos seguidores, se excluirmos algumas "obras" de escândalo que, depois de algumas semanas de evidência, saem para lugares discretos das mesas das livrarias. Geram dinheiro, rendem fotografias, queimam reputações e enchem os egos de alguns protagonistas. Mas, felizmente, não parece fazerem escola. E ainda bem.

sábado, julho 25, 2009

Ártico

Dormir num saco-cama, assente numa placa de esferovite directamente pousada sobre o gelo, numa tenda militar, bem a Norte do círculo polar ártico, com uma temperatura exterior de cerca de 25º negativos, é uma experiência para a qual se exige uma certa coragem. A verdade é que a tenda tinha no centro uma espécie de aquecedor, com uma chaminé que saía pelo tecto. E no seu interior, valha a verdade, a temperatura estava bem acima dos números de fora. Mesmo assim...

Estávamos num campo de treino da NATO, organizado pelas tropas norueguesas, em 1980. O dia fora longo e eu partilhava o espaço com dois colegas, um belga e um turco. Chegados à nossa tenda, enfiei-me logo no meu saco-cama, saquei de uma lanterna de bolso, que prudentemente levara comigo, e pus-me a ler o "Herald Tribune" do dia. Acompanhava-me uma pequena garrafa metálica com um belo whisky de malte, em cuja tampa, com esmero, coloquei algum gelo que raspei do chão. As recomendações NATO tinham sido estritas - nada de alcool! -, mas achei que uma pequena excepção podia ser admissível para o civil inverterado que eu era. E nem a proximidade do Pólo Norte tinha o condão de me afastar de alguns comezinhos prazeres mais cosmopolitas...

Notei que o meu amigo belga adormeceu logo e estranhei ver o turco a tentar fazê-lo fora do saco-cama. Disse-me que estava com calor e que ficaria bem assim...

Acabadas a minha dose de whisky e a leitura, adormeci também. Acordei, creio que cerca de uma hora depois, alertado pelo belga. O nosso colega turco, imprudente, ao ter-se deixado dormir fora do saco-cama, estava agora enregelado, sentia-se mal e não conseguia aquecer, nem sequer aproximando-se do aquecedor.

Que se podia fazer? Sair da tenda, à procura de ajuda, na gélida e ventosa noite ártica, era quase suicida. Adiantei uma ideia: porque não bebia o nosso amigo turco um bom trago do meu whisky? Seguramente que isso poderia ter um efeito-choque, ajudando à sua recuperação. O belga concordou que era uma boa sugestão. E é aí que o turco nos surpreende: "não posso beber álcool. Sou muçulmano". E continuava a tremer de frio.

Com diplomacia e poder argumentatório - estávamos entre diplomatas - tentámos convencê-lo de que os ditames religiosos, com toda a certeza, eram passíveis de pontual derrogação quando estava em causa a salvação da vida. O whisky podia assim ser considerado, no caso vertente, como um mero medicamento - "embora bem mais saboroso do que é habitual", lembro-me de ter pensado. O turco, já um pouco em pânico, acabou por concordar em seguir a opção que lhe era oferecida: bebeu uma boa dose do meu velho malte e até repetiu... E lá aqueceu, como previsto, conseguindo dormir.

Pergunto-me, até hoje, se a minha leitura das regras religiosas muçulmanas esteve ou não correcta. E será que me posso considerar culpado se acaso o meu amigo turco, por via da minha sugestão, mudou de hábitos de vida?

Isabel Meyrelles

Chama-se Isabel Meyrelles, nasceu em Matosinhos, em 1929. Tinha ouvido falar dela, em Portugal, a alguém com quem ela convivera no Grupo Surrealista de Lisboa - o meu primo Carlos Eurico da Costa.

Começou a dedicar-se à escultura no Porto, com 16 anos. Pertenceu ao famoso grupo intelectual do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa. Veio para Paris em 1950. Estudou escultura, na Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts, e literatura, na Sorbonne. Foi tradutora para francês, entre outros, de Jorge Amado e organizou e publicou, na Gallimard, uma interessante Antologia da Poesia Portuguesa do século XII ao século XX. Tem editadas em Portugal as suas "Poesias", nas Edições Quasi (2004). Considera-se mais uma escultora que uma poeta.

Devo dizer que, à excepção de alguns textos numa antologia, e de fotografias de algumas das suas esculturas, desconhecia, quase por completo, a sua obra. E, pessoalmente, talvez apenas nos tenhamos encontrado em algumas noites do "Botequim", em Lisboa, o bar que dirigiu com Natália Correia, ente 1971 e 1977. Fomos apresentados em Paris, há dois meses, numa exposição de pintura, e, posteriormente, deu-me o prazer de aceitar o convite para vir à Embaixada, na data da nossa festa nacional.

Nesse mesmo dia, o Estado português decidiu conceder-lhe uma condecoração - Comendadora da Ordem de Sant'Iago da Espada - que consagra a sua figura de intelectual e o conjunto da sua obra, distinção cujas insígnias lhe entregarei pessoalmente, aqui em Paris, daqui a algum tempo. Saiba mais sobre Isabel Meyrelles aqui.

quinta-feira, julho 23, 2009

Cristina Branco

Foi há cerca de nove anos que ouvi, pela primeira vez, Cristina Branco. Por um mero acaso, foi em Paris, num memorável espectáculo na Unesco, com Argentina Santos e Marisa.

Era um modo diferente de interpretar o fado, que combinava a forma clássica com algo de novo, que era indefinível para um mero leigo, como eu era e sou nestas áreas. Julgo não ter falhado nenhum dos seus discos (tenho mesmo uma edição holandesa) e, se bem que tenha frequentemente enveredado por outros caminhos musicais, a sua voz continua a ser excepcional.

Saiu há poucos meses em França o seu novo trabalho, Kronos, que apresentou numa bem sucedida "tournée" em França. Ouça-a aqui em "Se a alma te reprova".

Patten

Ao ver, há dias, a chegada maciça dos novos parlamentares europeus ao hemiciclo de Estrasburgo, veio-me à memória uma cena passada no último dia em que, em nome da presidência portuguesa da União Europeia, em Dezembro de 2000, aí estive presente.

Como era de regra, um membro do governo do país que detinha a presidência respondia, na bancada do Conselho, às perguntas dos deputados. Um dia falarei de aspectos desse ritual, que tem muito de teatral, a somar-se a algo de criativo.

Para o que aqui hoje interessa, importa recordar que, na bancada em frente, estava o Comissário Europeu encarregado das Relações Externas, Chris Patten. Patten é uma figura simpática, serena, um homem de bem que se portou com grande dignidade quando teve de gerir a difícil transição de Hong Kong, das mãos britânicas para a China. Antigo ministro da senhora Thatcher, é um europeísta convicto, embora "à inglesa". Escreveu, sobre a sua experiência europeia, um livro que recomendo, intitulado significativamente "Not Quite the Diplomat". É, além disso, um homem que olha para a vida com humor, que sabe dar uma boa gargalhada e que atribuiu aos seus cães dois nomes significativos: "Whisky" e "Soda".

A presidência portuguesa havia sempre podido contar com Chris Patten como um aliado fiel dentro da Comissão. Jaime Gama e eu próprio havíamos conseguido, não sem alguns "truques", equilibrar os papéis relativos, com inegáveis "zonas cinzentas" e potencialmente conflituais, de Patten e de Javier Solana. A contento médio dos dois, julgo eu.

Nessa tarde, a última em que eu tinha de dirigir-me ao plenário em nome da presidência, recordo o meu grande cansaço, que se terá revelado na impaciência e eventual rispidez de algumas das minhas respostas, nas mais de duas horas desse interminável e muitas vezes inglório exercício. Patten tê-lo-á notado e, num determinado momento, pelas mãos de uns dos fâmulos vestidos de pinguim, que contrastam vivamente com a modernidade do areópago, chegou-me um bilhete, que guardei: "Coragem, Francisco. Falta pouco! Daqui a semanas, andarás pela 5ª avenida a respirar o ar do Novo Mundo. Entretanto, este teu amigo terá de ficar por aqui mais uns anos. Lembra-te dele! Amigavelmente, Chris".

Patten referia-se à minha saída do governo e ida para embaixador junto das Nações Unidas, em Nova Iorque. Nenhum de nós sabia que eu acabaria por ficar por lá, como embaixador, ainda menos tempo do que o que a ele lhe restava como Comissário Europeu. Como alguém dizia, é a vida!

quarta-feira, julho 22, 2009

Mercedes

Numa noite, nos idos de 80, o embaixador português em Angola saiu de um jantar em minha casa, no "compound" da Embaixada - onde eram os escritórios e muitos de nós então vivíamos -, e arrancou ao volante para a sua residência, no bairro de Miramar. Tentava chegar antes da meia-noite, hora do "recolher obrigatório", que quase sempre implicava a possibilidade de encontrar patrulhas armadas, de humores variáveis e imprevisíveis.

Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.

Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.

O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!

segunda-feira, julho 20, 2009

Televisão

O papel da televisão portuguesa na comunidade emigrada é um tema fascinante que Manuel Antunes da Cunha trata no seu recente livro "Les Portugais de France face à leur télévision" (ed. Presses Universitaires de Rennes, 2009).

Estou ainda no início do livro deste doutorado em Ciências de Informação e Comunicação, mas o que já pude ler revela-me um trabalho extremamente interessante e profundo, feito com grande rigor científico.

Este livro permite tornar mais transparente a mensagem cultural que a televisão pública veicula, mesmo quando isso não resulta de uma opção estratégica claramente assumida. E, naturalmente, auxilia também a "ler" o modo como as diversas gerações de origem portuguesa se posicionam face a essa mesma mensagem e como interagem com ela.

domingo, julho 19, 2009

Paris 88

Eugénia de Melo e Castro é uma caso original na música portuguesa contemporânea. Viajante do Atlântico, fez carreira em Portugal e no Brasil e, por mais de uma vez, ao longo das últimas décadas, contribuiu fortemente para o reforço do mútuo conhecimento desses dois mundos tão distantemente próximos.

Cantou com os melhores do Brasil, usando sempre, sem complexos, o seu "português de Portugal".

Será impressão minha ou o mundo musical português não a aprecia como deveria apreciar? E porque será?

Como aperitivo aos seus já muitos e belos discos, deixo, nesta noite de verão, e nem de propósito, o seu Paris 88.

sábado, julho 18, 2009

Bela frase


"Quem me dera não ter nascido em Portugal para poder ter a incrível experiência de visitar um país como este".

Frederick Fannon, na revista "Up!" da TAP

Maspero

Entre 1956 e 1975, uma livraria fazia parte do circuito de um certo Portugal político em Paris. A "Joie de Lire", na rue St. Severin, junto à place St. Michel, propriedade do editor François Maspero, era um ponto de encontro de muitos, que por aqui viviam, com outros que, como eu, por aqui passavam, a partir da segunda metade dos anos 60. Para aquela espécie de turistas políticos que alguns de nós então éramos, a Maspero (ninguém dizia a "Joie de Lire") era uma "meca" da livralhada inacessível em Portugal, à qual se juntavam panfletos e publicações dos partidos portugueses na clandestinidade, que despertavam a nossa imensa curiosidade.

François Maspero tinha como orientação não entregar à polícia - à "polícia da burguesia" - quem fosse apanhado a roubar livros, o que criou, em muita gente, uma espécie de impunidade que, ao que se dizia, terá acabado por levar a livraria à ruína económica. Fui testemunha presencial de uma frutuosa e furtuosa "romagem" à Maspero de um amigo português, ao tempo estudante em Paris, convenientemente dotado de um avantajado capote alentejano, que dava espaço para um eficaz "arquivar" de volumes. Ainda o estou a ouvir: "Ora cá está ele! Faltava-me o volume 8 das obras do Bataille!". E lá desapareceu o avantajado volume da Gallimard no bojo do capote...

quinta-feira, julho 16, 2009

Quino

Confessados ou não, todos temos os nossos heróis. Eu tinha um, cuja foto não conhecia nem sabia por onde andava. Nem, ao certo, se ainda era vivo.

Assim, nem queiram imaginar qual não foi o meu espanto quando, há dias, num evento público em Paris, em que nada fazia supor que ele estivesse, vi ser chamado ao palco Quino, o inventor dessa magnífica Mafalda da banda desenhada. Devo ter sido das primeiras pessoas que, na sala, se levantaram, de imediato, a dar-lhe merecidas palmas. Não por aquilo por que era premiado, mas como agradecimento a quem tanto prazer me proporcionou.

Para mim, se há por aí alguns génios, Quino é um deles.

Gritos

Por detrás de belas casas do centro de Londres, construídas nos séculos XVIII ou XIX, situam-se os "mews", espaços de antigas cavalariças ou de guarda de carros de cavalos, hoje muitas vezes transformados em luxuosos apartamentos, com um discreto acesso por ruas laterais.

A caminho do pátio das traseiras da residência da Embaixada de Portugal em Londres, em Belgrave Square, existem requintados "mews", habitações de gente abastada, a avaliar pela qualidade dos automóveis que por lá se acolhem e pelos preços que se sabe serem praticados na área.

Um dia, o cozinheiro do embaixador deu-me nota de "uma coisa desagradável" que se passava num dos "mews" adjacente ao nosso prédio: em algumas manhãs, uma senhora dava berros terríveis, que, bem cedo, lhe acordavam a criança e lhe infernizavam o início do dia. Os factos tinham lugar aperiodicamente; havia semanas com gritaria, intervaladas com tempos silenciosos. Até já tinha pensado chamar a polícia, mas preferiu dar-me conta pessoal do sucedido. Como não me voluntariei para testemunhar matinalmente os factos, nem o próprio embaixador se queixara, procurei saber junto de outros ocupantes da residência se os confirmavam. Todos anuíram, embora, por estarem mais distantes, as suas queixas fossem bastante mais limitadas.

Fiquei intrigado e, confesso, cheguei a suspeitar de vícios ocultos de alguma vizinha, embora numa qualquer pouco comum e errática prática matinal. Até que alguém, já não sei bem como, me resolveu o mistério: a vizinha dos gritos era, nem mais nem menos, a fabulosa soprano Jessye Norman, que ensaiva a sua voz aos alvores dos dias em que passava por Londres, no curso das suas tournées.

Imaginem que tínhamos chamado a polícia ou eu tinha pedido para que ela se calasse...

terça-feira, julho 14, 2009

Le Droit à la Paresse

A partir de hoje e até inícios de Agosto, um indeclinável direito a uma "vilegiatura estival" (era assim que o desaparecido 'O Vilarealense' anunciava a partida, para banhos, dos seus assinantes) faz com que este blogue entre em serviços mínimos e até erráticos.

No fundo, trata-se apenas do exercício do "direito à preguiça", a que se refere o livro de Paul Lafargue, de que aqui deixo uma imagem, uma figura franco-cubana do século XIX, sobre quem um dia valerá a pena voltar a falar-se neste blogue, tanto mais que se passeou pelo Portugal desses tempos, embora, ao que conste, não tenha levado o seu famoso sogro consigo.

Palma Inácio (1922-2009)

Há menos de uma semana, aqui em Paris, falei longamente sobre Palma Inácio com Mário Soares. Comentámos que a sua vida daria um belo filme. Acabo de saber que morreu hoje, na data mais revolucionária da França. O dia da Tomada da Bastilha é um dia bonito para Palma Inácio morrer.

Confesso que sempre tive uma grande admiração por Hermínio da Palma Inácio, como uma das grandes figuras da resistência ao salazarismo. Tive o feliz ensejo de lho dizer, há já bastantes anos, dele recebendo um agradecimento de grande modéstia. Desde jovem, lutou intensamente pela liberdade, tendo estado envolvido em imensas tentativas de sublevação. Foi preso e violentamente torturado pela PIDE, com um comportamento de grande dignidade na cadeia. A foto que ilustra este post recorda a sua saída de Caxias - a saída dos presos políticos, a seguir ao 25 de Abril, que foi atrasada precisamente porque o general Spínola não queria Palma Inácio em liberdade. E porque os outros presos não queriam sair sem ele.

Mário Soares contou, nessa bela noite de memórias em casa de amigos comuns, algumas histórias curiosíssimas sobre as suas relações com Palma Inácio. Entre as quais, o dia em que teve de escondê-lo em casa de José Fernandes Fafe, na linha do Estoril, depois de uma das suas épicas e legendárias fugas da prisão.

Durante muito tempo, o facto de Palma Inácio ter sido o chefe do grupo que assaltou a filial do Banco de Portugal, na Figueira da Foz, fez convergir na sua pessoa uma ignominiosa imagem de alguém que se havia apropriado, para finalidades pessoais, do dinheiro então obtido. Esse era o objectivo insultuoso que o regime ditatorial dele quis dar à opinião pública. Porém, quem conhece a história da oposição ao Estado Novo sabe bem que Palma Inácio foi um homem sério, que nunca utilizou essas verbas em seu proveito e que viveu sempre com grandes dificuldades, devotado às causas políticas em que acreditou. Mas terá sido essa miserável "fama" a razão que atrasou a atribuição de uma merecida Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, com que o presidente Jorge Sampaio o agraciou em 2000.

Leia mais sobre Palma Inácio aqui e aqui.

segunda-feira, julho 13, 2009

14 juillet

Há já uns bons anos, sem que me tivesse apercebido da data, cheguei a Paris, ido de comboio de Bruxelas, na noite do 14 de Julho, a festa nacional francesa. Havia sido difícil reservar um hotel próximo do "Périphérique", porque era importante conseguir sair bem cedo para o aeroporto, no dia seguinte, para partir para outro continente.

O motorista que me aguardava na Gare du Nord foi-me dizendo que não ia ser pêra doce chegarmos ao hotel, que ficava perto da Étoile. Tinha razão. O trânsito estava impossível e, chegados ao Arco do Triunfo, foi preciso parlamentar com uns polícias para atravessar a praça. Mas lá conseguimos arribar ao destino.

Entretanto, o motorista tinha-me chamado a atenção para o interesse em não perder o fogo de artifício dessa noite, o maior e mais imponente nos céus de Paris, durante todo o ano. Desde sempre, desde as festas da Senhora da Agonia em Viana do Castelo, passando pelo "4 de Julho" em Manhattan, sempre fui um fã das sessões de fogo de artifício, essa maravilhosa arte efémera que alegra as noites de verão.

Com a sugestão do motorista ainda no ouvido, mas consciente de que a hora do espectáculo se aproximava, perguntei na recepção do Hotel Raphael, onde me iria hospedar, se me aconselhavam algum local, de onde ainda pudesse ver o espectáculo. A reacção do empregado foi de uma snobeira tipicamente parisiense. Depois de me dar a chave do quarto, olhou para o relógio e adiantou, num tom displicente: "As pessoas acham que o terraço do nosso hotel é, muito provavelmente, o melhor local de Paris para ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Aliás, o fogo desta noite começa daqui a 15 minutos e vamos servir champanhe no terraço dentro de... 3 minutos".

Foi quase uma noite memorável, com técnicas de pirotecnia que não imaginava possíveis. Presumo que, de lá para cá, tudo esteja ainda mais requintado no fogo da festa parisiense, tanto mais que, este ano, a Torre Eiffel, que comemora os seus 120 anos, será ainda mais o centro principal do evento.

Ainda não sei onde vou, logo à noite, ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Mas não excluo, em absoluto, tentar-me fazer convidado para o terraço do Raphael...

Boavista

Há uma imensa injustiça quando um emblema a quem imensos milhares dedicaram as suas emoções e afectos, ao longo de um historial de largas décadas, se perde por virtude de gestões ruinosas e de decisões assentes na irresponsabilidade.

Há uns anos, foi o Salgueiros, há pouco tempo esteve para ser o Leixões, agora foi a vez do Boavista. A macrocefalia do Futebol Clube do Porto não justifica tudo.

A desqualificação do Boavista é um momento triste para a cidade do Porto e para o futebol português em geral. Mas o que é ainda mais triste, porque sintomático do estado em que vive o futebol português, é não ver pessoalmente responsabilizados e punidos com severidade criminal, até ao limite máximo das consequências da lei, os responsáveis directos por este tipo de descalabros que afectam os nossos clubes, que os endividam e arruínam para satisfação das suas vaidades e glórias pessoais, arrastando consigo o desemprego, para os jogadores e os restantes empregados dos clubes. Responsáveis que têm nomes, alguns bem sonantes, como todos sabem. E que por aí vão continuar a andar à solta, bem na vida e de costas direitas.

Deixo um abraço de simpatia aos meus amigos boavisteiros, em cujo admirável Campo do Bessa me "estreei", numa tarde de 1966, como um dos menos bem sucedidos "laterais-direitos" dos anais da equipa de futebol da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto...

domingo, julho 12, 2009

Armstrong

A Volta a França já não desperta por aqui o entusiasmo de outros tempos, embora uma parte do país mantenha ainda uma nostálgica imagem dos tempos de Anquetil, Merckx, Hinaut, Induráin e de outras grandes figuras que, a partir da França, ajudaram a fazer a história do ciclismo mundial. Os sucessivos escândalos do doping, com a noção de que algumas das melhores corridas podem ter sido falseadas, bem como a concorrência mediática de outros eventos, acabaram mesmo por diluir o fantástico feito de Lance Armstrong, vencedor sucessivo de sete "Tours" (1999-2005), e que, este ano, decidiu regressar à competição.

Armstrong, em toda a sua glória-tragédia, desde o "record" de vitórias em "Tours de France" à ainda mais admirável vitória pessoal sobre o cancro, converteu-se, definitivamente, numa figura altamente polémica, que suscita emoções de dimensão irracional, potenciadas por um estilo pessoal com alguma arrogância. Por isso, a somarem-se às obras de cariz hagiográfico, que o louvam quase à escala dos deuses, aparecem, em paralelo, libelos impressos pelos seus detractores radicais, ambos quase no limiar do ridículo.

O "óscar" da paranóia anti-Armstrong deve ir, contudo, para "Lance Armstrong, l'abus!", um requisitório assinado por Jean-Emmanuel Decoin, chefe de redacção do "L'Humanité", órgão do velho Partido Comunista Francês, que considera que o "Tour de France" foi "desnaturado" pelo "imperialismo do post-Reagan". Segundo uma recensão do livro feita pelo "Le Monde" (confesso não ter tempo para a leitura destes exageros editoriais), o livro, epicamente dedicado "ao ciclista desconhecido", avança mesmo com um imperativo "Armstrong, go home!".

O anti-americanismo é uma arte que certa França cultiva com um requinte tal que, por vezes, chega a ser interessante de observar, pelo que releva de idiossincrático e quase identitário. Mas há limites!

sábado, julho 11, 2009

Duas rodas

Eu consigo perceber, sem dificuldade, que se tente privilegiar quem viaja de bicicleta, dando-lhes faixas de circulação próprias, protegendo-os e estimulando o seu uso, mesmo se, por vezes, o comportamento dos respectivos condutores fica algo à margem das regras comuns de trânsito. Porém, trata-se de um meio de transporte que, além de saudável, é não poluente e cuja utilização com velocidades razoáveis tem, sem contestação, um impacto global positivo sobre as sociedades.

O que eu não entendo, por mais que me esforce, é por que diabo temos de sofrer, cada vez mais, uma espécie de assédio de tráfego por parte dos veículos motores de duas rodas, que enxameiam as nossas ruas e estradas. Que eles por aí andem, muito bem: têm um direito como qualquer outro. Mas é inexplicável a impunidade com que não cumprem as regras mais elementares de trânsito, como ultrapassam por ambos os lados das nossas viaturas, como não respeitam os traços contínuos, como se enfurecem e se tornam violentos se nos limitamos a exercer esse direito básico que é podermos ocupar a totalidade das nossas faixas de rodagem.

Em cidades como S. Paulo, no Brasil, os chamados "motoboys" são hoje uma raça humana verdadeiramente terrorista, que obriga a um aturado esforço de concentração dos condutores automóveis para deixarem o espaço necessário a "suas excelências" circularem como lhes aprouver, pela esquerda ou pela direita, zigzagueando em frente às viaturas, sem o menor respeito pelos limites de velocidade, buzinando a todo o momento e assumindo comportamentos de elevada agressividade se acaso consideram, com razão ou sem ela, que os seus "direitos" adquiridos (e eles estão, de facto adquiridos, porque o grupo faz hoje forte chantagem política) estão a ser limitados. Para além de, com frequência, pontapearem os carros e quebrarem deliberadamente espelhos retrovisores.

Porém, um fim-de-semana por estradas de França provou-me que o problema tem por aqui uma dimensão já muito similar, obrigando a um esforço particular de atenção por forma a permitir que os "senhores das motos" se possam passear à vontade entre os automóveis, num comportamento sem rei nem roque, desde os distribuidores de pizzas aos cultores canastrões que vão "on the road" num estilo "Easy Ryder", na melhor das hipóteses ufanos nas suas Harley-Davidson. E como, em França, se não vê um polícia de estrada por centenas de quilómetros, a lei da selva está hoje por aqui instituída.

Resta dizer que, em Portugal, as coisas vão por caminho perfeitamente idêntico. Pior: em certas zonas, há mesmo uns selvagens, com ou sem capacete, que transportam crianças entre adultos, numa impunidade total, ficando-se com a sensação de que estão protegidos por uma espécie de benévola antropologia ruralista.

Um ortopedista dizia-me, há anos, com algum sadismo, que a anarquia da circulação das motos em Itália tornava o país num "paraíso" para os médicos da sua especialidade. Eu, confesso, não lhes desejo mal, mas começo a ficar farto. E que dirá o meu amigo e "motard" Manuel Serra a tudo isto?

quinta-feira, julho 09, 2009

Robert McNamara (1916-2009)

Julgo que foi a primeira das várias vezes em que, por dever de ofício, tive de passar longas horas num já célebre barracão de conferências que existe em Maastricht, cidade holandesa encravada na Alemanha, que dá pela sigla de MECC. E nunca pela melhor razão: a excelente feira de antiguidades que lá tem lugar, no primeiro semestre de cada ano.

Estavámos em meados de 1990 e recordo-me que se tratava de uma qualquer conferência sobre questões de cooperação para o desenvolvimento, tema a que então especialmente me dedicava. Robert McNamara era um dos conferencistas e, devo confessar, a minha atenção ao que iria dizer havia sido mobilizada na razão directa da imagem, quase fotográfica e caricatural, que eu dele tinha - uma figura de cabelo oleadamente penteado para trás, qual ministro de Salazar. Lembrava-me, e lembro-o aqui, a mostrar um mapa do Vietnam, nos seus tempos de secretário da Defesa dos EUA, com um ponteiro que devia assinalar bombardeamentos e "santuários", no auge dessa carnificina sem sentido, para a qual a lógica cega da Guerra Fria tinha conduzido a América. E da qual o orgulho do país saiu com uma profunda ferida, que veio a conduzir à posterior eleição de Ronald Reagan.

Ao meu lado, lembro-me bem, estava sentado Abdul Magid Osman, então ministro das Finanças de Moçambique, velho amigo dos tempos em que ambos trabalhávamos na Caixa Geral de Depósitos, no início dos anos 70. E foi com Abdul que comentei aquilo que já sabíamos ser a surpreendente transfiguração de McNamara: do infatigável "warrior" anti-vietcong, tínhamos perante nós um homem sensível à situação do mundo em desenvolvimento, atento às suas necessidades, titulando a alteração da matriz dos estáticos "programas de ajustamento estrutural" do Banco Mundial, o organismo a que McNamara agora presidia. O jingoísta McNamara era agora um homem quase sereno, a caminho da reconciliação com o seu passado.

Seis anos mais tarde, Robert McNamara publicou "In Retrospect - The Tragedy and Lessons of Vietnam", um livro que aconselho vivamente a quem não tiver a fraqueza de se não querer enfrentar com a verdade. Um livro que honra um homem que não teve o receio de reconhecer os seus erros, por mais trágicos que hajam sido.

Em 2001, tive o privilégio de ouvir de novo McNamara no Council on Foreign Relations, em Nova Iorque, apontar, a tempo e horas, os perigos que detectava na equipa do recém-eleito George W. Bush. Recordo a sua lucidez, que não era minimamente incompatível com o seu patriotismo, que alguns neo-mccaristas, num certo momento, quiseram pôr em causa.

McNamara morreu agora, com 93 anos. Desconheço se chegou a ter a consciência da esperança que Obama representa para uma certa América. Porque Obama é hoje - e esperamos que possa continuar a sê-lo - a América que a contrição de McNamara também ajudou a construir.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...