quarta-feira, outubro 19, 2016

Os princípios do Peter


Peter é um cozinheiro austríaco. "Herdei-o" do meu antecessor, João Lima Pimentel, quando vim para Viena, em 2002.

Era uma figura curiosa, avantajada, com forte bigodaça, fumador compulsivo, homem bastante nervoso e agitado. Mas uma jóia de pessoa. Falava uma mescla de inglês macarrónico misturado com espanhol, aprendido com as duas peruanas que a embaixada tinha ao seu serviço.

Tinha tido um restaurante, mas a sua vida dera algumas voltas inesperadas e menos felizes. Um dia, num jornal, através de um anúncio, veio parar à residência portuguesa, recrutado pelo meu predecessor. Ficou por lá 15 anos, até se aposentar.

Era um profissional de primeira água. Tinha mais de um milhar de menus diferentes e era preciso pedir-lhe a repetição de um prato, caso contrário inventava sempre algo de novo. Uma sua especialidade eram os doces, para mal eterno da minha glicose.

No meu último dia de serviço em Viena, há quase 12 anos, eu havia dito à minha mulher que gostava de ir jantar fora. Estava cansado da trabalheira que sempre é "fechar" um posto e queria espairecer um pouco. O Peter moveu montanhas para me dissuadir. Disse que tinha preparado algo especial para a nossa derradeira refeição. Pronto, lá teria que ser!

À hora de jantar, notámos que a mesa parecia posta para um banquete. Isso contrastava um tanto comigo, à vontade e de jeans, bem como com o ambiente do resto da casa, toda num reboliço de malas e empacotamento.

Começávamos a refeição quando ouvimos uns ruídos na zona da entrada. Foi-nos dada uma explicação qualquer e o jantar prosseguiu com normalidade. Até ao momento em que, da sala ao lado, saiu um som musical. De violino. E não era um, eram cinco violinos, um grupo que o Peter tinha recrutado numa escola de música, uma oferta sua para acompanhar o último jantar que nos preparava.

E foi então que ele próprio entrou na sala, fardado a rigor, com os olhos cheios de lágrimas, naquela língua de Babel, explicando, num discurso embargado, que tinha sido seu desejo despedir-se de nós com aquilo que a cultura do seu país tinha de melhor: a música. Todos nos comovemos.

Eram esses os princípios do Peter, um amigo austríaco que ganhámos.

9 comentários:

Anónimo disse...

O Peter era de facto um extraordinário artista. Não há muitos assim por essas Enbaixadas fora.

JPGarcia

Tété disse...

Hoje ouso comentar porque me sensibilizou muito a atitude do "seu" Peter. Independentemente do seu talento culinário conseguimos descortinar um coração de oiro e um verdadeiro sentido de dedicação.
Quem dera que ao longo da nossa vida profissional, e não só, conseguíssemos encontrar muitas pessoas assim.
Os meus cumprimentos
Teresa

Anónimo disse...

História bonita e de reconhecimento. Contudo, confesso que me faz sempre imensa confusão quando me falam e quando visito residências portuguesas com staff e chefe de cozinha permanentes. Em São Paulo, além do Consulado que é uma bela casa localizada na região mais cara de São Paulo, existe ainda uma residência de dimensão semelhante e no mesmo bairro. Não somos um país rico, despesismos deste nível apenas servem de chacota e reprovação por parte de países bem mais ricos e, em muitos casos, nossos credores. Uma parolice além de tudo o mais.

Anónimo disse...

Muito interessante esta história do Sr. Peter! Quanto a outras histórias do "Princípio de Peter", a nossa política está cheia deles, nem seria necessário fazer grande escolha...

Unknown disse...

A nossa embaixada tinha duas funcionárias Peruanas???????

Francisco Seixas da Costa disse...

Carpo Sérgio Serrano. Claro que sim. Qual é o problema? Nunca recrutei nenhum empregado doméstico para nenhuma das residências onde vivi quando fui embaixador, "herdando" sempre o pessoal que já lá estava. Tive filipinos, beninenses, peruanos, austríacos, brasileiros, moçambicanos, equatorianos e indianos. Nunca encontrei nenhum português, mas há várias embaixadas onde eles existem no pessoal doméstico. Mas é uma simples questão de mercado e do nível de salários.

Unknown disse...

Fiquei esclarecido. Não me interprete mal foi apenas curiosidade.

Adelo disse...

Convirá dizer que esse tal "pessoal doméstico" são trabalhadores ao serviço do Estado Português nas residências oficiais do Estado. Não são criadas e criados contratados (e pagos) pelos sr@s embaixador@as.

Francisco Seixas da Costa disse...

Adelo: quem disse o contrário? Leia o que exoliquei a Sérgio Serrano.

João Miguel Tavares no "Público"