terça-feira, setembro 04, 2018

O bispo e as Felicianas


O jornal da diocese, “A Voz de Trás-os-Montes”, estimável folha informativa em que este escriba deu à estampa os seus primeiros artigos (que estão “fora do mercado”, para evitar chantagens), tinha destacado, com grande fotografia de primeira página, a deslocação a Roma do bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca. Estava-se em meados dos anos 60, período do Vaticano II.

Como administrador apostólico ficou, encarregado da diocese, monsenhor Libânio, uma figura alta que ainda hoje justifica o nome dado a um cadeirão comprido que tenho lá por casa, herdado do meu avô, a que sempre chamamos a "cadeira do padre Libânio", não obstante o próprio, com certeza absoluta, nunca a ter experimentado.

Valente da Fonseca tinha tanto de anafado quanto Libânio tinha de esguio, óculos à Gramsci, andar desengonçado e um ar de intelectual. No que me toca, via-os sempre à distância e nunca falei com qualquer deles.

Nas ociosas noites do verão vila-realense, havia muito pouco que fazer. Por isso, num grupo de amigos, alguém se lembrou de inventar uma chamada telefónica "feita" pelo bispo, desde há semanas em Roma, destinada ao monsenhor Libânio, que então vivia no seminário de Vila Real.

O local do "crime" foi a casa do celebrado fotógrafo da cidade, Mário Silva, "Marius", pela mão do seu filho, António Manuel. O autor material da chamada telefónica foi um primo deste, Dionísio Rodrigues da Silva, o "Nizo", um bom amigo já desaparecido, o elemento mais velho desse pequeno grupo que se juntou para a organização da "partida". Ainda tenho a visão da cena, connosco à volta de uma mesa.

Desconhecedores do que era uma chamada internacional, ao tempo obrigatoriamente feita através de telefonista, inventámos um conjunto de ruídos que supostamente credibilizariam a verosimilhança da comunicação. Ligámos para o número do seminário, pouco depois da hora de jantar. Atendeu-nos uma voz a quem, num italiano de má opereta, demos a indicação de que "don António, di Roma, voglio parlare con il signor don Libânio". As palavras “António”, “Roma” e “Libânio” deveriam ser suficientes para garantir a atenção eficaz do fâmulo. A chamada era entrecruzada por arbitrários silvos e apitos, sons secos e uma profusão de sinais que, no nosso entender, deveriam fazer parte de uma ligação telefónica internacional. A nossa preocupação era perfeitamente escusada: no seminário, o porteiro ou guarda da noite devia saber de italiano e de comunicações internacionais bem menos do que nós...

Após alguns minutos, ouviram-se passos apressados no lagedo de mármore da sala de entrada do seminário, onde se situava então o único aparelho telefónico da casa. Um ofegante dom Libânio surgiu então na linha. 

Do outro lado, "de Roma", o senhor "dom António" interpelou-o, com o ritmo pausado, aquele conhecido tom eclesiástico “de Braga”, abrindo as vogais, esse “template” vocal da hierarquia religiosa lusitana, de que Cerejeira foi o intérprete mais consagrado.

- Olá, Libânio, como vai você? E a diocese?

Extasiado com a oportunidade proporcionada pela maravilha das comunicações, dom Libânio respondeu, com natural nervosismo de atender uma chamada internacional:

- Muito obrigado, senhor bispo. Vai tudo muito bem, graças a Deus. E como passa vossa excelência reverendíssima?

- Estou bem, Libânio, estou bem. Mas diga-me uma coisa, ó Libânio: e como é que vão as nossas Felicianas*?

Dom Libânio presumiu ter ouvido mal, tanto mais que as comunicações, à época, eram más e o lenço que utilizávamos para tentar disfarçar o som, com uma folha de papel no meio para baralhar o tom de voz do Nizo, criava uma distância que afetava a audibilidade das mensagens.

- Como? Não estou a ouvir bem... Como disse, excelência reverendíssima?

- As Felicianas, Libânio, aquelas pequenas da Vila Velha que às vezes chamamos, para nos alegrarem as noites por aí...

O pobre do administrador apostólico deve ter ficado à beira de uma apoplexia. As Felicianas era um plural, embora pouco majestático, para designar umas raparigas, todas da mesma família, que, na cidade, facilitavam alguns prazeres físicos tarifados, e que eram bem conhecidas de toda a gente. Embora não houvesse nota de deslocações de “room service” ao seminário...

- Não consigo ouvir, senhor bispo! Não ouço quase nada! Vou ter de desligar...

E assim fez. Ainda bem! É que nós estávamos já no limite da gargalhada coletiva. Mas tínhamos ganho uma excelente noite.




(* o nome coletivo das raparigas talvez não fosse bem este, mas quem ousar retificá-lo num comentário vê-lo-á eliminado. Não quero intrigas na minha terra natal...)

segunda-feira, setembro 03, 2018

O trono

Ardeu o trono de dom João VI, no incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. E ardeu todo o resto do museu, um espólio insubstituível sobre a História do Brasil e de quando Portugal andou por lá. 

Descaso, incúria ou seja lá o que for, o que verdadeiramente importa é que esse testemunho do passado já não existe. Agora, vai avançar a discussão sobre as culpas, a qual, como de costume, a muito pouco levará. Os crimes sobre o património indignam e emocionam sempre muito no momento das perdas mas, depois do “rigoroso inquérito” que o tempo amaciará, dão quase sempre em muito pouco. É que as famílias das “vítimas” não estão lá para exigir nada. Por isso, como antes se dizia, siga a marinha!

domingo, setembro 02, 2018

O carro do Guerra



Não sei há quantos anos morreu o Guerra Liberal. Era assim mesmo o nome desse amigo, um pouco mais velho do que todos nós, mas que nos acompanhava, com uma camaradagem excecional, nas noites e madrugadas de Vila Real, nos verões dos anos 60. Era uma figura encantadora, disponível, amigo-do-seu-amigo, como então se dizia.

O Guerra, como o chamávamos, era proprietário de um carro grande, velhíssimo, um Vauxhall preto, de quatro portas, que vulgarmente estava estacionado em frente ao Hotel Tocaio, a dois passos da Pastelaria Gomes. O carro estava sempre aberto e, recordo-me, em épocas de enchente na esplanada da Gomes, convertia-se numa espécie de “sala de estar” dos amigos do Guerra, mesmo sem ele. Grandes conversas lá tive! 

Há duas aventuras (só conto duas, porque outras houve!) passadas com o carro do Guerra - porque o carro andava! - que nunca mais esquecerei. O primeira foi algo perigosa, a segunda foi divertidíssima.

Uma noite, houve uma ideia maluca, logo complementada por uma aposta. Tratava-se de conduzir o carro do Guerra até ao fundo da reta de Mateus, no alto do Bairro dos Prazeres, desligá-lo e deixá-lo deslizar por ali abaixo, praticamente sem “tocar no travão”, tentando que ele chegasse tão longe quanto possível, nesse trajeto, quase sempre a descer, do antigo “circuito”. Íamos quatro lá dentro, com o Guerra a conduzir. A operação era muito arriscada, porque se utilizava toda a estrada, na esperança (felizmente concretizada!) de que não surgisse ninguém em sentido contrário. Largado o carro, passada “na mecha” a curva da Araucária, em direção à garagem do Antoninho do Talho, junto à casa do Granjo, o Vauxhall preto fazia uma perigosa tangente na casa do chefe da Estação, entrava, “com o balanço”, na pequena reta do colégio, descia para a ponte metálica e ia morrer algures no seu termo. A grande questão é se chegava à tasca da Cardoa ou não. Eu apostei que sim... e perdi cinco paus! Inconsciências! 

Da segunda aventura, fui apenas observador, colocado com outros, discretamente à distância, na esquina do Patinhas. O Guerra tinha conseguido negociar com uns ciganos, a troco já não sei de quanto, a cedência de um pequeno burro. Já bem de madrugada, pelas quatro ou cinco da manhã, meteu-se o burro no carro, com a cabeça de fora, do lado do condutor. A operação foi concluída em frente ao Tocaio. Dentro do carro, deitado, com uma mão no volante e um pé no travão, ia um voluntário. O carro foi empurrado, fez uma curva para a direita na esquina no hotel e passou, bastante devagar, em frente à Polícia e à garagem S. Cristóvão. À porta da PSP, numa guarita que por ali havia, estava um cívico de capacete, que deve ter pensado ser uma “miragem” ver deslizar, sem ruído de motor, um carro “conduzido” por um burro... O homem ter-se-á assustado e entrou para dentro da esquadra (nós cocávamos, de longe), enquanto o carro deslizava pela estrada abaixo, desaparecendo no caminho em direção à ponte do Cabril. Passado aí um quarto de hora, o Austin, desta vez bem a trabalhar, subiu o caminho inverso, conduzido pelo Guerra (que entretanto tinha ido pela Marechal Teixeira Rebelo ter com o carro às Florinhas da Neve, onde o cigano recebeu o burro de volta). Na esquina da PSP, estava o guarda e um colega. Mandaram parar a viatura. O primeiro guarda inquiriu: “Este carro não passou há bocadinho aqui, com um burro?” O Guerra fez-se de ofendido: “Ó senhor guarda! Desculpe lá! Eu não lhe admito que me chame burro! Eu passei para baixo, há pouco, em ponto morto, mas não sou nenhum burro!”. Criou-se uma perplexidade entre os polícias, com o primeiro, desesperado, a teimar: “Mas eu vi um burro neste carro! Lá isso é que vi!”. O Guerra insistia, dizia que, se continuasse a ser insultado, iria falar com o comandante no dia seguinte e coisas assim. E, com a cumplicidade implícita do segundo guarda, que já não “comprava” a história do seu colega, lá conseguiu seguir. Disse-nos, depois, que foi logo tomar banho: o carro ficou a cheirar a burro por semanas...

(Quem não é de Vila Real daquele tempo terá de desculpar o peso toponímico do texto)

sábado, setembro 01, 2018

Ary e o aborto


Há pouco, vi colocado um “like” na minha página de Facebook por alguém de apelido Torga. E embora todos devamos saber que Miguel Torga era um pseudónimo e que o escritor e médico, na realidade, se chamava Adolfo Correia da Rocha, posso imaginar a quantidade de vezes que a essa pessoa alguém deve ter já perguntado: “é parente do Miguel Torga?”.

E como isto é como as cerejas, lembrei-me de um episódio.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, tive um colega, bastante mais velho, chamado Carlos Ary dos Santos. Foi chefe do Protocolo e embaixador em vários postos. Era uma figura clássica, um homem muito educado, de excelente trato, com quem sempre tive uma magnífica relação, pessoal e profissional. 

Sendo primo do famoso poeta, letrista e declamador José Carlos Ary dos Santos, constava, como mais tarde vim a saber, que não lhe agradava excessivamente que as pessoas lhe lembrassem esse parentesco - quiçá por razões políticas, quiçá por outras.

Um dia dos anos 80, fui em missão de trabalho ao Luxemburgo, onde Ary dos Santos era embaixador, tendo ele oferecido um jantar à delegação. Depois da refeição, à conversa, perguntei-lhe, casualmente: “O senhor embaixador é com certeza parente do ...”. 

Ainda a frase não estava concluída e eu já via a cara do embaixador formar um esgar estranho, misto de desagrado e maçada. “Lá vem o meu primo à conversa”, devia estar ele a pensar. Eu desconhecia então que ele não gostava da associação ao primo, porém pressenti-o naquele preciso instante.

Acontece que a minha pergunta não era sobre o seu primo e poeta José Carlos. E concluí a frase: “... parente do jurista Ary dos Santos, de quem tenho uma obra publicada sobre o aborto”.

Imagino que, entre os circunstantes, alguém devesse ter-se interrogado por que luas eu me tinha interessado em adquirir uma obra jurídica do pai do embaixador, logo sobre um tema tão bizarro como o aborto. Mas nada esclareci, confesso, por embaraço. Vou fazê-lo agora.

Fora uns bons anos antes, na década de 70, na feira do livro de Lisboa, na noite do último dia, antes do fecho definitivo. Eu procurava, nos stands de livros usados, algumas pechinchas, nessa altura vendidas ao desbarato, nas últimas horas da feira. Já ia carregado de sacos quando vi, no topo de uma das bancadas, longe para lhe poder chegar com a mão, um livro de Ary dos Santos, com o título “O crime de aborto”. Por baixo, trazia a menção “advogado”. Acaso seria o poeta advogado? Eu sabia lá! A edição parecia antiga, o preço eram, creio, 15 tostões. Obra “de juventude”? Nunca tinha ouvido falar. Era um título forte. Seria poesia? Seria um manifesto de polémica? Pelo sim pelo não, disse ao livreiro, apontando: ”ponha esse aí também!”. O volume veio assim na molhada que levava dessa bancada dos “quinze tostões”, num saco. Só chegado a casa é que vi o “barrete” que enfiara. O livro era mesmo uma tese ultra-conservadora sobre o aborto, de Alfredo Ary dos Santos. De 1935...

Voltemos à sala do Luxemburgo. O sorriso aliviado de Carlos Ary dos Santos, ao ouvir o termo da minha pergunta, acompanhou uma detalhada explicação de que se tratava, de facto, do seu pai, de cuja carreira e obra nos falou, com muito orgulho. 

Carlos Ary dos Santos continuou a tratar-me lindamente, todas as vezes que nos voltámos a cruzar, no futuro. Se calhar, desde essa data, até um pouco melhor do que antes...

sexta-feira, agosto 31, 2018

A diversidade europeia

A diversidade tem sido, historicamente, a grande riqueza da Europa. Nenhum espaço geográfico desta dimensão apresentou, até hoje, uma tão grande variedade de expressões culturais, linguísticas e institucionais como o continente europeu. Daí que mesmo os mais ardentes defensores da unidade política da Europa se tivessem resignado, desde o primeiro momento, à necessidade de fazer conviver essas expressões distintas, fruto de uma História que, tendo uma raiz comum, têm também ideossincrasias que será sempre utópico tentar fundir. 

É um pouco por essa razão que muitos europeístas, com um sentido realista das coisas, foram dizendo que nunca teríamos uns “Estados Unidos da Europa”, porque a realidade objetiva do continente impede que por aqui se crie uma espécie de grande país. Jacques Delors, que junta ao sonho um são pragmatismo, disse um dia que as instituições europeias eram para ele um OPNI, um “objeto político não identificado”. Com isso, queria significar que essa Europa tinha de assumir um contorno institucional diferente dos modelos tradicionais, assemelhando-se-lhe na matriz do equilíbrio de poder que vinham da lógica de Montesquieu e que, em princípio, todos aceitavam, mas, ao mesmo tempo, preservando a necessidade de ser compatível com as expressões de soberania nacional que permaneciam a nível dos Estados membros. Isso não significava, antes pelo contrário, que a Europa comunitária não devesse caminhar no sentido de identificar e tratar, em comum, aquilo que lhe era comum. O processo (e não o projeto) de integração europeia é precisamente isso mesmo: criar mecanismos que permitam, com a economia que só a escala dá, gerir interesses oriundos de entidades nacionais muito diversas. 

A Europa comunitária caminhou nesse sentido. Federada pelo trauma da guerra, depois pela ameaça soviética, gizou lógicas conjuntas para o comércio, passando para além do livre-cambismo e estabelecendo uma fronteira comercial comum. Depois, desenhou e aperfeiçoou o mercado interno nesse espaço, a libertação das peias nacionais que impediam a livre circulação - desde logo das mercadorias, depois dos capitais, serviços e, finalmente, das pessoas. Conscientes dos custos da “não-Europa”, os então Estados membros, com maior ou menor dificuldade, desmantelaram defesas obsoletas, na garantia de um ganho maior. Foi um processo nunca totalmente concluído, como quem conhece os assuntos europeus muito bem sabe. E sabe porquê.

Com o fim da União Soviética, a Europa sonhou somar ao “gigante económico”, que já era, algo que fosse diferente do “anão político” que continuava a ser. O continente, com a nova Rússia em baixa e a China então ainda distante da grelha de partida, olhava para o outro lado do Atlântico, para o “amigo americano”, que até aí fora o seu aliado (e, vá lá!, tutela) estratégico, como um competidor sério. Mas, ainda assim, parceiro nos valores, desde logo do multilateralismo e das liberdades. Mas a Europa começava, sem o dizer, a dar razão a Jean-Jacques Servan-Schreiber, que, faz agora meio século, escreveu o premonitório “Desafio Americano”. Guterres, com a Estratégia de Lisboa, procurou potenciar esse esforço, pretendidamente comum, de solidificação do papel europeu na nova economia. Mas, já aí, a diversidade de que falei no início do texto impôs-se e arruinou a iniciativa. Depois, chegou o grande alargamento.

Agora, o mundo mudou. A diversidade europeia, que começou em Schengen e no euro, revelou-se escandalosa na crise financeira. E nos refugiados, nos migrantes, no desafio do Brexit. Trump faz agora o resto.

A diversidade da (e na) Europa, que é a sua maior “graça” e é algo de permanentemente inevitável, configura-se hoje como a grande dificuldade à afirmação da expressão política da União Europeia. Há dois dias, quando olhava o encontro ítalo-húngaro, com propostas tão contrastantes com aquilo que era o discurso europeu “mainstream” de há poucos anos, quando via as imagens das agressões xenófobas em Chemnitz, quando constatava o fosso que permanece no Brexit, dei comigo a interrogar-me como vai ser possível sairmos disto. Mas terá de haver uma saída: a História não tem becos.

As tarefas de Macron


Emmanuel Macron surgiu em França como uma figura política de conjuntura. Se François Fillon não tivesse empregado ficticiamente a sua própria mulher, estaria hoje a habitar Eliseu. Com ela por lá. Macron acabou por ser o candidato anti-Le Pen. Importantes setores da direita e da esquerda votaram nele apenas para afastar, uma vez mais, o fantasma da extrema-direita.

Macron provou, mas só depois, ser mais e melhor do que isso. Revelou ter um pensamento estruturado sobre a Europa, ideias arrumadas sobre o que é necessário fazer para apoiar o euro, uma leitura estratégica da ambição que a Europa deve ter, neste tempo conturbado em que Trump dá as cartas, baralha o jogo e nem precisa de fazer bluff para condicionar o mundo. Macron pode vir a não conseguir levar a sua avante, por oposição alemã, mas mostrou já estar à altura das responsabilidades de uma potência que, após o Brexit, assumirá necessariamente um papel de singular destaque na Europa.

No plano interno, Macron começou por afirmar não ser “nem de esquerda nem de direita”, o que, como se sabe, é sempre um auto-confissão conservadora. E, uma vez mais, isso ficou provado. A política social do novo presidente, sem surpresas, seguiu uma agenda “reformista” e “modernizadora”, com tudo o que isso quer dizer no jargão do liberalismo económico. E, claro, pagou um preço nas ruas. E foi também nas ruas que outros problemas iriam surgir, com um seu colaborador muito próximo, disfarçado de polícia, a ser apanhado a reprimir manifestantes, criando um escândalo reputacional muito sério ao presidente. 

Na composição do seu governo, Macron havia conseguido incluir, como ministro de Estado, Nicolas Hulot, uma espécie de “papa” francês do Ambiente, que havia resistido a convites anteriores de Sarkozy e de Hollande. Foi um fator importante de credibilidade para o novo executivo. Macron disse então querer colocar as questões do clima e da transição energética como sua prioridade central. E tem-no repetido. Há dois dias, Hulot bateu com a porta, com estrondo, alegando não conseguir impor as suas políticas. 

Conseguirá Macron virar o jogo, retomar a iniciativa, recuperar da clamorosa perda de popularidade que hoje o atinge? Com o Brexit no horizonte dos problemas, com Merkel acossada, com a Itália sob uma agenda radical, uma Espanha em equilíbrio precário, quem terá força para garantir sucesso à reforma europeia? Para um país como o nosso, fortemente empenhado na agenda da Europa, a fragilidade de Macron não é uma boa notícia.

Tocaio

A “Sábado” traz ontem um artigo sobre o antigo Hotel Tocaio, em Vila Real, assinado por Maria Espírito Santo. 

Como o texto bem destaca, o Tocaio foi, por muitos anos, o centro cosmopolita de uma cidade onde só raramente aportavam figuras de destaque, as quais, naturalmente, era por ali que se alojavam. O artigo traz, nesse particular, algumas histórias curiosas. A cidade fazia alguma “cerimónia” com o Tocaio, com exceção, a partir de certa altura, do bar do hotel, que passou a ser frequentado como espaço social mais aberto.

O Tocaio, contudo, havia deixado de funcionar já há décadas, mantendo-se como uma triste ruina, no centro da mais emblemática avenida da cidade. Vai agora ser transformado numa clínica privada, mantendo a traça da sua última versão arquitetónica. Do mal o menos! Numa metáfora que se liga à sua futura utilização, pode dizer-se que é sempre preferível uma “cicatriz”, mais ou menos bonita, à “ferida” que Vila Real ali teve aberta por muitos anos. E ganha-se um equipamento de saúde, o que não é despiciendo.

Sou testemunha pessoal de que, desde o início do seu mandato, o atual presidente da Câmara, Rui Santos, se empenhou fortemente na procura de uma solução para uma reutilização do espaço do antigo Tocaio. Com o entendimento encontrado com a família Serôdio, proprietária do edifício, a cidade a ele muito fica a dever a descoberta da solução que foi possível para o problema. 

quinta-feira, agosto 30, 2018

Toca da Raposa




Terá sido inaugurado em junho de 1960. Para Vila Real, este espaço, que originalmente com tinha um balcão corrido do lado direito, de bancos altos, e, ao fundo, uma pequena sala de refeições, representou uma imensa novidade. Era um “snack-bar”, algo que, na realidade, correspondia a um restaurante - e esse era um tempo em que, na cidade, não havia nenhum! (O restaurante que se lhe seguiu foi a “Churrasqueira”, em frente à Pastelaria Pompeia. O saudoso e justamente afamado “Espadeiro” só seria inaugurado em 1969).

Por aquele tempo, em Vila Real, só havia pensões - Excelsior, Mondego, Coutinho, Areias e poucas outras - e “casas de pasto”, neste caso inúmeras, quase sempre com portas de entrada “à Texas”, balcão com pipos por detrás, vinho ao copo e petiscos. Lembro (de memória rápida e muito, mesmo muitíssimo, longe de pretender exaustiva), o Alemão, a Cardoa, o Barracão, o Chaxoila, o 22, a Pépia, o Carrico, etc. Ah! E o Alcino, no largo Camões, em frente ao tribunal, de que deixo uma história (muito pessoal) ligada à Toca da Raposa.

Um dia, o Zé Luis Carneiro (hoje médico nos EUA) e eu, aí nos nossos 13 ou 14 anos, lembrámo-nos de telefonar de minha casa para o Alcino, em nome do dono da Toca da Raposa (que a cidade sempre conheceu como o “António da Toca da Raposa”), pedindo para lhe mandar, com urgência, uma grade de vinho tinto. Não sei qual de nós foi a voz do “António”, embora desconfie. Ao telefone, o “António” explicou então ao Alcino que tinha a casa cheia de gente chegada “do Porto” e que lhe tinha “falhado” o vinho. 

Minutos depois, pela Avenida Carvalho Araújo abaixo (a tasca do Alcino e a Toca da Raposa ficavam exatamente nos extremos opostos, vivendo eu também por ali) avançaram dois empregados do Alcino, carregando a grade de vinho “pedida”. Nós, entretanto, sentámo-nos a beber qualquer coisa no balcão da Toca da Raposa. 

A certo passo, da porta, ouvimos: “Ó senhor António, está aqui o vinho!”. Intrigado, o António saiu de lá de dentro e interpelou os rapazes: “Vinho?! Que vinho? Não pedi vinho nenhum!”. Eles lá explicaram que eram ordens do senhor Alcino, uma ”encomenda do senhor António”. Este decidiu tirar tudo a limpo e, à nossa frente, passou a desenrolar-se então uma conversa telefónica, crescentemente pouco serena, entre o António e o Alcino. Eu nem tinha coragem de olhar para o Zé Luis, com a vontade de rir, perante a ira do António com o Alcino, seguramente confrontado com a teimosia deste, que devia estar a insistir em ter dele recebido o pedido do vinho. Pouco antes da chamada ser desligada, ainda ouvimos o António berrar, no limite da fúria, que o Alcino devia meter o vinho dele num local físico que os limites de linguagem deste espaço me não permitem nomear. E lá vimos os rapazes, igualmente furiosos, regressar carregados com aquele que (não) terá sido o último vinho encomendado pela Toca da Raposa à tasca do Alcino.

Era assim, essa Vila Real dos anos 60, tempo de “partidas” simples que, com toda a certeza, tinham uma graça diretamente proporcional ao desagrado quem as sofria. Mas tudo já “prescreveu”, razão por que posso agora relatar isto, impune, escrevendo o que leram na esplanada da Toca da Raposa, ontem, num belo fim de tarde de verão. Mas não pedi vinho...

quarta-feira, agosto 29, 2018

À boleia na Guerra Fria



Há dois dias, falei por aqui de boleias. De quando isso era corrente e do modo como essa prática tem vindo a ser afetada pelo correr dos tempos.

Hoje deixo uma memória de uma dessas boleias que “apanhei”. Já não me recordo bem qual a cidade do sul da Alemanha que, naquele dia de século passado, eu pretendia alcançar. Recordo-me que, a certo passo, parou um automóvel, conduzido por um cavalheiro idoso. Num inglês algo macarrónico mas suficiente, confirmou o meu destino e convidou-me a entrar no carro.

Nesse instante, dei-me conta que era uma pessoa que não utilizava os pedais da viatura, devido a uma acentuada deficiência física. Junto ao volante, tinha manípulos para o acelerador e o travão. Terá sido porventura o olhar menos discreto que deitei para tão pouco usuais instrumentos que levou o meu disponível anfitrião a explicar que havia sido ferido na Segunda Guerra, na frente leste. "Foram os russos que me fizeram isto", disse, com uma voz cortante, para logo acrescentar: "E foram também os russos, durante a invasão do meu país, que mataram a minha mulher". 

Não me recordo da minha reação, porque havia muito pouco que eu pudesse dizer, perante a tragédia que afetara, de forma tão brutal, a vida aquele homem. O tempo que vivíamos era de plena Guerra Fria, havia ainda duas Alemanhas, com o Muro bem no seu lugar, os soviéticos e a sua influência estavam por muito perto, apenas a algumas dezenas ou centenas de quilómetros.

O meu condutor sentiu-se estimulado a continuar a falar contra os russos, contra o comunismo, contra o executivo alemão da "grande coligação", entre os cristão-democratas da CDU e os social-democratas do SPD, que então governava em Bona (como hoje governa em Berlim), em particular contra o então MNE Willy Brandt, que ele achava "um traidor", um esquerdista "vendido aos vermelhos". Ora eu, à época, até considerava Brandt um excessivo moderado, e a expressão "social-democrata", no nosso jargão político-radical de então, tinha uma sonoridade quase insultuosa. Por uma proverbial prudência, mantive-me calado, evitando qualquer comentário que pudesse aumentar a quase ira que jorrava do discurso prolixo e incessante do meu interlocutor.

"Mas isto vai mudar, você vai ver! Aqui na Alemanha, estamos a organizar um novo partido, o NPD, e vamos dar a volta a isto. Um destes dias, vamos acabar com esses vermelhos e vamos criar um regime novo. A Alemanha é um grande país. Temos de resgatar a nossa memória e deixar de ter complexos quanto ao regime que tivemos durante a guerra, que só foi derrotado pela aliança entre as democracias corruptas do ocidente e os bandidos comunistas. Vou hoje para uma reunião do NPD onde, com gente que combateu na Wehrmacht, mas também já com muitos jovens patriotas, estamos a preparar o futuro. Os Brandts e estes democratas traidores que nos governam vão ter a devida lição".

Importa lembrar, chegado a este ponto, que o NPD foi um partido neonazi criado em 1964, que nunca conseguiu fazer-se eleger para o parlamento federal, mas que chegou a estar representado em assembleias estaduais. A sua influência foi sempre muito diminuta na política alemã e alguma radicalização da conservadora ala bávara dos cristão-democratas, a CSU, de Franz-Josef Strauss, terá contribuído para esse inêxito. Nos dias de hoje, o NPD já não existe, mas há agora a AfD, a Alternativa para a Alemanha, um novo modelo de extrema-direita que começa a ter um preocupante sucesso eleitoral.

Mas voltemos à viagem. Ela estava a ser-me muito incómoda. Ia-me enterrando cada vez mais no banco do automóvel, desejoso que aquilo acabasse rapidamente, perturbado por aquele insólito encontro com uma Alemanha que apenas pelos jornais sabia que existia. Mas, ao mesmo tempo, olhando para o drama pessoal daquele homem, até era levado a entender que ele pudesse pensar da maneira que o fazia. Num certo momento, num cruzamento, tive uma inspiração: disse-lhe que, afinal, tinha mudado de ideias e que ficaria por ali, mudando os meus planos de percurso. Parou, eu retirei a mochila do banco de trás, agradeci a amabilidade da boleia e, quando me preparava para fechar a porta, ouvi-o perguntar "Você disse que era português?" Confirmei, para logo o ouvir de volta: "Que sorte que você tem de viver num país que tem à frente o Salazar. Aquilo é que é um homem!".

Não tenho a certeza, mas, baralhado como eu estava e desejoso de me ver livre do neonazi que, no fundo, tão amável tinha sido para comigo, confesso que não estou nada seguro de não ter dito que sim, que estávamos “felizes” com o paroquial ditador de Santa Comba que nos tinha saído em rifa, o qual, no mundo sinistro dos seus comparsas europeus, até passava por moderado.

terça-feira, agosto 28, 2018

Entrevista

Aqui fica o link para a entrevista que dei ao “Notícias ao Minuto”

A boleia



Hesitei por um instante, mas nem sequer abrandei. O casal que, ao final da tarde de ontem pedia boleia para Bragança, na A4, à saída da área de serviço de Águas Santas, no Porto, olhou para mim, a conduzir sozinho, com uma visível esperança. Mas em vão. Não parei.

Há mais de 50 anos, em dois verões, atravessei a Europa, pedindo boleia. Da primeira vez, parti sozinho, da Rotunda do Relógio, em Lisboa, e, semanas depois, cheguei quase à fronteira sueca com a Noruega. Andei assim, à boleia, nesses anos, muitos milhares de quilómetros, dormindo em “pousadas de juventude” e em alguns outros pousos noturnos menos curiais. Às vezes, fazia percursos com ocasionais companhias, conhecimentos de circunstância. Na maioria dos casos andava sozinho. Ser filho único ajuda muito a gerir (e a saber apreciar) o estar só.

Há meses, encontrei lá por casa um velho bloco de folhas brancas, de argolas. Era desse tempo. Usava-o para escrever, com um marcador negro, as cidades para onde pretendia ir. Mostrava-o aos automobilistas que passavam. Para envolver esse bloco - imaginem! - eu tinha mesmo uma capa plástica, creio que para os dias de chuva! Era de uma organização meticulosa, dos medicamentos à higiene e às roupas, que levava na mochila. Tenho histórias deliciosas (outras mais banais) desses tempos, desses muitos dias que bem me ajudaram a olhar (e a desejar conhecer melhor) o mundo exterior, face ao Portugal muito fechado em que vivia.

Por que é que não dei boleia ao casal que ontem queria ir para Bragança? Por que não parei, precisamente há uma semana, ao ver um outro casal, à saída de Viana do Castelo (ela tinha um sorriso lindíssimo!), que mostrava um letreiro “Porto”? Por que é que, há décadas, nunca dou boleias? 

Não sei bem, ou melhor, sei. Porque, embora sem a menor razão, fui acumulando uma desconfiança, um receio do desconhecido, um comodismo legitimado pelo alibi do risco potencial de abrir a porta do meu carro a estranhos. Tenho a sensação de que, na maioria dos casos, até acharia graça à conversa com esses companheiros eventuais de viagem, quase sempre estrangeiros. Aprende-se sempre alguma coisa com quem é diferente de nós. Mas a verdade é que não arrisco. Há um leitor do “Correio da Manhã” dentro de mim, um prenúncio de que algo pode correr mal, de que essas pessoas podem ser algo mais do que inocentes passageiros da sua liberdade. 

Confesso que sinto uma raiva imensa por, agora, pensar desta forma. E essa raiva é ainda maior, e é quase uma vergonha, quando me recordo das largas dezenas de pessoas que, pelas estradas da Europa, me acolheram generosamente nos seus carros, algumas que insistiram em pagar-me um copo, outras que partilharam farnéis, outras ainda que me ciceronearam com orgulho pelas suas terras. Algumas com quem embarquei em histórias que não vêm ao caso. Caramba! Eu andava pelos 20 anos! Cruzei-me então com gente bem agradável. Devo-lhes muito.

“Isso foi há mais de 50 anos! O mundo mudou!”. Ouço essa voz cá dentro e obedeço-lhe, numa cobardia que, infelizmente, assumo.

segunda-feira, agosto 27, 2018

Vera Franco Nogueira



Li que morreu Vera Franco Nogueira, mulher do embaixador Alberto Franco Nogueira - diplomata, ministro dos Negócios Estrangeiros e biógrafo de Salazar.

Há um episódio, de dimensão político-diplomática, envolvendo Vera Franco Nogueira, que se contava nos corredores das Necessidades. Nunca pude confirmar se era verdadeiro, pelo que a relato aqui com todas as reticências.

Um dia, na sua maratona pelo mundo para ganhar apoios para a política colonial do Estado Novo, Franco Nogueira, acompanhado da sua mulher, ter-se-á deslocado à África do Sul. 

O regime do “apartheid” vivia os seus anos mais radicais, com o privilégio aos brancos a prevalecer em todos os setores da sociedade. A ideia que todos temos é a de que essa prática discriminatória era feita contra os negros. Mas esquecemo-nos de que outras raças eram também vítimas desse preconceito.

Chegado o casal ministerial ao hotel onde iria ficar, terá havido um incidente. O hotel era “whites only” e não terão querido deixar alojar Vera Franco Nogueira, por ser asiática. Não sei como é que o incidente, a ser verdadeiro, terá sido superado. Alguém ouviu falar desta (repito: verdadeira ou falsa) história?

domingo, agosto 26, 2018

John McCain


A morte do senador republicano, John McCain, convoca a memória de um outro Partido Republicano americano, o qual, nos tempos que correm, vive a reboque de uma agenda política que afeta a dignidade da sua história e contribui para uma tensão, a nível interno e internacional, nunca antes vista na história política daquele país. 

John McCain representa, de certa forma, o conservadorismo são e patriótico que também ajudou a construir o que de melhor a América conseguiu projetar pelo mundo. Creio não me equivocar se disser que a melhor homenagem que McCain gostaria que a América lhe prestasse era ver-se livre de Donald Trump.

sábado, agosto 25, 2018

Prémio da montanha


Ontem, para um belo almoço no “Las Misas”, em Puebla de Sanabria, tivemos de grimpar a inclinada Calle Costanilla até ao topo. Com os bofes de fora, como se estivesse a sprintar na Senhora da Graça, fui fazendo uma gestão de futuros por objetivos, para atenuar o esforço da difícil encosta. Assim, como “prémio da montanha”, esperava poder vir a ter os famosos “boletus” da casa (depois, foi difícil desempatar, “na linha da meta”, entre os “al ajillo” e os “con foie”). E, lembrando que a “Vuelta” começava hoje, alvitrei que aquela subida era digna de Federico Bahamontes, o grande trepador do ciclismo espanhol, vencedor do “Tour de France”, em 59. No topo da Costanilla, à chegada à Plaza Mayor, final da “etapa”, já à entrada para as mesas das irmãs “merujeras” (nome das habitantes de Puebla) donas do restaurante, onde nos esperavam iguarias anunciadas desde Bragança, olhei para o lado e lá estava, numa placa: “Bahamontes, abogado”. Eu sabia...

Será inveja?


Acho bizarro - mas nada surpreendente, confesso - o barulho que aí vai em torno da “transferência” televisiva de Cristina Ferreira. Não sendo um espetador dos seus programas, quando por eles me acontece passar reconheço nela uma eficaz profissional do entretimento, numa mistura que combina simpatia, humor e vivacidade. 

Pelos vistos, as audiências gostam bastante dos programas de Cristina Ferreira. Os anunciantes, ao darem-se conta disto, preferem, naturalmente, divulgar os seus produtos ou serviços nas horas em que ela está no ar. E, por essa razão, estão dispostos a concentrar a sua publicidade no canal que emite os seus programas, o qual, por sua vez, contrata a apresentadora pelo valor que ela pede, correspondente aos lucros que com ela obtém. Tudo muito simples, parece-me.

É muito dinheiro? É pouco? É o valor do mercado e, não saindo esse dinheiro do meu bolso, só me resta felicitar Cristina Ferreira (com quem nunca falei) pela “procura” que os seus “produtos” profissionais têm e, muito sinceramente, esperar que o que lhe pagam a ajude a ser feliz. Sempre aprendi que é isso que devemos desejar aos outros. O contrário tem um nome: inveja.

O Chiado a arder


A notícia caiu de chofre: alguém, de Lisboa, pelo telefone, informou que o Chiado estava a arder. Houve uma reação coletiva de choque, no seio da delegação oficial que eu integrava. Estávamos numa visita de trabalho a Oslo, na Noruega, naquele dia 25 de agosto de 1988. 

Nesse tempo, não havia telemóveis, a única televisão portuguesa não era captável fora do país, nenhum de nós tinha, como era óbvio, um aparelho de rádio de ondas curtas. Os pormenores disponíveis eram, assim, muito escassos. Falava-se da possibilidade do incêndio poder atingir o largo do Carmo e mesmo a Bénard e a Brasileira, levando o Grémio e a Bertrand. Telefonou-se de volta para Lisboa, mas as informações continuavam muito incertas. A ideia de que o Chiado - todo o Chiado! - corria o risco de desaparecer fez-me uma estranha impressão, transmitiu-me uma rara sensação de perda irrecuperável.

Não sou lisboeta. A minha memória do Chiado é quase toda adulta, da cidade para onde fui viver em 1968. De criança e do Chiado, lembro-me apenas da excitação de andar nas escadas rolantes do Grandela, nos anos 50. Para um miúdo ido de Vila Real, onde o único elevador da cidade (do edifício da Gomes) nunca até então funcionara, aquelas ruidosas engrenagens eram o "máximo" da modernidade. No imaginário, as cenas do "Pai Tirano" fizeram o resto. E claro que viria a fixar a memória queiroziana da montra da Férin, onde o Artur Corvelo ia ver se os "Esmaltes e jóias" se vendiam. 

Daquilo que depois viemos a saber que se perdeu, eu apenas era visitante, com alguma regularidade, da Valentim de Carvalho. Fora também cliente episódico do José Alexandre, mas (ironias do destino...) não tenho ideia de alguma vez ter entrado no Jerónimo Martins nem, muito provavelmente, no Martins e Costa. A Ferrari também não fazia parte dos meus percursos, nos anos em que trabalhei pelo Calhariz e em que o Chiado entrava no meu quotidiano. E, de certeza segura, nunca fui cliente da Perfumaria da Moda nem da Casa Batalha, que haviam de ser vítimas irrecuperáveis da tragédia.

Tenho a imagem muito nítida da rara angústia que me atravessou nessas horas, ao pressentir, na desaparição do Chiado, a amputação de uma parte do meu próprio património pessoal de memória. Hoje, em perspetiva, acho mesmo um tanto exagerada a reação emocional que então me atravessou. Quem é de Vila Real compreenderá melhor se eu disser que foi como se me tivessem dito que toda a rua Direita estava a arder. 

Regressado a Lisboa, no dia seguinte, fui, de imediato, ver os estragos. Depois, com o tempo, tudo se tornou mais natural. Passados os anos, como toda a gente, convivi e desesperei com as “engrácicas” obras. À medida que elas se concluíam, fui-me habituando ao "novo" Chiado, embora o resultado final esteja muito longe de ser do meu agrado. Mas isso é uma outra história. 

O que agora me interessa deixar expresso é que a notícia do incêndio do Chiado, em 25 de agosto 1988, faz hoje precisamente 30 anos, passou a ser ser uma das mais emoções fortes de toda a minha vida.

sexta-feira, agosto 24, 2018

O campo de Santana


Está provado que a vida política inocula, em muitos que a experimentaram, uma poderosa e persistente adrenalina. Para quem já esteve sob as gambiarras do sucesso, herói das palmas de plateias ululantes, deve ser difícil viver o silêncio do dia seguinte. Um ministro francês disse, um vez, que é complicado ser-se governante e, horas depois, ser condenado a ir passear o cão. Para quem tiver cão, claro. 

Será talvez esse tropismo de ambição que torna tão frequentes as tentativas de “remake”, de regresso a tempos em que se foi incompletamente feliz na política. Se personalidades bem realizadas foram tentadas a esse retorno, pode imaginar-se o que passará pela cabeça de figuras que entendem que o destino não foi justo para com elas, condenando-as a ficar na soleira da História. 

Pedro Santana Lopes é uma figura curiosa na constelação das estrelas de mediana grandeza da nossa vida política. Foi discípulo de Sá Carneiro, mas se se perguntar a alguém o que terá ele herdado do fugaz primeiro-ministro, a resposta pouco terá de concreto. Da sua vida como político executivo, sobra uma passagem pouco destacada como responsável pela Cultura, num governo em que o tema era um fogacho não essencial. Autarca, espelhou o social lisboeta na Figueira da Foz (como o poderia ter feito em Fornos de Algodres ou na Calheta). Na Câmara de Lisboa conseguiu alguma relevância, logo prejudicada pela sua intravável inconstância. Foi um deputado europeu sem história e, como mais notória, apenas ficou a sua passagem pela Misericórdia de Lisboa, onde cultivou a imagem senatorial, ajudada pelo pausado comentário televisivo. Presidiu ao Sporting e debateu penaltis e foras-de-jogo nos rentáveis debates televisivos. Ah! e, já me ia esquecendo, foi primeiro-ministro, num interlúdio político que muitos portugueses hesitam, com sólidas razões, em creditar-lhe como currículo.

O anúncio de que Santana Lopes tinha a intenção de criar um novo partido acabou por ser a revelação de um segredo de Polichinelo. Até numa vetusta capa do “Independente” isso já havia sido notícia. Com Marcelo a tapar-lhe Belém, com um PSD grávido de outras ambições, Santana Lopes ousa romper com o atual sistema de representação partidária, depois do afloramento conjuntural que foi a aventura do PRD, e que só o Bloco conseguiu concretizar, explorando a esclerose do PCP e o excesso de pragmatismo do PS.

Terá Santana sucesso? Logo veremos. Uma coisa é evidente: não deve ser nada fácil viver na nostalgia de um futuro que não se teve.

quinta-feira, agosto 23, 2018

O pavão do embaixador

Aquele embaixador era conhecido por ser uma figura um tanto bizarra. Isso também se refletia na decoração, bem eclética, que espalhava por toda a sua residência oficial. A avaliar pela diversidade das peças, fruto de andanças por vários mundos, o nosso representante diplomático era um colecionador de recordações, algumas das quais de gosto muito mais do que discutível. O facto de ser solteiro, de não ter a seu lado uma sensibilidade feminina que o ajudasse a equilibrar o conjunto, resultava em óbvias e não felizes consequências no aspeto decorativo das suas salas.

Se havia um ponto dessa mesma decoração que se salientava como mais chocante esse era, sem dúvida, o colorido pavão, de "papier maché", adquirido no Hawai, que ocupava um lugar central no salão de entrada, num pedestal colocado sobre um horrível tapete retangular, de cor bem forte e sentido estético bem fraco.

Um dia, o jovem diplomata que o acompanhava no posto, um tanto a medo, atreveu-se a dizer ao embaixador que, porventura, a colocação do pavão talvez fosse demasiado impositiva para o equilíbrio estético do salão. E adiantou, como sugestão, que podia ser interessante situá-lo num canto da sala, num lugar mais discreto.

A resposta do embaixador desarmou-o: "Ó homem, você não percebe a razão por que tenho aqui o pavão? Eu sei que as pessoas podem sentir-se um pouco surpreendidas com esta peça, mas ela tem um função muito importante. Quando tenho um almoço ou um jantar, à medida que os convidados chegam, é sempre preciso encontrar um tópico para iniciar a conversa. Ora nada melhor do que este pavão para servir como "starting point for talk". Nem você imagina a quantidade de pessoas que, olhando para o pavão, começam logo a inquirir onde o comprei, de que é feito, etc. Ora isto é precioso: garantir um tema de arranque de uma conversa é muito importante, o que evita logo falar do clima, do tráfego ou outros temas artificiais de circunstância. E, do pavão, podemos logo passar às questões de arte, de geografia ou dos costumes. O pavão dá-me imenso jeito!".

O diplomata ficou rendido ao argumento e mais valorou a "tática" do seu chefe quando este adiantou, com subtil e auto-flagelatória ironia: "E fique você a saber que não me preocupo nada pelo facto de algumas pessoas poderem, no seu regresso a Lisboa, falar do "pavão" do nosso embaixador..."

quarta-feira, agosto 22, 2018

História da ONU


Desapareceu há dias Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas. 

Em 2001 e 2002, fui representante permanente de Portugal junto da organização. Nessa qualidade, fui por ele recebido, nos primeiros dias de março de 2001, em Nova Iorque, para a conversa ritual que os novos embaixadores têm com o secretário-geral. Falámos então de Timor-Leste. Os tempos mais complexos da questão, no tocante à ONU, já tinham passado, mas Annan criara com Portugal, por essa razão, uma forte relação de cumplicidade, desde logo com o meu antecessor no cargo, António Monteiro. Nesse tempo em que eu chegava a Nova Iorque, o grande problema que se nos colocava era convencer o Conselho de Segurança a manter em Timor um contingente militar de operações de paz que garantisse segurança na transição para a independência, que teria lugar em 2002. Isso viria a ser conseguido.

De António Monteiro eu tinha “herdado”, além de uma excelente equipa, a vice-presidência do Comité Económico e Social (Ecosoc). Embora o lugar pertencesse a Portugal, o novo embaixador tinha de ser eleito. E assim aconteceu, escassos dias após a minha chegada, o que levou Annan a gracejar sobre esse meu rápido “sucesso”, comigo a garantir-lhe não ter nisso a menor “culpa”...

Alguns meses mais tarde, no seio da missão portuguesa junto da ONU, surgiu a ideia de que Portugal candidatasse o meu nome a presidente da Segunda Comissão - assuntos económicos e financeiros - da Assembleia Geral, a maior e mais importante de todas. Testámos as águas e decidi aprovar a sugestão. Feitos os necessários contactos e a eleição veio a consumar-se. Era um lugar interessante, embora muito trabalhoso, mas com ganhos de visibilidade e garantia de alguma influência. À época, Portugal apenas por uma vez, desde que integrara a ONU, em 1955, ocupara uma presidência de uma Comissão da AG, através do embaixador Leonardo Matias.

Fiquei assim, muito escassos meses depois de chegado a Nova Iorque, titular de dois cargos eletivos no seio da estrutura das Nações Unidas. Sublinho que o mérito pessoal deste tipo de eleições é sempre muito relativo. As pessoas podem contar, mas a importância da “máquina” criada em nosso torno pela equipa de colaboradores é essencial. E o país é muito importante: Portugal goza de um “bom nome” no mundo multilateral.

Recordo ainda que, por essa altura, vivíamos a tentativa de conseguir a eleição da professora Paula Escarameia para a Comissão de Direito Internacional da ONU, órgão que nunca tínhamos integrado e para o qual havia uma fortíssima concorrência. As funções que desempenhava no Ecosoc e na 2ª Comissão acabaram por me ajudar na bem mais de uma centena de contactos que então efetuei, no lóbi em favor de Paula Escarameia, cujo prestígio pessoal no domínio em que concorria foi, naturalmente, o trunfo determinante para essa vitória. Ganhámos essa difícil eleição, para surpresa de muitos, com uma forte e saborosa votação. (A tal magnífica “máquina” eleitoral que Portugal tinha na sua missão na ONU iria permitir-nos, logo no ano seguinte, algumas outras vitórias).

Um dia, a secretária-geral adjunta da ONU, a canadiana Louise Fréchette, chamou-me ao seu gabinete para me informar que Kofi Annan tinha pensado no meu nome para integrar o painel de seleção de projetos do UNFIP. Fréchette chefiava o “advisory board” do UNFIP. Segundo me disse, ela e o SG tinham considerado que as duas funções que eu já desempenhava me qualificavam especialmente para membro dessa estrutura.

O que era o UNFIP? Lembro-me que, à época, eu próprio tinha escassa informação sobre esse órgão - o “United Nations Fund for International Partnerships” (Fundo das Nações Unidas para Parcerias Internacionais). O UNFIP fora criado, em 1998, em particular para “gastar” os mil milhões de dólares que o presidente da CNN, Ted Turner, oferecera às Nações Unidas, para fazer face à sua escassez de recursos no combate ao subdesenvolvimento. Fazer parte desse painel era a garantia de passar a ser solicitado por dezenas de colegas para apoiar projetos nos seus respetivos países, o que conjunturalmente conferia ao embaixador português na ONU um papel bem interessante, a somar às funções já desempenhadas.

Kofi Annan pediu para me ver, poucos dias depois. Estava acompanhado de Mark Maloch-Brown, então diretor-geral do PNUD, que integrava o painel de que eu iria fazer parte. Explicou-me uma nova filosofia que pretendia atribuir ao UNFIP. Passei a colaborar, a partir daí, num trabalho muito interessante, que foi desenvolvido em paralelo às funções de representante permanente. Recordo bem uma figura do “board” da UNFIP com que criei uma particular relação, Ruth Cardoso, uma intelectual de mérito, mulher do então presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso.

Cerca de um ano depois, o novo governo português determinou que eu fosse exercer funções em Viena, onde fui colocado na OSCE, no ano em que Portugal presidiu à organização. 

Poucas semanas após a minha chegada à Áustria, fui surpreendido com a chegada de uma convocatória para uma reunião da UNFIP, em Nova Iorque. Eram-me solicitados os dados para a emissão do bilhete e ajudas de custo. Eu não tinha reparado, mas a minha nomeação para o painel da UNFIP era por três anos, a título pessoal e, infelizmente, não era transmissível ao meu sucessor, Gonçalo Santa-Clara Gomes, como o fora a vice-presidência da Assembleia Geral da ONU, cuja eleição obtivera para Portugal, pouco antes de abandonar Nova Iorque.

Informei por escrito Kofi Annan de que não considerava adequado manter-me em funções no UNFIP, depois de ter deixado o lugar em Nova Iorque, não obstante Portugal vir assim a perder esse lugar. Respondeu-me com uma carta gentilíssima, em que me agradeceu o trabalho que eu desenvolvera ao longo dos vários meses em que com ele colaborara. Essa carta complementava a empática e anormalmente longa conversa que quisera ter comigo, antes da minha saída de Nova Iorque. 

Só voltei a encontrar Kofi Annan, por uma última vez, em Lisboa, anos mais tarde, num jantar no Palácio da Ajuda, a convite do presidente Jorge Sampaio. O sorriso era o mesmo, a atenção para comigo também não variara. Não esqueci nunca essas suas atitudes.

terça-feira, agosto 21, 2018

A casa e as férias

A casa é hoje uma escola de música. Antes, foi a residência da minha avó paterna e dos meus tios, em Viana do Castelo. Nela passei férias “grandes” até ao fim da minha adolescência. A estátua, ao alto, representa o Mercúrio. Por todo aquele espaço, em frente à doca (onde aprendi a nadar), calcorreei muitos agostos. Regresso lá sempre com imenso prazer, como ainda há dias fiz.

O video de Centeno


Acho ridícula, embora talvez inevitável, a polémica em torno do video de Mário Centeno. 

O presidente do Eurogrupo é o porta-voz dos ministros das Finanças da zona euro, fala em nome de todos e, naturalmente, repercute, naquilo que diz, o sentimento maioritário aí prevalecente. E o que Centeno disso foi exatamente aquilo que é a perspetiva dominante nos governos da Europa do euro, coisa de que ninguém tem a menor dúvida - a haver, teriam já surgido colegas de Centeno a reclamarem do que ele disse. E, ao que parece, ninguém se pronunciou.

Estranho seria que Centeno, falando em nome de um Eurogrupo que o elegeu como presidente, viesse a repercutir uma orientação desviante desse sentimento comum. Repito: não foi o ministro das Finanças do governo português que ali se pronunciou, foi o presidente do Eurogrupo.

Mas não haverá alguma contradição entre ser-se ministro das Finanças de um governo que contestou a austeridade e ser-se, simultaneamente, presidente de um Eurogrupo que a tem por doutrina? Semanticamente, e não só, claro que sim. Foi aliás a mesma contradição que esteve subjacente à própria candidatura de Centeno ao cargo.

Mas se Centeno iria ser obrigado a cair nessa inevitável contradição, por que razão o governo português o candidatou? Porque era importante ter alguém no topo do processo decisório do Eurogrupo que pudesse ser a cara de uma “outra” forma de levar à prática, com êxito por todos reconhecido, o cumprimento dos compromissos que o Estado português, através da sua classe política, tinha assumido na Europa - decorrentes dos “leftovers” do memorando com a “troika” (assinado pelo PS, com acordo do PSD e do CDS) e, depois, do Tratado Orçamental (aprovado na AR pelo PSD, PS e CDS). A menos que alguém duvide que o governo de António Costa conseguiu cumprir as regras de Bruxelas “de outro modo”, de uma forma bem diversa daquela que o executivo anterior vinha a fazer! E quem, no desenho e implementação dessa nova política, foi substancialmente diferente de Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque, ao ponto de conseguir ajudar António Costa a assegurar o apoio parlamentar de partidos que olham a Europa de viés? O nome, recordo, é Mário Centeno.

E vale ainda a pena notar que, com Centeno, mas também com Moscovici, o diálogo do Eurogrupo e da Comissão Europeia com a Grécia assumiu uma forma bem diferente, quanto mais não fosse no próprio modo de dialogar, daquele que estava a decorrer com Dijsselbloem e com Dombrovskis. Se tiverem alguma dúvida, perguntem ao governo grego!

Ainda uma última nota para o video de Centeno, para sublinhar que ele começa por referir as “lições aprendidas” por todos no processo de resgate da Grécia. Por todos, não apenas pela Grécia. Ora não se aprendem “lições” quando tudo foi bem feito: as lições retiram-se, em especial, das correções assumidas, em face dos erros de percurso cometidos. E Centeno lembrou-o. Schäuble teria gostado? Aposto que não.

Por tudo isso, “kalimera”, Grécia! E parabéns, Mário Centeno.

segunda-feira, agosto 20, 2018

Rubins


Por esse tempo, não tínhamos automóvel. Nos agostos das “férias grandes”, saídos de Vila Real, de comboio, com incómodos transbordos na Régua e no Porto, chegávamos finalmente a Viana, após imensas horas de viagem e esperas. À saída da estação, onde a família nos aguardava, cortávamos logo à direita e, de seguida, à esquerda, “para apanhar a sombra dos Rubins”, no dizer do meu pai, tático experiente dessas comodidades comezinhas. 

A Rua dos Rubins (na imagem) é paralela à principal artéria de Viana do Castelo, a Avenida dos Combatentes. Nos dias ensolados de caloraça, tem uma sombra magnífica. Os Rubins acabam junto ao cais mas, por essa altura, já se chamam, humildemente, Travessa do Salgueiro.

Era pelos Rubins que seguíamos, até cruzar a Rua Manuel Espregueira, que o meu pai sempre designava pelo nome antigo de S. Sebastião. Nas mãos dos homens, que se revezavam, iam as malas, nessa altura sem rodas (o inventor das rodas nas malas merecia ter tido um Prémio Nobel!). Na esquina, numa rotina sem exceção, o meu pai entrava, por um instante, numa casa comercial, para dar um primeiro abraço vianense ao seu amigo Magalhães Monteiro. Depois, um pouco adiante, tomávamos a direção de doca, pela Rua de Santa Clara, até chegar à casa da minha avó. Instalado finalmente no quarto, invariavelmente, eu olhava, lá no alto, a basílica e o hotel de Santa Luzia.

Foi assim, por muitos anos. Saudades desses tempos? Só das pessoas e de mim por esses anos. Mas confesso que me satisfaz bastante, agora, estar a escrever isto, com a paisagem tão simples dos Rubins à minha frente.

domingo, agosto 19, 2018

Um diplomata do bem

Era um homem que projetava serenidade. Kofi Annan, que agora desaparece, tinha uma postura e um leve e constante sorriso que logo criavam um excelente ambiente para as conversas que tinha com os seus interlocutores. Quando nos falava, olhando-nos sempre nos olhos, transmitia confiança e inspirava seriedade. Recordo bem a primeira conversa que com ele tive, comigo acabado de chegar a Nova Iorque, em 2001. Falou-me logo de Timor e, com simpatia, dos seus interlocutores portugueses nesse processo: Jorge Sampaio, António Guterres e Jaime Gama.

A diplomacia portuguesa e a coerência da nossa política externa mereciam grande respeito a Kofi Annan, que tinha mantido uma forte relação de amizade com o meu antecessor, António Monteiro, a qual tinha sido muito importante para todo o delicado processo timorense, em especial ao tempo em que Portugal integrou o Conselho de Segurança. Devo-lhe também, pessoalmente, algumas atitudes de forte simpatia, que nunca esquecerei.

Quando assumi funções na ONU, em 2001, a principal questão que se nos colocava era garantir, por parte dos cinco membros permanentes daquele Conselho, o financiamento com vista a manter em Timor-Leste as forças militares que acompanhavam o processo de transição. Annan era um “aliado” nosso nesse esforço.

A “arte” de qualquer secretário-geral da ONU é conseguir levar à prática a agenda na base da qual foi escolhido, e a que depois dá substância e coerência no cargo, conseguindo para ela o apoio do Conselho de Segurança. Se este último apoio falhar, em especial por parte dos cinco membros permanentes, o trabalho do SG fica totalmente comprometido. Kofi Annan cedo percebeu que o êxito da independência de Timor-Leste dependia da eficácia que só o completo acompanhamento internacional do processo poderia assegurar. Sérgio Vieira de Mello era o seu homem no terreno e, com Portugal e alguns outros parceiros “like-minded”, ele soube criar as condições para, com realismo e sentido da medida, assegurar esse apoio. 

Annan viveu tempos muito diferentes à frente da ONU. Com Richard Hallbrook como representante na ONU da administração Clinton, Annan foi capaz de transmitir à organização o dinamismo e a esperança que se consubstanciaram na Cimeira do Milénio. A chegada de George W. Bush à Casa Branca representou uma completa reversão na atitude americana, que iria ter o seu auge na invasão do Iraque, sem mandato internacional - um desafio à legitimidade que a própria ONU representava.

Kofi Annan foi um arauto do multilateralismo e um promotor da paz global. Não por acaso, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel, simbolizando a confiança que o mundo depositava naquele que foi o primeiro secretário-geral de origem africana da organização.

Com a desaparição de Kofi Annan, Portugal perde um grande amigo na cena internacional. Uma grande figura de bem, um excelente diplomata, um homem de boa vontade a quem a paz e a segurança internacional muito ficam a dever.

sábado, agosto 18, 2018

Manuel Freitas


Manuel Freitas não nasceu em Viana do Castelo. Economista de profissão, ligar-se-ia à cidade através de um tio que foi proprietário da mais emblemática ourivesaria da cidade, a Ourivesaria Freitas, do qual seria herdeiro. 

Por Viana casou e a cidade passaria ser o cenário de toda a sua vida, nomeadamente do seu notório empenhamento cívico. O país, contudo, viria a conhecê-lo mais por momentos trágicos que atravessou - a sua ourivesaria e o Museu do Ouro que criou viriam a ser objeto de assaltos que ficaram na memória coletiva.

Ao ouro de Viana e à história da arte criada em seu torno Manuel Freitas dedicou grande parte do seu talento. Sobre isto escreveu e foi, ele próprio, artífice reconhecido de peças belíssimas que hoje fazem parte do património artístico da capital do Alto Minho. O Museu do Traje da cidade inclui um riquíssimo espaço dedicado ao ouro, por ele oferecido.

Daqui a escassas semanas, passará um ano desde que Manuel Freitas nos deixou. Neste dia das festas da Senhora da Agonia, em que muitas lavradeiras se passeiam com o ouro que ele com tanto carinho estudou, e que se esforçou por divulgar pelo país e pelo mundo, deixo aqui um abraço saudoso em sua memória. E também à Filomena, a sua mulher-coragem, heroína de demasiadas tristezas.

sexta-feira, agosto 17, 2018

Ir a Viana


Pela voz de Amália, Pedro Homem de Melo crismou as palavras - “havemos de ir a Viana” - daquele que é hoje o hino informal de Viana do Castelo. Quem por lá for, por estes dias, ouvi-lo-á por toda a parte, de tal modo a canção se colou à pele da cidade e dos vianenses.

O próprio Homem de Melo, veraneante na vizinha Cabanas, era um visitante regular de Viana. Há muitos anos, no centro da Praça da República, uma figura então muito conhecida da cidade, Zé Rancheiro, ao vê-lo aproximar-se, disse alto, com voz sonante, uma quadra do poeta: “O rio passa em Cabanas / Por entre fragas ... tão lindo / que embora desça da serra / parece que vai subindo”. O declamador concluiu com um admirativo “Belo poema!”, ao que Homem de Melo terá retorquido, com um largo sorriso: “Dito por Vossa Excelência!”, tudo terminando num cumprimento cavalheiresco. 

A Praça da República de Viana - finalmente liberta do “mostrengo” da estátua do Caramuru, que agora, da Praia Norte, para onde foi desterrada, poderá vislumbrar melhor o Brasil da sua lenda - não vai por estes dias ser palco de “jogos florais” com a elegância passada. É que o espaço medieval enche-se agora de bombos, de música no coreto, de gigantones e cabeçudos, imagens de marca da Romaria de Nossa Senhora da Agonia - as Festas, para o vianense.

As Festas andam por toda a cidade: do desfile das Mordomas à Festa do Traje, das procissões ao Cortejo histórico, das cantigas ao desafio às filarmónicas, dos arraiais aos tapetes coloridos de sal da Ribeira, da feira no Campo da Agonia ao variado fogo de artifício, com destaque para a Serenata sobre o Lima. E até se sentem lá no alto, em Santa Luzia, com a basílica agora de faces lavadas.

Sejamos justos! Não se encontra, pela província portuguesa, uma romaria igual. O mundo, aliás, sabe isso. Tirando a coreografia do fado, a única imagem do folclore português que sobrevive no estrangeiro, nos dias de hoje, não é outra senão a das lavradeiras vianenses - dos trajes vermelhos aos azuis, dos verdes de Geraz ao negro das noivas, com o orgulho (“chieira”, diz-se em Viana) do seu ouro por cima. A mulher, aliás, é a dona das Festas. O traje local dos homens é por ali algo incaraterístico, com a notável exceção das camisas de linho bordado (a minha é imbatível, desculpem lá!). 

Se quer um bom conselho, caro leitor, vá às Festas a Viana, durante este fim de semana único. E não se deixe tomar pelo “fica para o ano”, fingindo levar a sério o dito “havemos de ir a Viana”. Vá agora! Eu já lá estou! 

quinta-feira, agosto 16, 2018

Bolas !


Até este ano, sem exceção, o João anunciava na praia, através de uns berros roucos, as “bolinhas” e a “bolacha americana”. Nunca tive curiosidade de espreitar a tal bolacha, mas as “bolinhas” eram, como não podia deixar de ser, as “de Berlim”, com ou sem creme e aquela areia de açúcar por cima a que, se não tivermos cuidado, se junta a verdadeira. “Não engorda! Só alarga!”, proclamava sempre o João, no anúncio ao produto.

Coloquei o verbo no pretérito porque, este ano, o homem decidiu poupar-se na voz e surgiu munido de uma corneta de bicicleta. Assim, em lugar de andar no conveniente “slalom” entre os guarda-sóis, o João faz agora soar a corneta e logo ranchos de gente, em especial pequenada, acorrem ao local onde ele estaciona as caixas de madeira, à cata das bolas. 

Para quem se habituou a ser servido no cómodo das cadeiras de lona (como é o caso deste escriba) e não está em regra disposto a ir fazer fila para as molhadas, a probabilidade de ter acesso às “bolinhas” ficou agora muito reduzida. Isso poupou-me, aliás, um ror de massas e, quero crer, alguma coisa na glicose que a CUF me medirá no outono.

Há dias, saído do mar (o meu comodismo estival tem alguns limites e um banho de quando em vez faz juz à ida à praia), olhei para cima e vi imensa gente junta, no sopé da escada que desce as dunas. Perguntei o que era e alguém quase que me esclareceu: “Ou é o Marcelo nas selfies ou é o João das bolas!”. 

Não era o Marcelo, como constatei quando cheguei mais perto. Quando a pequenada desandou, pedi: “P’ra mim uma com creme, senhor João”. Ainda ajoelhado nos arranjos do material, olhou-me debaixo daquele boné vermelho com pala ao contrário, com um quase sorriso (quem é que consegue sorrir direito, depois de fazer quilómetros com duas caixas de madeira nos braços?) e disse: “Com ou sem, acabaram. Só amanhã”. Bolas!

quarta-feira, agosto 15, 2018

Sete cidades


Ialta – Recordarei para sempre a marginal dessa antiga praia aristocrática do mar Negro, de onde a “nomenklatura” soviética há muito já tinha desertado, nesse ano tão longínquo na história, de 1980. O simbolismo diplomático levou-me a visitar Ialta, atrás da memória da moderna Tordesilhas. Nem a beleza do palácio Livadia, em cujo jardim figurei Stalin, Roosevelt e Churchill, atenuou a tristeza que ressoava das lojas cheias de nada interessante e de gente resignada ao cinzento da vida. Nunca regressei.

Alcântara – Em 2006, esta cidade do silêncio agarrou-me pelo inesperado da monumentalidade das suas casas fantasmas, onde somos obrigados a imaginar uma anterior vida de fausto que não rima em nada com a atualidade. Não deixa de haver uma inescapável ironia na circunstância desta urbe de outros tempos, feita de sombras e ausente de gentes, ser hoje a vizinha mais próxima do avançado centro de atividades espaciais brasileiras. Do outro lado da baía de S. Marcos, fica a sensação que S. Luís do Maranhão, entretida no culto dos seus azulejos, nem parece notar esta sua pérola colonial.

S. Tomé – Foi a minha primeira ida a África, em 1976. A cidade tinha o ritmo, ao mesmo tempo apaziguante e abafante, de uma vilória portuguesa, na qual alguém havia plantado alguns edifícios de soberania, de gosto mais do que discutível. A marginal, que deve ter sido bonita, perdera muita da graça no seu descuido. Era a capital de um país novo, a nascer numa cidade que já estava velha. As pessoas que cruzava nas ruas pareciam estar à espera de alguma coisa indefinida. Regressei algumas vezes, com alguma angústia, a esse país de gente simples e simpática, suspenso no tempo, nosso amigo.

Trieste – Conhecia-a pela filatelia, com o seu particular estatuto internacional, no pós 2ª guerra, que aguçou a minha curiosidade adolescente. Li-a mais tarde como ninho de espiões, de encontro dos mundos da sombra. Em 2004, em alguns dias, pude constatar a ambiguidade de uma urbe italiana pelo nome, austríaca pelo caráter e jugoslava (não eslovena) pela natureza. Percebi então melhor por que Ian Morris escreveu “Trieste or the meaning of nowhere”. Não creio que dois visitantes possam dela trazer a mesma ideia.

Panjim – Em 2007, fui a Goa para tentar perceber o Portugal que por aí passara e o que dele ficara. Saí de lá mais confuso do que quando cheguei. Passar nas Fontaínhas, ou em ruas com nomes que nos são comuns, não obsta a que estejamos num mundo que é bem diferente de nós, porque provavelmente sempre o foi. Como português, senti que o passado que ainda por ali anda em algumas esquinas é já só um pretexto para reforçar a singularidade local. O que, contudo, nos deve deixar orgulhosos, mais de cinco séculos idos. 

Serajevo – A capital da Bósnia-Herzegovina nunca deixou de ser o lugar geométrico mais simbólico das tragédias da Europa. Desde que lá fui, pela primeira vez, em 1996, sempre senti o peso insuportável dos seus imensos cemitérios, uma vida quotidiana recolhida sobre si própria, como que temerosa dos olhos espalhados pela orografia envolvente. Nos seus habitantes, há como que uma espera permanente do dia seguinte, a que o visitante atento não consegue escapar. Para a Europa, Serajevo é a anti-Bruxelas.

Singapura – Pode a perfeição ser um defeito? Há qualquer coisa de totalitário numa cidade que exclui, porque os afasta com vigor, a pobreza e o menor desvio do padrão comportamental definido como ideal. Nas ruas floridas e nas lojas opulentas daquela ilha artificial, onde o sucesso é a lei de vida, há um mimetismo idealizado do ocidente, incrustado numa Ásia de que sobrevivem apenas os clichés desejáveis. Bandeira chamaria Pasárgada a Singapura? 


(Neste tempo em que alguns viajam mais, apeteceu-me recordar uma nota que a revista "Intelligent Life", em 2011, me pediu sobre “sete cidades”)

Bernardo Pires de Lima

Leio no "Expresso" que Bernardo Pires de Lima vai para Bruxelas, reforçar a equipa de António Costa. É uma excelente notícia. O pr...