Ambos tinham entrado, há muito, na casa dos 80. Ele estava de cadeira de rodas, no hall daquele hospital, a caminho de uns exames, que pressenti complicados. Ela, menos limitada, arrastava-se contudo com alguma dificuldade, embora no comando das operações familiares. Eram ambas pessoas com uma certa posição social. Isso ficou evidente na longa identidade do marido que, com orgulho, a senhora declinou ao balcão. A burocrática redução ao primeiro e último nomes, vocalizada em resposta pelo empregado, se bem que necessária, foi algo cruel, à vista e ouvido dos circunstantes.
A senhora sentou-se perto de mim, com o marido na cadeira de rodas, ao seu lado. Ele não parava de dizer-lhe coisas ininteligíveis. Ela respondia-lhe em voz alta, ao ouvido débil, para o aquietar. A certo ponto, ouvi-a dizer-lhe: "Está calmo. Lá iremos daqui a pouco para casa, descansa!". Mas ele continuava inquieto, tremendo, abalado sei lá por que doença, frágil e de fácies amarelo. A senhora olhava, ansiosa, a chamada da senha no quadro eletrónico, de cada vez que se ouvia um sinal sonoro. A certo passo, a uma nova questão do cavalheiro, ela passou-lhe discretamente a mão pela cara, numa festa pudica, de quem tem o pejo social de assumir, em público, gestos de ternura, e disse: "Sozinhos? Não, não estamos sozinhos. As pessoas como nós nunca estão sozinhas!". E olhou em volta, com uma altivez que os cabelos prateados e os traços de uma beleza passada lhe autorizavam. Mas ninguém notou esse olhar seguro. As caras estavam mergulhadas em telemóveis, muito sozinhas.
Qualquer que fosse o real significado da frase proferida por aquela senhora, achei curioso o que me pareceu ser uma interessante expressão de orgulho. Pensava nisto, quando o quadro eletrónico chamou pela minha senha.
8 comentários:
Solidários viajantes de uma vida."They are a couple"- bonito poema de Carl Sandburg.E uma magnífica fotografia.Comovo-me,deve ser da idade,como diria Ruy Belo.
também me comovo e também deve ser da idade
João Vieira
gostei tanto deste seu post.
obrigada pela partilha,
anonima
Ao meu ver, julgando pel idade e estado de dependência e solidão, ela referiu-se à velha frase quase profética: "estamos com Deus!"
Para mim pareceram-me apenas o que se dizia aqui há alguns anos: Um casal de pessoas "bem nascidas".
belo texto.
Aconselho a visão do filme "la giovenneza" (Youth) de Paolo Sorrentino.(2015)
Muito comovente. A sensibilidade posta na descrição fez com que me sentisse como se estivesse naquela sala, a vê-lá.
Sim, mas a solidão podia ser a do observador...
Nem sempre as pessoas com mais idade são solitárias, têm as suas crenças as suas certezas, os seus companheiros de sempre, sem dúvidas ou evasões...
Interessante o seu imaginário, tanto como a descrição que, é sua, bem descrita, não me comoveu talvez por cansaço e deformação profissional.
às vezes dou por mim também a ter "pena" dos que cuidam e também precisam de ser cuidados independentemente já de diferenças de género.
Mas o seu texto como sempre bem bonito.
Está doente?
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