Leio que a viagem do presidente da República à China vai ser coroada por um punhado de acordos. É da tradição diplomática aproveitar este tipo de deslocações para firmar alguns instrumentos negociais. Nem sempre os acordos são de natureza jurídica vinculativa. Muitas vezes não passam de meros protocolos de intenção ou de cooperação, mas é de praxe dar-lhes o estatuto geral de "acordos". Esgotado já muito do espaço para os acordos Estado-a-Estado (a pertença à União Europeia desviou muita da competência nacional nas áreas económicas), grande parte desses textos acabam por ser subscritos por responsáveis de entidades públicas, ou mesmo privadas, normalmente em cerimónias finais, sob a tutela, em fundo para a foto, dos chefes das delegações.
Não é segredo para ninguém que, muitas vezes, e literalmente, esses textos não chegam a sair do papel. Mas, outras vezes, acabam por ter sucesso, abrem portas, em particular se estivermos em face de países em que a vontade das entidades políticas pode ter uma voz decisiva em certas decisões empresariais. Como é o caso da China.
Há umas décadas, integrei a delegação de um membro do governo português a um determinado país do norte de África. A visita fora preparada com alguma rapidez, as relações bilaterais no plano político estavam longe de estar desenvolvidas e o propósito essencial da nossa deslocação era muito específico. Não havia, assim, nenhum acordo para assinar.
Durante a reunião de trabalho do governante português com o seu homólogo local, este último inquiriu sobre se não havia nenhum acordo para ser subscrito. Murmúrios de ambos os lados da mesa confirmaram que não. O governante local não se mostrou conformado. (Recordo uma história similar que contei um dia
aqui). No dia seguinte, a visita terminaria com uma conferência de imprensa e não "parecia bem" que a ocasião não fosse coroada com a assinatura de um qualquer texto. Mas o quê?
Pelos mais de três anos que passara na Direção-geral dos Negócios Económicos do MNE, eu tinha uma grande experiência de "produção" de acordos na área económica. Nesse período, subsequente ao 25 de abril e num tempo de alargamento da nossa rede de relações bilaterais, muitos instrumentos jurídicos haviam sido firmados com dezenas de países - no meu caso, da África, Ásia e Oceania. Assim, e não sem algum gozo, disse que não teria dificuldade, se o chefe da delegação portuguesa assim concordasse, em gizar, com um colega desse país, o texto de um "Acordo geral de cooperação económica, científica e técnica". Esses eram os chamados "acordos-quadro", uma espécie de declarações de intenção, na base dos quais se poderiam estabelecer, mais tarde, outros instrumentos mais específicos e até vinculatórios. Os "acordos-quadro" eram tão genéricos e inóquos que não havia o menor risco de incluir, como seu último artigo (e cito de cor): "Este acordo entrará provisoriamente em vigor na data da sua assinatura e, definitivamente, na data em que ambas as Partes concluírem a troca dos instrumentos de ratificação que confirme estarem cumpridos, em cada uma delas, os requisitos constitucionais que lhes são próprios". Raramente um acordo bilateral foi "produzido" tão rapidamente... Feito de "retalhos" de acordos similares que o arquivo do MNE desse país tinha em carteira, fui criando o texto, com um simpático colega desse país, à medida daquilo que sabia ser-nos aceitável. E, no último dia da visita, lá se assinou o "importante" texto, que, como seguramente salientado por ambos os governantes, consagrava "as excelente relações bilaterais entre os dois países". O que até era verdade...
Cerca de uma década depois regressei a esse Estado, nessa altura já na qualidade de "governante". Fui informado que havia um acordo para assinar, que vinha a ser negociado há meses. Já nem sei bem do que área técnica se tratava. Mas, ao lê-lo, não pode deixar de fazer largo sorriso. É que, do preâmbulo do novo acordo, constava expressamente: "Portugal e "o país tal", no âmbito do previsto no artigo "tal" do Acordo geral de cooperação económica, científica e técnica firmado em "tantos de tal", acordam em estabelecer um protocolo no domínio...". Lá estava a referência ao "meu" acordo! Ainda estará em vigor?