Nesta cálida noite de Vila Real, lembrei-me do José Araújo, o Zé "Foquita", como a cidade lhe chamava, sei lá bem porquê.
Um dei hei-de aqui falar um pouco mais do Zé, esse amigo, um pouco mais velho do que eu, que já se foi há um bom par de anos. O seu primeiro carro, que me lembre, era um "Mini", que comprou no regresso da tropa. Nele se passeava, ar grave e melena ao vento, pelas noites de Vila Real. O Zé não era uma pessoa fácil, irritava-se por dá-cá-aquela-palha, por isso tinha poucos mas fiéis amigos. Com orgulho, fui um deles. Foram décadas de conversas, intervaladas por longos meses e por universos pessoais cada vez mais distantes, mas próximos pelo passado comum. Sempre que nos encontrávamos, reatávamos a charla como se a última tivesse sido na véspera.
Na Vila Real da minha juventude, o "passeio dos tristes" automobilístico fazia-se pelo tradicional circuito, um percurso na periferia urbana, com 6.925 metros, como sempre aprendi, onde anualmente se faziam "as corridas" - uma "mania" da cidade introduzida ainda na primeira metade do século passado, que, aí por julho, lhe dava um ar cosmopolita e a colocava no mapa do desporto nacional. O circuito teve altos e baixos, tendo sido reativado - e bem - este ano, embora já com percurso diverso do tradicional.
A "volta ao circuito" - onde nunca pensei acabar por vir morar, quando agora por aqui passo uns dias - iniciava-se pela "marginal". (Vila Real não parece mas tem um rio, "lá ao fundo", o Corgo, que se junta com o Cabril "atrás do cemitério" e que dá um ar da sua graça no inverno, e daí a "ousadia" de pretender ter uma "avenida marginal", que não tem esse nome, mas que conhecemos assim, os que a vimos nascer). Saía-se para o circuito pela garagem Loureiro, junto ao quartel velho, passavam-se as tascas do Necas e do Carrico, logo depois eram a casa do Salsa Verde e a "do brasileiro", seguia-se à borda da imensa quinta do Teixeirinha até ao cruzamento para o quartel novo e à garagem Renort. Descia-se então à ponte da Timpeira (antecedida de duas curvas históricas), subia-se por Abambres, passando pela tasca da Maria do Carmo (hoje um simpático restaurante), atravessando a linha do comboio. Pouco depois, chegava-se à celebrada reta de Mateus (bem pequena, aliás), com a tasca do Coelho, antes de começar a descer, abordando as difíceis curvas de entrada e saída do Bairro dos Prazeres. Prosseguia-se o caminho estreito para a ponte metálica, passando antes entre a garagem do Antoninho do Talho e a casa do Granjo, para logo surgir a passagem de nível da estação ferroviária e o colégio. Ultrapassada a ponte e a subida pela tasca da Cardoa, chegava-se à difícil curva da Areias (pensão histórica da cidade) ou da Salsicharia, dependendo do ângulo e dos gostos. E, lá ao fundo, depois da entrada para o parque florestal e da garagem do Rosas, fechava-se "a volta ao circuito". Que estranho! Um circuito de garagens e tascas, deverá estar a pensar o leitor. E fui parco, creia, na menção das últimas...
Na minha vida, devo ter feito este percurso do circuito largas centenas de vezes, frequentemente à conversa, "nas calmas", ouvindo música, noutras ocasiões "a acelerar", em "picanços" noturnos, a que sobrevivi incólume, ao contrário de outros, menos felizes. É que era assim a vida nesta cidade pequena, algo abafada e monótona, no final dos anos 60 e início dos 70.
Também com o meu amigo Zé "Foquita" fiz muitas dezenas "de circuitos", sempre devagar, conversando, ele fumando os muitos sonhos nunca realizados, eu "pintando-lhe" a vida do Porto e, depois, de Lisboa, onde entretanto passara a viver. Nesses tempos do petróleo a pataco, ainda os árabes andavam quietos e baratos, recordo-me de metermos "sete e quinhentos da normal", na bomba do Platas, em frente ao Tocaio, apenas para dar uma volta ao circuito. Mas, com ele, não me recordo de ter feito nunca o percurso no sentido que atrás descrevi. Fi-lo sempre na direção inversa. O Zé obstinava-se em percorrer o circuito "ao contrário dos ponteiros do relógio", ao reverso do das "corridas". Sempre. Porquê? Provavelmente porque, como dizia o meu pai de algumas pessoas teimosas, ele sempre "andava contra o vento". Nunca soube porque o fazia e também creio que nunca lhe perguntei. É melhor assim. Ter pequenos e desimportantes mistérios que nos ficam para a memória feliz da vida.