sexta-feira, fevereiro 14, 2014

Sovinice

Despedidos os visitantes, até ao jantar que iria ter lugar na residência, o embaixador regressou ao seu gabinete na chancelaria daquela pequena embaixada perdida no mundo. A mesa em que tivera lugar a reunião estava em alguma confusão. Pequenas notas garatujadas, deixadas para trás pelos participantes, já sem préstimo. Uma folha de A4, cuidadosamente escrita, bem caligrafada, permanecia, contudo, frente ao lugar que fora ocupado pelo ministro. Seria algo importante? O embaixador, curioso, decidiu-se ler o que nela estava escrito. Podia dar-se o caso do papel ser necessário ao governante, para a reunião com o seu homólogo, no dia seguinte. Nesse caso, entregar-lha-ia antes do jantar.

Ao lê-la, ficou hesitante. Na folha havia pequenos apontamentos, com os temas da agenda, seguidos de comentários sintéticos, do tipo "imp" ou "ok" ou "ver com atenção", com alguns pontos de interrogação pelo meio. Não parecia um papel imprescindível. Uma nota, dentro de uma "caixa", no verso da folha, chamou a sua atenção. Era de diferente natureza. Eram as "compras".

Nesse tempo, ir de Portugal ao estrangeiro significava poder encontrar uma oferta comercial diferente ou a melhores preços, razão pela qual quem se deslocava optava por efetuar a aquisição de certos produtos, normalmente nos "free-shops" dos aeroportos. Isso era muito vulgar no caso dos perfumes. E, no caso, lá estavam eles: para a mulher um "Cacherel", para o pai um "4711 ", para um nome de senhora não identificado, talvez uma filha, um "Miss Dior". E, na última linha, uma quarta lembrança, com nota bem sublinhada: "Secretária - água de colónia - barata!"

O embaixador decidiu-se por não devolver a lista de compras. Não lhe apetecia que o ministro o viesse a ter por cúmplice silencioso da sua "shopping list" e, em especial, da sua sovinice.

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Globos


                                                   
Londres tem das lojas mais interessantes do mundo no que toca a globos. Quando por aqui vivi, recordo uma dessas casas, perto de Crystal Palace, que era tão snobe que tinha um letreiro a avisar que não admitia visitantes que quisessem entrar "just to take a look". Só "serious business".

Ontem, ao olhar, também em Londres, para uma outra montra com globos, recordei a importância que para mim teve um pequeno globo metálico, com os países identificados a cores, que havia na casa onde vivi a minha infância, com os meus pais e os meus avós. O globo rodava num suporte de que eu muitas vezes o tirava, para o que tinha de achatar os polos, para constante irritação das pessoas mais velhas. O meu tio Fernando, que vivia lá em casa em férias, foi o grande responsável pela minha educação na geografia política e étnica, ensinando-me onde havia índios e cowboys, onde viviam os pretos (deixemo-nos de eufemismos, era assim que se falava nos anos 50), qual era a terra dos "chineses de olhos em bico" e outras caricaturas do género, que me foram ajudando a imaginar o que ia por esse mundo fora.

Desde muito miúdo que eu apontava para o Egito quando me perguntavam "onde é que há as pirâmides", mostrava os desertos no Sahel (na altura, só se falava no Saara), a terra dos esquimós, a bota que era a Itália e o canal do Panamá. Também por via dessas descrições, criei uma ideia menos simpática do cabo das Tormentas que o meu pai me ensinou a identificar, com histórias do Adamastor, no desenho da viagem das caravelas para a Índia e mais além. A linha do Equador foi, para mim, um traço mítico que separava dois mundos (aliás, o próprio globo lá de casa era desmontável em duas calotas hemiesféricas, que se encaixavam, precisamente no equador), mas nunca ninguém, à época, me conseguiu explicar convenientemente o interesse dos trópicos de Câncer e de Capricórnio (e a verdade é que eu só leria Henry Miller bem mais tarde...). Mas cedo soube de cor onde estavam situadas todas as "províncias ultramarinas" e, recordo bem, o facto de me terem dito que a Nova Zelândia se situava "do outro lado" do mundo levou-me a inquirir por que razão se não fazia um túnel para lá... Os pólos, a norte e a sul, pintados a branco, nunca me seduziam por aí além, talvez porque Trás-os-Montes já era demasiado frio para o meu gosto.

As lições de geografia que, com o globo, eu recebia foram, com o tempo, complementadas com um mapa da Europa em que alguns países eram simbolizados por animais e outras figuras. Nele, a Rússia, lembro-me bem, era identificada por um imenso urso. Já não tenho na memória, mas imagino que o Reino Unido (a Inglaterra, como então se simplificava) devesse ter um John Bull a representá-la e a Holanda (país que me habituei a respeitar muito, por me terem dito que vivia abaixo da linha do mar  o que sempre me impressionou) pelo inevitável moínho, rodeado de tulipas. A perceção do resto do mundo era então também ajudada pela coleção das "Raças Humanas", com fotografias coloridas de caras bizarras, que cedo comecei a colecionar. E os desenhos do "Cavaleiro Andante" faziam o resto do trabalho. Vieram, por fim, os selos, que me ajudaram a perceber ainda melhor o mundo, com as subtilezas políticas de cidades como Tânger, Trieste ou Dantzig (hoje designada por Gdansk). O "meu" mundo foi assim criado e, com ele, foi-se gerando em mim alguma vontade em conhecê-lo. Mal eu sabia, à época, que a vida me iria dar o ensejo de o frequentar com alguma extensão e assiduidade.

Ainda se oferecem globos às crianças? Se não, é pena!

quarta-feira, fevereiro 12, 2014

António Capucho

Um abraço a António Capucho, lembrando Aires Rodrigues, Zita Seabra e Galvão de Melo.

A democracia tem, às vezes, estes dias tristes.

Joseph Crabtree

Estarei hoje presente num jantar no University College, em Londres, reunindo os cultores da memória de Joseph Crabtree. Desde 1954, existe na capital britânica a Crabtree Foundation, que congrega um grupo de cerca de 400 cidadãos que, uma vez por ano, na terceira quarta-feira de Fevereiro, se reúnem, numa solene refeição para a qual é obrigatório o uso de "smoking", para ouvir um deles falar de um dos diversos aspetos das extensas vida e obra de Crabtree.

Segundo os anais, Crabtree terá vivido exatamente um século - de 1754 a 1854. O seu percurso é o de um personagem quase renascentista, tendo sido escritor, viajante, político e uma multiplicidade de coisas mais, como os tempos recomendavam. Poemas por si assinados apareceram publicados em antologias de poesia inglesa. A admiração por este destino de eleição levou à gestação de um verdadeiro culto intelectual àquela figura, a que eu próprio acabei por não ser insensível.

Desde 1992, passei a ser um dos muito escassos "scholars" estrangeiros da Crabtree Foundation (não somos mais de uma dezena, entre centenas), para onde entrei então pela mão do Bartolomeu Cid dos Santos, com quem lancei as bases, com o Helder Macedo e o Luis de Sousa Rebelo, do "Portuguese chapter", que, há uns anos, realizou no Hotel Lawrence, em Sintra, um encontro dedicado a "Crabtree e Byron". E que proximamente vai ser revitalizado. Há dois anos, coube-me a honra de presidir à Fundação durante um ano, incluindo o jantar anual em Londres e nele anunciar o meu sucessor (escolhi uma sucessora) e designar o orador para o ano seguinte.

De Lisboa, Nova Iorque, Viena e até de Brasília, tenho procurado deslocar-me, com a regularidade possível, a esses jantares anuais em Londres. Em ocasiões passadas, fui de Paris. Agora, desloquei-me de Lisboa. "The great Man", como é saudado no brinde inicial, que anualmente é feito em frente do seu retrato (na imagem), e a sua fantástica obra merecem-no bem.

O leitor, menos familiarizado com estas coisas, talvez possa ter tido o azar de não estar informado sobre a insígne figura de Joseph Crabtree. Por isso, se estiver interessado, pode ler as "The Crabtree Orations", vol I (1954-1994) e vol II (1995-2004), ed. Brian Bennett & Negley Harte, The Crabtree Foundation, London, 1997 e 2004. Esses volumes acolhem aspetos da vida e obra de Crabtree, anotados através das conferências que figuras eminentes sobre ele produziram. Talvez me tenha escapado neste texto um pequeno, mas quiçá despiciendo, pormenor: Joseph Crabtree teve um contacto pouco intenso com a vida. Não tenho pejo em reconhecê-lo. Mas daí a poder dizer-se, como alguns insensíveis afirmam, que Crabtree nunca existiu vai uma distância equivalente à que separa a insídia do mito. Francamente!

terça-feira, fevereiro 11, 2014

Incoerência

O conceito é antigo, tem mesmo uma significação que não é alheia à religião. Nas décadas mais recentes, a palavra "subsidiariedade" tem andado um tanto na moda, querendo significar que, nas hierarquias e nas estruturas dos Estados, as decisões devem ser tomadas ao nível mais baixo possível, sem perda e até com ganhos de eficácia, evitando a tradicional tutela "top-down", aproximando assim o poder decisório dos cidadãos.

Na vida das instituições europeias, o conceito tem os seus momentos de glória, erigindo-se como orientação em muitas políticas e práticas comunitárias, evitando acusações de as estruturas bruxelenses querem tratar de tudo, em detrimento dos poderes nacionais e até regionais. Nem sempre, contudo, por boas razões. Algumas vezes, a aplicação estrita do princípio tende a desresponsabilizar as entidades de topo, através de uma demagógica descentralização que pode ter efeitos de agravamento das desigualdades entre os Estados. Por isso, em determinados contextos, Portugal e outros Estados chegaram a opôr-se, e bem, a formas perversas de utilização do princípio.

Nesse contexto, era o caso. Aquele ministro português, num ano já longínquo, no "briefing" que lhe foi feito pelos diplomatas e técnicos que trabalhavam na nossa representação junto da instituições comunitárias, em Bruxelas, tomou boa nota da posição que lhe era aconselhada para a sua intervenção no conselho de ministros europeu, que teria lugar no dia seguinte. E não colocou quasquer objeções à proposta de rejeição do conceito de subsidiariedade naquele contexto específico.

A grande desvantagem dos "briefings" feitos de véspera, pela minha experiência pessoal - de funcionário e também de membro do governo -, é que tal permite aos governantes "dormirem sobre os assuntos" e, às vezes, dá-lhes na veneta terem sobre eles ideias próprias. O que, como diria Sir Humphrey, é um risco que os Estados devem ter todo o cuidado de evitar.

Foi o que aconteceu com aquele ministro. No dia seguinte, à entrada do conselho, chamou de parte o diplomata que iria assessorá-lo nos trabalhos e informou-o:

- Estive a refletir melhor sobre aquela questão da subsidiariedade. Acho perigoso estarmo-nos a opor à proposta da Comissão.

O funcionário ficou siderado! Em todas as instância anteriores, sob precisas instruções de Lisboa, Portugal tinha deixado muito clara a sua oposição à aplicação do princípio naquele caso particular, porque disso poderiam resultar impactos pouco consentâneos com os nossos interesses. Seria assim muito difícil explicar uma súbita mudança de atitude. E perguntou ao ministro as razões que fundamentavam a sua posição. Ficou logo esclarecido:

- Então Portugal não quer sempre obter subsídios da União Europeia? Porque é que, desta vez, nos opomos à subsidiariedade? Parece-me incoerente, não acha?

Diplopoeta

O "nosso" Luís Castro Mendes acolheu-se agora à "Assírio & Alvim", onde vai publicar o seu próximo livro, "A Misericórdia dos Mercados". É bom vê-lo numa excelente casa da poesia, ainda ligada, agora só pelo nome, ao meu querido amigo João Carlos Alvim (João, temos de nos ver um dias destes!).

O primeiro lançamento ocorrerá na Póvoa de Varzim (e não Póvoa do Varzim, como às vezes alguns se enganam), no dia 22 de fevereiro, no âmbito da "Correntes d'Escritas" (desculpa lá, Luís, mas tenho um compromisso em Setúbal nesse dia, com que sei que estarás solidário).

No dia 25, pelas 18.30, na Barata, na avenida de Roma, o evento repete-se, com falas de Fernando Pinto do Amaral e Nicolau Santos (Tó Zé Massano, se chegares mais cedo, tu, que moras a "walking distance", marca lugares!).

Dizem-me que, para este último evento, se prevê uma multidão multinacional. Desde logo, um tal Alcipe, vindo de Estrasburgo com a madame. Como estamos no ano comemorativo do "movimento dos capitães", é aguardado, com imensa expetativa, o famoso Capitão Rosa, que agora usa um nome estrangeiro, para armar em "fino", na correspondência que lhe mandam para Moulinsart. Ao que me dizem, está já confirmada a presença de um estimado comerciante da Figueira da Foz, de seu nome Oliveira, muito chegado ao autor, e de quem, nas últimas horas, se fala bastante para novo presidente da AICEP. De Coimbra, aguarda-se o renomado professor Pedro João dos Santos, acompanhado de um jornalista de um diário de Lisboa, cujo nome me escapa. De Paris, está garantida a presença amiga de Ronaldo Azenha de Noisiel, que consta estará prestes a lançar um negócio de mercearias "drive-in" em auto-estradas. Também deverá deslocar-se, vindo de uma das antigas colónias, essa figura muito próxima do autor que é Feliciano da Mata, em seu nome e de uma senhora engenheira cuja modéstia esconde o santificado apelido. Em representação de uma augusta figura, espera-se a presença de D. Henrique Vasconcellos Menezes (Vinhais), responsável pelo pé de página do Gotha dedicado a Portugal. Pelo movimento literário Malta da Rima, a que o autor terá aderido na juventude, aguarda-se a presença de um diplomata que, nos últimos anos, se dedica a fazer um "remake" do "Mistério da Estrada de Sintra". Pude há minutos confirmar, depois de um jantar que tive com o Hélder Macedo, que, daqui de Londres, irá o Joseph Crabtree e, do Brasil, está garantida a presença de Augusto Maria de Saa. E muita, muita mais gente.

Vai ser uma festa!  

segunda-feira, fevereiro 10, 2014

Boa notícia!

Domingos Simões Pereira assumiu a liderança do PAIGC na Guiné-Bissau. Finalmente chega uma boa notícia daquele pobre país.

O novo líder do principal partido guineense, herdeiro de quantos lutaram pela independência da Guiné-Bissau, é um homem que deixou uma excelente impressão, ao tempo que serviu como secretário-geral da CPLP. Espera-se agora que possa ter condições para garantir ao seu país um processo de retorno pleno à normalidade democrática, de eficaz luta contra as derivas de criminalidade que afetam a respetiva vida política e - o mais importante! - que lhe seja possível anular o potencial desestabilizador das Forças Armadas no quotidiano político local. A comunidade internacional apoiá-lo-á se esse triplo objetivo estiver no centro da sua ação.

"Observador"

Ontem falou-se aqui do jornal francês "Libération" e do iminente esgotamento do seu projeto em papel. Agora, anuncia-se o surgimento, em Portugal, do "Observador", um meio de comunicação social que se anuncia a si próprio "sem os condicionamentos do papel"...

Trata-se de uma nova aventura jornalística que tem a curiosidade de dever ser o primeiro órgão informático em Portugal que é construído de raiz. Não devo estar muito longe da verdade se disser que parece haver, por detrás desta interessante aventura comunicacional, o natural aproveitamento de uma onda geracional ligada à internet, aculturada à blogosfera e ao Facebook.

Mas há algo mais dentro desta iniciativa. Há nele um evidente projeto ideológico de direita, titulado por competentes profissionais do jornalismo e do comentário que alimentam um inequívoco ideário liberal e que, nos últimos anos, têm servido de suporte doutrinário, nem sempre óbvio e raras vezes "mecanicista" (para utilizar uma categoria teórica marxista), à ocupação do poder por parte da maioria política que a conjuntura trouxe ao país. Gente de uma nova direita que, seguramente, vai dar sequência a muito do que foi desenvolvido, nos últimos anos, bastante em blogues mas, igualmente, em revistas como a "Atlântico" e "Nova Cidadania", ambos muito tributários desse viveiro de pensamento conservador que tem sido o Centro de Estudos Políticos, da Universidade Católica Portuguesa.

Este não é o primeiro "Observador" que se produz em Portugal. Em 1971, a direita marcelista fez surgir uma revista, dirigida por Artur Anselmo, que, à época, teve alguma importância no debate político. Mas não teve grande êxito.

domingo, fevereiro 09, 2014

"Que se lixe a União Europeia!"

A frase em título, embora num registo estilístico um pouco menos suave, foi pronunciada por uma alta responsável diplomática americana, ao telefone com o embaixador de Washington em Kiev, numa alusão crítica (espero que os leitores apreciem este "understatement", tributário da fina cultura diplomática lusa) à posição de Bruxelas na crise ucraniana. A senhora em causa é casada com Robert Kagan, de quem já li coisas "lindas" a propósito da Europa, pelo que daqui se pode inferir o nível de "carinho" com que o Velho Continente deve ser mimoseado na intimidade do casal.

O que a mim me surpreende é o "escândalo" que estas coisas ainda parece provocarem. A senhora Merkel logo se mostrou chocada com os termos "inaceitáveis" utilizados pelos diplomatas americanos, como se acaso estes não tivessem todo o direito, numa conversa telefónica entre si, que não julgavam escutada por terceiros, de chamarem aos "parceiros europeus" o que lhes desse na real gana. Ao contrário do que, há meses, foi revelado sobre as escutas americanas a líderes amigos, desta vez os escutados foram os americanos, aparentemente pela espionagem russa. O que deve ter dado, lá no fundo, um grande gozo a Berlim.

Porque é que eu mostro aqui uma grande complacência com estas práticas, com o uso de uma linguagem solta nas conversas telefónicas? Porque sim.

"Libé"

A crise da imprensa escrita acontece um pouco por toda a parte. Todos os dias lemos notícias de jornais a fechar, com os novos projetos a passarem, em prioridade, pelos meios informáticos. Não há muito que se possa fazer: subsiste aquilo que vende e os jornais vendem pouco. As pessoas leem-nos cada vez menos e, em muitos casos, uma descrecente apetência por um jornalismo mais cuidado e sofisticado está a fazer emergir, em muita imprensa, uma escrita "simplificada", a gerar uma espécie de "fast food" jornalístico. Os tablóides já tinham prenunciado o estilo, mas havia a esperança que uma "aldeia gaulesa" de qualidade pudesse sobreviver. Essa esperança, contudo, embora exista, é cada vez menor.

Faço parte de uma geração que nasceu com o "Libération" como uma referência de independência, com um estilo algo arrogante e afirmativo, uma sedutora abertura ao novo, uma qualidade inventiva de escrita e de temas, um jornal que havia conseguido adaptar-se aos tempos, embora com ruturas que não foram fáceis. Por lá passaram alguns bons nomes inconformistas e a qualidade do produto gráfico, bem como a genialidade de alguns títulos, compensava alguma fraqueza na construção geral do jornal. Ao tempo que passei por Paris, o "Libé" fez-me sempre falta (mas eu não sou um bom exemplo: a mim faz-me falta toda a impeensa...)

Leio que o "Libération" voltou agora agora a entrar em crise (e elas já foram muitas, na história do jornal, desde os tempos de Sarte aos de July, passando pelo modelo menos personalizado que vigorava nos últimos anos). Desta vez, o conflito parece mais sério do que nunca e a oposição entre os trabalhadores do jornal e os acionistas não parece conciliável. Terei bastante pena se o "Libé" desaparecer, mas o mundo não perdoa e as nostalgias ainda não têm cotação no mercado.

sábado, fevereiro 08, 2014

Faturas

Cheguei à conclusão de que há uma idade na vida em que nos podemos dar ao luxo de ter dúvidas. Cada vez mais, passado para mim um tempo que já foi de certezas quase absolutas - e felizes devem ser quantos as conservam -, olho para os factos tentando medi-los pelo seu valor próprio. E, muitas vezes, verifico que isso não corresponde àquilo que se poderia qualificar como uma linearidade de inabalável coerência, à luz de matrizes ideológicas pré-determinadas. Mas, certo ou errado (e não tenho a pretensão de estar nem uma coisa nem outra), procuro ser coerente com aquilo que intimamente penso.

Vem isto a propósito da questão das faturas, em especial dos seus anunciados leilões de prémios.

Nenhum governo fez mais do que o atual para abalar a profunda solidariedade que, em toda a minha vida, sempre alimentei para com o Estado, que erigi intimamente como o intérprete de um interesse coletivo com que entendo dever estar tendencialmente solidário, desde que dirigido com legitimidade democrática. Também é verdade que nunca como nos últimos anos tinha assistido ao espetáculo de ver o Estado dirigido por quem tanto o diaboliza e espera conseguir poder desmantelar de forma irreversível, antes do país lhe dar, nas urnas, o devido destino. 

Nào obstante esta minha conjuntural atitude face ao Estado, em razão da sua tutela conjuntural, uma lógica de equidade leva-me a ter de exigir que todos sejam tratados da mesma forma quando uma lei tributária - por mais injusta que possa ser - nos é imposta. Como qualquer cidadão normal, não gosto de pagar impostos, mas, se tenho de fazê-lo, espero que todos procedam de forma idêntica. E que ninguém seja poupado ao seu dever cívico.

Já no passado aqui referi a questão de "passar fatura", em especial nos estabelecimentos comerciais. Vivi em vários países e não me recordo de algum ter chegado ao "modelo" que foi criado entre nós. Em parte nenhuma do mundo vi perguntar a alguém se quer "factura", se pretende uma "fatura simplificada" ou ouvir uma pessoa, pateticamente, ter de debitar ao vendedor o seu número de contribuinte. Posso ter estado desatento, mas não recordo nada igual. 

Dito isto, eu hoje exijo sempre fatura numa compra comercial. Desde um simples café a uma aquisição de livros ou gasolina. Lamento muito o encargo que o fisco hoje representa para profissionais do comércio que têm uma vida difícil, mas não tenho o direito de ser eu a escolher aqueles a quem "ajudo" a fugir à legalidade que é respeitada pelo outros. Mas porque assim procedo, e porque entendo que todos assim deveriam proceder, a coerência obriga-me a apoiar medidas que estimulem a que outros procedam da mesma forma. E se uma sociedade como a portuguesa não tem, imbuído em si mesma, o espírito de solidariedade cívica que leva a que a todos se empenhem numa igualdade de direitos e deveres, acho perfeitamente normal que possa haver estímulos para que muito mais cidadãos sejam levados a adotar essa linha de comportamento, mesmo que, infelizmente, isso tenha de ser feito por uma via menos curial, como é a dos bizarros sorteios. 

(Quase que apostaria em como muitos que acabaram de ler este texto vão estar de acordo com parte do que nele escrevi e em desacordo com a outra parte, embora não necessariamente pela mesma ordem.)

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

Saneamento

Imagino que, para alguns jovens de hoje, o termo "saneamento" não ultrapasse a ideia de redes de esgotos e canalizações. Porém, se acaso tivessem vivido uma vida adulta após a Revolução de abril, saberiam que o termo foi então abundantemente utilizado para significar o afastamento forçado de pessoas de algumas estruturas e instituições, quer por alegadas ligações ao regime ditatorial quer, num momento subsequente, por acusações de resistência ao "processo revolucionário" desencadeado. 

O caso do afastamento de mais de duas dezenas de jornalistas do "Diário de Notícias" foi um dos "saneamentos" que então gerou mais polémica. É que muitos dos "saneados" estavam longe de poderem ser qualificados de "fascistas", sendo apenas pessoas que resistiam ao controlo do jornal por uma linha muito próxima do PCP. Pode dizer-se que pelo DN passou então a fronteira da clivagem mais evidente no seio da Revolução. Nomes como José Saramago ou Luis de Barros emergiram, a partir daí, como os principais responsáveis por essa operação política, que ficou na história do jornalismo português.

Foi agora anunciado o lançamento de um livro que recolhe uma tese universitária sobre o tema. Atento o que se conhece sobre o nível da orientação académica do trabalho, deve esperar-se um texto rigoroso. Veremos se assim é. Alguma polémica em torno da utilização de uma imagem do jornal como capa da obra está a funcionar como involuntária propaganda para o seu lançamento. Irei ler o livro com cuidado, como julgo que fiz com quase tudo o que se escreveu sobre aquela época.

Zita Seabra, a operosa editora da Alethêa, que publica o livro, aparece, uma vez mais, na linha da frente de uma iniciativa que, diga-se o que se disser, pretende confrontar os comunistas com o seu passado. Como "voyeur" regular desses tempos, só me posso congratular com o facto de novos dados virem à tona, ajudando a completar o "filme" desses dias. Isso não seria, em si, nada de mal, não fora dar-se o caso dessa mesma Zita Seabra ter sido, à época, uma das mais ferozes e sectárias militantes do PCP. Reconheço o direito a que as pessoas mudem de opinião e assumam a sua distância face a um passado a que entendem já não deverem fidelidade. Mas acho que alguma maior contenção seria recomendável. Nunca é agradável ouvir um membro de um casal desavindo fazer revelações sobre a intimidade dos seus antigos tempos.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

A ponte

Começava a ser estranho! O avião chegara à Portela já há cerca de uma hora e nem sinais havia do advogado britânico que, nessa manhã, se deslocara a Lisboa para aquela reunião. E, por imprudência, ninguém na empresa tinha o seu telefone. Ter-se-ia perdido? Era a primeira vez que o homem vinha a Portugal e, infelizmente, não fora possível enviar um carro para ir buscá-lo ao aeroporto. Mas o trajeto era relativamente curto e, de taxi, bastaria, no máximo, um quarto de hora. Que fazer? Começar a reuniào sem ele? 

De súbito, um dos contactos do advogado na empresa recebe um telefonema. Era o homem! Vinha de taxi e informou: "Estou a chegar! Já estou a atravessar a ponte!"

Os taxistas do aeroporto de Lisboa são um dos "orgulhos" do nosso país.

Ontem à noite, ao sair do aeroporto para casa, lembrei-me desta história, que alguém há dias me contou. No que me respeita, vim pelo caminho mais direto.

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Não têm vergonha?

A passada segunda-feira foi um dia bem "português". 

Uma magistrada, já cerca da meia-noite, depois de um dia frenético de audições, ditou, do alto da sua independência como órgão de soberania, que o leilão do importante lote de obras de Juan Miró, que estava nas mãos de um empresa que foi criada para privatizar tudo o que for possível privatizar antes que este governo acabe, podia prosseguir, lá em Londres, onde a Christie's fora encarregada de o vender. Estava assim anulada a previdência cautelar ("liminar", para leitor brasileiro) solicitada por atentas personalidades da oposição e logo seguida por um Ministério Público sempre bem alerta quando alguém o avisa.

Caramba! Para que o assunto merecesse este tratamento tão expedito da nossa magistratura, com uma decisão sobre a hora, era, com certeza, sinal de que a operação fora feita sob total surpresa. Qual quê! O assunto "tem barbas". Eu próprio, por razões que não vêm para o caso, tinha dele conhecimento há bem mais de um ano. Outros compradores tinham já aparecido no circuito e a intenção oficial de recorrer a este método para a liquidação do espólio era, de há muito, conhecida. 

Porque é que o país só agora "acorda" para a venda dos Miró, a escassas horas do leilão? Porque nos chamamos Portugal, porque nada aqui se faz a tempo e horas, porque temos uma imprensa que só há dias aprendeu que o BPN nos tinha feito ganhar uma coleção rara de obras do genial pintor, porque temos uns políticos da oposição que, em lugar de, desde há meses, terem suscitado a questão junto da opinião pública, andaram "a dormir" na forma até agora*. E já nem falo do governo, porque todo o mundo da arte sabe que a sua decisão de vender um lote tão importante de obras de Miró, tudo no mesmo dia, baixa naturalmente o seu valor individual de mercado, afetando o potencial encaixe de capital. Mas que interessa isto a quem quer vender (já!) tudo o que possa "cheirar" a público?

A Christie's, que nestas coisas não brinca em serviço, suspendeu entretanto o leilão. Esteve-se nas tintas para o fim da providência cautelar e, escaldada com confusões judiciais, quer esclarecer o assunto. Na serenidade dos gabinetes da King Street, deve já ter havido alguém a perguntar(-se): "mas quem é que nos mandou meter-nos com esta gente?" Mesmo arriscando-me a equiparar-me por uma vez, em despreendimento patriótico, a Vasco Pulido Valente, tenho de reconhecer que têm toda a razão!

* foi-me chamada a atenção para o facto de o assunto ter sido suscitado, desde há meses, em sede parlamentar.

terça-feira, fevereiro 04, 2014

Praxes

É da praxe não falar na reestruturação da dívida, um eufemismo que se utiliza para referir o seu não pagamento parcial. Assumir que parte da dívida dos Estados nunca será paga afecta o mito de que ela é comparável ao endividamento dos particulares.

Há uns tempos, um antigo político explicou que a generalidade dos Estados tem uma dívida recorrente, que procura “reciclar” através de novos empréstimos, a custos tão baixos quanto possível. Caiu-lhe logo “o Carmo e a Trindade” em cima, sendo “irresponsável” o mais doce qualificativo com que foi mimoseado. Há dias, um banqueiro na moda disse precisamente o mesmo. Um respeitoso silêncio dos cemitérios abateu-se sobre as suas declarações. A mesma verdade tem um valor relativo, proporcional às emoções e ódios com que é embrulhada.

O estado a que a nossa dívida pública chegou, nos últimos anos, não autoriza nenhuma vestal a ficar escandalizada se se afirmar que uma parte dessa dívida não tem condições objectivas para poder ser paga. A “reciclagem” que tem vindo a ser feita, nos altos e baixos do mercado, conduziu a que a taxa média dos nossos empréstimos se situe hoje não longe dos 4%.

Nestas condições, é por demais evidente que a cumulação de um processo de substancial amortização da nossa dívida com o respectivo serviço, em taxas próximas das actuais, é implausível, dado o crescimento e a inflação expectáveis. A menos que um perdão parcial venha a ser admitido, associado a uma renegociação de taxas e maturidades, Portugal ficará esmagado por um peso financeiro incomportável. E os primeiros a não beneficiarem dessa situação seriam os nossos credores externos, que não tirariam vantagens de uma economia asfixiada. Eles sabem isso bem. É, contudo, desejável que o assunto só surja à discussão num quadro europeu bastante mais sereno e estável. Mas deixemo-nos de ilusões: cedo ou tarde ele emergirá, dependendo o “timing” do modo como os mercados vierem a ler o grau de abertura do BCE para apoiar as economias europeias sujeitas a uma maior pressão.

É a Europa, com as flutuações dos seus humores financeiros, que todas as manhãs dita o destino dos nossos “spreads”. Por isso, constitui uma perfeita mistificação, que só frutifica numa opinião pública tão intoxicada como a portuguesa, a ideia que está a ser preparada de que resultará de uma nossa livre opção a escolha entre um programa cautelar ou uma saída “à irlandesa”. É evidente que será apenas o modo como o mercado vier entretanto a comportar-se face às nossas necessidades de dívida (ou ao tratamento da mesma no mercado secundário) que ditará a solução a adoptar (como, aliás, aconteceu já no caso irlandês). Estar a criar a ilusão de que a alternativa releva da sabedoria de uma oportuna decisão nacional pode legitimar que se pergunte então a razão pela qual o “regresso aos mercados” não teve lugar na tão propalada data de 23 de Setembro de 2013. Não nos praxem, por favor! 

 Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Polónia

É uma iniciativa meritória aquela que o deputado Ribeiro e Castro promove, com regularidade, na Livraria Férin.
 
(essa mesma livraria, na rua nova do Almada, de cuja montra o Artur Corvelo se aproximava, como conta o Eça em "A Capital", a fim de ver se o seu "Esmaltes e Jóias" se vendia.)
 
Trata-se de organizar debates no âmbito de uma "Tertúlia Diplomática", tendo como convidado um embaixador estrangeiro em Lisboa.
 
(Ribeiro e Castro, ao tempo que dirigia a Comissão de Negócios estrangeiros da nossa Assembleia da República, tomou também a iniciativa de ouvir, à porta fechada, alguns embaixadores portugueses. Tive a honra de ser o primeiro a ser convidado para esse interessante exercício.)  
 
Ontem, falou-nos o embaixador da Polónia, Bronislaw Misztal, do seu país e de um livro recentemente publicado sobre a "cortina de ferro", essa expressão utilizada por Churchill no seu discurso de Fulton, em 1946, e que acabou por ser uma dos mais famosos qualificativos da Guerra Fria.
 
O diplomata polaco fez uma estupenda apresentação da Polónia contemporânea, mas também da sua história, das vizinhanças e das ambições de paz que atravessam um Estado que teve uma experiência traumática de guerra. A uma pergunta que lhe foi feita, procurando saber da vontade dos polacos de trabalharem a memória dos tempos comunistas, o embaixador explicou, com uma simplicidade que revelou grande sabedoria, que se alguém numa rua polaca for hoje abordado sobre acontecimentos passados -  como a invasão russa de 1956, a revolta de Gdansk de 1980 e os tempos de Jaruselsky, bem como a recuperação da liberdade no final desses anos 80 - muito provavelmente essa pessoa deixará claro que, não esquecendo as lições da História (ou talvez por causa delas), o que lhes interessa agora é o futuro. E que a Europa é o lugar geométrico onde os polacos depositam as suas esperanças.
 
Hoje mesmo, em Cracóvia, onde irei para reuniões de trabalho, vou, com certeza, poder confirmar esta perspetiva, esse esforço para esquecer recordando. Ao lado de uma cidade que não foi destruída pela guerra, está construída uma das maiores enormidades do tempo do conflito, o campo de extermínio nazi de Auschwitz.

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Blogue

Não tinha dado conta, devo confessar: este blogue fez ontem cinco anos. Foi um confrade que se preocupa com essas datas que o anunciou.

Foram cinco anos sem uma única data em que eu aqui não tivesse deixado um post. Foram em número de mais de 3200 as mensagens que assinei, entre memórias ou notas do quotidiano, historietas pessoais ou de outros, cenas e episódios da vida diplomática, textos mais ou menos sérios, muitas fotografias. 751 amigos inscreveram-se para seguir, nos dias hoje, este blogue. Quase um milhão e trezentas mil visitas foram feitas nestes cinco anos, com mais de dois milhões de páginas consultadas. Em média, todos os dias, o blogue é visitado por mais de mil pessoas - o que, de acordo com quem sabe destas coisas, leva a presumir que cerca de cinco mil leitores passam regularmente por aqui.

Durante o primeiros quatro anos, o blogue foi assumido como sendo "do embaixador de Portugal em França", embora nunca tivesse sido um blogue formal da Embaixada. Logo no primeiro post ficava clara a dualidade: "Embora, como disse, este espaço não tenha uma natureza oficial, naturalmente que quem o escreve assume, em pleno, a responsabilidade da função que exerce e que, por essa razão, não se esquece dela ao escrever. "À bon entendeur"..." A mudança do meu estatuto ocorreu há um ano e, naturalmente, o blogue sofreu alguma alteração no seu estilo e, aqui ou ali, em alguma seleção temática.

Um palavra para as comentadoras e comentadores. Quem segue este espaço sabe que há gente que o acompanha desde o início, com uma dedicação que só posso agradecer. Um "quarteto" ímpar de senhoras tem feito uma inigualável "guarda de honra" aos textos: Isabel Seixas, Helena Oneto, "Margarida" e Helena Sacadura Cabral. Mas há outros nomes, como "Patrício Branco", "Catinga", ARD ou Guilherme Sanches a cuja fidelidade estou muito grato. Caso especial é "Alcipe" e o seu saudoso heterónimo "Feliciano da Mata", este último agora desaparecido em combate empresarial, entre o Cabinda e o Cunene, com passagens fugazes pelo mundo do PSI20. Alguns comentadores andaram por aqui e, depois, desapareceram. O caso mais marcante terá sido a Mônica, uma simpática "mineira" brasileira, que muito humanizou este espaço. Mas muitas centenas de anónimos ou de pessoas com nome deixam por aqui as suas notas - às vezes de acordo, muitas outras de frontal oposição ao que por aqui disse. Com grande sinceridade, a todos eles, mas também a todos os leitores que nunca deixaram nada escrito, estou muito grato e envio um forte abraço, porque também eles estão de parabéns neste aniversário. É que, sem leitores, a escrita transforma-se num exercício sem sentido.

Em tempo: e os "newcomers" como "Defreitas". Imperdoável o esquecimento de José Barros, António PA, "Portugalredecouvertes", "São", José Tomaz Mello Breyner e tantos outros. E a "velha senhora"?

Livros, ainda

O "Diário de Notícias", dedica hoje uma sua página à entrega dos meus livros à magnífica Biblioteca Municipal de Vila Real (na imagem).

Nessa reportagem de Leonídio Paulo Ferreira falo das obras que já partiram, da minha velha e complexa relação com os livros e de outros aspetos relacionados com esse meu saudável "vício". O texto pode ser lido aqui.

Não faço esta doação com o objetivo de dar qualquer exemplo. Mas gostaria de estimular outras pessoas (diplomatas, por exemplo) a promoverem a entrega dos seus livros (ou de parte deles) a bibliotecas das terras de onde são originários, assegurando-se, antecipadamente, que eles serão tratados de forma adequada, como está a acontecer no meu caso. Assim se evitaria o espetáculo, algo triste e deprimente, de ver excelentes espólios surgirem dispersos, algumas vezes vendidos a preços irrisórios, por alfarrabistas ou casas de velharias. Os nossos livros merecem sempre o melhor destino.

domingo, fevereiro 02, 2014

Fronteiras

Desde há muito que sinto um imenso fascínio pelas fronteiras. Recordo, como se fosse hoje, a emoção que tive ao atravessar pela primeira vez a fronteira entre Portugal e Espanha, entre Vila Verde da Raia e Feces de Abajo (deixo uma imagem contemporânea do espaço), para ir à festa do Lázaro (nós dizíamos "dos Lázaros") a Verín. Passar para o "outro lado", para o lado do "outro", foi uma experiência que me marcou para sempre.

Ao longo dos anos, atravessei fronteiras muito diversas. Fui interrogado numa fronteira alemã, durante longos minutos que me pareceram horas, no dia em que Ulrike Meinhof foi detida. Senti o incomparável gelo do "checkpoint Charlie" quando Berlim era "a sério". Fiz fila, com compatriotas emigrantes, para tomar forçadamemente um medicamento em Handaye, quando ia "à boleia" de um Portugal onde a cólera era considerado um problema (não obstante ter as vacinas em dia). O meu passaporte foi sujeito a um longo escrutínio quando pretendi entrar em Israel com vários carimbos de anteriores visitas (em trabalho) à Líbia. Anos mais tarde, a coreografia das armas e segurança, na travessia para a faixa de Gaza, deixou-me uma impressão inigualável. Guardo para sempre o ambiente único da fronteira entre a Tanzânia e o Quénia, rodeado de inquisitivos Masai, numa tarde de imenso calor. Passei as "passas do Algarve" para conseguir aceder ao Usebequistão, ido do Quirguistão, com um grupo da OSCE. Nessa mesma qualidade, foi muito curioso ser submetido a um longo interrogatório, quando atravessei a tensa fronteira da Geórgia para a Ossétia do Sul. E fui protagonista de (pequenos, mas memoráveis) incidentes em fronteiras de entrada em países como os Estados Unidos, Gabão, Cambodja ou da antiga União Soviética. Podia escrever por horas, sobre fronteiras atravessadas.

A minha (antiga) profissão não existiria sem fronteiras. Os diplomatas só têm razão de ser porque existem entidades nacionais distintas. As fronteiras são a "encadernação" dos Estados. Sou, por isso, um profissional de fronteiras. Ainda hoje, para não "perder a mão", atravessei a de Barrancos para Ensinasola, agora já sem a "graça" dos pides e dos tricórnios da Guardia Civil.

Por esta ou por outra razão, fiz ontem parte de um painel que, em Moura, discutiu fronteiras, ou melhor, o tema "Moura - das fronteiras locais às fronteiras globais". Foi um grupo de oradores muito diverso, que cobriu vertentes institucionais, culturais, antropológicas, geográficas, económicas e geopolíticas. Foram cerca de duas horas muito interessantes, num exercício pouco comum numa urbe de província, habilmente mobilizada por um município disposto a abalar a rotina dos dias locais. Parabéns, Santiago Macias, e obrigado pelo privilégio que me deu de fazer parte desse belo debate.

sábado, fevereiro 01, 2014

Saudades de Américo Tomaz

Na cave do Palácio de S. Clemente, residência do Cônsul-Geral português no Rio de Janeiro, jaziam (ainda jazerão?) algumas centenas de volumes e muita outra papelada, muitas vezes em exemplares repetidos, de divulgação e propaganda turística e política do regime derrubado em 25 de abril. No meio de tudo aquilo, que sempre fez o meu encanto de "rato de biblioteca", encontrei um dia alguns exemplares de uma fotografia oficial do antigo presidente, Américo Tomaz. Levei uma dessas fotos comigo, para Brasília.

Um dia, foi lá jantar a casa um amigo brasileiro, homem muito conservador, conhecido pela sua profunda devoção ao defunto "Estado Novo" e que sempre falava do 25 de abril como "essa funesta data". Resolvi, assim. pregar-lhe uma "partida".

Na base da fotografia do "venerando chefe do Estado" (como reverentemente era tratado pela comunicação social da época)  inscrevi a seguinte dedicatória manuscrita: "Ao meu bom amigo Francisco Seixas da Costa, com grande estima e muita amizade do Américo Tomaz". Coloquei a foto numa moldura, sobre uma outra foto dedicada que tinha lá por casa - as residências de alguns diplomatas costumam ser vastos "museus" desse tipo de objetos, prática a que sou muito avesso - e deixei-a num lugar bem à vista.

No termo do jantar, o meu amigo passeou-se pelo escritório e, num instante, vi-o debruçado sobre a moldura, que estava displicentemente pousada numa estante. Ficou silencioso. Ele sabia das minhas ideias políticas, embora também não desconhecesse que tenho amizades em setores ideológicos muito distintos e até fortemente contrastantes. Mas imagino que, para ele, o facto de eu ter tido Américo Tomaz entre os meus amigos talvez fosse um tanto demais... Com os diabos! Se eu até "estivera implicado" no 25 de abril, como ele dizia!

Não tendo excessiva confiança comigo, esse amigo manteve-se calado sobre o assunto, durante uma boa meia-hora. A certo passo, "roído" de visível curiosidade, perguntou-me, como que por acaso: "Você conhecia bem o presidente Tomaz?" Dei uma resposta vaga, do género: "Relativamente... Fomos apresentados um dia". Passaram uns instantes, não resistiu: "Olhe! É interessante que, mesmo não o conhecendo bem, ele tenha escrito uma dedicatória como aquela", apontando para a moldura. "Foi, de facto, uma atitude simpática da parte dele". E mudei de conversa. 

O meu interlocutor continuava cada vez mais perplexo. E, uns minutos depois, não desarmou: "Em que data é que o presidente Tomaz lhe dedicou a fotografia?". Não me contive: "Foi no dia 25 de abril. Foi para comemorar..." Só aí ele começou a perceber a patranha.

Lembrei-me desta história hoje, dia em que começo a sentir fortes saudades de Américo Tomaz. Não do presidente que abril derrubou e fez embarcar para o Brasil, mas do meu excelente motorista, também Américo Tomaz de seu nome, que desde hoje deixei de ter ao meu serviço, por eu próprio ter deixado de ser diretor executivo do Centro Norte-Sul. Desse sim, já tenho saudades.

sexta-feira, janeiro 31, 2014

Ases da bola

Ontem, ao ler a nota colocada no Facebook por um diplomata português, visivelmente entusiasmado pelo facto de ter dado um visto para um novo recruta estrangeiro para o futebol português, recordei por um momento a correspondência que, enquanto embaixador no Brasil, recebi de futebolistas candidatos a jogarem em clubes portugueses.
 
Não guardei nenhuma dessas cartas e mensagens de e-mail, mas recordo bem as descrições entusiásticas que alguns desses pretendentes faziam das suas próprias qualidades, tanto mais que eram escritas numa impagável versão brasileira do "português de balneário", numa espécie de aculturação a um léxico e fórmulas bebidas da imprensa desportiva.
 
Não fora o facto da ironia ser difícil de passar nos posts dos blogues (mas vamos lá tentar outra vez!), quase que se poderia sugerir que, em postos diplomáticos situados em países viveiros de craques da bola, as embaixadas passasem a ter uma espécie de "conselheiros desportivos", figuras que funcionariam como "olheiros" oficiais, que montassem bancos de dados à disposição dos clubes portugueses. em especial daqueles com menos meios e menos conhecimentos nos mercados externos. Para tal, nem valia a pena estar a fazer "outsourcing", bastava usar alguns conhecidos ases que a carreira destilou e que, pelo menos, são "bons de bola". 

quinta-feira, janeiro 30, 2014

Esgaforinada

"A mulher tinha um ar esgaforinado". Ouvi a frase há meses, a propósito de alguém, e guardei a expressão, que parecia pretender significar que a pessoa em causa tinha um aspeto desgrenhado. Talvez mais do que isso: um ar irritado, quiçá ameaçador ou agitado. Nunca tinha ouvido tal qualificativo. Quem pronunciou a frase foi uma senhora idosa, educada e culta. Não tive, entretanto, oportunidade de lhe perguntar o significado que lhe atribuía.

Fui hoje ver ao dicionário. Ao melhor deles todo, o "Moraes e Silva", nos seus doze imbatíveis volumes. "Esgaforinar" ou "esgaforinado" não aparece. Há "gaforina", para significar "cabelo em desalinho" ou "mulher desalinhada". Talvez seja daí que o termo "esgaforinado" deriva. Mas a palavra tem uma sonoridade tão expressiva, quase física, que apetece "ficar com ela" e passar a utilizá-la. 

Mas por que diabo me lembrei eu agora disto? Sei lá! Estava a ver uma cena do nosso parlamento, uma intervenção dos "Verdes" e a palavra "surgiu-me". Mas não, não deve ter nada a ver com isso. 

quarta-feira, janeiro 29, 2014

Pete Seeger (1919-2014)

Foi uma voz livre da América. Foi um cantor de protesto antes disso estar na moda. Defrontou o obscurantismo persecutório dos anos da Guerra Fria. Escreveu os inesquecíveis "Turn, turn, turn" e "If I had a hammer". Pete Seeger morre na América de Obama. Apesar de tudo, parte nos tempos de uma melhor América. Lutou por ela e mereceu-a.

terça-feira, janeiro 28, 2014

Dignidade

A sessão hoje organizada na Assembleia da República, em homenagem aos advogados que defenderam os presos políticos durante a ditadura do Estado Novo, é um ato de grande significado. A tarefa levada a cabo por esses juristas, em condições muito difíceis e correndo frequentemente riscos pessoais, dignificou a Justiça, que, à época, era miseravelmente representada por um punhado de "juízes" que a envergonhavam e aviltavam, no seu conluio aberto com os torcionários do regime. Um grande momento, a que infelizmente não consegui estar presente.

Soares Carneiro

Em 1980, Sá Carneiro foi desencantar Soares Carneiro, um general conservador, desconhecido para a grande maioria, como candidato da sua Aliança Democrática à Presidência da República. A ideia era tentar evitar a reeleição de Ramalho Eanes, cujo comportamento, enquanto presidente, desagradara à direita, que sentia a necessidade de ter uma figura da sua confiança em Belém. Soares Carneiro, um nome com alguns "esqueletos no armário" aquando da sua passagem por Angola, viria a revelar-se um político desajeitado, rígido, incapaz de galvanizar minimamente o eleitorado. Recordo-me que o "Expresso" fez o frete de o fotografar com um cão, para lhe humanizar a imagem; só que o cão não lhe pertencia! Sá Carneiro cedo percebeu o erro que cometera e sentiu que o seu candidato iria perder a eleição. Na antevéspera do sufrágio, fez uma patética conferência de imprensa, tentando colar Eanes aos comunistas. Na noite desse dia, 4 de dezembro de 1980, tencionava ir ao Porto, ao derradeiro comício, para tentar dramatizar os últimos momentos da campanha. O avião em que seguia caiu em Camarate. A instrumentalização mediática do seu funeral foi um dos atos mais abjetos da nossa política contemporânea. Mas o povo português soube separar o trigo do joio. E Soares Carneiro foi derrotado. Discretamente, desapareceu da cena política, remetendo-se à vida militar. Morreu hoje, aos 86 anos.

Capicuas

Há dias, passando por Campo de Ourique, olhei o prédio onde viveram uns familiares que já se foram há muito. Um casal. Ele era uma figura suave e sorridente; ela era uma mulher "de fibra", nem sempre fácil, palavra às vezes cortante. Completavam-se lindamente, como muitas vezes sucede.

A grande paixão dele (para além de Salazar) era o Benfica. Fazia parte de quantos acompanhavam a equipa pelo mundo, tendo estado presente nos momentos idos da glória internacional do clube. A minha condição de sportinguista desgostava-o. Eu era irónico nas conversas mas, sendo ele futebolisticamente "doente" e muito mais velho, optava por não ir muito longe nas minhas provocações, tanto mais que era uma pessoa sempre muito simpática para comigo. Numa visita minha a Lisboa, em fins de 1965, levou-me à Luz ver um "derby" com o Sporting. Para seu azar, o Benfica perdeu 2-4. Recordo a minha forçada contenção, no meio de uma bancada homogeneamente "lampiónica". E, estando perto do relvado, guardei para sempre na memória auditiva o ruído dos remates de Lourenço, autor dos nossos quatro golos.

A razão por que hoje falo desse meu primo é pelo facto de me recordar que ele tinha uma imensa e curiosa coleção de capicuas, em bilhetes de elétrico. Nas suas deslocações diárias, ao longo de décadas, entre os Prazeres e o seu emprego na rua da Conceição, entretinha-se a coletar esses números de dupla leitura, não sei se por arranjo com o cobrador ou por cumplicidade de "fellow-travellers".

Mas a que propósito vem hoje esta história das capicuas? perguntar-se-á com legitimidade o leitor. É muito simples: eu próprio tenho vindo a colecionar as minhas capicuas. Hoje, por exemplo, obtive a sexta. Mas não é uma coleção que me dê excessivo prazer, confesso.

segunda-feira, janeiro 27, 2014

Praxes

O meu amigo José Mariano Gago disse aquilo que eu gostaria de ter dito sobre as praxes: "O que estamos é perante o comportamento de jovens adultos que estão a educar-se entre si e a educar os outros para uma sociedade fascista em que é considerado normal abusar dos outros e os outros agradecerem".

Em tempo: a quem tiver uns minutos, aconselho a leitura disto.

domingo, janeiro 26, 2014

Trasladação

- Trago-lhe aqui um problema, senhor diretor-geral. Trata-se do pedido da viúva do embaixador que morreu há semanas no seu posto, lá na Ásia. Quer receber 12 mil euros, valor da trasladação do cadáver do marido para cá.

- Mas qual é o problema? O direito ao repatriamento do corpo existe na lei, não é?

- É, mas ela não possui nenhum justificativo.

- Está bem, meu caro, mas temos de ser flexíveis com a pobre senhora. São países complicados para se obterem essas papeladas. E, além disso, não me parece um montante exagerado. Ela que prepare uma declaração de despesa. Eu darei uma palavra ao ministro.

- Bom, mas há um pormenor que entretanto chegou ao meu conhecimento...

- Qual é?

- Soube que embaixador foi incinerado lá no país onde morreu...

História verdadeira, ocorrida no serviço diplomático francês.

sábado, janeiro 25, 2014

Portugal-Brasil


O dia de ontem havia sido longo, entre Paris e Lisboa. Chegado do aeroporto, ao fim do dia, cansado, sentei-me num sofá e liguei a televisão. Pensava ver as notícias e logo fechar o aparelho. Estava "a dar" futebol. A preto-e-branco. Era o Portugal-Brasil de 1966.  

Foi hora e meia de grande prazer. Aquele jogo que eu vira num pequeno écran, em minha casa, em Vila Real, há 48 anos, estava ali, pela primeira vez, à minha disposição, num écran "decente", com a possibilidade de rever com calma, e em "slow motion", os lances mais interessantes ou polémicos. Em fundo, ouviam-se os comentários acertados dos "magriços" José Augusto, José Carlos e Peres, recheados com histórias curiosas de bastidores.

O jogo foi excelente, com Eusébio em grande forma, a marcar aquele que ele consideraria, para sempre, o melhor golo da sua carreira. Simões fez um grande jogo, com um (raro) golo de cabeça. Alexandre Batista, Jaime Graça e José Augusto deram um espetáculo de bom futebol. Vicente marcou um hiper-lesionado Pelé, com maestria e decência, a contrastar com Morais, que visou o génio brasileiro sem dó nem piedade (Pelé vingar-se-ia nos últimos minutos, pespegando uma forte cabeçada ao seu agressor). O grande Hilário pareceu-me algo perdido com a rapidez da ala direita brasileira, não acertando as marcações, tal como Torres, um tanto sem posição, naquele seu jeito desengonçado de jogar "sem bola". Coluna foi decaindo com o tempo, mas foi sempre um pilar de serenidade e com uma excecional medida de passe. O 4-2-4 de Otto Glória era um "harmónio" dito harmonioso, com o ataque a recuar em apoio à defesa, com os laterais a subirem à linha, em reforço do meio campo. Bons tempos em que se atacava com quatro avançados!

José Augusto explicou ontem, finalmente, uma dúvida que eu sempre tive: a razão por que Carvalho fora substituído por José Pereira na baliza da seleção - onde, diga-se, fez um jogo impecável. Ao que explicou, o "lóbi" do Belenenses dentro da equipa técnica tinha obrigado à saída do guardião sportinguista - o qual, como é sabido, não comprometera, na estreia do Mundial. A mesma pressão que, porventura, levou a que Vicente substituísse José Carlos. Este último regressaria à seleção, Carvalho não. Coisas de Belém.

Foi uma grande noite de futebol. 

Das tentações

Frédéric Mitterrand foi um improvável ministro da Cultura de Nicolas Sarkozy. Sobrinho de François Mitterrand, surgiria no governo pela mão de Carla Bruni. No seu currículo figurava um livro algo comprometedor, que remetia para algumas suas práticas libertinas com jovens, nos terrenos do turismo sexual na Tailândia. Seria, contudo, muito injusto medir esse Mitterrand conservador apenas por esses pecadilhos. Trata-se de um homem inteligente, com graça, boa escrita, com obra feita na área cultural e mediática, que não tendo ofuscado minimamente a memória de Malraux, ou mesmo de Lang, acabou por ter uma prestação bem mais "honorable" que outras figuras que a história política francesa quase não notou no mesmo lugar.

Há dias, vi numa livraria parisiense que tinha publicado uma memória desses tempos de governo. Ainda não li o livro todo, mas não deixa de ser curiosa a confissão que nele faz sobre as tentações que teve face ao seu colega de executivo Laurent Wauquiez, a quem revela ter lançado "un regard langoureux" e que define da seguinte e elucidativa forma: "un beau gars dans le genre qu'on regarde dans les vestiaires après un match de foot et à qui on parle de filles en pensant éventuellement à autre chose". Estou curioso em conhecer a reação de Waquiez a esta declaração.

Por aqui se fica a perceber que a tentação, no seio dos Conselhos de ministros, é um tema a explorar. E por cá? Como terá sido, desde sempre?

sexta-feira, janeiro 24, 2014

Notícias do caos

Foi uma relação de simpatia pouco vulgar aquela que se estabeleceu entre aquele credenciado diplomata português e um seu homólogo soviético, em tempo de Guerra Fria, num contexto internacional particular. A história ficou nos anais diplomáticos portugueses.

O tema da conversa era a França, onde o diplomata português estava colocado.

- É mesmo verdade que, em França, é possível a um cidadão estabelecer-se em qualquer cidade que seja do seu agrado, sem necessitar de autorização oficial?

- Claro que sim! Desde que tenha meios para isso, não há qualquer limitação no que toca ao lugar onde pretende morar.

- E a compra de carro? Falaram-me que não é preciso inscrição para a sua aquisição...

- Quem pretender um carro e tiver dinheiro para o comprar dirige-se a um stand e adquire-o. Pode ficar com ele de imediato.

A conversa prosseguia nestes termos, com questões sobre a liberdade de escolha dos cursos ou outras que acabavam por espelhar o contraste entre o modelo soviético e o quadro de liberdade das sociedades de mercado. A certo passo, confirmadas que tinham sido pelo colega português a liberalidade de várias dessas práticas de vida no Ocidente, o interlocutor soviético exclamou:

- Então não é só propaganda?! É mesmo o caos...

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Luis Gaspar da Silva

Foto de Alexandre Almeida
 
Foi uma tarde de verão de 1975, no gabinete do Nuno Brederode Santos, então diretor do gabinete de Estudos do MNE. Eu ainda não entrara na carreira, mas estava admitido, depois do concurso feito. Andava já pelos corredores da casa, pela mão de António Franco. Estávamos uns quantos à conversa. Entrou na sala Luís Gaspar da Silva, diplomata, socialista, grande, com um imenso vozeirão.

(O 4° governo provisório, que o PS e o PPD tinham abandonado, estava no seu estertor. Vasco Gonçalves fazia convites para o 5° governo, falhada que fora a hipótese do chamado "governo Fabião", uma construção melo-antunista que nunca chegaria a ver a luz do dia, por oposição da "esquerda militar" (leia-se, os oficiais próximos do PCP). Os socialistas estavam furiosos com o "companheiro Vasco", que, não sem alguma razão, consideravam um dos principais culpados da radicalização que o país atravessava. Os militares que eram considerados como próximos dos socialistas, o "grupo dos nove", tinham acabado de tornar público um "documento" que consagrava uma importante rutura dentro do Movimento das Forças Armadas. Os dias iam complicados, nesse "Verão quente".)

Gaspar olhou os circunstantes e, não me conhecendo, disse alto, apontando-me: "este tipo é de confiança?" Os sorrisos ou alguma palavra do Nuno Brederode ou do António Franco tê-lo-ão sossegado. (Na realidade, eu não era totalmente "de confiança". Não sendo um "gonçalvista", também não me revia então na linha dos "nove", mas os meus amigos sabiam-me discreto). Contou que um outro diplomata, então diretor-geral, Magalhães Cruz, tido como simpatizante de esquerda, havia recusado o posto de MNE. Julgo que era essa a aposta dos socialistas: nenhum diplomata aceitar ser ministro nas Necessidades, num governo Vasco Gonçalves. Isso iria acontecer. O lugar acabou por ser ocupado por Mário Ruivo. E, curiosamente, eu iria ser indicado para o seu gabinete, só não tendo tomado posse porque, breves semanas depois, o 5º governo "caiu".

Foi esse o dia em que conheci Luís Gaspar da Silva, que me disseram que morreu hoje.

Nunca fui seu íntimo, mas mantinha com Gaspar - era assim que a casa o conhecia - uma relação muito cordial, com ele a insistir que nos tratássemos por tu e eu sempre a recusar deixar de chamar-lhe "senhor embaixador". Fomo-nos encontrando pelas várias cidades onde a sua carreira diplomática e política (foi secretário de Estado da Cooperação num governo socialista) o levou.

Dele já contei duas histórias neste blogue. Que hoje deixam de ser anónimas.

A primeira é a da sua fantástica apresentação de credenciais como embaixador no Nepal, por ele próprio relatada numa divertida noite, em minha casa, em Luanda. Pode ser lida aqui.

A segunda historieta é também um "must" das Necessidades. Nela contei o resultado de um dos famosos amplexos que Gaspar dava aos amigos, em gestos de afetividade física que ficaram na memória da casa.

Conta-se um outro episódio no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Gaspar e Lara tinham convivido, nos tempos da universidade, em Coimbra. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo. Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar um amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo  o seu antigo colega da "Via Latina", a revista coimbrã onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.

Gaspar da Silva convidou-me um dia para ser seu nº 2 em Paris, lugar que, por razões que não vêm para o caso, não pude aceitar. E seria aqui em Paris, onde casualmente estou hoje e ele foi embaixador durante vários anos, precisamente na mesma sala onde agora escrevo esta memória, ao correr da tecla, que dele guardo a última imagem, em abril de 1988, na noite de uma eleição presidencial francesa. Estava toda a gente à volta da televisão. Vicente Jorge Silva estava na sala, de visita. Homem de certezas, Gaspar adiantava-nos percentagens "seguras", de fonte "limpa", credibilizando-as com a frase: "deu-mas o meu 'américas' ", aparentemente um contacto fiel que tinha na embaixada americana em Paris. Não faço ideia se acertou.

Por coincidência, e ao que me recordo, poderá ter sido essa a última vez que o vi. Há mais de um quarto de século. Trocámos cartas anos mais tarde, mas nunca mais nos encontrámos. Deixo aqui os meus sinceros sentimentos à sua família.

Gastronomia

Hoje, em Paris, começo o dia em estágio para uma laboriosa "session de travail" da "Académie des Psychologues du Goût", que se desenrola por cerca de três horas. Pela minha experiência destes pesados exercícios, dificilmente terei disponibilidade para escrever mais um post. Assim, até amanhã.

Em tempo: afinal, a morte do meu colega Luís Gaspar da Silva obrigou-me a escrever outro post, durante o dia de hoje.

Desde Rusia

No início dos anos 40 do século passado, o jovem oficial do Exército português António Sebastião Ribeiro de Spínola integrou, como observador, a "Divisão Azul" das forças armadas alemãs durante o ataque à Rússia.

Não sei qual era o grau de convívio de Spínola com os espanhóis que integravam essa "Divisão Azul", chefiado por Muñoz Grandes, que entre eles cantavam a canção "Desde Rusia", que tinha a seguinte letra:

En las estepas de Rusia,
España luta con ardor,
unida con Alemania
por una España mejor.

Y quando a España volvamos
de nuevo queremos luchar,
y al inglés echaremos
del Peñon de Gibraltar.

Nuestro grito de victoria
en el mundo entero lo oirán,
cuando recuperemos
todo Marruecos y Orán.

Solo esperamos la orden
que nos dé nuestro General,
para borrar la frontera
de España con Portugal

y cuando eso consigamos
alegres podremos estar,
porque habremos logrado
hacer una España imperial.

Descobri esta canção, bem simbólica de um outro tempo, num livro que hoje encontrei em Paris. Pergunto-me: Spínola conhecê-la-ia?

quarta-feira, janeiro 22, 2014

A Confiança no Mundo

No próximo dia 29 de janeiro, na Universidade de Trás-os-Montes, em Vila Real, vou apresentar o livro "A Confiança no Mundo - a Tortura em Democracia", de José Sócrates.

Trata-se de uma obra que aborda um tema muito controverso, que se tornou mais atual após o 11 de setembro.

Em tempo: a caixa de comentários está aberta...

Um diplomata na Revolução

Na passada sexta-feira, à volta de um café nos couros queirosianos do Grémio Literário, um capitão de abril lembrava-me que fora daquele mesmo local que, em 25 de abril de 1974, um diplomata português, então no exercício de funções políticas, organizara a mediação entre Marcelo Caetano e António de Spínola, que acabou com a rendição do chefe do governo, aquando da célebre deslocação de Spínola ao Carmo. 

O diplomata chamava-se Pedro Pinto e era, à altura, subsecretário de Estado da Informação. Morreu há semanas. Nesse dia, ao aperceber-se pela rádio do impasse que estava criado no largo do Carmo, com o quartel da GNR rodeado pelas tropas de Salgueiro Maia, que se confrontava com a recusa de Caetano de se render às forças do Movimento das Forças Armadas, Pedro Pinto tomou a iniciativa de enviar ao Carmo o diretor-geral da Informação, Pedro Feytor Pinto, acompanhado de Nuno Távora. Feytor Pinto, homem muito próximo de Caetano, constatou então a disponibilidade deste último de se render, evitando o assalto ao quartel pelas forças do MFA que estava iminente, desde que o poder "não caísse na rua". Caetano aceitou a hipótese de transmitir o poder a António de Spínola que, para tal, foi mandatado pelo Movimento, depois de uma chamada telefónica para o "posto de comando" do MFA, na Pontinha. 

A iniciativa de Pedro Pinto terá tido duas consequências importantes. Por um lado, terá evitado um número significativo de vítimas, que o assalto ao quartel e a reação das respetivas tropas iriam seguramente provocar, não apenas entre militares mas igualmente entre os milhares de civis que enchiam o Carmo, bem como nas famílias dos GNR, que com eles viviam no quartel. A decisão de ataque ao quartel fora já tomada, tendo Salgueiro Maia recebido ordem escrita de Otelo Saraiva de Carvalho para assim proceder, depois das muitas horas de impasse que se viveram.

Mas houve uma consequência política muito importante que a espetacular deslocação de Spínola ao Carmo acabou por ter. O general, que estava a par do Movimento mas que estava longe de ser o seu líder ou sequer a personalidade que o MFA pretendia ver à frente da nova Junta de Salvação Nacional, terá ganho, pelo protagonismo criado nesse momento, uma vantagem imediata na luta pelo poder. Esta sua momentânea proeminência desequilibrou, em definitivo, a relação de forças em seu favor, potenciando a retração de Costa Gomes para assumir a liderança da Junta. A História seria seguramente muito diferente se tivesse sido este último e não Spínola a titular a Revolução.

Se acaso Caetano se tivesse rendido a Salgueiro Maia, se tivesse sido preso e posteriormente julgado com outros responsáveis pelos crimes regime ditatorial, talvez tivesse sido possível fazer o processo do "Estado Novo", talvez os agentes da PIDE e os magistrados cúmplices dos Tribunais Plenários tivessem sido condenados. Nada assim aconteceu. Sem consultar o MFA, contrariando os termos do "memorando" assinado na Pontinha na noite de 25 de abril, a Junta decidiu, poucos dias depois, exilar Caetano, Tomaz e outras figuras para o Brasil. Se os mandantes tinham sido postos a salvo, que legitimidade tinha a condenação dos subordinados? 

Hoje, dia em que falo em Paris sobre a Revolução de abril, apeteceu-me lembrar este episódio e o papel histórico que um diplomata português acabou por nela desempenhar.

terça-feira, janeiro 21, 2014

O novo oásis

Num dia de Julho de 2011, ao tempo em que era embaixador em Paris, fui a uma televisão debater com um representante de uma agência de “rating” a forte degradação da nota portuguesa, pouco depois da assinatura do Memorando com a Troika. Em irónica esquizofrenia, puniam-se as novas medidas de ajustamento com que Portugal se acabara de comprometer dado o seu impacto recessivo. À saída, o meu interlocutor, disse-me: “Portugal não é o problema. A questão para o euro está na Espanha e na Itália. No dia em que a Europa conseguir convencer os mercados de que suportará aqueles países, a vossa vida tornar-se-á mais fácil”.

Tinha razão. A partir do momento em que a acção persistente do BCE convenceu os mercados da determinação europeia em sustentar a moeda única, quando os fantasmas sobre as economias espanhola e italiana começaram a dissipar-se, as pressões dos mercados atenuaram-se. Isso reflectiu-se sobre as taxas de juro portuguesas, ajudadas pelo facto da Troika premiar, em nome dos credores, o zelo do governo nas medidas para o ajustamento. Taxas que, contudo, continuam incomportáveis, afectando já bastante a taxa média da nossa dívida, o que suscita, aliás, questões de fundo a que todos fogem.

Gostava de voltar ao Memorando, que hoje já ninguém lê, e aos seus objectivos: “Reduzir o défice das Administrações públicas para (…) 5.524 milhões de euros (3% do PIB) em 2013, através de medidas estruturais de elevada qualidade, minimizando o impacto da consolidação orçamental nos grupos vulneráveis. Baixar o rácio da dívida sobre o PIB a partir de 2013”. Onde tudo isso vai!

Como dizia o outro, é fazer as contas. O défice não será de 3%, mas cerca de 5,5%, e, em lugar dos 5.220 milhões de euros previstos, os números mostram que estamos acima de 9.000 milhões “Medidas permanentes de alta qualidade” pouco se vêem, com meros cortes ad hoc a serem os responsáveis essenciais pelo conseguido. Quanto à minimização do “impacto da consolidação orçamental nos grupos vulneráveis”, estamos conversados. O rácio da dívida sobre o PIB não só não declinou a partir de 2013 como aumentou nesse mesmo ano. Não acertaram uma!

Abstenho-me de elaborar sobre um desemprego que se mantém a níveis altíssimos, não obstante uma emigração que está já nas médias mais altas do século passado (com um inédito “brain drain”), números impressionantes de falências, um forte empobrecimento da classe média e camadas mais indefesas, esmagadas por aumentos nos transportes, na energia, na saúde, etc. Esqueçamo-nos também de um país dividido como nunca, onde se incita o privado contra o público, os novos contra a “peste grisalha”, os activos contra os pensionistas.

A Troika vai sair, nós ficaremos por cá, na convalescença do “sucesso”, a caminho do novo oásis. As eleições são dias depois. Aposto em como vai haver dinheiro para os foguetes. 


Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...