sábado, agosto 18, 2012

Diálogo

O diretor-geral ficou siderado! O telefone interno tocara e, do outro lado da linha, ouviu a frase insolente:

- Ó minha besta! Li um papel teu que é uma boa porcaria! Espanta-te depois que o ministro te dê uma embaixada num sítio sinistro!

Reagiu, com um berro:

- Que diabo quer você? Sabe com quem está a falar? Daqui é ... - e disse um nome que, nesses anos 70, fazia tremer meio ministério.

Do outro lado da linha, o interlocutor terá feito uma leve pausa. Após o que interrogou:

- E você? Tem ideia de quem eu sou?

- Não, mas sei que é um imenso cretino, pela certa! - respondeu, irritado, o diretor-geral.

- Ainda bem que não sabe quem eu sou... - disse o equivocado correspondente, numa voz prudentemente anasalada para a ocasião. E desligou, nesse tempo dos velhos telefones que não identificavam a origem das chamadas. A verdade é que o tal diretor-geral, nas vezes em que o encontrou, nunca lhe falou no assunto...

sexta-feira, agosto 17, 2012

Sinai

Muito se tem falado do deserto do Sinai, por estes dias. Zona de alto risco em matéria de segurança, atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim, até há pouco tempo. A história que aqui conto, tem já uns bons anos.

O assassinato do primeiro-ministro israelita, Itzak Rabin, havia interrompido subitamente a visita oficial que o então presidente português, Mário Soares, fazia a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 6 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos. Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de El-Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos do Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.

À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma simpática figura da nossa "carreira", onde é crismado pelos amigos com o "nickname" de "Iá", pessoa por quem tenho uma grande estima. É um homem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários. Nessa manhã, tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho. 

Na nossa viagem de avião para a capital egípcia, o embaixador acompanhou-nos, naturalmente. O seu carro, com o motorista, regressaria pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai. Chegámos ao Cairo a meio da tarde. Mário Soares, a senhora e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. O resto da delegação, de que faziam parte deputados e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalar-se num hotel. Depois de acomodar o presidente, o embaixador juntou-se-nos e por ali foi ficando, à conversa.

A certo ponto, vi que Nunes de Carvalho era chamado a um telefone, na esplanada onde estávamos. Era Mário Soares. Estaria "farto" do isolamento da "guest house" e queria juntar-se-nos, para jantar. Sugeria ir ter conosco ao hotel e que, ainda antes do jantar, todo o grupo português fosse conhecer a residência oficial, situada umas centenas de metros adiante, um andar bem simpático, com uma varanda sobre o Nilo, na ilha de Zamalek.

Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem com mundo", que gostava de receber e recebia bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutros lugares.

A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que temos um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso. E, depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando de embaraço, esclareceu: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas..."

A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa. E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz.

Retrato

Numa série de retratos de vários países, desenhados em escrita através da obra de autores nacionais, o "Le Monde" de hoje, sob o título "Le Portugal ne rêve plus" (sem link), debruça-se, numa página inteira, sobre a obra de Francisco José Viegas, recortando passagens do anti-herói dos seus livros policiais. 

Sem a menor surpresa, pelo texto perpassa um olhar melancólico sobre um país que alguma França não deixa de ver projetado num fundo de fado e tons sombrios. Tenho a sensação de que, para as "idées reçues" de muitos, Portugal, depois do tempo dos "bidonvilles" e das varinas do SNI, seguido do sobressalto político festivo de 74, regressou à velha caricatura da pátria da eterna nostalgia, desde sempre encalhada num passado que lhe tolhe o presente. É nesse país imaginário, que tem o sol por alegria e a tristeza por destino, que, para um certa França intelectual, encaixa hoje bem a estranheza interrogativa que Pessoa lança sobre essa gente de ambição contida e rumo incerto. Que somos (somos?) nós.

quinta-feira, agosto 16, 2012

Robert Bréchon (1920-2012)

Quando cheguei a Paris, em 2009, alguém me disse que Robert Bréchon era "um radical pessoano". Na altura, apenas conhecia de nome esse lusófilo que um dia escreveu que "é através de Pessoa que Lisboa entra verdadeiramente na literatura universal".

Portugal deve imenso àqueles que, no estrangeiro, se apaixonaram pela sua cultura e que na respetiva promoção ocuparam grande parte da sua vida. Bréchon, que há dias nos deixou, nasceu para a língua portuguesa no Brasil, quando aí trabalhou pela cultura francesa. Depois, quando viveu em Lisboa, onde fez um trabalho notável à frente do Instituto francês, soube abrir-se às correntes intelectuais portuguesas, de diversa orientação. Foi por Lisboa que "descobriu" Pessoa, tendo mais tarde, com Eduardo Prado Coelho, sido responsável pela edição, na Christian Bourgois, das "Oeuvres de Fernando Pessoa". Tornou-se um dos grandes especialistas internacionais na obra do poeta, sobre a qual publicou vários trabalhos.

Mas muito mais lhe ficamos a dever, numa dedicação que merece a nossa homenagem e o nosso reconhecimento. 

Ciganos

A questão do tratamento dado aos ciganos em França está na ordem do dia. Hoje como ontem. O assunto já foi aqui abordado neste texto, escrito precisamente há dois anos, pelo que não tenho mais a dizer. A não ser contar agora uma pequena história.

Lembro-me que era um fim de semana, aí por 1997. Eu estava parado, a guiar o meu carro, no semáforo da rua Barata Salgueiro com a avenida da Liberdade. Aproximou-se uma mulher cigana, de saias longas, com uma criança desgrenhada ao colo, de mão estendida. Abri o vidro para lhe dar alguma coisa e ouvi da sua boca uma expressão que, no início não entendi, mas que ela repetiu: "Bósnia-Herzegovina".

Eu era responsável pelos Assuntos europeus, no governo da altura. Mas - devo confessar, com toda a honestidade e sem esconder esta fragilidade - estava muito longe de supor que, naquela época, as migrações ciganas do centro da Europa tivessem já chegado às ruas de Lisboa. O encontro com aquela pobre mulher, saída de tão longe para tentar atenuar a sua pobreza em Portugal, foi, para mim, uma imensa surpresa, que nunca mais me saiu da cabeça. Desde logo, aprendi que estar no governo nem sempre é sinónimo de estar atento a todas as coisas.  

Eça sempre

Passam hoje precisamente 112 anos sobre a data em que, aqui em Paris, na avenue de Roule, faleceu o cônsul-geral de Portugal, José Maria Eça de Queiroz.

Justiça e África

Não deixa de ser curioso, e ousado, o que Patrick Besson escreve hoje no "Le Point" a propósito do julgamento pelo Tribunal Penal Internacional de dirigentes africanos acusados de crimes contra a humanidade: "Essa terá sido a grande novidade jurídica dos séculos XX e XXI: fazer julgar africanos nos Países Baixos pelos filhos procuradores e pelas filhas juízes de todos os povos que os colonizaram (ingleses, franceses, alemães, holandeses, italianos...)"

quarta-feira, agosto 15, 2012

Pimba

Há dias, de passagem por Portugal, e ao longo de algumas horas de viagem, forcei-me a ouvir na rádio música portuguesa. É essa a forma que utilizo, com regularidade, para me manter minimamente atualizado com o que se faz e produz no nosso país, atenuando assim as lacunas de conhecimento de um expatriado.

Nessas horas, dei por mim a pensar sobre qual é a verdadeira fronteira onde, no gosto dos portugueses, começa a chamada música "pimba". É que se muitos "cromos" deste último estilo popular são facilmente identificáveis, outras figuras existem que, não sendo equiparadas a eles, merecem bem esse qualificativo, se bem que algumas cumplicidades mediáticas ou corporativas os consigam fazer escapar ao "labéu". E não se diga que é apenas o tipo de fãs que pode qualificar os artistas.

Em muito do que ouvi, notei uma esmagadora iliteracia nas "letras", marcadas por uma sentimentaleira rimada de incomensurável indigência cultural, que lembram o rua/lua ou o ama/Alfama do fado simplório, algum romantismo de pacotilha, tudo isto envolvido em roupagens musicais modernaças, para se dar ares de qualidade. 

A conclusão a que cheguei é que há por aí um imenso "bluff" à volta de alguma a música portuguesa contemporânea. Volta!, nacional-cançonetismo, que estás perdoado...

terça-feira, agosto 14, 2012

Transportes

Este blogue não tem vocação, até ver, para se imiscuir em questões de política interna portuguesa. Mas há limites para a retração no exercício do direito de legítima cidadania.

O que se passa com as empresas públicas de transportes, que entraram em mais uma sempre "oportuna" greve, passa esses limites. Quando se pede aos portugueses - e em especial aos servidores públicos - esforços sem par, é perfeitamente escandaloso que certas classes profissionais tomem o país como cíclico refém. É que se o Estado tem um défice, muito desse défice deve-se àquilo que esse mesmo Estado atribui, em termos de ajudas financeiras, às empresas que empregam essas pessoas.

As regras que os guiam fazem parte dos intocáveis "acordos de empresa"? Também as regras que atribuíam ao funcionalismo público o subsídio de férias e o 13º mês faziam parte de um sólido "contrato" que todos supúnhamos ter com o Estado e que, no entanto, foram suspensas.

Às vezes, argumenta-se com a necessidade de haver entendimentos de regime sobre determinadas temáticas de interesse nacional. A alteração radical de certas vantagens em vigor nas empresas públicas de transportes deveria, num país de bom-senso, merecer uma reflexão transpartidária.

E, tendo em atenção que todas essas empresas parece estarem em situação precária, não seria boa ideia colocar à frente delas algumas conhecidas e mediáticas "vedetas" da gestão pública, que tanto se ilustram, a peso de ouro, em áreas económicas que dão lucros? Sempre era uma oportunidade patriótica que se lhes dava para mostrarem o que valem, embora em tarefas talvez um pouco mais difíceis... 

Pedras Salgadas

Bons tempos! Agora, é o que se vê por lá...

segunda-feira, agosto 13, 2012

Cumprimentos diplomáticos

Na primeira metade dos anos 90, nos tempos imediatamente após o massacre cometido pelos militares indonésios no cemitério de Santa Cruz, em Dili, a causa timorense passava por um período de grande movimentação internacional. Em Londres, a nossa embaixada desenvolvia uma intensa atividade junto do "Foreign Office" e de outras entidades, com vista a denunciar o prosseguimento da bárbara repressão indonésia. A minha colega Ana Gomes, que aí era conselheira e que nesta matéria teve sempre razão antes do tempo, era o eixo dessa nossa ação, que envolvia instituições oficiais, embaixadas estrangeiras, imprensa e ONG que apoiavam a causa timorense.

Um dia de 1993, coube-me representar a embaixada no congresso do Partido Conservador britânico, em Birmingham. Nos corredores de um "fringe meeting", numa troca de apresentações num grupo de diplomatas, apertei a mão a um desconhecido que me disse:

- Tenho muito gosto em conhecê-lo. Eu sou o adido militar da Indonésia em Londres. De que país é?

- Sou um diplomata de Portugal. E quero dizer-lhe que acho muito curioso conhecer um militar indonésio. Nem imagina quanto, por estes dias, se fala dos militares indonésios lá pelo meu país...

E fiquei impávido. O homem olhou-me, sem saber como reagir. Outros colegas estrangeiros, rápidos na perceção da situação, ficaram à espera de um qualquer "follow-up". Que não houve, claro.

Regressado a Londres, quando contei a Ana Gomes que tinha cumprimentado um militar indonésio, ficou furiosa comigo. Anos mais tarde, seria ela uma das principais responsáveis pela plena normalização das nossas relações com Jacarta. É a vida, não é, Ana?

América, América

Os Estados Unidos são um país que não para de surpreender.

Depois da relativa desilusão que havia sido a sua prestação nos jogos olímpicos de Pequim, a América desportiva renasce, mais forte do que nunca, nas jornadas londrinas que ontem se encerraram, com a Europa num lugar secundário.

Mas há surpresas de outra natureza que também surgem do outro lado do Atlântico. Quando todos presumiam que o candidato presidencial republicano, Mitt Romney, ia "compensar" a sua imagem de conservadorismo com um companheiro de "ticket" que pudesse abrir caminho ao voto do centro, eis que surge nesse lugar uma figura de uma direita que está próxima do Tea Party, o que pode ser uma inesperada boa notícia para a recandidatura de Barack Obama. Será que o efeito de um candidato de um modelo ideológico tipo Sarah Palin vai beneficiar o atual presidente? Ou será que, em caso de vitória de Romney, poderemos ter uma reedição de uma "escola" de vice-presidentes como Spiro Agnew ou Dan Quayle? Ou será que somos nós, para quem o desfecho do que se passar em Washington não é nada indiferente, quem está a ler a realidade americana à maneira europeia?

domingo, agosto 12, 2012

A título devolutivo

Era uma pequena repartição, com escasso pessoal administrativo, na qual os diplomatas mais jovens tinham de fazer, eles próprios, o registo da entrada e da saída da correspondência, sendo também responsáveis pela atribuição da classificação de arquivo. Nada de que haja que ter saudades, mas que não deixava de representar um banho inaugural de humildade, que atenuava as tentações de importância emproada de alguns recém-chegados às Necessidades, armados em ridículos "adidos plenipotenciários de 1ª classe".

O chefe da repartição pedia, há muito, um reforço para o chamado "apoio" administrativo. Por uma qualquer embirração, que teria a ver com dissídios antigos, o responsável pelo pessoal vinha a protelar, desde há meses, o envio de mais uma funcionária. Os diplomatas protestavam com o excesso de trabalho, as duas únicas administrativas queixavam-se de que não podiam continuar sozinhas.

Por intervenção do diretor-geral, o serviço de pessoal lá se dignou, um dia, enviar uma nova funcionária. "Nova" é uma maneira de dizer, porque a senhora tinha já uma certa idade e, desde a primeira hora, informou que, por razões de saúde, não poderia encarregar-se de tarefas que obrigassem à colocação de pastas pesadas nas prateleiras. Fê-lo, aliás, de uma forma pouco simpática, denotando o seu desagrado com a nova colocação, o que prenunciava conflitos e tensões. Ficou claro que as alegadas limitações da funcionária iam criar-lhe um estatuto desigual, com consequências na distribuição das tarefas. O chefe de repartição estava furioso e depreendeu que a seleção da nova funcionária, com as limitações que apresentava, tinha sido uma perfídia do responsável pelo pessoal.

Decidiu responder à letra e por escrito. Elaborou, com cuidado, uma comunicação para a Repartição do pessoal, que teve o cuidado, ele próprio, de dactilografar, de classificar no arquivo e de registar "nas saídas", cujas cópias guardou para si, por horas. De seguida, chamou a tal funcionária e deu-lhe instruções para ir entregar a nota, em envelope fechado, diretamente ao chefe do serviço de pessoal, sublinhando bem que vinha da sua parte. E a senhora lá foi.

Meia hora depois, a notícia saía do "4º andar", onde se situa a área administrativa do MNE: o chefe do pessoal estava furibundo com o seu colega, escandalizado pelo teor da nota que recebera, iniciada com o formulário gongórico da época: "A Repartição X apresenta os seus atenciosos cumprimentos à Repartição do Pessoal e, dada a circunstância de, por alegadas limitações físicas, se revelar não adequada à execução das funções para que foi destinada, tem a honra de remeter, em anexo à presente nota e a título devolutivo, a funcionária "fulana de tal", solicitando a substituição da mesma por uma outra em perfeitas condições"...

Esta historieta, de cujas consequências não guardei memória, ficou nos anais da "casa". Devolver um funcionário "em anexo" a uma nota de que o próprio é portador é um verdadeiro "must". Quantas vezes tive a vontade, mas não tive a coragem, para proceder de forma idêntica.  

Moniz Pereira

No final da maratona olímpica que hoje se concluiu em Londres, e por uma qualquer razão bem concreta, lembrei-me da figura de Mário Moniz Pereira.

Nos idos de 70, quando proliferaram em Portugal as "associações de amizade" entre Portugal e alguns países (normalmente do "socialismo real", como era o caso da Portugal-Polónia, de que fui membro), Moniz Pereira tomou a iniciativa (que já não recordo se polémica) de criar uma "associação de amizade Portugal-Portugal", sublinhando a necessidade de cuidarmos das nossas relações conosco mesmos. Nos dias que correm, pergunto-me se não valeria a pena recuperar essa instituição.

Testemunho

Ontem, no final da estafeta de 4 x 100 da Olimpíadas, um burocrata "bife" impediu o jamaicano Bolt, que tinha "apenas" acabado de bater o record do mundo (num grupo que conseguiu uma média superior a 40 km por hora, se já fizeram as contas), de ficar, como recordação, com o testemunho utilizado na estafeta, aquele tubo amarelo que se vê na imagem.

Confesso que não percebi por que razão Bolt lhe entregou o objeto. Acaso o funcionário iria atrás dele?

Havia de ser comigo! Ou pior: se fosse comigo, o homem era capaz de me apanhar...

sábado, agosto 11, 2012

Feira popular

Há dias, passei junto a uma "fête foraine" que, todos os anos, por alguns meses, se instala no jardim das Touileries, no centro de Paris. Não tem nada de especial, para além dos "carrinhos", "cadeirinhas", carrocéis e coisas assim, a culminar numa roda gigante, tudo apoiado em alguns comes-e-bebes e gelados. Mas anda por lá um mar de gente.

Há uma semana, em Lisboa, do táxi que me levava ao aeroporto, olhei o espetáculo desolador da antiga Feira Popular, um espaço onde o nada está agora murado por cartazes, tendo no topo o triste esqueleto do velho (e histórico, por muitas razões) teatro Vasco Santana. Já perdi de vista o folhetim do destino daquele terreno, feito de algumas megalomanias, de negócios cruzados e falhados (?), dos inevitáveis e eternos processos jurídicos que parece serem a nossa sina e, claro, de muita incompetência, como sempre entre nós, nunca punida.

A Feira Popular de Lisboa estava longe de ser um lugar requintado, com o é o Tivoli de Copenhague, mas era um espaço verdadeiramente popular, onde uma certa Lisboa e arredores parava nos fins de semana de alguns meses do ano. Por lá havia, para além das simples amenidades habituais deste tipo de locais, alguns restaurantes baratuchos com sardinhas, febras, cervejolas e vinho a jarro, para terminar a sazonal experiência do ó-freguês-vai-um-tirinho? ou do "comboio fantasma". Admito que não tivesse um grande futuro económico à sua frente, mas o seu encerramento o que é que trouxe à cidade, em troca? Apenas o "poço da morte", um espaço vazio. Os responsáveis por essa "obra" estarão contentes? Ninguém diz nada? Será que Portugal entrou mesmo numa irrecuperável letargia? 


sexta-feira, agosto 10, 2012

O canto e as gorjas

As caras não nos eram estranhas, mas não sabíamos de onde conhecíamos aquele casal, sentado, com uma filha, na cálida noite de ontem, na esplanada do Café de Flore, no boulevard Saint Germain. Seria aqui de Paris? Não! Tinham um inconfundível ar de turistas. E, quase de certeza, eram portugueses. Conheciamo-los, embora só de vista. Seria de Lisboa?

Em frente a nós e a eles, um guitarrista, com som e aparelhagem elétrica, tocava e cantava (e bem) algumas canções americanas. Interpretou quatro ou cinco, não mais. E, de imediato, começou, pelas mesas, a recolher umas moedas. Demos conta de que os nossos "conhecidos" estavam furiosos com a parcimónia do espetáculo. Com alguma razão: pouco mais de dez minutos de cantorias e o artista já se dedicava a cobrar o show.

Foi então que ouvimos o cavalheiro, de forma bem clara, comentar, alto e bom som: "Ai! não "tocáides" mais? Atão, não "lebáides" nada de gorjas!". Estava desfeito o mistério: eram de Vila Real! 

quinta-feira, agosto 09, 2012

Decisão

Aquele meu amigo tinha-se decidido. Finalmente. Adiara por meses mas, pressionado pela mulher e pela iminência da mudança de casa, avançou uma noite para os largos metros de livralhada que tinha por lá, disposto a fazer uma severa seleção dos volumes de que, sem a menor dúvida, tinha de ver-se livre, com alguma urgência. O novo local de vida não comportava toda aquela montanha de papel. Dentre as muitas e muitas centenas de livros, revistas, catálogos e tralha do género, havia que proceder a uma escolha criteriosa, afastar tudo aquilo que tinha a certeza que nunca mais leria ou consultaria, coisas já datadas, obras que correspondiam a tempos muito diferentes, definitivamente distantes dos seus interesses atuais. Sentia que, por uma vez, tinha de ser rigoroso consigo mesmo, ser bem realista quanto àquilo que poderia vir ainda a mobilizar a sua curiosidade. Assumira intimamente que não podia, de forma alguma, contemporizar com falsas expetativas de futura disponibilidade de tempo, até por saber que, nesse mesmo futuro, iria comprar novos livros, correspondentes a novas solicitações de atenção. Com os diabos! O passado era o passado! Adiante, pois! Satisfez-se também com a ideia de que, com esse gesto, teria condições de ser generoso com alguns amigos e conhecidos, partilhando com eles algumas obras interessantes que, por aquelas estantes, estavam estacionadas há muitos anos e que continuariam sem préstimo, se as não abandonassem. Confortou-o a ideia de que, por uma vez!, a sua biblioteca podia ter uma nova vida, para além de apanhar pó e bichos. Alguns títulos, pela sua relativa raridade, quem sabe se não poderiam ser bem vendidos, em algum "bouquiniste". Outros podiam mesmo ir parar a bibliotecas, sendo úteis para novos leitores. Entusiasmou-se com a ideia.

Deitou mãos à obra, constituiu pilhas de volumes, segundo critérios que assumiu como lógicos, do ensaio à literatura, das memórias às biografias, das obras de referência à imensa "trivia" que foi acumulando, passando pelos largos "coffee table books" e os livros de fotografias, muitos deles turísticos. Demorou bastante tempo, hesitou muito, repensou opções, para, finalmente, fazer o saldo de todo esse seu esforço, de tudo quanto, em definitivo, estava disposto a libertar-se, para sempre, sem contemplações nem o menor remorso ou pena. E lá pôs de parte... cinco livros!

Contou-me, ontem. Olhava para um livro e lembrava-se de quando o comprara, da ocasião em que começara a lê-lo, do que sentira ou com quem estava nesse preciso momento. Outro recordava-lhe debates fortíssimos em torno de causas que, embora já perdidas ou recicladas, tinham sido muito importantes para si. Aqueloutro tinha-lhe sido oferecido por alguém já desaparecido, da sua vida ou da própria. Títulos havia que, em si, representavam tempos marcantes, que convocavam amigos que, embora do passado, tinha muito presentes. Não havia nada a fazer...

Ouvi esta história com grande compreensão, mas também com uma imensa angústia. Daqui a pouco tempo vou estar na situação deste meu amigo. E, por várias e boas razões, não somos assim tão diferentes! Temo o pior!

quarta-feira, agosto 08, 2012

Dívida

No andar na linha do Estoril onde passava muitos dos seus dias de reforma, o velho diplomata recebia a visita daquele colega mais jovem, que sabia que ocupava um cargo de chefia média nas Necessidades. Era alguém com quem apenas se tinha vagamente cruzado, em algumas escassas ocasiões de trabalho. Dele só tinha, como imagem, a chamada "opinião dos corredores", a qual, num ministério onde as pessoas tendem a viver muito distantes umas das outras, funciona como uma espécie de "processo individual", em permanente atualização por conversas ouvidas. Dessa imagem fazia parte a ideia de que se tratava de um rapaz mais esperto do que inteligente, com uma ambição não ponderada por uma ética exigente e que, até no casamento, não descurara a procura de alguém que o ajudasse a subir socialmente. Nada que fosse novo no tecido humano da "casa", como era bem sabido. Enfim, o velho embaixador estava algo intrigado e curioso com o que iria sair daquele inesperado pedido de conversa.

O colega mais jovem trouxera-lhe, como oferta, uma garrafa de um vinho branco, cuja qualidade elogiou bastante e que esperava que o embaixador apreciasse. Era "lá da quinta", uma subliminar referência a presumíveis origens abastadas, que douram sempre um currículo social em construção. O embaixador pediu à mulher para colocar o vinho a refrescar e, minutos volvidos, ultrapassados que foram os comentários em torno das notícias mais recentes sobre as movimentações na "casa", a conversa foi direita ao tema que o visitante pretendia abordar: ia haver promoções dentro de pouco tempo, os candidatos eram muitos e o jovem vinha pedir ao embaixador se acaso não poderia "deixar cair uma palavra" em seu favor junto do secretário-geral, cuja proposta a fazer ao Conselho diplomático seria, como sempre, decisiva. O argumentário era estafado, embora porventura verdadeiro: estava já há muito tempo em Lisboa, fora ultrapassado "de forma indecente" na última promoção e esta era uma oportunidade para, num prazo razoável, poder vir a obter uma chefia de missão no estrangeiro. Como o embaixador era um amigo de peito do secretário-geral, sabia-se que uma palavra sua - "com o prestígio que o senhor embaixador tem!" - podia fazer toda a diferença.

O embaixador estava surpreendido com o topete do jovem. Afinal, mal o conhecia e tinha tido o desplante de vir meter-lhe uma "cunha", de uma forma tão descarada. Deixou correr a conversa e, sem se comprometer, usando circunlóquios, o velho diplomata divagou um pouco sobre a "carreira", contou algumas histórias (como se sabe, os embaixadores gostam de contar histórias...) e citou casos passados de promoções, bem como de algumas desilusões nas ditas, relativas a colegas conhecidos. Com as artes do "métier", não disse nem que sim nem quem não. E, assim, o jovem atrevido ficou sem saber se, no final, ele faria, ou não, uma "démarche" a seu favor, junto do secretário-geral.

Entretanto, tinha chegado a hora do lanche. O embaixador disse à mulher para trazer um Alcains de qualidade, que um general qualquer lhe tinha oferecido, abrindo, para acompanhar o queijo, a garrafa de vinho branco que o jovem colega lhe trouxera. Mudando de conversa, serviu o vinho, que até nem era mau de todo, embora comentasse que um tinto, ou mesmo um porto, talvez acabasse por ser mais adequado. Por largos minutos, com a conversa já muito longe do tema anterior, o embaixador foi insistindo com o colega mais novo para o acompanhar no esvaziar da garrafa, o que este fez, tomando dois ou três copos.

Fazia-se tarde e despediram-se, sempre sem qualquer compromisso assumido. Regressado à sala, o embaixador recebeu uma leve reprimenda da mulher, pelo facto de, em lugar de ter guardado a garrafa que lhe havia sido oferecida, anunciada como de grande qualidade, para uma ocasião mais própria, tê-la praticamente gasto num improvisado lanche, forçando mesmo o ofertante a beber grande parte dela. Não tinha sido bonito!

O embaixador riu-se e a mulher só veio a perceber que, no gesto do marido, tinha havido alguma especial intenção quando este lhe disse: "A garrafa? Não quis ficar a dever-lhe nenhum favor. Na saca a trouxe, na barriga a levou"...

Doidos

Os critérios de arquivamento, quando o há, são diferentes, mas, em todas as embaixadas, existe o que, na linguagem vulgar da "carreira", se chama a pasta das "cartas dos doidos". É uma correspondência muito variada, quase sempre não dirigida nominalmente ao embaixador, muitas vezes escrita à mão, outras à máquina (antiga), ainda raramente (mas começa a aumentar) por via informática. Quase sempre assinadas, diferenciando-se, por aí, das regulares cartas anónimas (neste caso, umas prenhes de cobardia, outras temerosas de consequências), as "cartas dos doidos" tanto podem alertar para teorias conspirativas e catastróficas (os malefícios dos "poderes ocultos" são muito vulgares) como carrear ideias ou propostas bizarríssimas, geralmente "geniais" (algumas que, alegadamente, não progridem por via das tenebrosas conspirações que contra elas se convocaram), as quais, no entender dos subscritores, as embaixadas e os países que elas representam teriam toda a óbvia vantagem em "aproveitar". Algumas dessas cartas, chegado o fim da sua leitura, não se percebem de todo. Resta dizer que, normalmente, quem as assina não é português. Nos serviços que de mim dependeram, e salvo casos limite, houve sempre instruções para ser elaborada uma resposta amável, embora dissuasória de correspondência futura.

Depois de décadas desta vida, devo dizer que tenho pena de não ter colecionado alguns espécimens deste tipo de correspondência, em particular para tentar perceber melhor o que de apelativo se encontra numa representação diplomática para a tornar alvo preferencial deste género de iniciativas.

Ontem, recebi uma dessas cartas. Não divulgo o seu conteúdo porque, por menor que seja o crédito que ela nos mereça, temos de preservar respeito por quem a endereçou, com cuja eventual perturbação psicológica não temos o direito de brincar.

A face exterior da América

Comecemos pelo óbvio. Os americanos, nas suas escolhas eleitorais, mobilizam-se essencialmente pela agenda do seu quotidiano interno. Nestes...