quinta-feira, janeiro 22, 2015

Leon Brittan (1939-2015)


Posso correr o risco de estar a ser injusto, mas tenho a sensação de que Leon Brittan, o antigo comissário europeu que agora faleceu, não tinha um especial apreço por Portugal. Digo-o com a convicção de quem com ele lidou diretamente durante alguns anos, em especial no tempo em que dirigiu a Política Comercial da União Europeia. Nunca o vi demonstrar simpatia pelos interesses específicos do nosso país, num tempo em que o desmantelamento pautal da UE, quer no quadro da Organização Mundial de Comércio quer nos acordos bi-regionais ou com países terceiros, se fez muito à custa dos Estados membros cuja produção tinha um grau de sofisticação tecnológica que ficava aquém da média europeia.

Visitei-o uma primeira vez, logo em fins de 1995, acompanhando Jaime Gama. A corrente claramente não passou entre o então ministro português dos Negócios Estrangeiros e Brittan, que era um poderoso vice-presidente da Comissão, ao tempo sob a frágil liderança de Jacques Santer. Gama expôs-lhe as dificuldades de Portugal, com um tecido industrial em curso de reconversão, em poder praticar cedências no tocante à "oferta" comunitária nas negociações comerciais. Brittan não deu sinais de ter ficado minimamente sensibilizado. Era essa, aliás, a impressão dominante na direção-geral dos Assuntos Europeus onde eu, até então, fora subdiretor-geral.

Brittan tinha um estilo snobe, um sorriso que era um meio esgar e que facilmente podia ser lido como cínico. Sabia-se que fazia o que muito bem lhe apetecia no âmbito da Comissão, e isso mesmo tinha ficado claro para nós durante um anterior encontro com Santer, que manifestamente o não controlava e deixava disso nota. Liberal até à medula, achava que a salvação da indústria e dos serviços da Europa se faria pelos ganhos de mercado exterior dos seus setores mais avançados, com os restantes a terem de suportar o facto de estarem condenados a desaparecer. Quando lhe falávamos das falências que entretanto se sucediam em Portugal, em setores produtivos ainda com uma dimensão apreciável de mão-de-obra e sem esperanças de reconversão por qualificação, percebia-se que isso lhe era praticamente indiferente. 

Sir Leon Brittan, que havia sido "knighted" pela soberana britânica antes de ingressar na Comissão Europeia, foi uma figura com certo destaque na política interna britânica, onde havia sido ministro do Interior e teve um importante cargo no "Treasury". Era uma personalidade brilhante, de uma inteligência rápida, embora com uns modos arrogantes e "untuosos" que não éramos os únicos a considerar supinamente irritantes.

Guardo dele ainda duas outras recordações pouco agradáveis. 

A primeira, um segundo encontro, no seu gabinete, em Bruxelas, quando manifestamente se mostrou enfadado com algumas outras nossas pretensões, já não recordo em que área. Deu a certo passo um grande suspiro. Irritado, levantei-me e, caminhando para a porta, lancei-lhe: "You look very tired! I'll be back when you'll feel better". Arregalou os olhos, balbuciou umas coisas e eu saí, de cara fechada. Dois dias depois, o seu chefe de gabinete telefonou-me para Lisboa, anunciando umas ligeiras concessões, quase "microscópicas". 

A segunda vez foi em Singapura, durante a reunião de lançamento da OMC, em 1996. Pedimos-lhe um encontro, eu e o Fernando Freire de Sousa, secretário de Estado do Ministério da Economia, à margem da reunião preparatória da UE. Foi difícil mobilizá-lo para a ocasião. Transmitimos-lhe a nossa reação negativa face a um inesperado ajuste à lista de "oferta", que excedia o mandato que antes tinhamos acordado em Bruxelas. Eram mais concessões, sempre à nossa custa. Leu o "non-paper" que lhe entregámos, olhou para as "posições pautais" nele inseridas e exclamou: "Oh! Your textiles, again!". Ouviu então uma ou duas coisas de que não gostou. Transmitimos à presidência da UE a nossa posição e o mandato acabou por não "evoluir" muito em nosso desfavor. Mas não por cedência de Brittan, suponho.

Ao longo dos mais de cinco anos em que tive responsabilidades de governo na área dos Assuntos Europeus, Leon Brittan foi talvez o comissário, dentre algumas dezenas com que lidei, com quem senti mais dificuldades de entendimento.

Um dia contei aqui uma história passada num encontro entre António Guterres e Jacques Chirac. Hoje revelo que o comissário europeu referido nesse episódio era Leon Brittan. Que descanse em paz!   

Pensar a Europa


Esta sexta-feira, dia 23 de janeiro, moderarei e serei o relator de um conferência que terá lugar na Casa da Música, no Porto, com início às 9.30 horas.

A conferência, promovida pela representação da Comissão Europeia em Portugal, com o apoio do Centro Jacques Delores, tem por título "Novo Renascimento e Novo Cosmopolitismo" e junta um conjunto de pensadores europeus que irão debater os novos ideais culturais para a Europa, com o objetivo de encontrar o caminho para uma "Nova narrativa para a Europa", lançada pela Comissão. 

Peter Matjašiè, antigo
presidente do Fórum Europeu da Juventude, e os professores Eduardo Paz Ferreira, Marina Costa Lobo e Miguel Sousa Ferro intervirão na iniciativa.

quarta-feira, janeiro 21, 2015

José Quitério


Acaba de ser tornado público que o Prémio Universidade de Coimbra 2015 foi ontem atribuído ao jornalista, crítico e especialista gastronómico José Quitério. Tenho a honra de integrar, a convite do reitor daquela universidade, o júri deste prémio que, no passado distinguiu figuras tão diversas como o pintor Julião Sarmento, a cientista Maria de Sousa, o escritor Alneida Faria, o historiador António Hespanha, o encenador Luiz Miguel Cintra ou o académico Sampaio da Nóvoa, entre muitos outros.

José Quitério, que há semanas encerrou 38 anos de atividade crítica ininterrupta no jornal "Expresso", é um dos expoentes da reflexão sobre esse domínio, cada vez mais importante na cultura das regiões e dos países, que é a gastronomia. Nela se consubstancia muito da história de um povo, das suas viagens e das suas influências, dos seus hábitos e da sua abertura ao mundo. Nos dias que correm, a gastronomia é um fator da identidade dos povos, com relevância crescente na respetiva economia, nos fluxos turísticos e até na saúde pública. José Quitério, nos seus textos que incluem livros muito interessantes sobre as temáticas em torno da história e evolução da gastronomia portuguesa, é um nome de dignifica o prémio que agora lhe foi atribuído por uma universidade que, há muitos anos, também foi a sua.

A hora do senhor presidente

O senhor presidente da República é, constitucionalmente, o garante do regular funcionamento das instituições. 

Há mais de um mês, a Justiça determinou a detenção de um antigo primeiro-ministro, indiciado por crimes da maior gravidade. É um caso muito pouco comum, como todos concordarão. Correm nas instâncias devidas os recursos que a respetiva defesa decidiu interpor sobre esta matéria. Neste domínio, contudo, e não obstante divergências de opinião que possa haver, prevalece um entendimento maioritário de que tudo se processa no quadro da lei. A normalidade do funcionamento das instituições não terá sido posta em causa pela detenção do eng° José Sócrates. É, assim, natural que o senhor Presidente da República não se pronuncie sobre esse assunto. Faz muito bem.

Coincidindo com a detenção do eng° Sócrates e não mais cessando até hoje, a comunicação social tem vindo a ser inundada por informações sobre o processo, que só podem provir da área de quem tem a investigação a seu cargo (não ouvi até agora falar de outras hipóteses). Há mais de um mês, a senhora Procuradora-Geral da República anunciou a instauração de um "rigoroso inquérito" às primeiras quebras do segredo de justiça, cujos resultados, com a necessária responsabilização criminal subsequente, se espera a todo o momento.

Nos últimos dias, porém, os "leaks" sobre o processo aumentaram. Conhece-se agora o teor de escutas telefónicas que, a serem verdadeiras, trazem novas, polémicas e até interessantes cambiantes a todo o processo. Não me custa imaginar o profundo incómodo da senhora Procuradora-Geral, cuja nomeação foi anunciada como uma "lufada de ar fresco" numa PGR criticada, no passado, por vários procedimentos incorretos e até alegadas irregularidades, ao constatar que o trabalho que está a ser executado sob a sua tutela é hoje alvo de sérias "fugas" para a imprensa. À luz de um comunicado da PGR anteontem publicado, deduz-se que um esforço de esclarecimento sobre a ou as origens dessas novas fugas vai ser encetado, com o presumido vigor.

Na pendência das conclusões sobre a origem dessas mesmas fugas, e apenas por virtude da respetiva ocorrência, é-se levado a concluir que subsistem deficiências graves na preservação do segredo da investigação processual - a menos, e não podemos excluir liminarmente essa hipótese, que tudo o que tem aparecido na imprensa não sejam senão "factóides", inventados pela imprensa. E, das duas uma: ou tudo é falso, e a Justiça já deveria ter vindo a terreiro dizer que o que foi publicado não passa de efabulações e especulações de jornalistas criativos e distorsores da verdade, ou as notícias espelham, de facto, dados verdadeiros do andamento do processo e, nesse caso, pareceria curial que a própria Justiça tivesse já investigado a origem do "leak" e lhe tivesse posto termo. Há ainda uma terceira hipótese teórica, embora implausível num Estado de direito democrático: que tenha sido a Justiça, deliberadamente, a fornecer à imprensa o que tem sido publicado. Isso significaria, nesse cenário absurdo e ridículo, que os drs. Ricardo Alexandre ou Rosário Teixeira teriam contribuído dolosamente para colocar no domínio público algumas peças do processo. Passa pela cabeça de alguém esta bizarríssima hipótese? Não passa, claro!

Em qualquer dos três casos (volto a dizer: o último é completamente implausível), verifica-se uma clara deficiência nas instituições, com o seu funcionamento a revelar algumas sérias irregularidades. O que, a contrario, nos leva a concluir que, sem a menor sombra de dúvida, elas não estão a funcionar de modo regular. E, neste caso, volto às primeiras linhas deste texto. Este não é um caso qualquer e o mundo exterior olha-o com atenção, como um verdadeiro teste à fiabilidade da nossa Justiça: no rigor da luta contra a corrupção e outros presumíveis crimes associados, na equidade e respeito escrupuloso pelos direitos dos (futuros, presume-se) acusados, um dos quais é a proteção estrita do processo, em especial num período em que ainda não está deduzida uma acusação.

Ora sendo o senhor presidente da República o garante desse regular funcionamento, e se acaso não vier a atuar de forma decidida e atempada psra repor a normalidade funcional das mesmas, pode vir a suscitar-se, em alguns espíritos movidos por má fé, a ideia de que este seu imobilismo poderia ter alguma coisa a ver com a conhecida acrimónia que mantém face ao eng. José Sócrates. Ora sabendo nós, pela lógica da seriedade institucional, que as coisas nunca poderiam passar-se assentes nessas motivações, seria importante que o senhor presidente explicitasse, com grande brevidade, aquilo que nós presumimos seja a sua profunda incomodidade com as irregularidades que atravessam a Justiça. E o que tenciona fazer para ajudar a pôr-lhes cobro. É que se há um magistrado que não pode ficar sob suspeita, mesmo de inação, esse é o "primeiro magistrado da nação".

terça-feira, janeiro 20, 2015

Ainda Charlie

Há pouco mais de uma semana, a França saiu para a rua unida sob o lema "Je suis Charlie". Nos dias seguintes, em conversas em Paris, não encontrei quem não tivesse participado naquela impressionante manifestação. Nela se juntou um pouco de tudo: o choque, o repúdio, a solidariedade, a defesa da liberdade. Escassos foram, contudo, os que abertamente assumiram que aquele sereno e sentido desfile era também um gesto de libertação.
Desde há anos, uma parte significativa da França vem a acumular um forte e crescente incómodo pela forma com a comunidade islâmica se exprime publicamente no país – nos trajes, nos sinais, na afirmação cultural e religiosa, mesmo que nem sempre com laivos agressivos. Para muitos franceses, trata-se de um inaceitável desafio à matriz de laicidade que faz parte da identidade da sua República.  
Nos anos que vivi naquele país, encontrei imensos cidadãos, mesmo gente de espírito muito aberto, que se mostravam chocados com o desfraldar regular de bandeiras argelinas em jogos de futebol entre equipas francesas. Pessoas a quem impressionava o corte de trânsito em ruas para a prática coletiva de orações muçulmanas. Algumas confessaram-me o seu repúdio ao ouvir apupar a “Marselhesa”, diante do chefe de Estado, no “Stade de France”. Outras, ao cruzar pelas ruas mulheres irreconhecíveis, de niqab ou burca, inquietavam-se pela não aplicação das leis que tal proíbem. O comunitarismo com raízes culturais diversas joga mal com uma sociedade que criou uma certa imagem da sua própria identidade – um reflexo onde, claro está!, há também muito chauvinismo e bastante racismo, na recusa em ver alterada a forma de vida que se tem como francesa.

É por isso que entendo que a manifestação de 11 de janeiro foi também um pouco a “libertação” de que acima falei, foi um "basta!" coletivo à pressão que o politicamente correto do multiculturalismo, dominante no discurso oficial, lhes impunha. Nesse dia, com o sólido alibi da barbárie, muitos franceses, numa espécie de exorcismo coletivo, vieram dizer para a rua o seu desagrado em ter de coabitar com manifestações que não respeitam as leis da República. Confesso que não sei como é que isto vai acabar, porque tenho a sensação, que espero errada, de que as tensões não tenderão a diminuir.
Uma última palavra, um pouco contra a corrente, sobre o “Charlie Hebdo”. A revista era servida por artistas geniais, mas há muito que perdera a sua inocência. Optara por ter a permissiva religião católica e o islamismo como os alvos privilegiados da sua ferocidade gráfica. Não será por acaso que, desde há muitos anos, não se lhe via uma graça sobre a questão judaica ou os campos de concentração, bem como piadas sobre negros ou asiáticos, presentes no início da sua publicação e vulgares no seu antecessor, o “Hara-Kiri”. Porquê? Porque o antisemitismo é hoje um tabu e as anedotas racistas são criminalizadas. E porque a islamofobia não só não tem o estatuto de proteção do antisemitismo como segue em sintonia fácil com o tal sentimento de incomodidade que levou a França à rua, naquele dia 11 de janeiro. Isto tem de ser dito.
(Artigo que hoje publico no Diário Económico)

segunda-feira, janeiro 19, 2015

10 notas em jeito de Twitter

1. Será minha impressão ou o PS mete-se numa imensa alhada ao selecionar, em ano eleitoral, um tema "fraturante" como a regionalização?

2. A entrevista do novo presidente da RTP, ao anunciar que vai "entregar os pontos" às televisões privadas, deve soar a estas como música celestial. Em ano de eleições...

3. Contaram-me esta: qual é a diferença entre o "Charlie Hebdo" e o "Jornal da Madeira". É que este último é dirigido por "fundamentalistas" ... de Jardim!

4. A situação de Sócrates em Évora está a ter como consequência um melhor conhecimento e debate sobre as condições das prisões em Portugal.

5. Primeiro, saiu de cena Alberto João Jardim. Agora, Irina separa-se do mais famoso madeirense. Desde os tempos do padre Frederico que o Funchal não vivia em tanto stress...

6. Numa deselegância escusada face ao Brasil, Henrique Granadeiro afirmou que a Ói teve uma "ética de telenovela". E a aplicação da PT na Rioforte? Foi a "moral de dona Inércia"?

7. Em média, e por dia, param nas Lages menos de dois aviões americanos. O diabo seria se, numa crise futura, muitos aviões necessitassem de aí se abastecer e Portugal tivesse entretanto cortado as facilidades aos EUA.

8. A comer castanhas na rua, dei comigo a pensar: isto é como os emails, deixamos sempre para o fim o que é mais difícil de "descascar".

9. As entrevistas diárias nos telejornais aos treinadores de futebol, filmados numa constelação de publicidade, são uma forma indecente de "placement".

10. O papa Francisco, pessoa aliás estimável, deve cuidar um pouco na forma como diz certas coisas: aquela do "murro" foi uma metáfora infeliz.

domingo, janeiro 18, 2015

Nós e o Syriza

A História não acontece como nós queremos, acontece como tem de acontecer. Assim, é completamente indiferente se gostamos ou não da hipótese do Syriza vir a ganhar as eleições gregas de dia 25: quem vota são os gregos, embora as consequências do resultado desse sufrágio possam refletir-se sobre nós. Para o bem e para o mal, sendo este "e" disjuntivo, se bem me faço entender.

Devo dizer que, em tese, não me desagrada a ideia de que alguém possa vir a agitar as águas europeias e obrigar a coligação política, chefiada por Berlim, que dá pelo nome de União Europeia, a reagir a alguma posição mais radical que um governo liderado pelo Syriza possa vir a apresentar, em termos da renegociação da sua dívida pública, num tempo em que "está tudo nas encolhas" por essa Europa, onde mesmo umas tímidas iniciativas de Jean-Claude Junker e anúncios de Mario Draghi são vistos por alguns como uma espécie de revolucionário "New Deal". 

No fundo, esta atitude de tíbio atentismo não deixa de ser uma cobardia da nossa parte: não "mexemos uma palha" e deixamos que os gregos assumam os riscos, que sejam eles a "ver-se gregos", se for esse o caso. Se tiverem êxito, qualquer que seja a medida deste, estaremos "à bica" para sermos "free riders" da flexibilidade que daí puder vir a decorrer para Estados em situações similares. Se falharem, se a Grécia mergulhar numa grave crise, por virtude da relutância europeia em dar acolhimento às novas propostas gregas, estou mesmo a ver que o objetivo oficial português vai ser "tirar o cavalo da chuva", isolando os gregos, tentando que essas retaliações nos não salpiquem. Mais do que isso: já imagino os cultores da conhecida escola "não somos a Grécia!" a mostrarem-se mais papistas do que o papa, a relevar o nosso esforço de ajustamento, a mostrar, com orgulho de "marrão", as notas dadas ao "bom aluno" da escola alemã.

Volto ao início: serão os gregos a escolher. Mas será também o governo português a estar à mesa do "eurogrupo" a apreciar as consequências de uma eventual vitória do Syriza. Infelizmente, temo que  quem por aí nos irá representar nessa circunstância acabe por assumir uma atitude mais subserviente àquilo que Berlim quiser fazer do que seria a de alguns "länder" alemães.

sábado, janeiro 17, 2015

Leituras

Há minutos, "abri" o blogue de uma pessoa amiga. Nesse instante, dei-me conta de que, vai para mais de uma semana, não visitava nenhum blogue. É verdade, não me orgulho disso, mas perdi o hábito, que mantive durante vários anos, de ler regularmente alguns blogues. Nunca fui um grande visitador de blogues e muito menos tenho o hábito de os comentar. Porém, uma vez por semana, costumava dar uma vista de olhos por uns quatro ou cinco que tinha como "favoritos" (entretanto, deixei de ter links de "favoritos", obrigando-me ao esforço de ir caso-a-caso pelo Google, a fim de evitar ficar "addicted"), quase todos alimentados por pessoas com ideias que sabia diferirem das minhas. Às vezes, visitava um blogue de alguém amigo, só para ver como as coisas andavam por lá. Agora... quase nem isso! Praticamente, só vou aos blogues quando me chamam a atenção para um determinado texto.

Faço esta confissão aqui... num blogue que escrevo com o objetivo de que seja lido (embora também o seja para arrumar memórias, sintetizar ideias e deixar alguns desabafos). Espero que os eventuais bloguistas que por aqui passem não levem a mal esta revelação. Mas é o ritmo da vida que assim me obriga.

Salman Rushdie


Ontem vi na TV uma intervenção de Salman Rushdie, numa universidade americana. Defendia a liberdade da blasfémia e a possibilidade das religiões serem objeto de toda e qualquer crítica, à luz da sua interpretação da liberdade de imprensa. Uma posição que não é surpreendente para quem foi alvo de uma miserável "fatwa", uma ordem religiosa emitida por um qualquer "ayatolah" iraniano, que apelou a que os crentes muçulmanos executassem Rushdie onde quer que o encontrassem. Ele seria um blasfemo criminoso, numa interpretação da lei corânica, por ter publicado, em 1989, o livro "Versículos satânicos", em que a figura de Maomé saía maltratada. (Falo "de ouvido", porque, desde então, ainda não consegui ter tempo ou paciência para tirar o livro da estante onde o tenho e lê-lo). É difícil de imaginar como terá sido (ainda será?) terrível a vida de Rushdie ao longos destas décadas, perseguido pela mesma intolerância que agora assassinou os caricaturistas do "Charlie Hebdo". Embora com mais sorte.

Uns anos antes desse episódio, nas salas do Protocolo do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, creio que em finais de 1987 ou início de 1988, ocorreu uma receção oferecida por ocasião de um congresso internacional de escritores. Como sempre acontece em ocasiões similares, os portugueses juntavam-se em grupinhos entre si, deixando os estrangeiros à sua própria conta. Notei que uma figura com um ar bizarro, com uma cara algo mefistofélica e pouco comum, se passeava sozinho e olhava, com atenção, a grande tapeçaria que serve de cenário ao grande salão. Ao vê-lo assim isolado, e por uma questão de cortesia, apresentei-me e expliquei-lhe a versão que tinha do significado da cena que era retratada nessa bela peça decorativa. Ele fez um ou outro comentário sobre o palácio onde estávamos, que eu terei referido ter sido residência real até ao dia da implantação da República, como quase sempre faço com estrangeiros, para encher conversa por ali. Ter-me-á dito o seu nome, que não fixei. Apenas anotei que nascera na Índia e vivia em Londres. Fixei aquele fácies pouco comum, mas logo esqueci o episódio. Até ao dia em que Salman Rushdie passou a ser notícia, em todo o mundo.

Alguns anos passaram. Um dia, creio quem em 1993, recebi na embaixada em Londres, onde estava colocado, um telefonema de um dirigente da Juventude Socialista, que eu só conhecia de nome. O seu nome era António José Seguro. Queria falar com o embaixador, que estava ausente nesse dia. Falou comigo, que o substituía. Queria transmitir à embaixada a sua preocupação pelo facto do balcão da TAP, na capital britânica, se recusar a emitir um bilhete para Salman Rushdie se deslocar a Portugal, creio que ao Porto, a uma iniciativa para a qual a JS o tinha convidado. E pedia a nossa intervenção. 
 
Rushdie estava no auge da sua "glória", mas também dos elevados riscos que estava a correr. António José Seguro explicou-me que estava previsto que o escritor viajasse sob pseudónimo, como já acontecera noutras ocasiões, para outros destinos, e que a sua segurança em Portugal estava plenamente assegurada pelas nossas autoridades, onde o comando da PSP tinha o assunto a seu cargo. Expliquei que nada podia fazer, porque desconhecia as regras, em matéria de segurança, pelas quais a TAP se regia. Podia, no entanto, facilitar-lhe um contacto com o diretor da companhia no Reino Unido, a quem ele poderia expor diretamente o problema. Assim fiz. Ao diretor da TAP, sumariando o problema, disse-lhe do telefonema que ia receber. E esqueci o assunto.

Até que, dias depois, mo "lembraram". Mão atenta, da alta hierarquia política no MNE, decidiu pedir ao secretário-geral do Ministério para me instaurar um inquérito, por eu, alegadamente, ter "feito pressão" sobre a TAP para aceitar um passageiro de alto risco, numa deslocação que era "totalmente desconhecida" das autoridades portuguesas. O homem da TAP em Londres deu-me a sua palavra de que não dissera a Lisboa que tinha havido qualquer "pressão" da minha parte, eu informei formalmente o MNE do nome do comandante-geral da PSP que Seguro me dissera estar, desde o inicio, ao corrente do assunto. A questão, não sem alguns outros episódios pouco edificantes pelo meio, acabou por morrer e, até hoje, fiquei mesmo sem saber se Salman Rushdie veio ou não, de novo, a Portugal. Ainda um dia perguntarei isso a António José Seguro, que já nem se deve recordar daquela nossa conversa e, com toda a certeza, nunca soube do problema que ela me trouxe.
 
Aqui fica mais uma das minhas histórias dos outros, para utilizar o título genial das memórias do jornalista brasileiro Zuenir Ventura.

sexta-feira, janeiro 16, 2015

O nosso país


Há uns anos, referi-me por aqui a um dos "pecadilhos" tradicionais de alguns diplomatas: ficarem convencidos com os argumentos dos países onde estão acreditados e tenderem a explicar ao seu próprio governo as razões dos seus anfitriões. Chama-se a isso, na gíria diplomática, "to go native". Quando um diplomata se deixa cair nesta atitude, a melhor solução é retirá-lo de imediato do posto. Não se paga a ninguém para representar os interesses dos outros, porque a regra primeira da diplomacia é "my country, right ou wrong". Ao longo da minha carreira foi-me sempre perfeitamente indiferente se o país que me acolhia tinha ou não razão numa questão bilateral connosco. Eu estava lá para defender a nossa posição, por mais absurda que ela fosse. Quem não perceber isto e assim não pensar é melhor escolher outra profissão.

Lembrei-me disto hoje, ao almoço, ao ouvir o embaixador americano em Lisboa, Robert Sherman, que tive o gosto de ter como meu convidado para uma tertúlia de amigos. Contava ele que o antigo "Secretary of State" (designação dada ao ministro dos Negócios Estrangeiros, nos EUA), George Shultz, tinha no seu gabinete um grande globo, com o desenho de todos os países do mundo. Quando recebia alguém que havia sido nomeado embaixador dos Estados Unidos da América para um determinado posto, costumava pôr o globo a rodar e, quando ele parava, perguntava ao recém-designado chefe de missão: "Aponte aí o seu país". O homem (ou a mulher), que havia estudado bem a sua lição, até para poder passar no exigente escrutínio pelo Congresso, logo descortinava e designava no globo o Estado em cuja capital iria servir nos próximos tempos. Shultz corrigia-o de imediato: "Está enganado! O seu país chama-se Estados Unidos da América!".

Uma bela lição!

XXI


Vai ser publicada a edição de 2015 da "XXI, Ter Opinião", a revista anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos (nesta edição surge a indicação 1º semestre, o que faz presumir dois números no corrente ano) dirigida agora por António José Teixeira e João Morgado Fernandes e dedicada este ano às cidades.
 
Os autores são muitos, desde António Mega Ferreira a Alexandra Lucas Coelho, de Alexandre Quintanilha a Augusto Mateus, de Mário Mesquita a Maria João Valente Rosa, de José Manuel Felix Ribeiro a Pedro Lomba, de Miguel Esteves Cardoso a Fátima Bonifácio, de António Barreto a João Marques de Almeida, de Manuel Vilaverde Cabral a Pedro Mexia, de Vitor Bento a Carlos Fiolhais. Uma revista que ninguém poderá acusar de não ser plural. Ao lado de Lídia Jorge, Gisela João e José Avillez também eu publico por lá a minha ideia para cidade.

O lançamento será no dia 22, no Mercado da Ribeira, onde não vou poder estar.

quinta-feira, janeiro 15, 2015

Blake & Mortimer

As sequelas desenhadas por Yves Sente e André Juillard, inspiradas nos desenhos inimitáveis de Edgar P. Jacobs, são "the next best" face aos originais do grande desenhador da escola belga de banda desenhada, que nos deu obras primas como "A Marca Amarela" ou "O Mistério da Grande Pirâmide".
 
Saiu agora "La bâton de Plutarque" (que já tem versão portuguesa, para quem se não sinta à vontade com o francês), que traz a curiosidade de ser uma história em que Francis Percy Blake e Philip Mortimer "passaram" em frente à nossa costa, fazendo uma leitura da posição portuguesa na II guerra mundial. Está-se mesmo a imaginar, aliás, a "preocupação" dos aviões da "pérfida Albion" em não quebrarem a "neutralidade" lusitana ("neutralidade colaborante", chamava-lhe Salazar)... Ou seria o medo à nossa poderosa DCA?

quarta-feira, janeiro 14, 2015

Ao acordar

Numa prática que segue modelos de outros países, o site "Observador" (o "360°", assinado por David Dinis)  e, desde há dias, o de o "Expresso" (o "Expresso Curto", assinado alternadamente por Pedro Santos Guerreiro e Ricardo Costa) oferecem-nos, logo pela manhã dos dias úteis, duas "cartas" assinadas pelos respetivos diretores, contendo uma revista do dia anterior e propostas para o dia corrente, tudo isso com utilíssimos links para outras publicações, nomeadamente internacionais. 

Quem quiser estar a par do quotidiano, tendo a certeza de não perder o essencial, tem agora estes excelentes instrumentos informativos ao seu dispor, nos quais basta inscrever-se. Dirão alguns que, num caso ou noutro, as escolhas são contestáveis. Teriam sempre que o ser, como é típico de qualquet escolha. Mas um caso há em que isso parece deliberado. É o que acontece com o "Macroscópio", uma newsletter que o "Observador" oferece ao final da tarde, assinada por José Manuel Fernandes, com uma seleção de links que claramente privilegia as opções ideológicas do seu autor, excluindo vária outra informação, o que é pena. 

Uma nota, neste domínio da leitura informática, para o surgimento, em Espanha, de um novo site, o El Español. Em Madrid já funcionava o magnífico El Confidencial, que é um produto de grande qualidade, em especial na área económica. Cada vez mais, a boa informação começa a centrar-se na internet.

Já que falamos de informação, desta vez não informática (ou "numérique", como teimam em dizer os franceses), uma nota para a edição de hoje do "Charlie Hebdo": esgotou logo às primeiras horas da manhã. Nenhuma das tabacarias por onde passei, aqui por Paris, tem um único exemplar. É claramente um "número de culto", apenas para coleções. Daqui a semanas, tudo voltará ao que era, como é da lei da vida.

terça-feira, janeiro 13, 2015

Luis Ochoa

Acabo de saber da morte de Luis Ochoa, um jornalista especializado em assuntos europeus que sempre me habituei a admirar e respeitar. Conheci-o em Bruxelas e, mais tarde, cruzei-me por diversas vezes com ele em Lisboa, na RDP, onde assumiu lugares de relevo. Era um "gentleman", de uma grande competência profissional e de um trato pessoal inultrapassável. 

Vão desaparecendo os "homens da Europa" da nossa comunicação social. Há anos, foi o Fernando Balsinha, mais tarde o Rui Moreira, há poucas semanas, o Fernando de Sousa. Agora, o Luis Ochoa. Um sentido abraço para a família do Luís.

Linha da frente

É perfeitamente ridícula a polémica encetada em alguns blogues e imprensa sobre a "questão" do lugar do primeiro-ministro português no núcleo de políticos internacionais que se manifestaram em Paris. Alguns pretenderam ver na ausência do PM português da foto da linha da frente da manifestação um sinal de "desprestígio" ou se amesquinhamento a Portugal. É patético!

0 "Le Monde" que saiu há escassas horas traz quatro elucidativas fotografias sobre o esforço e os "truques" de Nicolas Sarkozy, durante o breve cortejo, para se aproximar da primeira (e mais filmada e fotografada) fila. Segundo o jornal, o antigo presidente, a "golpes de cotovelo" quase que conseguiu lá chegar, mas não teve sucesso. Foi Sarkozy no seu melhor...

Alguns políticos dão grande importância a estas "photo opportunities" e estão dispostos s atos ridículos para nelas figurarem, a todo o preço. Confesso que sempre tive um grande desprezo por esse tropismo de saliência protocolar, aliás comum a alguns (nem sempre medíocres) diplomatas.

Acho que Passos Coelho fez muito bem em não ter tentado "entradas de ombro" para surgir em maior evidência. À escala internacional ou europeia, há outros gestos bem mais simples que ele poderia fazer para não deixar mal a imagem de Portugal.

Varanda da Europa

No domingo, ao ver o batalhão de repórteres televisivos portugueses pelas ruas de Paris, lembrei-me de José Augusto (não, não é o do Benfica!). Era o representante do turismo português em Paris, uma cara conhecida da generalidade dos portugueses, dos tempos do SNI (o que era o SNI? Era o Secretariado Nacional da Informação, a voz e a imagem da propaganda da ditadura). 

José Augusto, que era casado com Suzanne Chantal (uma escritora de quem me recordo ter lido "A vida quotidiana em Portugal ao tempo de terramoto"), fazia regularmente para a RTP (para quem havia de ser, num tempo em que só havia esse canal, "e era um pau"?), o "Varanda da Europa". Não era um direto sobre a atualidade (isso não existia). Era uma programa cosmopolita da "radiotelevisão", com reportagens gravadas na "cidade luz" (os clichés eram o chique de alguma comunicação social desse tempo), com a Torre Eiffel ou o Arco do Triunfo ao fundo. Era um pouco de tudo: desde a política francesa até notas de espetáculos da Amália no Olympia, cenas de fado em Paris com Clara d'Ovar, talvez memórias do anterior êxito (que, à época, era sempre adjetivado de "retumbante") do "Verde Gaio" no Thêatre des Champs Elysées. 

José Augusto dirigia o escritório de promoção turística, na rue Scribe, ali perto da Ópera, em cuja montra havia sempre as inevitáveis redes de pesca, cangas de bois do Barroso, palmitos de lavradeiras de Viana, canastras, às vezes uma guitarra, quase sempre cartazes da Nazaré ou da Praia da Rocha. Era a montra do Portugal oficial em França. 

Mas, em França, havia então outro Portugal, cada vez mais numeroso, chegado "a salto", quase sempre a Austerlitz, em transportes clandestinos, muitas vezes a pé. Esse Portugal, não teve nunca direito de cidade na "Varanda da Europa" de José Augusto.

Esse Portugal era assim descrito por Manuel Alegre, em "O Canto e as Armas" (tirado do Google):

Georges, tu que já foste com António Nobre
ao meu país de marinheiros
anda ver Portugal a um bairro pobre 
anda vê-lo em Paris sem mar e sem pinheiros
Nanterre Saint-Denis Aubervilliers Champigny.
Ai tempo sem raíz! 
Eu já vos disse que não sou daqui.
Nesta noite sem pátria em Paris.

Apeteceu-me recordar isto hoje, depois do trabalho numa casa, também portuguesa, mas de raiz arménia, aqui por este Paris chuvoso. Dedico ao Paulo Dentinho esta leve memória do seu primeiro "colega" da RTP em Paris.
 

segunda-feira, janeiro 12, 2015

Ronaldo, claro!

Sou um "ronaldista" tardio. Sei que alguns não me perdoarão a confissão, mas, durante anos, apreciei muito mais o rendilhado mágico de Messi do que a "fúria" de Ronaldo. Por muito tempo, consegui ver por ali uma força servida por uma técnica excecional, mas Ronaldo não me convencia por completo. Era apenas um Figo em melhor. Além disso, como sou um "reaça" que não aprecia os brinquinhos, o gel a fazer cristas de galo em cabeças reluzentes e os modos estilosos a puxar ao galã serôdio, achava que havia por ali muita saloiíce deslumbrada. Messi, pelo contrário, parecia-me uma estimável "formiga", com aquele íman que lhe prende a bola à chuteira, para depois procurar o buraco da agulha por onde ia sacando os três pontos que o transformavam no "abono de família" do Barcelona. E Messi destilava timidez e aparente modéstia, coisas a que sou sensível.

Porque não tenho nunca a certeza de estar certo, e porque a unanimidade em seu torno se acentuava, passei a olhar com mais atenção para o jogo de Ronaldo. E fui-me, pouco a pouco, convencendo de que aquilo era bem mais do que um jogador de "repentes", ele era um ser raro que já estava no "olimpo" onde eu emprateleirara, ao longo da vida, figuras como Puskas, Cruyft, Pélé, Best, Beckenbauer, Platini e muito poucos outros (e Eusébio não está lá, sorry!). Ver Ronaldo com uma humildade imensa prestar-se a servir uma seleção que não presta (isso mesmo, a seleção portuguesa), que só o (des)ajuda a deslustrar-lhe o currículo, foi para mim uma lição. E Ronaldo tem "crescido' em campo, em visão tática, em descobrir o tempo certo, em ter a frieza quente dos grandes momentos, que dão a volta a um resultado. Vê-lo jogar dá-me prazer e esse é o meu grande e único critério, como amante de futebol.

Ronaldo ensinou-me outra coisa: que se pode ser um ambicioso são. Embora perceba que, em sociedades e áreas competitivas, a ambição é "the name of the game", não a valorizo. Por natureza, detesto ambiciosos. (Eu sei: é geracional, é Maio 68, "é por essas e por outras que isto não anda!" e essas coisas. Mas sou assim, pronto!). Por isso, ao ouvir Ronaldo repetir que queria "ser o melhor do mundo", isso irritava-me supinamente. Agora, depois de o ter ouvido e lido mais em entrevistas, julgo ter percebido que está ali uma boa pessoa, um rapaz simples, com um sonho, a que a sua qualidade lhe confere direito. Ao vê-lo chorar na entrega do prémio do ano passado (não vi a cerimónia de há pouco) percebi, definitivamente, que estava enganado no meu juízo sobre ele. Desde há uns tempos, tornei-me num "ronaldista" convicto. E embora não ache que Portugal deva viver necessariamente concentrado neste tipo de "heróis", c'os diabos!, se o êxito de Ronaldo pode fazer feliz, ainda que por umas horas, um povo que tem estado condenado a tempos tristes, viva Ronaldo! Ele é o melhor do mundo!

O dia seguinte



Lá estarei, logo à tarde, em trabalho. A vida continua.

As ações terroristas, como a própria palavra indica, têm como objetivo provocar o terror na população, intimidar, afetar a normalidade da vida e, no fundo, "mudar" aqueles que pretendem atingir. A melhor resposta que pode ser dada ao terrorismo é contrariar esse objetivo, é conseguir preservar o quotidiano, mantê-lo como queremos que ele seja, não como pretendem impor-nos.  

domingo, janeiro 11, 2015

Liderança

 Os líderes mundiais presentes na manifestação de hoje, em Paris 

Uma certa ideia da Europa

A França sempre deixou claro que tinha "une certaine idée de l'Europe". Hoje, em Paris, à margem da manifestação contra o terrorismo, o ministro francês do Interior convocou uma reunião com colegas europeus. No final, com pompa e circunstância, foi anunciada a disposição de avançar para medidas de reforço dos controlos no espaço europeu, por forma a evitar eventos como os que agora tanto preocupam as pessoas.

Quem eram os países representados na reunião de Paris? Apenas os "grandes" e alguns que se esforçam por parecer sê-lo. A senhora ministra da Administração Interna portuguesa foi convidada? Não creio. Manifestou o seu desagrado? Estamos ainda para saber, mas eu apostaria dobrado contra singelo em como não o fez. A lógica do "diretório" é hoje aceite sob o silêncio de Lisboa.

Esta é a Europa que alguns andam a "construir".

Portugal no seu melhor

Amanhã de manhã, vou dar uma aula a um grupo de alunos da Escola de "Management" da Universidade de Missouri. Entre outros temas, tratarei das condições para o investimento estrangeiro em Portugal, desde a burocracia aos incentivos fiscais, dos problemas e "timings" da nossa Justiça à qualificação da mão-de-obra, passando por uma análise àquele leque de items que vulgarmente são tidos como condicionantes na vontade de investir num país. É minha intenção fazer também notar que, apesar de ainda persistirem, em certos setores, alguns dos "vícios" endémicos que estão associados à imagem de Portugal - compadrio, nepotismo, "amiguismo", tráfico de influências, isto é, pequena corrupção - há hoje uma maior transparência, uma mais fácil denúncia pública destes abusos e a uma maior atenção social à desigualização de oportunidades.

Estava a tomar algumas notas para o que irei dizer quando deparei com um artigo no DN que dá conta que, numa determinada organização profissional portuguesa, reconhecida oficialmente e que obtém vantagens do Estado para o seu estatuto, nomeadamente de ordem fiscal, num concurso público para recrutamento de juristas, "em igualdade de circunstâncias, será dada prioridade aos candidatos familiares de membros" dessa estrutura profissional. Ainda me belisquei para perceber se estava a entender bem o que estava a ler. Era verdade! Assim mesmo, de forma "transparente", como o respetivo responsável explicava com orgulho.

Assim não vamos lá!

Tempos da Europa

Os acasos da internet levam-nos a descobrir coisas antigas. Ontem, deparei com um artigo de Isabel Arriaga e Cunha, no "Público", em 30 de junho de 2000, no termo da presidência portuguesa da União Europeia. E encontrei este curioso pedaço de texto: 

"Apesar de ter cumprido de forma honrosa o mandato que recebera dos Quinze para lançar e desbravar o terreno das negociações para a reforma do Tratado da UE, Portugal não conseguiu convencer os seus parceiros sobre o seu real empenhamento neste processo. "Portugal estava visivelmente incomodado com o exercício", resumiu um diplomata europeu, considerando que o país "exerceu honestamente a presidência embora sem toda a motivação que outros países poderiam ter tido". Conduzida por Seixas da Costa, secretário de Estado dos Assuntos Europeus, esta negociação constituía, do ponto de vista do governo, um foco potencial de conflitos num país sem um grande entusiasmo integrador mas simultaneamente obrigado a fazer prova da máxima neutralidade na busca de consensos. A contradição não passou despercebida, e o secretário de Estado saiu uma ou outra vez do seu papel de presidência para assumir posições defensivas enquanto Estado membro. Ao longo dos meses, "Seixas da Costa tornava-se progressivamente mais português e menos presidente", resumiu um dos negociadores. Mas, ao mesmo tempo, os países que partilham as reticências portuguesas, nomeadamente em matéria de flexibilização das cooperações reforçadas - o mecanismo que permitirá a integração europeia a várias velocidades entre diferentes grupos de países - criticam em privado a ausência de empenhamento da presidência para tentar definir desde já os limites deste exercício. Portugal saiu assim desta missão com o rótulo de país euro-hesitante, senão mesmo euro-resistente, o que tenderá a dificultar a imposição das suas posições durante os seis meses que restam à negociação antes do acordo previsto para a cimeira de Nice, em Dezembro. Esta dificuldade far-se-á sentir igualmente no debate de fundo sobre o futuro da Europa recentemente lançado pela Alemanha, logo seguida da França, que corre o risco de evoluir num sentido contrário à sua visão. Com a agravante de que várias delegações notaram alguma falta de coordenação nas posições assumidas pelos três representantes portugueses neste debate - Seixas da Costa, Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, e António Guterres."

Passaram quase 15 anos. Já não interessa, nos dias de hoje, revisitar esta questão e, eventualmente, tentar explicar aquilo que motivou os comentários da (antiga) jornalista, talvez a mais conhecedora correspondente de imprensa que alguma vez passou por Bruxelas, o que não impediu que, ao longo de mais de cinco anos, eu com ela tivesse divergências fortes. Mas não deixa de ter graça reler este texto - o próprio artigo completo - à luz da muita água que, depois disto, passou sob as pontes europeias. Desde logo, o próprio Tratado de Nice, onde, contrariamente ao previsto no texto, Portugal "levou a água ao seu moínho", muito para além daquilo que, à data em que o texto foi escrito, era expectável que acontecesse.

Em perspetiva, poderia a atitude portuguesa na negociação ser muito diferente da que assumiu? Não sei, mas, sem prejuízo de alguns acertos, julgo que não. Sem dar por adquirida a justeza dos restantes comentários, uma coisa foi sempre para mim evidente: não obstante diferentes modos de formular a linha política portuguesa, os três nomes referidos no final do texto nunca tiveram posições estratégicas divergentes. No que toca às táticas adotadas, admito que possam ter dado uma ilusão de descoordenação. Que nunca existiu, isso posso assegurar.

Olhar agora para estas coisas torna-as quase "pré-históricas".

sábado, janeiro 10, 2015

Em memória de Alphonse Peyradon

Vai para dois anos, escrevi por aqui isto:

"Nos anos 60, na Sociedade Nacional de Belas Artes, teve lugar uma (falsa) conferência, creio que apresentada por uma personalidade que se apresentava como um académico estrangeiro, o qual, a meio da sua apresentação era "assassinado". Tudo não passou de um exercício teatral quase surrealista, mas que era um pouco ousado para a "séria" sociedade portuguesa de então. Por um qualquer lapso de interpretação, a agência de informação portuguesa para África, a "Lusitânia", terá dado a notícia como tendo-se tratado de um real assassinato (ou tentativa, já não recordo bem). Alguma imprensa portuguesa das colónias (ou seria da África do Sul?) publicou a história, como se ela correspondesse a um crime verdadeiro. Outros órgãos de informação estrangeiros terão também repescado a notícia, dando-a como boa. O assunto começou a constar em Lisboa. Porém, em Portugal, nada surgiu nos jornais, porque a censura não deixou*. Assim, a história correu num boca-a-boca, tendo sido dessa forma que eu a soube".

Relatei esta historieta e fiz o desafio a quem soubesse algo mais para nos ajudar a fixar a realidade (tão irreal!) dos factos. Sempre achei notável que a sociedade portuguesa de então, na chatice dos seus dias, fosse capaz de criar episódios deste género, numa saudável demonstração de que a ironia e a criatividade ainda por aí andavam à solta. Alguns comentadores deram certas pistas. Há semanas, o blogue Ecosfera - magnífico repositório de memória do jornalismo português - trouxe finalmente bastos pormenores do assunto. Não se dispensando a sua consulta, deixo aqui uma síntese do que nele fica registado.

Na primavera de 1970, um divertido grupo de amigos decidiu montar uma "operação" com laivos teatrais, destinada a "apanhar em falso uma certa elite que então brotava no mundo das artes e que primava pelo discurso hermético e oco". Tratou-se de uma sessão de homenagem ao "sábio" belga Alphonse Peyradon, organizada na Sociedade Nacional de Belas Artes, a convite do "Círculo de EStados da Massificação Urbana (em organização)". O "sábio" (Peyradon era um nome que recordava "pai Adão/père Adam") fez uma intervenção notável, misturando física com filosofia, chegando ao ponto de defender que havia vestígios de música popular portuguesa em peças de Bach e Beethoven, que o advogado Vasco Vieira de Almeida interpretou ao piano. A sessão terá decorrido de forma animada, até que o arquiteto Hestnes Ferreira, que antes havia glorificado a múltipla qualidade de Peyradon (representado por Leite de Faria), como "musicólogo, filólogo, filósofo e deficiente motor", passou a acusá-lo, de "revisionismo", o que provocou um conflito com o orador e homenageado. O presidente da sessão, o advogado João Esteves da Silva, declarou então que a homenagem passaria a "póstuma" e tentou dar dois "tiros" no sábio, que estava remetido a uma cadeira de rodas. Por um lapso organizativo, os fulminantes não funcionaram. As luzes da sala fecharam-se então e estabeleceu-se uma confusão, embora a prevista "morte" acabasse mesmo por ter lugar, o que suscitou, de imediato, que fosse tocado um fado dedicado ao passamento do sábio, com uma letra muito oportuna. A sessão terminaria em aplausos das duas centenas de presentes, nessa fantástica noite lisboeta (a que nunca me perdoarei de não ter assistido, não obstante a informação antecipada pelo "Diário de Lisboa", que, à época, religiosamente sempre lia).

A cena e o "assassinato" teriam ficado por ali, não fora o jornalista Fernando Assis Pacheco ter publicado um divertidíssimo texto, dias depois, precisamente no "Diário de Lisboa", com chamada de primeira página. Trata-se de uma peça muito irónica, que só por lapso de leitura pode levar um incauto a acreditar na realidade daquilo que nela era relatado. O autor insere uma frase magnífica, para descrever o "assassinato", um verdadeiro "overkill": "o primeiro tiro matou-o logo. O outro feriu-o à superfície". Leia-se, com vantagem, o notável relato feito pelo blogue Ecosfera, para ter dados deliciosos da patranha, em que intervieram, para além das personalidades já citadas, António Vaz, Francisco Keil do Amaral, José Palla e Carmo, Eugénio Cavalheiro, etc.

No dia seguinte à publicação da "notícia", um qualquer estagiário da agência noticiosa "Lusitânia", que operava essencialmente para o "Ultramar", tomou-a a sério e redigiu um "take" nesse registo. Em Angola, alguns jornais levaram-no à letra e deram conta do "trágico" sucedido. A "Lusitânia" viria a corrigir o tiro, mas era já tarde.

Uma bela história, com um grupo divertido, num Portugal de outro tempo. Mais uma vez, obrigado ao Ecosfera pela oportuna memória. Dele extraio a foto do "assassinato", inserida na "notícia" do saudoso "Diário de Lisboa".

* Não pude confirmar este pormenor. Ao que me constou - mas isto vale o que vale -, a censura terá decidido não deixar que o assunto fosse especulado, nem num registo de anedota. Bem lhe teria bastado a "notícia" do "Diário de Lisboa".

sexta-feira, janeiro 09, 2015

Islamofobia

Foi estúpido e criminoso, e como tal deve ser denunciado, o ato de islamofobia que hoje vandalizou a porta da mesquita de Lisboa. 

Portugal é um país tolerante onde, felizmente, convivem hoje em harmonia todas as religiões, lado a lado com aqueles que não praticam nenhuma, como é o meu caso. Não podemos permitir, e deve ser fortemente reprimido, quem, por cretinice populista, demagógica e oportunista, ponha em causa esta tradição.

Por mim, se necessário, estarei nas ruas de Lisboa a defender o direito dos muçulmanos portugueses ou residentes em Portugal a praticarem livremente a sua religião. Como estaria com os judeus, os budistas, os católicos, os hindus ou quaisquer outros. Para usar uma expressão estafada, mas verdadeira, não foi para isto que fizemos o 25 de abril.  

Charlie

"Charlie Hebdo" foi o nome escolhido pelos editores de "Hara-Kiri" depois de esta revista ter sido suspensa pelas autoridades francesas, na sequência de comentários humorísticos feitos por ocasião da morte do general De Gaulle, em 1970.

O que raramente tem sido referido pela imprensa é que o novo nome foi uma homenagem a Charlie Brown, a figura central (a doutrina divide-se: para mim é Snoopy, mas tudo bem!) da fantástica banda desenhada americana "Peanuts", criada em 1950 por Charles M. Schulz.

Estou certo que Charlie Brown (e Snoopy e até a mazona Lucy) estarão bem tristes nos dias que correm.

Lajes


Há dois dias, chamei aqui a atenção para aquilo que o ministro Rui Machete disse durante o Seminário Diplomático, a propósito da (então ainda não anunciada, por isso apenas possível) decisão dos EUA de reduzir o número de militares americanos e trabalhadores portugueses na base das Lajes, nos Açores. As notícias souberam-se ontem e, infelizmente, confirmam aquilo que as palavras do ministro já prenunciavam. E que, por isso, então destaquei.

O processo da base das Lajes é um dos mais complexos da história das relações entre Portugal e os Estados Unidos da América. Tem, em si, uma dimensão de Estado que recomenda a maior contenção no seu tratamento. Ao longo dos anos, foi gerido por muitos e qualificados diplomatas portugueses, que fizeram tudo quanto esteve ao seu alcance para defender os interesses que politicamente foram considerados como essenciais. Dá-se a coincidência - porque é, de facto, apenas uma coincidência - de estar neste momento à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros uma pessoa como o dr. Rui Machete, que, pelas funções que longamente teve enquanto presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), conhece, talvez melhor que ninguém, o contexto das contrapartidas americanas. Também por isso, tenho fortes razões para crer que, do lado do MNE e da nossa embaixada em Washington, foi feito tudo quanto era possível para que o desfecho não fosse o que acabou por ser. Mas registo que essa é a minha única certeza e gostava de ter outras. 

Historicamente, haverá um pecado original nesta questão das Lajes? Nunca esquecerei o que um dia ouvi ao embaixador António Vaz Pereira, meu "mestre" na arte diplomática, também ele antigo embaixador na NATO, quando, numa daquelas conversas que tivemos em Londres, e em que muito aprendi, me disse uma coisa que creio parecida com isto: "A tragédia das Lajes é que a cedência da base deveria ter sido feita sem contrapartidas. Uma soberania nunca se aluga, mesmo a um aliado, porque assim deixa de o ser e limita fortemente a capacidade de manobra do Estado". Imagino que esta perspetiva não seja consensual, mas hoje, olhando para a História, sinto-me de acordo com ela. É uma triste sina dos países frágeis dependerem de uns papéis verdes onde se lê "in God we trust".

Regresso ao futuro?


Há uns meses, a propósito das próximas eleições presidenciais, e analisando os putativos candidatos da área conservadora, escrevi por aqui que "Santana Lopes é um caso diferente. Desde há uns anos, agora ajudado pelo papel na Misericórdia de Lisboa, tem procurado construir uma imagem diversa do perfil "playboy" e pouco "statesmanlike" que os portugueses antes dele haviam fixado, modelo que o seu efémero e patético governo havia ajudado a instalar, de forma indelével, na memória coletiva. O modo pausado como fala, as constantes referências religiosas que pontuam o seu discurso, o registo "humano" e de atenção para com os desprotegidos da sorte que marca uma em cada duas das suas atuais palavras, desenham um retrato que tem pouco a ver com aquilo que sobre ele ainda predomina no imaginário coletivo".

Santana Lopes, quando saiu do governo, em 2005, disse que ia "andar por aí". E, durante uma década, andou. Deixou-se entretanto de futebóis e "parcimonizou-se" na palavra. Agora, tendo medido o terreno, colocou-se já em campanha, na perseguição de uma ambição que se sabe antiga. Será que Portugal irá algum dia eleger Santana Lopes para Belém? Como dizia a outra: sei lá! Ontem, no "Público", um homem de direita como João Miguel Tavares desenhou dele um dos mais cruéis retratos que me tem sido dado ler nos últimos anos.

À modorra da escolha do candidato da esquerda corresponde o início de uma interessante zizania na direita. Isto até seria divertido, se não se tratasse do país.
 

quinta-feira, janeiro 08, 2015

Ainda o "Charlie Hebdo"

No post anterior, falei da genialidade do "Charlie Hebdo", acrescentando: "nem sempre concordando com a crueldade crítica que utilizava". Com efeito, como se nota pela capa que acima reproduzo, o jornal ia (vai) frequentemente muito para além do que parece ser razoável, nomeadamente em termos de crítica das religiões - área a que sou completamente alheio, porque não faço parte de nenhuma "freguesia". Porém, tenho consciência de que as confissões religiosas fazem parte da sensibilidade íntima das pessoas, pelo que sempre entendi que deve ser mantida alguma contenção no tratamento deste tipo de matérias, reconhecendo embora que tudo isto se situa numa zona cinzenta muito difusa e de difícil tipificação. 

Neste domínio, tenho a sensação de que os católicos costumam ser bastante mais tolerantes, embora me recorde da polémica criada pelo "cartoon" do meu amigo António, quando colocou um preservativo no nariz do papa, ou mesmo de Herman José, quando retratou a raínha santa Isabel. No primeiro caso, houve protestos e um processo, mas creio que tudo ficou por aí, no segundo, o humorista foi afastado da RTP.

Outros casos são bastante mais complexos. O politicamente correto prevalecente não permite que disto se fale muito, mas a realidade é que é notório que, nas últimas décadas, a pressão social pune muito mais, entre nós, o tratamento livre dos temas judaicos do quem ouse atentar contra temáticas islâmicas. O trauma do extermínio judeu pelos nazis criou um formidável policiamento social, no tocante ao anti-semitismo, que é muito superior à consciência no combate à islamofobia. E é óbvio que o mundo islâmico se deu conta disto e não aprecia esta desigualdade de tratamento. Essa é também a dificuldade que se pressente em algum islamismo moderado, o qual, condenando com sinceridade barbáries como a de ontem, não pode deixar de refletir algum mal-estar que, no seu seio, é suscitado pela forma como a sua simbologia é tratada no humor e na caricatura.

A grande e essencial diferença entre as sociedades livres e as sociedades totalitárias é que, nas primeiras, há o primado da lei: quem se sente ofendido queixa-se à Justiça e esta, se acaso entender que os limites da liberdade de expressão foram ultrapassados, lá estará para punir, se for esse o caso. O mundo totalitário, que está instalado na cabeça dos "jihadistas" do "Estado islâmico" ou dos assassinos franceses dos jornalistas do "Charlie Hebdo" carateriza-se por não reconhecer a Justiça democrática e decide fazer "justiça" pelas próprias mãos, à luz da leitura extremada da sua doutrina religiosa. Não há compromisso possível nesta matéria e a liberdade deve ser defendida a todo o preço.

Esta não é uma questão fácil de tratar e menos fácil se torna num tempo traumático como o que vivemos. Mas temos a obrigação de ser honestos connosco mesmos e não metermos a cabeça na areia. Eu não meto.

Notas parisienses

1. Nunca fui um leitor regular do "Charlie Hebdo", mas reconheço a genialidade do seu traço e, embora nem sempre concordando com a crueldade crítica que utilizava, quero afirmar que felizes são os países onde pode publicar-se um jornal deste tipo. Em Portugal, um "Charlie Hebdo" não seria aniquilado pelas balas do terrorismo, mas por uma imensidão de processos judiciais e perseguições de outra ordem. Ter um "Charlie Hebdo", como ter um "Canard Enchainé" ou um "Private Eye" no Reino Unido, glorifica um país em matéria de liberdade de imprensa. Ver desaparecer Wolinski (cuja "especialidade" nem sequer eram, a meu ver, os cartoons políticos) é assistir à saída de cena de alguém que faz parte da memória da minha geração. Hoje é um dia triste.

2. Como o meu colega e sucessor em Paris, José Filipe Moraes Cabral, há horas sublinhou nas televisões, o corajoso papel assumido pela França (e praticamente por mais ninguém) na luta anti-terrorista no Sahel, bem como a sua aberta cooperação no combate ao "Estado Islâmico", expõe mais o país a retaliações desta natureza. É o preço da responsabilidade demonstrada por um grande Estado. Qualquer que seja a avaliação que se faça da política interna de Hollande, há que elogiar o seu forte empenhamento em matéria de segurança, demonstrado à escala global, não obstante as fortes condicionantes orçamentais que o país atualmente sofre.  

3. A França é um país que tem anterior experiência de atentados terroristas com origem no islamismo radical, embora nenhum deles com esta expressão quantitativa em matéria de vítimas. Porém, no passado, a esmagadora maioria dos atentados que ocorreram em França foi cometida por cidadãos estrangeiros. Ao que tudo indica, o atentado de ontem terá sido levado a cabo por franceses, nascidos no seu solo, filhos de imigrantes. Tal como o Reino Unido experimentou em 2005, a sociedade francesa gerou já, dentro de si, os germes da violência radical islâmica, aliás percetível no elevado número de "jihadistas" gauleses (soa mal, não soa?) que estão já nas fileiras do "Estado Islâmico". Combater decididamente essa deriva é um imperativo, desconstruir as razões desta apetência para o radicalismo limite é uma necessidade.

4. O Islão é uma religião que sofre hoje uma forte diabolização (é irónico chamar o diabo a esta questão), um pouco por todo o lado, embora as pessoas tendam a esquecer que os cidadãos muçulmanos são, nos dias que correm, as principais vítimas das suas expressões mais sectárias. Da Indonésia ao Paquistão, do Quénia à Síria ou ao Iraque, muitos milhares de muçulmanos perderam ou perdem, dia após dia, a vida em atentados bem mais mortíferos que o que ontem abalou a França. Por essa razão, continua a ser estranho que as comunidades islâmicas moderadas não ergam mais a sua voz contra este tipo de facínoras que agem invocando os princípios corânicos. O que vemos é uma distanciação mole, um "não, mas", de quem parece intimidado e temeroso, embora longe de ser deliberado cúmplice. As figuras responsáveis entre esses muçulmanos, que são uma esmagadora maioria, talvez não se estejam a dar conta que, com a sua tibieza, se arriscam, um destes dias, a ficar na linha da frente de uma guerra religiosa que os não poupará. Curiosamente, na Europa, as comunidades muçulmanas reagem face ao radicais no seu seio como as monarquias do Golfo fizeram quanto ao Al Qeda. Ora a pusilanimidade só leva à tragédia, como a história prova.   

5. Contrariamente aos apelos exteriores que se ouviram, a sensação que tenho é de que a moldura legislativa francesa, para o combate à violência sectária e ao radicalismo que chega ao terrorismo, é já suficientemente sólida. Além disso, a França dispõe de uma rede de "intelligence" muito eficaz, que sempre poderá ser melhorada, mas que, tal como em qualquer outro país, não pode garantir nunca, em absoluto, uma prevenção total contra atos terroristas. O terrorismo dispõe da iniciativa e da capacidade de gerar surpresa. Pode-se limitar estatisticamente o desenvolvimento das suas redes, mas é impossível prevenir, em absoluto, que um atentado ocorra. 

6. O ato terrorista de ontem vai deixar marcas na política francesa. Mais do que para Hollande, é para o primeiro-ministro Manuel Valls que os olhares da França se voltarão nos próximos dias. Valls, que foi presidente de um município onde a convivência multicultural era uma das grandes questões (tendo, aliás, sido sucedido no cargo por um luso-descendente), mostrou, como ministro do Interior, um perfil securitário contrastante com o discurso mais contemporizador que o PSF costumava assumir nestes temas. A França vai-lhe exigir, não palavras, mas resultados concretos no esclarecimento rápido deste caso. De toda a forma, será sempre a direita política, da mais democrática à mais radical, quem irá ganhar com este episódio. Há uma grande inquietação em toda a França, uma preocupação evidente pela crescente afirmação comunitarista do islamismo, que induz tensões surdas na sociedade e, com alguma naturalidade, cria reflexos anti-imigração. Daqui a um discurso racista e xenófobo é um curto passo que muitos franceses já deram. Se, em termos de eleições legislativas ou presidenciais futuras, isso vier a ter uma expressão flagrante e maioritária, ficará mais evidente que o problema deixou já de ser só francês.

terça-feira, janeiro 06, 2015

Voo doméstico

Vila Real tem aeroporto ou um aeródromo (não sei se há diferenças). Isso não significa, porém, que a cidade esteja, em permanência, ligada à capital por voos regulares, que permitam atenuar a interioridade. Ao longo dos anos, tem havido períodos em que houve voos, outros há, como agora acontece, em que o aeroporto é apenas uma estrutura para atividades lúdicas.

Tudo começou nos anos 80, quando a cidade era servida por pequenos aviões, com quatro lugares para passageiros e um outro ao lado do piloto. Sempre me perguntei o que aconteceria se este tivesse uma indisposição, mas logo concluí que há perguntas que dá azar fazer. Numa viagem de Lisboa para Vila Real, o piloto enganou-se e, da escala que fizéramos em Viseu, zarpou diretamente para Bragança, destino de todos os restantes passageiros. Eu ia distraído com a paisagem e só "acordei" à vista do castelo da cidade. Advertido do erro, o homem não se incomodou: "Não há crise. À ida para baixo, deixo-o em Vila Real". E assim foi.

Chegados ao aeroporto de Vila Real, a pessoa que prestava assistência ao avião informou-me que um familiar tinha estado à minha espera mas que, tendo-se constatado que o voo tinha ido diretamente para Bragança, concluíra que eu tinha adiado a minha viagem, pelo que regressara à cidade. Nesse tempo, não havia telemóveis. De mala à ilharga, pedi ao responsável pelo aeroporto - verifiquei então que se tratava precisamente da mesma e única pessoa - que me deixasse chamar um taxi ou, como por por ali se diz, um "carro de praça". Guardo até hoje a frase que então dele escutei: "Nem pense nisso! Levo-o eu a casa. Deixe-me fechar o aeroporto e já vamos para Vila Real". E, com uma chave Yale, lá "fechou" (a porta da então pequena instalação d) o aeroporto e partimos para a cidade.

O meu amigo Teófilo Silva deixou-se, pouco depois, dessas aventuras aéreas e, desde há muito, dedica-se ao seu "Museu dos Presuntos", um dos melhores restaurantes de Vila Real, com uma escolha de vinhos do Douro dificilmente bativel. Este ano, ainda por lá não fui dar-lhe um abraço, mas hoje, ao passar por perto do aeroporto (ou aeródromo), lembrei-me desta historieta, típica das pequenas cidades, como aquelas que Vila Real já foi. Tempos em que ainda havia aviões.

A diplomacia e a espuma dos dias

Desde há precisamente 20 anos, por esta altura, o Ministério dos Negócios Estrangeiros organiza o seu Seminário Diplomático, que, durante dois dias, reúne a hierarquia política e diplomática das Necessidades com os chefes de missão no estrangeiro. No passado, os modelos variaram e a sua qualidade também. Porém, nunca deixou de ser um exercício útil, que permitiu coordenar posições, definir prioridades e proporcionar o contacto entre pessoas que operam por vezes a grandes distâncias mas cuja cultura comum de funcionamento é condição para a eficácia da sua ação.

Hoje, os órgãos de comunicação social estiveram na abertura do seminário. E que destacaram? Os comentários feitos sobre a eventual saída da Grécia do euro, assunto sobre o qual toda a gente tem uma opinião, mas que essencialmente é aos gregos que diz respeito, ou melhor, para o qual é em absoluto irrelevante qualquer leitura portuguesa. A espuma dos dias prevalece sobre as questões de fundo. 

Nas televisões, à hora do almoço, nem uma palavra sobre a passagem de mensagens à carreira por parte do chefe da diplomacia, no seu discurso inaugural. Se tivessem estado atentos, os jornalistas poderiam ter sublinhado aquilo que o dr. Rui Machete disse relativamente ao eventual efeito que o desfecho das negociações das Lages pode ter no relacionamento bilateral com os EUA. Esta foi a mais importante mensagem saída, até agora, deste Seminário Diplomático. 

TAP


Os países não são iguais. Não o são na riqueza, como o não são na sua situação geopolítica. Por isso, nas opções que a cada um é dado fazer, para a gestão do seu papel no mundo, devem maximizar as suas vantagens comparativas e minimizar as condicionantes que acentuam a suas debilidades.

Como por aqui tenho dito, Portugal é um país frágil. Nos dias que correm, essa fragilidade acentuou-se, por um estado de necessidade financeira que induziu mesmo algum desespero nacional. É em tempos turbulentos, de incerteza, que os países reclamam lideranças indutoras de confiança. Por um azar dos Távoras, calhou na rifa a Portugal, neste que é um dos mais delicados momentos da sua História recente, uma das menos capazes lideranças políticas de que temos memória. Felizmente vivemos em democracia e isso pode corrigir-se com o voto. Mas as eleições não podem remediar o que já for irremediável: e a privatização da TAP, a acontecer, sê-lo-ia. 

Já vivi o suficiente para aprender que uma gestão empresarial pública é frequentemente menos eficiente do que uma gestão privada. Mas há casos em que a gestão pública pode ser excelente. Prova disso mesmo é que, em empresas públicas que foram privatizadas, porque eram atrativas, a responsabilidade pela respetiva gestão continua hoje nas mãos das mesmas pessoas que o Estado lá tinha colocado. O que demonstra que não devem ser tão maus assim... 

A TAP é uma empresa pública que tem tido excelentes gestores profissionais. Desde há vários anos que apresenta resultados operacionais positivos, fruto de uma estratégia inteligente que aproveitou a debilidade conjuntural de concorrentes e tirou partido de diversos outros fatores favoráveis. A questão em cima da mesa é saber de que forma é possível acorrer às necessidades de capital de que necessita para cimentar o seu crescimento. Neste domínio, nem só a privatização é opção, como se sabe.

O atual governo tem uma "fezada": é preciso privatizar tudo o que por cá for passível de interesse privado, como foi importante fazer desaparecer as "golden share", como deve anular-se qualquer mecanismo regulatório que dê ao Estado a possibilidade de condicionar, ainda que minimamente, a aplicação e circulação do capital externo em Portugal. O governo considera que o interesse nacional se defende defendendo sempre a total liberdade para o capital que aqui entra. Este pressuposto leva-o, pelos vistos, a não entender a existência de interesses geopolíticos nacionais específicos, que podem estar em objetiva contradição com esses interesses externos.

Volto ao ponto por onde comecei. Para um país como Portugal, com uma geografia de interesses que vive da ligação entre vários espaços e comunidades humanas, defender e potenciar essa especificidade é quase uma condição de sobrevivência. A TAP tem sido um instrumento importante para a sustentação da nossa identidade no mundo, bem como para a preservação desse derradeiro poder de relação que nos resta. Compete ao governo provar que isso se pode fazer com a sua alienação. Até lá, compete-nos estar contra ela.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, janeiro 05, 2015

Juízes e diplomatas

Os juízes querem um subsídio de exclusividade, ao que parece para compensar a perda da renda de casa que lhes era atribuída. Os jornais dizem que o governo está a estudar. Não tenho nada contra.

Este será um excelente momento para aos diplomatas ser atribuído um subsídio pela "dupla exclusividade" a que muitos deles estão sujeitos, pelo facto de, na esmagadora maioria dos casos, os seus cônjuges serem obrigados a abandonar as respetivas profissões, quando têm de os acompanhar para o estrangeiro, às vezes por longos períodos.

Reconheço, contudo, que os diplomatas estão longe de ter, nas suas mãos, instrumentos de pressão tão convincentes com aqueles que os magistrados possuem nos dias de hoje face aos políticos.

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...