domingo, janeiro 29, 2017

Ai Carmela!


As ideias são como as cerejas. Ao ler, há pouco, um comentário de Jaime Nogueira Pinto sobre Carmen Franco (a detestada Carmela), mulher de Francisco Franco, no seu livro sobre cinco ditadores europeus, veio-me à memória um dia, há uns anos, em que entrei numa casa de venda de CD nas Ramblas, em Barcelona.

Andava então à procura de canções da Guerra Civil espanhola, entre as quais versões da famosa "Ai, Carmela", mas também era comprador de cânticos fascistas, embora tivesse já diversos "Cara al sol!", "El camarada" e "Falangista soy!"

(Aos saudosos das ditaduras ibéricas, recomendo irem almoçar à marisqueira "Casa Olga", em La Guardia, na Galiza, onde a dona trauteia pelas mesas o hino franquista "Cara al sol". Por contraste, faz-me lembrar a "roja" mulher espanhola do Gil, comunista dono da "Casa dos Frangos", em Colares, que, nos tempos da outra senhora, cantarolava o "Ai Carmela!" quando passava junto de mesas com gente "de confiança")

Coleciono músicas ligadas à história revolucionária (e reacionária). Meses antes, em Milão, com a ajuda da minha colega Josefina Carvalho, havia descoberto algumas preciosidades do cancioneiro popular do fascismo italiano, que complementavam lindamente uma coletânea de sinal contrário que adquirira antes em Roma (com o magnífico "Bandera Rossa" em destaque). O João Lima Pimentel nunca me copiou umas coisas germânicas "hard" de que é orgulhoso possuidor, e que eu prometi trocar por excelente coros do Exército soviético com que, por vezes, me delicio. Em Paris, guardei muita canção da Resistência, embora tenha ficado com a sensação de que Pétain, Laval e o pessoal de Vichy não foram muito inspiradores neste domínio. Cá por Portugal, tenho uma coleção (que acho) imbatível das canções do 25 de abril e, claro, toda a parafernália dos hinos do tempo do Estado Novo, do "Hino da Mocidade" ao "Angola é nossa".

Mas voltemos às Ramblas. A casa de discos não era muito grande (é ou era à direita de quem desce), mas, por qualquer razão, talvez porque nenhum lugar de Barcelona é mais icónico (palavra que, com "viral", está conjunturalmente em moda) quando se fala do conflito fratricida que (até hoje) dividiu a Espanha, achei adequado fazer a compra naquela avenida. Caramba! Para um ex-sonhador como eu, ainda por ali passava o Orwell (não o do "1984", tão popular nas últimas horas, mas o da "Homenagem à Catalunha").

O rapaz que me atendeu tinha ar de ter nascido já depois de Franco ter mandado assassinar o catalão Puig Antich pelo garrote.

- Tem músicas da Guerra Civil?

O tipo olhou para mim com estranheza.

- De quê?

- Da Guerra Civil? Dos que eram contra Franco. E também dos fascistas.

Voltou-se e, num catalão compreensível, sintetizou a minha pergunta para o compartimento das traseiras, com ar de quem estava a falar de coisas de Marte (e estava, sem o saber, numa perspetiva romana). Dali saiu um cavalheiro, com uma década a menos do que eu na idade, com um fácies fechado.

- Já não temos dessas coisas.

- "Já"? Quer dizer que já teve?

O homem sorriu um pouco, mas não muito.

- A música agora é outra.

Até hoje fiquei sem perceber se era legítimo ter feito uma leitura não linear da frase.

("For the record", consegui depois, noutro local, o que queria. E ainda há pouco ouvi, com perdão dos ouvidos/olhos mais sensíveis: "La mujer de Paco Franco/No cocina con carbón/Pues cocina con los cuernos/de su marido el cabrón/ai Carmela! ai Carmela!") 

9 comentários:

Anónimo disse...

Canção dos "paredes de vidro" em 74:

"Um gaivota voava, voava a filha ** **** nunca mais se calava.....

Anónimo disse...

Anos houve em que jantávamos,um largo grupo, na Casa dos Frangos em Galamares e cantávamos em coro o Aí Carmela. Já agora Lá Guardia mudou o nome para o galego A Guarda. É o que diz o dístico a entrada é "mais" nosso e recupera depressa.
Fernando Neves

Anónimo disse...

Não é "La Guardia", é "A Guarda". É o nome em galaico-português. O nome oficial das terras galegas é em galaico-português.

Tiques de "amigo da Espanha", já se vê...

Luís Lavoura disse...

em La Guardia

Chama-se A Guarda e diz-se na Guarda.

António Pedro Pereira disse...

Caro Senhor Embaixador:
Certamente terá, pelo menos conhecerá.
Mesmo assim aqui fica.
Ah, ça ira, ça ira, ça ira
https://youtu.be/-srLjMRjoVI

Anónimo disse...

Tambem recordo com saudades a Casa dos Frangos" e o amigo Gil e familia. Nao ouco "Ai Carmela" ha muito tempo, se nao me engano desde que vi o filme de Ken Loach Land and Freedom".

Nunca visitei Barcelona e tenho muita pena. Talvez ainda, um dia, quem sabe? So tenho imagens de fotos, filmes (The Passanger de Antonioni)com Maria Schneider vagueando, semi perdida, encontra/desencontra Jack Nicholson. Enquanto espero, quando posso e encontro, bebo uma "Estrela" fresquinha. Li algures que mais uma vez os locais estao fartos do barulho dos turistas rambla acima, rambla abaixo. Mas pode ser boato. Boatos e que mais ha nestes tempos...

A terminar e lembrando "Ai Carmela" nao sei se alguma vez ouviu uma alternativa ao Hino Nacional Espanhol, alegadamente cantado por republicanos e que seguia mais ou menos assim: "O Rei Afonso XIII e feio como um bode e a Rainha Vitoria nao e com ele que f***". So ouvi relatos, nao estive la.

Ha pouco li os obituarios de dois magnificos actores que fazem muita falta - John Hurt e Emanuele Riva. Um leitor do Guardian pedia a BBC para passarem "Hiroshima Mon Amour". OXALA

Saudades

F. Crabtree

Reaça disse...

Todos sentimos muito mais simpatia por aqueles que levaram mais porrada e morreram na praia.

Mesmo que não sejam os mais simpáticos.

Não é o caso de golias e davide, por exemplo.

Mas já é caso de abel e caim.

Volta a ser o caso de lenine e o nicolau.

Mas sobre canções emblemáticas temos o inesquecível Soldado na Trincheira do Miúdo-da-Bica.

alvaro silva disse...

Eu por cá bem tenho procurado as canções da minha adolescência e juventude que me marcaram, são elas : "os canhões de Goa e as bombardas de Diu" e o "bacalhau tenrinho bacalhau Tenreiro". Se alguém souber onde se vendem que faça o favor de me informar pois também sou comprador.

Reaça disse...

Afinal em Peniche vai ser respeitada a memória de Salazar, parece que não aprovam aquela de fazer um hotel daquilo que ele fez uma prisão política.

Nem seria a vontade do homem que ficasse esquecida a sua lição, porque seria improvável aparecer um clone.

É bom não perder a memória, porque uma reciclagem seria sempre pior.


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