Quando o novo governo entrar hoje em funções não encontrará, à sua chegada à residência oficial do primeiro ministro, a figura discreta, educada e prestável que, durante décadas, fazia o primeiro acolhimento a todos os visitantes: o senhor Ferreira.
O senhor Ferreira ocupava um pequeno espaço, à esquerda de quem entra na residência, acompanhado por um polícia, à paisana. Em tempos que por lá andei mais, era uma senhora. O senhor Ferreira conduzia os visitantes que não fossem conhecidos e não soubessem os cantos da casa à sala de espera, ao elevador ou à escadaria que acede ao primeiro andar - onde se situam os principais gabinetes e onde Marcelo Caetano criou uma sala onde reunia o conselho de ministros. Essa sala, que tinha uma mesa em forma de U fechado, foi, no tempo de António Guterres, mudada para a cave. Era nela que, muitas vezes, reunia o conselho de ministros, em alternativa ao edifício existente na rua Gomes Teixeira, perto dos Prazeres.
A figura do senhor Ferreira, que passei a conhecer melhor nos anos 90, sempre me fascinou. Soube um dia que tinha entrado ao serviço ao tempo de Salazar. Como se teria dado com a senhora Maria? Que histórias, se as quisesse e soubesse contar, o senhor Ferreira não teria, olhando o mundo político daquela portaria, desde os anos 60?! Mas o senhor Ferreira era um homem discreto, com a lealdade essencial que os servidores do Estado devem ter, para além dos regimes e governos que servem. Várias vezes "puxei por ele", tentando saber coisas desses tempos antigos, memórias esparsas que pudessem ajudar a desenhar um retrato dessa época. Salvo coisas vagas, nunca me contou rigorosamente nada.
Um dia, nuns minutos de conversa que pudemos ter, quem lhe contou uma história fui eu. Tinha-se passado em 1975, pouco antes do Natal. Terminava então um dos anos anos mais turbulentos da política portuguesa, em todo o século XX. A Revolução, iniciada em abril de 1974, tinha atravessado imensas peripécias - e imagino os tempos "épicos" que o senhor Ferreira não deve ter tido, à beira de vários ataques de nervos, naquela portaria de S. Bento, nesses tempos do PREC (o crismado "processo revolucionário em curso", para elucidação dos leitores mais novos), com fardas e barbas a entrar de roldão, com golpes e contra-golpes a prenunciarem-se e a pronunciarem-se pelo corredores e gabinetes, nas várias encarnações governativas do general Vasco Gonçalves.
Como disse, 1975 ia terminar. O movimento "retificativo" de 25 de Novembro já tivera lugar e o VI governo provisório, que vira a sua existência ameaçada desde a sua formação, em setembro, entrava finalmente nas suas primeiras semanas de verdadeira velocidade de cruzeiro, chefiado pelo almirante Pinheiro de Azevedo.
Eu trabalhava então, destacado pelo MNE, no Gabinete Coordenador para a Cooperação, a primeira estrutura de ajuda pública ao desenvolvimento, criada após a Revolução, voltada para as relações com as colónias africanas recém-independentes. O projeto de um determinado diploma legislativo havia sido por nós preparado e havia urgência em que fosse entregue, em mão, ao então secretário de Estado responsável por aquela área, o comandante Cristóvão Moreira, que deveria entrar para a reunião do conselho de ministros, em S. Bento, dentro de minutos. Fui encarregado de levar o texto e de lhe transmitir oralmente algumas curtas informações complementares.
Cheguei à residência num velho Mercedes preto. Os portões abriram-se de imediato e, sob continência dos polícias, o carro avançou até ao fundo da escadaria exterior, que dá acesso à entrada do edifício. Estranhei a facilidade com que a viatura foi admitida, sem qualquer pergunta, identificação ou controlo, mas tomei isso à conta de ser, provavelmente, uma matrícula conhecida. Na pequena área no alto da escadaria, o dr. Almeida Santos falava para televisões (perdão, para a televisão, porque então só havia uma...). Procurei alguém que me indicasse como é que eu poderia chamar o comandante Cristóvão Moreira. Foi-me dito para subir ao primeiro andar. Aí, repetida a pergunta, indicaram-me uma sala. Era o conselho de ministros. Estava prestes a iniciar-se a sua reunião, com o primeiro ministro Pinheiro de Azevedo já no topo da mesa, alguns membros do governo sentados, outros em conversas entre si ou com colaboradores. Descortinei o meu secretário de Estado, inconfundível na sua teimosa camisola de gola redonda, entreguei-lhe o documento, dei-lhe a mensagem e saí.
Ao abandonar o edifício, ainda aturdido pela incrível facilidade que tivera, no acesso desde a rua à sala do conselho de ministros, sem nunca mostrar a minha identificação e sem o mínimo controlo de segurança, perguntei quem era o responsável pela portaria. Foi-me então apresentado, pela primeira vez, o senhor Ferreira. Sorridente, muito agradável no trato, ouviu o comentário pelo qual eu lhe transmitia o meu espanto, respondendo assim: "O senhor doutor (presumiu que o era) tem toda a razão. É verdade, não há quase segurança nenhuma! Mas sabe o que é que acontece? Nunca houve um governo tão grande como este. Entre ministros, secretários e subsecretários de Estado são 84 pessoas! Fora os membros do conselho da Revolução! Todos têm chefes de gabinete, adjuntos e assessores que entram frequentemente por aqui dentro e, se lhes perguntamos quem são, ficam quase ofendidos por não os conhecermos. Por isso, temos alguma dificuldade em controlar estas coisas...". Percebi então melhor o embaraço do senhor Ferreira.
Contei-lhe esta história em 1995. Obviamente, não se lembrava da conversa que, vinte anos antes, tivera comigo. Mas recordava-se bem desses tempos complicados da política portuguesa, que atravessara, profissional e discretamente, na portaria de S. Bento. Reformou-se já há uns anos. Se ainda por lá estivesse, e a partir de hoje, ter-se-ia cruzado com o mais pequeno governo da história política portuguesa pós-25 de abril, por contraste com aquele imenso VI governo provisório.
Não sei se o senhor Ferreira ainda é vivo. Espero bem que sim e que possa receber o meu abraço.