segunda-feira, agosto 15, 2011

Cosmopolitismo

Não é a primeira vez que, em alguns comentários a este blogue, recebo remoques pelo facto de utilizar palavras ou expressões estrangeiras, que vulgarmente identifico entre aspas. Devo dizer, desde já, que eu próprio me não sinto muito confortável com o recurso regular a esses termos. A realidade, porém, é que há determinados conceitos que me parecem tão bem sintetizados e tipificados em algumas línguas estrangeiras que reconheço que me dou frequentemente ao luxo de não ter de procurar, para eles, um equivalente em português. Aceito ser esta uma óbvia fragilidade, mas é também o preço de ter de optar por uma escrita rápida, imediata, que permite um ritmo diário de posts, sem grande burilamento ou beleza estilística.

Na vida diplomática, o recurso a expressões estrangeiras - principalmente inglesas, mas também francesas - faz parte do nosso dia-a-dia, o que, naturalmente, marca o discurso corrente e acaba por aparecer, de forma quase abusiva, em todas as apresentações que fazemos. Acredito que este meu "defeito" venha daí.

A este respeito, recordo-me de uma história, de que hoje não me orgulho muito, não tanto pelo facto em si, que até foi divertido, mas principalmente pela circunstância do meu interlocutor ter já, infelizmente, desaparecido.

A cena passou-se na comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República, creio que logo no final de 1995. Como responsável governamental pelo setor, eu estava a ser interpelado sobre dossiês que estavam em discussão em Bruxelas. Tinha feito uma intervenção inicial de, creio, cerca de meia-hora e ouvia as questões que, de seguida, me estavam a ser colocadas pelos deputados.

O deputado do PCP, Lino de Carvalho, para além das normais críticas oposicionistas à política do governo que eu ali simbolizava, disse algo parecido com isto: "O senhor secretário de Estado, nesta sua intervenção, mostrou alguns desagradáveis vícios de cosmopolitismo, recorrendo, com frequência, a expressões estrangeiras. Em poucos minutos, contei uma boa dezena delas, como "phasing-out", "leftovers", "acquis", "leverage" e outras do género. Eu sei que a profissão de V. Exa. conduz a um convívio intenso com o estrangeiro, mas devo dizer-lhe que acho lamentável estes excessos de cosmopolitismo. A meu ver, um representante governamental português tem a obrigação de vir para aqui falar exclusivamente a sua língua aos seus deputados".

Eu era um novato nas lides parlamentares e achei que, no contexto de um debate em "petit comité" (lá estou eu a usar expressões estrangeiras...), que decorria de forma solta e descontraída, me poderia permitir uma graçola política. Só que, como irão ver, o tiro saiu-me pela culatra.

Assim, interrompi o deputado, cuja intervenção ainda não tinha terminado e, pedindo autorização ao presidente da comissão, que creio que era o José Medeiros Ferreira, disse: "Eu quero pedir perdão ao senhor deputado pelo uso excessivo que fiz de expressões estrangeiras. Com efeito, reconheço que incorri num condenável vício de cosmopolitismo. E sei que isso toca fundo no património de memória do partido que V. Exa. aqui representa, o PCP. Com efeito, todos recordamos bem que, nos "processos de Moscovo", Estaline fez condenar à morte, por crimes de cosmopolitismo, muitas pessoas. Vou, assim, tentar conter-me, futuramente, na utilização de expressões estrangeiras".

O que eu fui dizer! Lino de Carvalho, com o ar grave que a sua barbicha leninista lhe conferia, sentiu-se ofendido com a minha intervenção, considerou-a "provocatória", "arrogante" e "insultuosa". E o agravamento do ambiente que o incidente projetou sobre a sessão, que até aí decorrera morna e sem polémicas, fez com que os sorrisos que a minha graçola inicialmente provocara se transformassem numa sólida, se bem que silenciosa, solidariedade parlamentar, em apoio à honra ofendida do colega deputado, como era patente na expressão facial coletiva à volta da mesa. Mesmo nos deputados que apoiavam o governo que eu ali representava denotei um visível incómodo com o insólito da situação criada.

Não me recordo como tudo acabou, mas tenho claro que falei, mais tarde, com Lino de Carvalho, junto de quem procurei justificar-me. A partir de então, e com o tempo, as nossas relações acabaram por normalizar-se e, nos anos que se seguiram, tive-o por um interlocutor muito sério e sabedor sobre questões de agricultura europeia. A sua morte deixou saudades no nosso parlamento e o nosso bate-boca fez-me aprender uma bela lição. 

8 comentários:

Anónimo disse...

EXCELENTE !!!
Dou-lhe os meus Parabéns, Senhor Embaixador !

anamar disse...

"cosmopolitismos" ou estrangeirismos, sempre existiram..
use e abuse ,pois.
Fugir dos pur(ismos)
:)).
Boas férias, e, o que se poderia esperar de um diplomata????

Helena Sacadura Cabral disse...

Ó Senhor Embaixador não perca esse seu cosmopolitismo.
Todos dizem sexy e ninguém se ofende.Na tradução, não sei não...

margarida disse...

E disse alguma mentira? Não. Pena é que às vezes tantos punhos de renda acabem por camuflar a realidade que deveria ser assumida.
Os cavalheiros (e damas) mais à esquerda são todos muito boa gente, mas o que defendem é tenebroso.
É uma das nossas idiossincrasias, ter tanta ala 'gauchiste' (oops) na Assembleia.
Quanto ao tema em si mesmo, apesar de tudo, prefiro estrangeirismos a esta 'nova' ortografia.

A.Teixeira disse...

É de registar e comprimentá-lo pela humildade como narra o episódio.

Quanto ao aspecto do seu cosmopolitismo, dando a minha opinião com a mesma humildade que deu mostras, uma coisa são os trabalhos de uma comissão da AR outra o seu blogue.

E quanto a Lino de Carvalho, quantas saudades deve ter deixado na AR de intervenções idênticas à que teve consigo, a começar, por exemplo, pela presença ali de Zeinal Bava em Março de 2010 conforme se pode apreciar no link abaixo:

http://www.youtube.com/watch?v=XcnXMyGS0Xo

Helena Sacadura Cabral disse...

O caro A. Teixeira fez lembrar um episódio tão ridículo que ainda hoje me lembro dele. Nem eu economista consegui acompanhar tamanho jargão!

patricio branco disse...

os purista da lingua são por vezes fundamentalistas, lembro-me de que um professor me dizia que não devia usar a palavra "detalhes" mas sim pormenores. Nunca lhe dei atenção.
Hoje, com a linguagem tecnica internacionalizando.se é dificil evitar palavras importadas. Como não dizer clicar em português?

a resposta ao deputado do pcp foi forte e talvez não medida. Moscovo é uma coisa, mas estrangeirismos na lingua é outra coisa. Por alguma razão, não há (não conheço) estrangeirismos internacionais de origem russa, alem de uma ou outra que já não se usa, por já não haver URSS (nomenklatura, datcha).
Tambem não está mal um politico ou membro do governo responder forte, desde que não haja falta de respeito.
Cosmopolita/ismo é uma palavra vaga que pode servir para muito. Em portugal, porem, é a palavra coisa a que mais se pode usar para designar tudo o que nos apetecer.

Anónimo disse...

Pois!...

A prova provada que nem sempre a primeira versão prevalece...
Além de que gostei da reflexão
Isabel seixas

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