quinta-feira, agosto 28, 2014

Os ponteiros do Zé Foquita

Nesta cálida noite de Vila Real, lembrei-me do José Araújo, o Zé "Foquita", como a cidade lhe chamava, sei lá bem porquê. 

Um dei hei-de aqui falar um pouco mais do Zé, esse amigo, um pouco mais velho do que eu, que já se foi há um bom par de anos. O seu primeiro carro, que me lembre, era um "Mini", que comprou no regresso da tropa. Nele se passeava, ar grave e melena ao vento, pelas noites de Vila Real. O Zé não era uma pessoa fácil, irritava-se por dá-cá-aquela-palha, por isso tinha poucos mas fiéis amigos. Com orgulho, fui um deles. Foram décadas de conversas, intervaladas por longos meses e por universos pessoais cada vez mais distantes, mas próximos pelo passado comum. Sempre que nos encontrávamos, reatávamos a charla como se a última tivesse sido na véspera.

Na Vila Real da minha juventude, o "passeio dos tristes" automobilístico fazia-se pelo tradicional circuito, um percurso na periferia urbana, com 6.925 metros, como sempre aprendi, onde anualmente se faziam "as corridas" - uma "mania" da cidade introduzida ainda na primeira metade do século passado, que, aí por julho, lhe dava um ar cosmopolita e a colocava no mapa do desporto nacional. O circuito teve altos e baixos, tendo sido reativado - e bem - este ano, embora já com percurso diverso do tradicional.

A "volta ao circuito"  - onde nunca pensei acabar por vir morar, quando agora por aqui passo uns dias - iniciava-se pela "marginal". (Vila Real não parece mas tem um rio, "lá ao fundo", o Corgo, que se junta com o Cabril "atrás do cemitério" e que dá um ar da sua graça no inverno, e daí a "ousadia" de pretender ter uma "avenida marginal", que não tem esse nome, mas que conhecemos assim, os que a vimos nascer). Saía-se para o circuito pela garagem Loureiro, junto ao quartel velho, passavam-se as tascas do Necas e do Carrico, logo depois eram a casa do Salsa Verde e a "do brasileiro", seguia-se à borda da imensa quinta do Teixeirinha até ao cruzamento para o quartel novo e à garagem Renort.  Descia-se então à ponte da Timpeira (antecedida de duas curvas históricas), subia-se por Abambres, passando pela tasca da Maria do Carmo (hoje um simpático restaurante), atravessando a linha do comboio. Pouco depois, chegava-se à celebrada reta de Mateus (bem pequena, aliás), com a tasca do Coelho, antes de começar a descer, abordando as difíceis curvas de entrada e saída do Bairro dos Prazeres. Prosseguia-se o caminho estreito para a ponte metálica, passando antes entre a garagem do Antoninho do Talho e a casa do Granjo, para logo surgir a passagem de nível da estação ferroviária e o colégio. Ultrapassada a ponte e a subida pela tasca da Cardoa, chegava-se à difícil curva da Areias (pensão histórica da cidade) ou da Salsicharia, dependendo do ângulo e dos gostos. E, lá ao fundo, depois da entrada para o parque florestal e da garagem do Rosas, fechava-se "a volta ao circuito". Que estranho! Um circuito de garagens e tascas, deverá estar a pensar o leitor. E fui parco, creia, na menção das últimas...

Na minha vida, devo ter feito este percurso do circuito largas centenas de vezes, frequentemente à conversa, "nas calmas", ouvindo música, noutras ocasiões "a acelerar", em "picanços" noturnos, a que sobrevivi incólume, ao contrário de outros, menos felizes. É que era assim a vida nesta cidade pequena, algo abafada e monótona, no final dos anos 60 e início dos 70. 

Também com o meu amigo Zé "Foquita" fiz muitas dezenas "de circuitos", sempre devagar, conversando, ele fumando os muitos sonhos nunca realizados, eu "pintando-lhe" a vida do Porto e, depois, de Lisboa, onde entretanto passara a viver. Nesses tempos do petróleo a pataco, ainda os árabes andavam quietos e baratos, recordo-me de metermos "sete e quinhentos da normal", na bomba do Platas, em frente ao Tocaio, apenas para dar uma volta ao circuito. Mas, com ele, não me recordo de ter feito nunca o percurso no sentido que atrás descrevi. Fi-lo sempre na direção inversa. O Zé obstinava-se em percorrer o circuito "ao contrário dos ponteiros do relógio", ao reverso do das "corridas". Sempre. Porquê? Provavelmente porque, como dizia o meu pai de algumas pessoas teimosas, ele sempre "andava contra o vento". Nunca soube porque o fazia e também creio que nunca lhe perguntei. É melhor assim. Ter pequenos e desimportantes mistérios que nos ficam para a memória feliz da vida.

quarta-feira, agosto 27, 2014

À conversa na "Gomes" (1)

- Gostas mais dos covilhetes* frios ou quentes? 
- Depende. É como a vingança. 
- Essa agora!?
- Ó pá! É assim: se a afronta foi recente, é na hora, a quente, saído do forno. Se já passou há muito, serve-se frio e também sabe bem.
- Eu gosto do covilhete aquecido...
- Aquecido é que nunca: fica morno demais para o meu gosto. Ou oito ou oitenta!
- Nem te estou a conhecer! Costumas ser mais equilibrado. Hoje pareces irritadiço!
- Se calhar estou a precisar de férias...
- Mas tu não estás reformado?
- Nem sei bem! Às tantas, estou a precisar de ter férias desta reforma. Faz-me falta o dia-a-dia de Lisboa.

* o covilhete é um pastel de carne e massa folhada, especialidade de Vila Real. A pastelaria Gomes gaba-se de ter os melhores da cidade

Concurso de misses?

Olhando para as redes sociais - acho graça ao conceito: aqui há uns anos, "ter redes sociais" significava ter bons contactos no eixo Lapa-Linha ou Gomes da Costa-Foz - dou-me conta do desprezo que muitos votam ao debate de ideias concretas na contenda pela liderança do PS. 

(Quando falo de ideias concretas não me refiro a platitudes, como "ser contra esta austeridade que falhou ", "ser favorável a estímulos ao crescimento da economia", ter "políticas amigas do emprego",  "relançar políticas públicas sustentáveis", "afirmar uma voz ativa na Europa" e outras coisas deste estilo piedoso. Ideias é mostrar, no concreto, como é que os candidatos do PS a primeiro-ministro querem construir um orçamento alternativo para 2016. É isso que se lhes pede.)

De ambos os lados do cenário, perpassa cada vez mais a mensagem de que o importante é a personalidade dos competidores, a sua resiliência (o termo entrou no léxico político recente e já fede) perante as dificuldades, a imagem de competência e/ou firmeza e/ou determinação e/ou simpatia que projetam. Ah! e a confiança, que é assim a modos como uma fezada com prazo de validade indeterminado, isto é, até ao dia em que, confessando ou não, os políticos deixam de fazer aquilo que prometeram.

Conduzido o debate para este terreno fulanizado, os próceres e os próprios candidatos foram levados a pisá-lo, mesmo com algum despudor. António José Seguro foi o primeiro a fazê-lo, com acusações personalizadas que pareceram às vezes tocar questões de caráter. Não foi bonito de ser ver. António Costa resistiu mais, mas, nos últimos tempos, começou já a emitir alguns juízos sobre a figura do seu adversário, contestando a sua consistência política. Apesar de tudo tem sido mais contido. Quanto às "cortes" respetivas, então bem uma para a outra. Dizer que tudo isto era inevitável, numa campanha deste tipo, é apenas uma forma "self-deprecating" de insultar o PS. O PS, que foi e é um grande partido da História contemporânea portuguesa, é muito melhor que este "concurso de misses" que parece estar em curso. E convém lembrar que Costa e Seguro, como sói dizer-se no povo, "são do melhorzinho que por lá há", pelo que têm obrigação de estar à altura do desafio.

Os debates que aí vêm são assim uma oportunidade soberana para os candidatos à liderança do PS fazerem uma "desmontagem" criativa da ação do governo e, em cada passo, dizerem concretamente como tencionam corrigir o que foi mal feito. Isso nem parece muito difícil, perante os tão catastróficos resultados da ação governativa. Explicar que, no "novo oásis", as taxas de juro relevam exclusivamente da Europa (como os outros "ajustamentos" mostram à saciedade) e que os números do défice (ainda assim, muito maus) têm obrigatoriamente de ser comparados com a dívida mostruosa que este governo criou para as gerações futuras, não se afigura tarefa impossível. Ah! E há o desemprego! De facto, depois de o ter feito disparar a cifras imemoriais, ele tem vindo a ser reduzido, ajudado pela emigração maciça. Ainda bem! Por este andar, um destes dias, vão mesmo conseguir aproximá-lo dos níveis herdados do governo Sócrates...

terça-feira, agosto 26, 2014

Socialistas - os franceses e os nossos

Como não vejo televisão há vários dias, desconheço se alguém perguntou já a António José Seguro ou a António Costa se acaso discordam, numa vírgula que seja, do discurso de Arnaud Montebourg sobre a necessidade do fim da austeridade e dos seus apelos a políticas europeias promotoras do crescimento e do emprego. É que, à parte as tradicionais tiradas de nacionalismo económico protecionista gaulês, e para além das críticas abertas a Angela Merkel, o que ouvi de Montebourg leva diretamente, quase linha por linha, àquilo que ambos os candidatos à liderança socialista, aliás como o PS português no seu todo, têm vindo a defender nos últimos anos.

Ora foi a persistência pública nesse discurso, com o apoio expresso de dois outros ministros, que levou ao respetivo afastamento do governo de Manuel Valls. Porque a lógica não deveria ser uma batata, seria legítimo concluir que a política que Valls procurará imprimir ao seu governo deveria contrariar as posições de Montebourg - caso contrário este não teria saído. Isto significa, para fechar o círculo, que os socialistas portugueses estariam hoje em contraciclo com os seus camaradas franceses.

Pois isso! A política é o que é: Hollande e Valls dirão que o que os separava de Montebourg eram apenas meras "nuances" no prosseguimento de uma mesma política e talvez discordâncias no modo de a explicitar. Por cá, Costa e Seguro dirão que não querem imiscuir-se na vida interna do partido-irmão francês e que continuam a contar (e aqui improviso) "com a já afirmada determinação dos socialistas franceses para se aliarem a quantos, como é o caso do PS português, se batem na Europa pelo fim das nefastas políticas de austeridade, que não só aumentaram exponencialmente as dívidas soberanas nacionais, mas igualmente agravaram as fraturas sociais, afetaram gravemento o tecido das políticas públicas, arruinando largos setores da economia e destruindo, a prazo, as hipóteses de um crescimento sustentado, ao mesmo tempo que potenciaram o desemprego e, no caso português, provocaram uma onda de emigração qualificada que descapitalizou fortemente os recursos humanos do país".

E não é que tudo isto - digam Montebourg ou Costa ou Hollande ou Seguro o que entretanto disserem - é pura verdade?! Mas então, se as diferenças não são assim tão grandes entre todos, por que diabo Montebourg foi obrigado a demitir-se? Pela mesma razão que, por cá e naquilo que os socialistas portugueses digam ou possam vir a dizer e que se ouça na Europa, o peso das palavras e da sua oportunidade tem de ser sempre muito bem medido. Seguro e Costa deviam olhar bem para esta crise governamental francesa e dela tirarem algumas lições para o cuidado a ter na formatação do seu discurso futuro "para fora". E nós não somos a França, não se esqueçam!

Um traumatismo ucraniano

Depois de vermos um verme político islamita a decapitar um pobre refém, ou um par de "valentes" do Hamas a liquidarem sumariamente informadores de Israel, a nossa capacidade para nos chocarmos começa a reduzir-se. Os Balcãs já nos tinham ensinado muito. Mesmo assim, devo dizer que não estava preparado para assistir à vileza dos pró-russos, ao paradearem e achincalharem os prisioneiros fiéis ao governo de Kiev, através das ruas de Donetsk. Confesso que aquilo foi, para mim, um trauma que não esperava ter.

Em muitas destas histórias da política intermacional quase nunca há inocentes e, no caso ucraniano, ainda menos. O que se passa em Kiev está muito longe de ser a "história da carochinha" que alguma imprensa ocidental quer fazer crer, com os "bons" em Kiev e os "maus" em Donetsk e em Moscovo. Entre os "libertadores" da praça Maiden, que escolheu de "mão no ar" o governo que substituiu o poder de um presidente livremente eleito, segundo uma constituição que tinha sido adotada em liberdade, estavam algumas figuras sinistras que, quase aposto, farão parte daquilo que prevejo venha a ser o triste futuro daquele pobre país. Do "outro lado", também não estão nenhuns "meninos do coro": o autoritarismo que começa a ser insuportável de Vladimir Putin, que "czareia" uma Rússia que volta à "teoria do cerco" e parece só saber viver com a sua vizinhança destabilizada, testou a comunidade internacional com um "golpe de mão" sobre a Crimeia, dando de barato que esta apenas o "bombardearia" com declarações sonantes e algumas sanções de efeito variado. E acertou.

No meio de tudo isto, os russos da Ucrânia oriental, animados com o sucesso da Crimeia, tentaram uma prova de força que só teria viabilidade se Moscovo os apoiasse militarmente (mas de forma aberta, porque é óbvio que a Rússia já o fez e faz de forma encapotada). Minoria clara num país apostado em esmagá-la (numa Europa em que se defendem tanto as minorias, foi sempre muito cínico por parte da UE o esquecimento da sorte dos russos da Ucrânia, como o tem sido, desde há anos, a das minorias, também "por coincidência" russas, nos Estados bálticos), esse grupo enveredou por uma estratégia de confrontação desesperada, quiçá à espera da ajuda externa que acharia natural. Ainda não se percebe até onde o que por lá se passa vai chegar, embora a sucessão dos factos quase nos tenha feito esquecer a barbaridade sobre o avião civil da Malásia. Mas agora vimos melhor o que a guerra pode fazer à "cabeça" daquela gente.

O que se passou em Donetsk é a prova provada de que a canalhice não é um defeito apenas individual. A incrível humilhação infligida aos soldados fiéis a Kiev prova que há também nacionalismos canalhas, mostra bem - como com os islamitas do ISIS ou os radicais do Hamas - como o fanatismo pode trazer ao de cima o pior que há nas pessoas. Mas o mundo civilizado - porque ainda há um mundo mais civilizado do que outros - só terá um dia autoridade moral para julgar tudo isto quando, de igual forma, souber condenar, sem viés ideológico ou "parti-pris" geopolítico, todas as canalhices. E não apenas as que derem jeito às suas guerras de interesses. 

segunda-feira, agosto 25, 2014

O erro de Ferreira Fernandes

Como os leitores deste blogue já terão notado, estou frequentemente de acordo com Ferreira Fernandes, nos comentários que faz na sua coluna na última página do DN. Mas, como é da vida, há exceções. Ontem foi uma delas.

Ferreira Fernandes, num exercício desafiador aos dois contendores pela liderança do PS, incita-os a porem cobro à prática lançada pelas estruturas distritais de Braga daquela estimável agremiação partidária no sentido de manter, quiçá mesmo de inscrever, alguns mortos nas suas listas. Insurge-se contra esta iniciativa, colando-se ao argumento de que isso pode distorcer a verdade do resultado eleitoral. O preciosismo é eticamente frágil e historicamente desrespeitador.

Sobre a ética, deixo a apreciação do mérito dos autos ao juízo de cada um quanto à moralidade das lideranças socialistas locais. Já quanto à História, alto aí! Um partido não nasce hoje, acarreta consigo uma memória, dele fazem parte os que cá estão, mas que não estariam onde estão se um passado não tivesse sido construído por quantos, entretanto, já se libertaram da chatice da lei da vida. Alguém que ajudou a construir um partido, apenas pelo conjuntural facto de ter deixado de ter participação ativa no quotidiano da existência, deixa de "existir"? Que leitura mais simplista!

Noutro registo, que seria da toponímia se nos esquecêssemos de quem fez as instituições? Acaso não recorda Ferreira Fernandes, ao subir diariamente o elevador da casa que já foi da Moagem e que hoje é cada vez mais do dinheiro vivo do senhor Mosquito, figuras venerandas de antigas direções do seu jornal, seja um dos meus antecessores na embaixada em Paris, Augusto de Castro, seja aquele que com ele próprio partilha as iniciais, Fernando Fragoso, cujos impagáveis editoriais me divertiam as manhãs da "primavera" pré-abril? O passado, caro Ferreira Fernandes, mesmo enterrado, está aí! Como dizia um filósofo de Santa Comba, "só havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem". 

O PS de Braga, ao prolongar a presença de ilustres mortos nas suas listas - e são muitos! - revela uma apreciável devoção por um passado que, naquele partido e naquela cidade, não tem - não temos! - o direito de esquecer. Será que um Armando Bacelar, que nos idos da CEUD de 1969, por ali levantava com coragem a voz socialista contra os Santos da Cunha da época, e apenas pelo facto de ter desaparecido da lista dos vivos, merece ter uma palavra menos pesada nos destinos do PS local do que aqueles que, também em nome do partido, votaram a estátua de um cónego ou de quantos, ao longo dos anos, parquearam interesses ao lado de um empreendedor com o sugestivo nome de Névoa? Há mortos cuja voz dignifica mais um partido do que muitos que hoje por lá andam.

O PS de Braga só prova que não esquece Lopes Graça quando, no seu "Vozes ao alto!", proclamava: "E até mortos irão ao nosso lado". Deixe os mortos socialistas votar em paz, meu caro Ferreira Fernandes! Deixe-os participar na vida do partido, até porque por lá permanecem alguns vivos a fazer de mortos e outros que já o estão e ainda não se deram conta disso. E a única forma de não ter de descriminar entre toda essa fauna é deixá-los votar a todos. Até porque, como também dizia o outro, e no estado em que isto anda, "todos não somos demais"...

domingo, agosto 24, 2014

António Guterres

Está agora na moda falar-se de António Guterres para a presidência. Alguma esquerda suspira já por ele em público, a restante sentir-se-ia aliviada se acabasse por vê-lo em Belém, depois da década que atravessou. Sem inocência, a direita, que o teme como a ninguém, lança cada vez mais o seu nome, técnica vetusta de o tentar ir queimando em lume brando, ainda a quase 18 meses do ato eleitoral.

Faço, desde já, uma declaração de voto: se Guterres for candidato, apoiá-lo-ei com entusiasmo. E creio que não vale sequer a pena estar por aqui a explanar as razões por que o faço. Trabalhei com ele no governo e conheço as suas qualidades e qualificações.

Não faço a menor ideia se Guterres irá candidatar-se. Acho, com a maior franqueza, que se acaso, nos tempos que correm, ele tivesse dois botões à sua frente, em que pudesse definir definitivamente a sua posição sobre o assunto, um com um "sim" e outro com um "não", ele inclinar-se-ia por pressionar o "não". Tenho esta profunda convicção.

Ainda bem que ele não tem essa possibilidade. Isso significa que continua a existir a hipótese de uma das mais competentes, bem preparadas e eticamente irrepreensíveis personalidades portuguesas poder vir a assumir a chefia do Estado. E isso não é pouco.

sábado, agosto 23, 2014

Ainda Viana

                      

Hoje, ao assistir ao tradicional Cortejo Histórico, um ponto sempre cimeiro das Festas da Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, e ao ouvir durante horas - nas vozes e nas bandas - o "Havemos de ir a Viana", escrito por Pedro Homem de Mello, musicado por Alain Oulman e que Amália consagrou, dei comigo a pensar em como esta cidade ficou a dever tanto a essa composição, que todos os portugueses trazem no ouvido. Quantos não terão vindo a Viana, ao longo dos anos, também pelo apelo da canção!

Mas, logo de seguida, mudei de ideias. Quantas localidades poderiam ter inspirado um poeta e um compositor genial, e mobilizado "a voz nacional", como Viana do Castelo? Das canções com algum destaque nacional assentes em nomes de localidades portuguesas - Lisboa e Coimbra, claro, mas também Porto, Porto Covo, Figueira da Foz, Porto Santo, Miranda do Douro, Ericeira, Elvas ou Alcobaça e não sei se me esqueci de alguma * - nenhuma tem o qualidade poética e musical da que levou Viana pelo mundo. Não terá sido afinal a esta cidade ímpar que ficaram devedores dessa inspiração?

* afinal tinha esquecido Grândola, Olhão e Covilhã

Senhora da Agonia

Ainda fui a tempo, despachado a meio da tarde da terra das tulipas, de chegar a Viana a tempo de ver o "fogo da festa" e comer uma fartura bem acervejada. Hoje, sábado, teremos os "gigantones e cabeçudos", o cortejo e a "festa do traje", seguido do "fogo do meio". E domingo as "festas" prosseguem.

Esta é a maior e mais bela romaria do país. "Sofri-a" durante anos, quando na minha infância e juventude por aqui passava os Verões e não achava graça alguma a toda esta confusão. Chamava-lhe então "a agonia das festas". Agora, venho cada vez com maior prazer às "festas", de quando em vez, a esta que é a minha segunda terra.

sexta-feira, agosto 22, 2014

Dam

Era o centro de um certo mundo, no final dos anos 60. A praça Dam era o local de encontro em Amesterdão. Vínhamos de mochila, chegados à boleia, às vezes sem a menor referência, sem saber onde dormir. Ali conhecíamos outras gentes, de toda a Europa e do outro lado do Atlântico. Ficávamos sentados à conversa naqueles degraus, com uma cerveja e uma sanduíche na mão, até que as mangueiras da municipalidade por lá passavam, ao final do dia, para varrer a lixeira. Era então o momento de zarpar, com os novos conhecimentos criados, para a noite em outras zonas da cidade, algumas mais aventurosas, outras apenas divertidas e agradáveis. Penso que não éramos nem piores nem melhores do que a juventude de todos os tempos. Éramos apenas diferentes.

O Dam de Amesterdão deixou, há muito, de ter esse estatuto mítico. Passei há pouco por lá. Chovia. Mas agora, em agosto, em trabalho, de blazer e gravata... É a vida!

quinta-feira, agosto 21, 2014

"So sorry!"

Ao final desta noite chuvosa na Holanda, depois de um jantar de trabalho, não resisto a reproduzir um episódio que um amigo britânico, chegado diretamente do "Fringe" festival das artes de Edimburgo, nos contou ao café. 

Foi ontem, durante uma atuação de "stand-up comedy". O ator, de nacionalidade alemã, relatou ao público que uma jovem americana que tinha conhecido (ele disse que era loira, mas eu evito referir isso aqui) lhe havia comentado que gostava muito da Europa, mas que achava triste que por aqui se falassem tantas línguas. O alemão, irónico, deixou cair: "Sabe por que é que não se fala uma só língua em toda a Europa: porque nós perdemos a guerra...". A jovem quis ser simpática e logo retorquiu: "Oh! Was that so? I'm so sorry for you!"...

UNITA

Na sua crónica de hoje no DN, Ferreira Fernandes refere o momento em que, como "convidado" da UNITA, se recusou a entrevistar Wilson dos Santos, um quadro caído em desgraça na organização e que, pouco tempo depois, viria por ela a ser assassinado, tal como toda a sua família. O jornalista disse então a frase que todos os profissionais da comunicação social deveriam proferir em idênticas ocasiões: "não entrevisto presos".

A UNITA é um caso, ao mesmo tempo politicamente interessante e trágico, quer na vida política angolana, quer nas relações daquele país com Portugal. Em Angola, foi a sua recusa em aceitar o veredito das urnas que prolongou uma guerra civil insensata. Em Portugal, o desafeto pelo MPLA levou parte da sociedade política portuguesa a alimentar uma bizarra admiração por um movimento em cujo anti-comunismo muitos viram a emergência de uma possível Angola democrática. Romagens de admiradores lusos de Jonas Savimbi fizeram-se então à Jamba, onde "viram a luz" e as raízes do nascimento de uma Angola utópica, de que se tornariam arautos em Portugal, com ampla benevolência mediática.

Há uma coisa que essas pessoas, entre os quais conto alguns amigos, parece nunca se terem dado conta: pode e deve-se criticar sem peias a barbárie sinistra montada por Jonas Savimbi sem, necessariamente, ter de se aplaudir os métodos do governo de Luanda. (Mas esses são precisamente os mesmos que, nos dias de hoje, logo levantam o dedo acusador a quem classifique de criminosas as ações praticadas por Israel em Gaza, acusando-os de cumplicidade objetiva com os métodos terroristas do Hamas).

Importa acrescentar, para benefício de quem já se não lembrar, que as Nações Unidas (mundo ocidental incluído) condenaram veementemente a inobservância pela UNITA dos resultados eleitorais em Angola, o que levou à imposição pela ONU de um alargado conjunto de sanções à organização, aos seus dirigentes e a todos os países que dela eram cúmplices. Uma "troika" para a monitorização do processo angolano foi criada em Nova Iorque, com Portugal, Rússia a Estados Unidos nessas funções. Ao tempo em que nos coube a presidência rotativa dessa "troika", recordo laboriosos almoços na nossa residência na ONU, com os representantes permanentes russo e americano, respetivamente Sergey Lavrov (atual MNE russo) e John Negroponte (que seria depois o verdadeiro "administrador" americano no Iraque), acompanhados por Ibrahim Gambari, um nigeriano que o SG da ONU destacou para acompanhar o Comité de sanções à UNITA. Esse trabalho continuou até um dia de 2002, em que Savimbi, que optara por continuar a alimentar a luta armada, foi morto numa emboscada. A UNITA regressou então à vida política normal, mas o passado da organização e as responsabilidades do seu líder não devem ser esquecidas.

Há pouco tempo, falei aqui do impressionante relato de Dora Fonte, "O Rapto", uma cooperante portuguesa presa pela UNITA em Sumbe e obrigada, com outros estrangeiros, a palmilhar milhares de quilómetros até à Jamba, numa mera operação de propaganda da organização. Esse interessante relato dá-nos conta, de forma impressiva, sobre o ambiente de terror que se vivia no âmbito da UNITA.

Agora, acabo de ler o relato, mais contido mas também muito claro, feito por Jardo Muekalia, um importante quadro da UNITA, sobre a sua experiência como representante da organização no exterior. O caso de Wilson dos Santos, que refiro no início deste texto, é por ele desenvolvido, com alguns detalhe e pormenores, nesse seu livro "Angola: a segunda revolução - memórias da luta pela democracia", já de 2010. E o recorte da figura de Jonas Savimbi fica bem claro nas suas páginas.

Muekalia era representante da organização em Washington ao tempo em que eu estava em Nova Iorque. Através de um amigo comum, manifestou um dia interesse em encontrar-se discretamente comigo. Mesmo sem pedir orientação a Lisboa, e num contacto telefónico breve, dei-lhe conta da minha indisponibilidade, como representante português na ONU, de ter uma conversa com o delegado de um grupo político que as próprias Nações Unidas tinham considerado "fora da lei". Portugal teria, se o quisesse, outras formas de contactar a UNITA, e o contrário também era verdade. Como membro da "troika" de observadores do processo angolano, não estava disponível para surgir envolvido num diálogo lateral cujo aproveitamento propagandístico seria bem provável. Muekalia, como o livro documenta, era um diplomata hábil. Julgo que compreendeu logo a minha posição.

Bairros & frustrações

Há bairros onde eu gostaria de ter morado - e nunca morei, nem morarei. Em Paris, claro que seria no Marais. Em Londres, não quereria outra área que não Hampstead. Em Nova York, o West Village seria a minha escolha. E a lista não ficaria por aqui, dentre aquilo que conheço (ou julgo conhecer).
 
Em Lisboa, não tenho dúvidas, como sabem todos quantos me conhecem: viver em Campo de Ourique era aquilo de que eu gostava. Por todas as razões: pelo imbatível ambiente de bairro, pela orografia "friendly", pelos restaurantes magníficos e/ou simpáticos, por um comércio variado, entre o contemporâneo e o tradicional. Defeitos? O estacionamento, pronto!
 
Passo muito por Campo de Ourique e ontem descobri por lá, numa parede da rua Coelho da Rocha, esta preciosidade identificadora do bairro. Para que serve ou terá servido? Alguém sabe? 

quarta-feira, agosto 20, 2014

"A Voz de Trás-os-Montes"


Acabo de saber que o semanário "A Voz de Trás-os-Montes" poderá vir a suspender a sua publicação. A assim ser, Vila Real perde um dos seus jornais mais clássicos e eu perco a publicação onde, há precisamente 47 anos, em agosto de 1967, editei o meu primeiro artigo na imprensa e de que sou, creio que desde 1971, fiel assinante.
 
Nesses primeiros tempos, eu passava com ansiedade pela tipografia "Minerva Transmontana", para tentar "controlar" a colocação e o destaque dos artigos, contando para tal com a cumplicidade do meu amigo tipógrafo Carvalho, com quem, ainda há semanas, abanquei à conversa na esplanada da "Gomes". Recordo a publicação dos meus primeiros textos - o primeiro, creio, tinha o desinspirado título "De uma Viana alegre" - e do modo como, com o tempo, fui conquistando espaço e "direito" a novos temas. Desde cedo que a política passou a ser o essencial daquilo que por lá escrevi, mas recordo-me de ter feito igualmente a "cobertura" do Circuito internacional da cidade, bem como crítica de livros. Entre 1968 e 1971, a minha colaboração, quase sempre enviada de Lisboa, passou a ser mais regular, essencialmente dedicada a análises de política interna ou temas de política internacional, aproveitando a abertura moderada da "primavera" marcelista.
 
Um dia, porém, o censor local, o capitão Medeiros, terá levado dois "arrepios" quase sucessivos do serviço central da Censura, em Lisboa. O primeiro foi provocado por um artigo em que eu inseria uma frase em que previa que "o futuro da Rodésia será negro", procurada ambiguidade que o seu lápis azul deixou inadvertidamente passar. O segundo foi ainda mais grave: tratava-se de um comentário sobre um "filósofo" da Europa oriental, de seu nome Vladimir Ilyitch Uliánov, que o pobre do capitão desconhecia ser o nome verdadeiro de Lenine. O censor avisou então o diretor do jornal, o padre Henrique Maria dos Santos, de que eu não podia continuar a publicar por lá. Como só acontece nas pequenas cidades, teve, no entanto, a gentileza de se ir justificar junto do meu pai. Brandos costumes...
 
Depois de 1974, sempre muito a espaços, publiquei alguns textos no jornal, a propósito de temas ou figuras que a oportunidade justificava. Fui sempre acolhido com a maior das amabilidades, pelo ainda atual diretor, padre António Maria Cardoso, bem como pelas suas mais diretas e esforçadas colaboradoras, que asseguravam o essencial da publicação.

Convém notar que "A Voz de Trás-os-Montes", sendo um jornal regional, cumpriu durante as suas décadas de existência um insubstituível papel de ligação dos emigrantes às suas terras de origem. Por todo o mundo, encontrei muitos transmontanos assinantes do jornal, que agora lhe vai fazer bastante falta. Ou será que a nova geração de expatriados e seus descendentes desistiu de assinar o jornal?

Por todas as razões, de que as sentimentais não são as menores, quero deixar aqui uma palavra de grande simpatia ao pessoal de "A Voz de Trás-os-Montes", esperando que ainda lhes seja possível "dar a volta" por cima do conjuntural infortúnio.

terça-feira, agosto 19, 2014

Património

Foi hoje anunciado que o Ministério dos Negócios Estrangeiros terá sido o departamento do Estado que vendeu mais imóveis, num total de 11 milhões de euros. Estou mesmo surpreendido em que não tenham já passado a patacos o Palácio das Necessidades ou o Palácio da Cova da Moura - que davam dois belos hotéis. Mas, se calhar, estou a dar ideias...
 
Imagino que algumas almas piedosas estejam satisfeitas pela delapidação do património público da diplomacia e apoio consular português levada a cabo nos últimos anos, no estrangeiro e no país. Em alguns casos, trata-se de bens que estavam ligados à memória portuguesa em muitas cidades, que uma política externa consequente - melhor, que uma política externa "tout court" - vai ter de reconstituir um dia, com custos agravados para o erário público de então. Mas, por essa altura, os Torquemadas financeiros que estiveram de passagem pelas Necessidades já se terão posto ao fresco. E, com eles, alguns tristes Quislings que por lá ajudaram e ajudam alegremente à festa... 

Uma guerra perdida?

Foi ontem, ao jantar, num restaurante de Lisboa. Na mesa ao nosso lado, dois franceses procuravam "desembrulhar-se" com o menu. Que estava escrito em português e inglês. O pessoal, com uma gentileza impecável, lá procurava ajudar, mas a incomunicabilidade era quase total. Tentámos dar "uma mão" mas, como é sabido, é precisamente nos momentos em que procuramos lembrar-nos do nome de um peixe ou detalhar o modo de cozinhar um prato que o conhecido "alemão" mais nos ataca e os nomes não nos saem.
 
A conversa, inevitável, com os franceses acabou com a constatação, por eles, de que a preservação do francês como língua internacional de comunicação era uma "guerra perdida". Sem querermos concordar em absoluto, tivemos de anuir que, nas novas gerações portuguesas, a apetência pela língua francesa é residual. Há semanas, esta nostálgica constatação já havia sido feita numa sessão no Instituto Franco-Português onde, perante uma dezenas de pessoas reunidas em torno da apresentação de um livro francês de ficção editado em Portugal, houve oportunidade de desenvolver um pouco mais o assunto.
 
A progressiva perda do francês em favor do inglês como língua conhecida pelas novas gerações é um "fact of life" - e não é por acaso que uso uma expressão inglesa para exprimir isto. O inglês veio para ficar como língua veicular. Não apenas o inglês simples, não sofisticado, com umas centenas de vocábulos, aquilo a que alguns chamam "o inglês de aeroporto" ou "de hotel", que será cada vez mais o meio comunicacional do futuro. Mas igualmente o inglês mais elaborado. Nos últimos meses, foi em inglês que dei aulas numa universidade portuguesa, fiz parte (em Lisboa e em outra capital europeia) de júris de concursos de acesso a uma empresa portuguesa em que foi usado o inglês, integro órgãos de direção de empresas nacionais em que as reuniões se passam exclusivamente em inglês (porque estão presentes pessoas de outras nacionalidades e o léxico comum dos negócios é em inglês).
 
E, no entanto, o francês continua a ser uma língua magnífica, dá-nos acesso a uma cultura ímpar e insubstituível. Por isso, posso anunciar aos leitores "francófilos" que está em curso uma saudável "conspiração" para fazer renascer em Portugal o "Cercle Voltaire", uma estrutura que pretende promover a língua e a cultura francesa, organizando eventos e outras iniciativas nesse âmbito. Este blogue não deixará de dar conta, em breve, do que vier a ser público nesse âmbito. A "guerra" pode estar perdida, mas há ainda belas "batalhas" a disputar em torno da língua francesa. Lutar pelo francês "c'est de bonne guerre"!

segunda-feira, agosto 18, 2014

Pires Veloso


A História é feita de heróis improváveis. Pires Veloso, o general que agora desaparece aos 88 anos, é um deles. O bom senso com que conduziu o processo de transição de S. Tomé e Príncipe para a independência (um tempo que não foi tão fácil como alguns podem hoje supor) trouxeram algum prestígio a este militar, um tanto simplório (e que muitos acabaram por vir a conhecer quase apenas como o tio de Rui Veloso), que as forças conservadoras haviam de incensar e conseguir colocar no comando da Região Militar Norte.
O país com memória recorda as "romagens" do país político a um hospital onde recuperou de um aparatoso acidente de helicóptero, um "beija-mão" quase ridículo, que ficou no anedotário do "Verão quente" de 1975. Pires Veloso era a "resposta" de uma zona conservadora do país que abertamente rejeitou a tutela gonçalvista, titulada pela figura militar de Eurico Corvacho. À sua volta, juntou-se toda a gente que rejeitava a deriva esquerdista: desde verdadeiros democratas até bombistas (do MDLP ao ELP). Veloso terá cometido o erro de não pretender distinguir, com algum critério, dentre quem se opunha ao "inimigo" e isso levou-o a aceitar coisas que só a candura dos costumes políticos lusos é capaz de ter esquecido. Militarmente, e por conflitos mais pessoais que políticos, cometeu o erro de se opor a Eanes e isso acabaria por ditar o seu destino como figura com alguma ambição.
Tal como Pinheiro de Azevedo, Veloso acreditou que os episódicos banhos de multidão anti-comunistas se transformariam um dia numa maré de votos, pelo que arriscou protagonizar uma triste candidatura presidencial. As memórias que deixou - sob o titulo significativo de "Vice-rei do Norte" - são um registo de acrimónia desnecessária, que nada lhe acrescentam à biografia, que hoje se completou.

domingo, agosto 17, 2014

Os postos

Há dias, numa solta conversa de Verão, surgiu a questão frequentemente colocada aos diplomatas: qual a colocação no estrangeiro de que mais gostámos. Tenho sempre uma grande dificuldade em responder a essa pergunta, que nunca resolvi bem perante mim mesmo. A razão, aliás, é bem simples: não somos "os mesmos" ao longo do tempo, não temos exatamente a mesma anterior experiência e as expetativas quanto ao futuro quando nos confrontamos com um novo desafio. Em cada lugar a que chegamos somos pessoas diferentes ou, como dizia Ortega y Gasset, "nós somos nós e as nossas circunstâncias". A idade influencia o modo como olhamos as coisas, a vivência anterior torna certos lugares mais interessantes num certo período da vida, essas mesmas cidades ou países tornam-se mais atrativas ou menos agradáveis, dependendo do tempo em que por ela passamos. Mas também são importantes os amigos que criamos, os colegas com que convivemos e até os estados de saúde, nossos ou alheios, que alteram as perceções que nos ficam desses locais.

Vivi um posto como Oslo com o entusiasmo "maçarico" de ser a primeira experiência de trabalho no exterior, passei em Luanda dos tempos mais tensos e profissionalmente desafiantes de toda a minha carreira, pude "ler" em Londres o que Portugal significa perante essa Europa que ainda conta, pressenti em Nova Iorque que, com empenhamento, podemos facilmente "to punch above our weight", tive em Viena a prova de como, com alguma "arte" se pode dar a volta por cima a "ratoeiras" profissionais bem urdidas, vivi no Brasil uma das experiências humanas e diplomáticas mais fascinantes que um diplomata português pode ter e, finalmente, reeencontrei em França, cuja idiossincrática leitura da Europa sempre mobilizou a minha curiosidade, um Portugal expatriado de extrema dignidade, embora sob o peso dos tempos mais dramáticos da nossa afirmação externa recente.

Mas, depois daquela conversa de Verão, e da constatação clara de que me posso dar como excecionalmente satisfeito com todas as experiências profissionais que tive, dei comigo a colocar-me outra questão: que postos diplomáticos não fiz e gostaria de ter feito? Afastadas as opções lúdicas - o Estado não nos paga para estar em certos locais só porque eles são agradáveis para viver ou para fazer turismo - olhei friamente para as alternativas profissionais que me "falharam" e cheguei a três cidades em que, com total franqueza, gostaria de ter trabalhado: Madrid, Rabat e Buenos Aires. Por duas vezes me foi oferecido o ensejo de ser colocado na capital espanhola, e nunca aproveitei a hipótese. Rabat poderia ter sido, se assim o quisesse, o meu primeiro posto. Já Buenos Aires nunca apareceu no meu "screen".

A Espanha é o mais relevante posto bilateral que um diplomata português pode ter. A intensidade das relações, os desafios estratégicos da proximidade, a frequente diferente perspetiva nos assuntos europeus e a diversidade cultural e nacional espanhola devem constituir uma experiência fascinante para um diplomata entusiasmado e atento, como sempre procurei ser. O nosso único vizinho terrestre, com o qual temos uma relação não isenta de uma inescapável ambiguidade, converte Madrid num desafio profissional único. A eleger uma única "frustração" em toda a minha carreira, essa terá sido o facto de não ter servido em Madrid.

Considero Marrocos, não obstante toda a dificuldade que a barreira cultural deve criar, uma outra oportunidade profissional de extremo interesse. Vou dizer uma coisa que alguns portugueses não entenderão: Marrocos, cuja capital está mais próxima de Lisboa do que Madrid, é um país cujo potencial de desenvolvimento da relação com Portugal o país está ainda muito longe de ter entendido, em especial na perspetiva da própria relação marroquina com Espanha e França. O futuro se encarregará de o demonstrar, se e quando viermos a ter uma política externa à altura.

Finalmente, porquê Buenos Aires? Desde logo, porque é um país fascinante, mas essencialmente porque entendo que, tendo nós a relação que temos com o Brasil - uma relação que, só por si, mereceria um "tratado" -, temos estrita obrigação de saber (um dia...) explorar o imenso potencial que existe na nossa articulação com um representante singular de um mundo hispânico que é o seu contraponto, que nos olha como um parceiro interessante e amigo, até para "escapar" ao abraço demasiado paternal  (com tudo o que complexo isso traz, como bem sabemos) da antiga potência colonial. E a Argentina é um caso ímpar nesse mundo latino-americano, no qual projeta a sua história ciclotímica, a sua ambição e a sua cultura, as suas frustrações e o modo muito particular de se colocar no xadrez desse espaço geopolítico de imenso futuro.

Nesta altura do texto, alguns colegas que me estejam a ler, estar-se-ão a perguntar: mas não gostaria ele de ter sido embaixador num posto tão importante como Washington? E Roma, essa cidade mítica para tanto diplomata? E a Representação junto da União Europeia, por onde hoje passa o essencial dos nossos interesses? Em diferentes tempos, tive o ensejo de ter sido colocado nesses três importantes postos e não o fiz, sempre e exclusivamente, apenas por opção pessoal. Reconheço, sem a menor dúvida, que se trata de postos diplomáticos cimeiros, do maior interesse e relevância, mas a nossa vida é feita de escolhas e eu sou plenamente responsável pelas minhas.

Mas vou mais longe. Noutra dimensão, ter-me-iam também interessado Moscovo, Nova Deli, Berlim (se falasse alemão, confesso que seria das primeiras opções), Pequim ou Tóquio. E teria curiosidade profissional em ter servido em postos tão diversos como Teerão, Ancara, Varsóvia ou em consulados-gerais com a importância de Barcelona ou São Paulo. Cada um de nós tem o direito de fazer as suas opções e as minhas aí ficam, de forma muito sincera. Aposto em como alguns amigos meus devem ter ficado surpreendidos com o que acabam de ler.

sábado, agosto 16, 2014

À conversa no "Pereira" (15)

- Então já te vais embora? Foi pouco tempo...
- É pá! A brincar, a brincar, foram duas semanas. Mas, tens razão, parece que foi ontem...
- E voltas para o ano?
- Se puder, volto.
- Já essa certeza não podem ter alguns Espírito Santo! Ainda há semanas andavam por ali calmamente na Comporta e hoje é o que se vê! 
- Se a Justiça que temos não funcionar, p'ró ano, ainda eles vão comer o belo peixe do Dona Bia ou os novos petiscos do Cavalariça.
- E, na pior das hipóteses, vão para férias um pouco mais abaixo...
- Mais abaixo? Para o Pego?
- Não! Para o Pinheiro da Cruz...

Falar na cadeia

A propósito da recente morte de Canais Rocha (1930-2014), um nome de que a esmagadora maioria dos portugueses nunca ouviu falar, veio ao de cima uma história antiga, relacionada com esse grande dirigente sindical e antigo militante do PCP.

Era um episódio conhecido nos meios políticos, ao tempo do 25 de abril: Canais Rocha, que se tornara na grande figura do sindicalismo português no início do período democrático, ao ser eleito o primeiro coordenador geral da CGTP, desapareceu de cena poucas semanas depois. Aparentemente, através da consulta da documentação interna da PIDE/DGS, o Partido Comunista veio a constatar que Canais Rocha havia revelado, sob tortura durante uma anterior prisão, nomes de militantes comunistas que, por essa razão, seriam presos. O PCP não perdoou, obrigou-o a renunciar ao cargo e afastou-o da sua militância. Anos mais tarde, Canais Rocha apareceu ligado ao MDP-CDE, uma espécie de partido "genérico" onde os comunistas colocavam os seus "compagnons de route".

A história das ditaduras está cheia de casos de militantes políticos, de todas as cores, que acabaram por "fraquejar" sob pressão da tortura - e a PIDE/DGS era particularmente violenta, com o uso da "estátua" e outras formas de tortura do sono. Victor Serge, um revolucionário mítico, tem sobre esse tema um livro muito curioso, que li há muitos anos, onde fala destes processos: "Ce que tout révolutionaire doit savoir sur la répression". O PCP tem também um pequeno manual intitulado "Se fores preso, camarada..."

Nunca na minha vida consegui condenar alguém que, sob tortura, tivesse "falado". Sei lá como me portaria se tivesse de suportar idênticas circunstâncias!. Tenho amigos que "falaram" e outros que "não falaram" na cadeia. Não tenho menor ou mais apreço por eles, por essa razão. Acho assim miserável que o PCP nunca tivesse reabilitado este seu antigo militante. Um partido também se mede pela sua humanidade.

sexta-feira, agosto 15, 2014

À conversa no "Pereira" (14)



- Já leste o documento do Costa? E as propostas do Seguro?
- Estou em férias... Para a semana, leio.
- Mas é muito importante saber o que cada um deles pensa para o futuro do país, ou não é?
- Claro que sim. Mas diz-me lá uma coisa: se acaso viesses a ler o programa do candidato que menos gostas e concluísses que, afinal, as propostas dele eram fantásticas, muito melhores do que as do teu preferido, mudavas e ias a correr votar no outro, nas "primárias"?
- Eu?! Cruzes, canhoto! Eu sei muito bem em quem vou votar, diga o outro o que disser. Sobre isso não haja a menor dúvida!
- Então isso quer dizer que, mesmo que o teu candidato tenha o programa mais fraco, tu votarias nele na mesma. Estás-te "nas tintas" para o texto que apresente. Votas é na pessoa que mais te agrada, não é?
- Bom, de facto, é assim.
- Então para que é que tu queres que eu leia os manifestos dos dois?
- Para te informares...
- Mas eu também já sei muito bem em quem vou votar.
- Ai sim?! E pode saber-se em que é?!
- Claro! É muito simples: é naquele que eu acho que mais facilmente pode derrotar este governo.

Uma nova NATO?

Há poucos anos, em Lisboa, a NATO estabeleceu o seu novo "conceito estratégico". Como acontece sempre com este tipo de documentos, ele traduz necessariamente um compromisso sincrónico entre várias perspetivas e diversas geografias de interesses. Assuma-se ou não, este "conceito" NATO dependeu essencialmente da nova filosofia americana sobre o mundo, fruto conjugado do ambiente pós-11 de setembro, das esperanças de poder encaminhar o espaço muçulmano para um diferente futuro institucional e daquilo que se pressentia poder vir a ser o modelo de enquadramento da Rússia num compromisso global de estabilidade. Os europeus, todos eles, carrearam para o texto as suas limitadas ambições como eterno ator secundário, desde logo a começar pela UE, esse poder vocal que, à falta de músculo militar, se anda a tentar convencer a si próprio de que pode exercer um papel de "soft power", armado dos seus instrumentos económicos, sacudidos pela fragilidades recentes. 

Muito mais rapidamente do que, há uns escassos anos, se poderia legitimamente estar à espera, o mundo mudou - e não no melhor sentido. Para além da continuação da cobardia euro-americana em fazer frente à recorrente chantagem israelita (o que, aliás, já teve mais importância como potenciador de descontentamento no Médio Oriente do que tem hoje), o "mundo NATO" começou por perceber as suas limitações na intervenção nos processos árabes, com o "fracassado êxito" da Líbia, com a total incapacidade de ser minimamente relevante na Síria e com o (já discreto e hipócrita) esbracejar perante o regresso da ditadura ao Cairo. No Afeganistão, a NATO contentou-se em ser "carro vassoura" dos EUA, país com o qual o diretório europeu partilha o "diálogo crítico" com o Irão nuclear, um Estado que, ironicamente, conseguiu ganhar tempo para ser hoje chamado a participar no quadro de resolução do atoleiro iraquiano. Ao que obriga a "realpolitik" do petróleo!

Mas é o caso da Ucrânia, e a revelação fria do modo como a Rússia de Putin II olha o seu "near abroad", que parece ser o banho de realismo de que a NATO necessitava para entender que o documento estratégico aprovado em Lisboa já está mais do que datado. Essa constatação autoriza-nos a revisitar abertamente os instrumentos institucionais que regularam o fim da guerra fria, bem como os compromissos deles recorrentes em matéria de colocação de armamentos convencionais. Mas isso deve ser feito preservando um forte sentido de realismo e de responsabilidade. Quero com isto dizer que essa reflexão deve afastar-se claramente de quaisquer perspetivas aventureiras, em especial sopradas por quem, no Leste do continente e da organização, já deu sinais de pretender transformar os seus medos e os seus traumas na linha diretriz da futura relação com Moscovo. Não temos a menor obrigação de tomarmos como nossas as fobias estratégicas dos outros, salvo se elas se revelarem relevantes para a nossa própria leitura do quadro de segurança em que acreditamos. A NATO é uma organização de defesa. Isto significa que pode ter de sacrificar vidas dos seus soldados para proteger os seus objetivos. Nem um tiro poderá ser disparado - até porque se sabe que seria sempre o primeiro de muitos - se não corresponder a necessidades imperativas da nossa defesa. Repito: imperativas.

Nos dias de hoje, a NATO e a Europa necessitam de olhar para Rússia com grande frieza. Devem perceber que estão perante um poder cujo maior risco é poder ter tentações imediatas de ação que não são controladas por um processo decisório interno equilibrado pelos "checks and balances" que caraterizam as democracias. Pelo contrário, estão marcadas por um poder autoritário tanto mais perigoso quanto dispõe de uma forte popularidade interna. Mas a NATO também deve compreender que não lhe podem ser indiferentes (e os não podem tratar como irrelevantes) os temores que hoje alimentam as atitudes de Moscovo. Por isso, mais do que nunca, "medidas geradoras de confiança" têm de ser tentadas e implementadas e é necessário um esforço multilateral nesse sentido. 

Se da reunião ministerial da NATO, em setembro, no Reino Unido, sair apenas uma linguagem jingoísta, como aquela que o seu atual secretário-geral se entretem desde há meses a espalhar, com "cara de caso", para "assustar" os russos, não iremos a lado nenhum. Os setores mais razoáveis da NATO necessitam de dizer aos russos que devem ajudar a irganização a fazer uma leitura real daquilo que são as suas verdadeiras pretensões. Respeitando os seus atendíveis interesses e confrontando com firmeza as suas ambições desrazoáveis.

Seria importante que, desde já, percebêssemos o que Portugal pensa sobre isto, sem necessáriamente surgir como um discreto "master's voice" do parceiro transatlântico. Muito da "batalha" futura com o autoritarismo moscovita, que veio para ficar, passa por este mar atlântico onde não somos um parceiro menor. Já perdi a esperança em que isto seja percebido no Restelo. Ainda conservo algum residual atentismo de que, nas Necessidades, alguém esteja acordado para isto. Mas posso estar a ser inocente.

quinta-feira, agosto 14, 2014

"A Questão Agrária"


Foi em 1971, em Paris. A livraria existia (ainda existe?) na rue de Monsieur le Prince, quase a chegar ao boulevard St. Michel, ao Luxembourg. Tanto quanto me recordo (mas posso estar enganado), havia, na altura, uma grade a bordar um passeio alto. Hoje, julgo que há por aí umas escadas a compensar o desnível forte desse passeio.

Não sei como fui lá parar, mas deve ter sido por uma dica de alguém que me disse que era possível aí adquirir a primeira edição, brasileira, da obra de Álvaro Cunhal, "A Questão Agrária em Portugal", editada pela "Civilização Brasileira". Não a devo ter encontrado na "Joie de Lire", repositório de "esquerdalhices" portuguesas onde me abastecia, sempre que passava por Paris.

Cunhal surgia-nos então como a grande figura mítica dentre os principais atores políticos da oposição à ditadura. Eu ouvira falar desta obra, que era tida por "fundamental". Consegui-la foi algo para mim muito interessante, porque me permitia ajudar à construção de uma biblioteca que, por essa época, eu cuidava em formar sobre a oposição ao Estado Novo - e que, ainda hoje, constituiu um conjunto muito completo de obras que me orgulho possuir (e que um dia irá também integrar a Biblioteca Municipal de Vila Real). Lembro-me que adquiri logo dois exemplares - e que foi uma compra cara! -, um dos quais para um amigo "do partido". Não sei como os trouxe para Portugal.

Anos mais tarde, em 1980, de passagem por Paris, fui a uma "Fête de l'Humanité" em La Courneuve. Lá estava o livro à venda no stand do PCP. Comprei mais um exemplar, também para oferecer.

Esta questão agrária ainda é atual? Leio que a ministra Assunção Cristas quer reverter a decisão de Francisco de Sá Carneiro de entregar parcelas de uma herdade alentejana a diversos rendeiros. O "Público", no quadro de comemoração das obras proibidas pela ditadura, anunciou ontem o lançamento de um "fac-simile" desta obra. Resta-me confessar que me não recordo de ter lido uma única linha desse livro "histórico". E agora, tenho mais que ler... 

quarta-feira, agosto 13, 2014

Eduardo Campos

A morte, às vezes, tem dias bem ocupados. Eduardo Campos, o promissor político brasileiro, neto de Miguel Arraes, candidato às eleições presidenciais brasileiras, morreu, há pouco, num acidente aéreo. Era uma figura de recorte "kennedyano", um orador convincente, com uma agenda de modernidade reforçada pela aliança, por muitos vista como algo estranha, com a ambientalista Marina Silva. Campos não parecia ter hipóteses de colocar em causa a condição de principal "challenger" de Dilma, assumida por Aécio Neves, mas numa eleição a duas voltas o seu papel poderia vir a ser importante nos "marchandages" em que a política brasileira é muito fértil. Esta tragédia reabre agora vários cenários de futuro.

Emídio Rangel (1947-2014)

Tal como se pode dizer, num outro tempo, para Luís Filipe Costa, a informação na rádio portuguesa não seria a mesma sem a TSF criada por Emídio Rangel. Que fez muito mais: ele foi a alma por detrás da SIC, o primeiro canal privado de televisão no nosso país e, por essa via, uma das maiores e mais criativas figuras nesse setor. Era alguém que tinha em si aquela irrequietude e ambição inventiva que os retornados trouxeram à sociedade portuguesa - e isto é um elogio, entenda-se.
 
Alimento há muito a tese de que, para o mal e para o bem e medidas as distâncias, Rangel acabou por ajudar à "criação" de dois primeiros ministros sucessivos - Santana Lopes e José Sócrates -, ao tê-los colocado por longos meses em confronto (e evidência política) dominical nos telejornsis da RTP.
 
Conheci mal Emídio Rangel. Recordo que não era um homem fácil, no seu estilo cortante e algo ácido-irónico, que lhe criou bastantes inimigos. Mas nunca ouvi ninguém negar-lhe a genialidade criativa. Deixar uma obra feita é coisa que conforta uma vida, como é de justiça ser lembrado na hora da morte.

Lauren Bacall - a legend

"If I'm a legend, I'm dead. Do you want me to be dead? Legends are of the past." (Lauren Bacall)

terça-feira, agosto 12, 2014

À conversa no "Pereira" (13)

- Não sabia que falavas alemão! Vi-te muito animado à conversa na praia com aqueles teus amigos "teutónicos".
- A vantagem de se falar com estrangeiros é que isso nos permite fugir dos temas inevitáveis das conversas entre portugueses - o BES e o PS.
- Isso é bem verdade! E de falavam vocês?
- Olha, quando passaste por lá, por acaso, estávamos a falar da "selfie" do macaco.
- É uma conversa bem mais interessante, de facto...

Robin Williams (1951-2014)

Nunca fui muito dado a nostalgias por figuras de Holllywood desaparecidas da cena. Não cultivo afetividade por figuras do cinema e, de certo modo, encaro a sua ocasional morte como a sequência normal de uma vida em que andaram sempre nas margens da ficção. Na qual, por definição, tudo é possível, até a própria morte, neste caso deliberadamente encenada pelo próprio.

No caso de Robin Williams, sempre o considerei um ator mediano. Ao tempo em que vivia na Noruega, divertia-me (confesso, não demasiado) uma série televisiva em que se apalhaçava com uma parceira, nuns diálogos para sorrir, que se chamava "Mork & Mindy". Reencontrei-o depois em vários filmes de segunda linha, sempre num registo caricatural excessivo, nos quais a sua qualidade de representação nunca me surpreendeu. De certo modo, ligo-o à figura de Steve Martin, o que, em mim, não é necessariamente um elogio.

Gostei muito do Robin Williams do "Good Morning, Vietnam!" Mas não sou um cinéfilo minimamente elaborado. Contento-me, nisso como em outras coisas da vida, em apreciar simplesmente aquilo de que gosto. E divertiu-me, como há muito me não acontecia, a figura daquele locutor magnífico, subversivo qb, que conseguia alegrar as tropas metidas no atoleiro militar. O filme, longe de ser uma obra prima, quase parecia uma sequela (menos boa, claro) do MASH. O que me foi suficiente para uns minutos de boa disposição.

Depois, voltei a reencontrar Williams no "Clube dos Poetas Mortos", onde esteve bem. Nos dois ou três outros filmes dele que vi depois, pareceu-me representar obsessivamente o seu "character", numa atitude de "clown" muito marcada. Teria ele consciência disso? Bom, para mim, desapareceu o fantástico locutor do "Good Morning Vietnam". É a imagem dele que quero guardar.

segunda-feira, agosto 11, 2014

À conversa no "Pereira" (12)

- Então andas a escrever sobre mitos urbanos sexuais no teu blogue?
- Sexuais!?
- Sim, disseram-me que falas lá de uma "figura púbica".
- Púbica? Eu falei de uma "figura púbLica"! Ouviste mal.
- Ah! Já estava a estranhar... Não te via nesse registo.
- E tu, já viste o filme "Os Canhões de Navarone"?
- Já. Porquê?
- Por nada...

Os mitos urbanos

 
O tempo estival, com as conversas na praia, entre a "Flash" e a 'Gente", é o pasto social certo para a alimentação daquilo a que os anglo-saxónicos chamam "urban legends". São historietas bizarras que se repetem ("estou a contar-ta como ma contaram!) de boca em boca e que, nos últimos anos, encontraram nas redes sociais um terreno excelente para divulgação.

Alguns desses "mitos urbanos" ficaram clássicos. Há a do tipo cuja sogra teve um ataque de coração e morreu, em Espanha. Para evitar burocratices, a família trouxe o cadáver da senhora "sentado" no carro, passou a fronteira, parou numa bomba de gasolina, saiu por um minuto e... roubaram-lhes o carro (com a sogra dentro!). E quem conta a história acrescenta: "Até hoje!". Na internet, enviada por amigos reformados, quem é que não recebeu já os "avisos" clássicos para não se aceitar uma bebida oferecida por estranhos, logo apimentado com o caso de alguém que, depois disso, adormeceu e, quando acordou, tinham-lhe tirado um rim, para venda de órgãos?

Às vezes, os "mitos" são políticos. Durante anos, muita gente tinha visto (ou tinha-lhe contado uma prima que tinha um colega que tinha visto) uma fotografia com o Otelo a levar aos ombros o caixão de Salazar. Nunca soube bem o que isso provaria, se acaso fosse verdadeiro, mas corria nos meios "anti-25 de abril" como facto indesmentível. Outro, de idêntico jaez, era a célebre fotografia (que também ninguém viu, mas que alguém tinha um afilhado de um primo de uma tia que jurava "a pés juntos" que lha tinham mostrado) de Mário Soares a pisar a bandeira nacional, numa manifestação em Londres. Um dia, Soares, confrontado diretamente por uma miserável repetidora da canalhice, colocou-lhe um processo em tribunal, que naturalmente ganhou, e o boato esmoreceu. 

Agora, desde há umas semanas, anda por aí outro "mito urbano" (sobre o qual não dou o menor dado, para não ajudar "à festa"), envolvendo uma figura pública. Já ouvi três versões, cada uma mais pateta do que a outra. Nem o facto de ser totalmente inverosímil faz com que algumas pessoas se coíbam de repeti-lo, às vezes distanciando-se ("foi o que me disseram..."), mas deixando ainda um toque se segurança: "mas não há fumo sem fogo..."

Memória da tropa, depois de abril

Ontem, falei aqui de um juramento de bandeira ocorrido nas vésperas do 25 de abril, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Hoje, conto algumas coisas aí passadas imediatamente após o golpe de Estado.

Convém dizer que, contrariamente ao que tudo faria prever, o ambiente de harmonia política entre alguns oficiais milicianos, entre os quais eu me incluía, e o novo comando da EPAM não durou muito tempo. Por razões políticas e motivos militares.

As razões de natureza política prendem-se com as dúvidas que, desde a primeira hora, o texto do "programa" do MFA suscitou em alguns de nós. Em causa estavam as equívocas orientações sobre a política colonial e o estranho "wording" do texto sobre o associativismo político permitido. À época, desconhecíamos, por completo, que essa ambiguidade fora produto do compromisso, logo no "posto de comando" da Pontinha, entre a vontade do MFA e as posições de Spínola e da ala mais conservadora da recém-indigitada Junta de Salvação Naciinal.

Logo no dia 26 de abril, numa reunião ao final da tarde com o novo comando e os oficiais do quadro, tive o ensejo de suscitar, em nome de alguns colegas milicianos (outros, talvez a maioria, não colocavam grandes objeções ao curso das coisas), as nossas dúvidas e a leitura de que se tratava de um programa inaceitavelmente "recuado". Que o era veio a ser confirmado pelos factos: o processo descolonizador aceleraria quase de seguida e a realidade das ruas veio dar aos partidos a força e a dignidade que o "programa do MFA" ainda hesitava em conferir-lhes.

Algo se agravaria, contudo, algumas semanas depois. A recusa de dois milicianos de integrarem uma força militar que se iria opor ao movimento de greve nos CTT levou à prisão desses colegas, originando mesmo uma manifestação pelas ruas de Lisboa, sob o lema "Anjos, Marvão, libertação", que foi realizada não obstante a sua proibição e onde fiz questão de participar. Na nossa unidade, de onde eles eram originários, o ambiente de revolta era grande e muitos de nós não deixámos de o potenciar.

Por esses dias, ocorreria um juramento de bandeira, o primeiro após o 25 de abril. Embora a "Ação Psicológica" tivesse sido abolida (o que me deixava com muito pouco para fazer), a tarefa de orador coube-me de novo mim, muito embora a ninguém tivesse passado já pela cabeça "visar" superiormente o texto que eu ia escrever e ler. O que foi pena: o meu discurso acabou por ser de uma inaudita violência, contestando orientações e práticas do ainda jovem MFA. Lembro-me de nele ter perguntado, ironicamente, coisas tão insensatas como se, às forças armadas, passaria a caber o papel de se substituir às estruturas representativas da ditadura, na gestão violenta dos conflitos laborais. E dei também fortes "bicadas" no que considerei ser a "falta de vontade política" de fazer avançar o processo de descolonização. No geral, o texto era de uma inaceitável pesporrência. O meu radicalismo de então vinha ao de cima...

Não seria apenas o comandante da unidade a ficar desagradado comigo - o coronel Marcelino Marques, um homem excelente, a quem nunca cheguei a pedir a devida desculpa por toda aquela minha infantilidade. Dias depois, eu seria chamado à direção do Serviço de Administração Militar, bem como ao Estado Maior do Exército, onde fui objeto de duas repreensões orais sucessivas. A circunstância do "Diário de Notícias" ter publicado uma reportagem sobre o assunto e do "República" ter respigado desse texto um extrato que considerou uma aberta defesa da repressão (eu próprio fui ao jornal falar com o autor do texto, Mário Mesquita, para esclarecer o equívoco), num tempo complexo e já tenso como o que então se vivia, criou à minha volta um ambiente crescentemente desagradável. A situação agravou-se ainda mais em meu desfavor quando contestei abertamente, com outros colegas, uma punição militar decidida pela hierarquia da unidade a um soldado-cadete, já não me recordo porquê. Fui então convocado pelo comando da unidade e foi-me feito um ultimato: ou eu me comprometia a entrar "na linha" (no que subsistiam poucas esperanças) ou saía da unidade pelo "meu pé". Se continuasse com a atitude que vinha a ter, seria expulso. Optei pela segunda hipótese e foi assim que vim a ser colocado na "comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e LP", no início de junho de 1974. Fiquei colocado, por uns dias, no estabelecimento prisional de Caxias.

Desde então, e até passar à disponibilidade, em Agosto de 1975, ainda viria a ser assessor da Junta de Salvação Nacional (até à extinção desta, em fins de setembro de 1974), a integrar a 2ª divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (até à suspensão desta, em fins de abril de 1975) e a ser "fundador" do SDCI (Serviço Diretor e Coordenador da Informação) do Conselho da Revolução (de onde me demiti, em julho de 1975). Pelo meio, fui ainda relator da Comissão de inquérito ao motim dos agentes da PIDE/DGS (agosto/setembro de 1974), efémero integrante da "comissão ad hoc para investigar os acontecimentos de 28 de setembro"(outubro de 1974) e participei em várias Assembleias do MFA. Há um mistério que já desisti de resolver: explicar como me foi possível, ainda dentro desse mesmo período de um ano, fazer exame de uma cadeira universitária que tinha em falta e, após isso, concorrer, estudar e ser aprovado nas exigentes provas de acesso à carreira diplomática. Ah! e manter, em todo esse tempo, um emprego diário de quatro horas presenciais na empresa de publicidade Ciesa-NCK, fazer locução para filmes na "Cinegra", participar de forma razoavelmente ativa no Movimento da Esquerda Socialista (MES), bem como escrever e editar, com um amigo, um livrito chamado "O Caso República", aliás um dos grande insucessos editoriais da época. Quanto temos vinte e tal anos, de facto, tudo é possível.

domingo, agosto 10, 2014

Grande Agostinho!


Hoje, último dia da Volta a Portugal, este blogue deixa uma saudação à memória do grande Joaquim Agostinho.
 
Ele foi, não apenas o mais extraordinário ciclista português de sempre, mas, principalmente, alguém que, durante largos anos, foi uma referência e um orgulho para todos os portugueses espalhados pelo mundo.

À conversa no "Pereira" (11)

- Olha lá! Então agora deixaste de ser embaixador? Um jornal trata-te por "ex-embaixador".
- É apenas um lapso. Algumas pessoas acham que quem deixa de chefiar de uma embaixada passa a "ex". Desconhecem que a categoria de embaixador é o último escalão da carreira diplomática e é independente do facto de se dirigir ou não uma embaixada. Houve mesmo embaixadores que nunca chefiaram uma embaixada.
- Não acredito!
- Por exemplo, o Franco Nogueira.
- O quê?! O embaixador Franco Nogueira, o MNE do Salazar, nunca foi embaixador em nenhum sítio?
- Não, o máximo posto que ocupou no estrangeiro foi de cônsul-geral.
- Não fazia a menor ideia.
- E já viste quem ali vai a passear?
- Tens razão! É o general Eanes!
- Mais um que ainda se arrisca a que, um dia, alguém o trate por ex-general...

Juramento de bandeira

O juramento de bandeira é aquele momento solene em que os soldados prestam fidelidade à instituição militar em que formalmente ingressam, no termo da instrução. No tempo em que por lá passei, há mais de quatro décadas, esse era um momento em que alguns nos confrontávamos com a contradição de iniciar o serviço numas forças armadas com cujos objetivos nos não identificávamos, ao tempo da ditadura e da guerra colonial.

Lembro-me do meu divertido "juramento de bandeira", na parada do quartel de Mafra, comigo e muitos outros a optar por apenas balbuciar o juramento, sem emitir nenhum som, o que tornou algo bizarra a cerimónia, para fúria dos nossos superiores, os quais, olhando para nós à distância, não distinguiam quem, de facto, não pronunciava audivelmente o compromisso.

Na entrevista que ontem dei ao "jornal i", surgiu numa "caixa", mas nada aparece no texto, uma referência a um discurso que pronunciei num juramento de bandeira na Escola Prática de Administração Militar, em inícios de 1974. Foi a jornalista Isabel Tavares que me suscitou a história, informada não sei bem por quem. Seguramente por falta de espaço, o episódio não surge no texto. 

Eu era "oficial de ação psicológica" da unidade (além de instrutor, bibliotecário e diretor do jornal "O Intendente"...) e tinha a meu cargo os discursos no dia dos juramentos de bandeira. Decidi escrever um texto muito burilado e ambíguo, que ainda conservo algures, aliàs com um despacho de concordância prévia (que era essencial) do comandante da unidade. No texto, eu fazia uma série de "desafios" aos novos soldados, do género: "se acreditais que para o futuro de Portugal se torna imperativo esmagar militarmente quantos se opõem à continuidade da presença portuguesa nas suas possessões africanas, então deveis jurar a fidelidade que vos é pedida". E continuei com outras frases de natureza condicional similiar. Lembro-me que, antes de obtido o "imprimatur", apenas mostrei o texto ao então soldado-cadete António Reis, um amigo que viria a ter um papel destacado no 25 de abril e no período político subsequente, que chegou a duvidar que o texto "passasse".

No dia da cerimónia, li o texto com alguma apreensão, perante o silêncio pesado de toda a unidade e convidados, reunidos na ampla parada. Quando terminei, vi o brigadeiro chefe do serviço de Administração Militar levantar-se da tribuna e, à distância, ordenar-me: "Nosso Aspirante! Chegue aqui!" Um frio percorreu-me a espinha e atravessei aquelas dezenas de metros numa imaginável taquicardia. Subi os degraus do palanque, fiz a necessária continência e dei-me então conta da mão estendida do oficial general, que me dizia: "Quero felicitá-lo pela elevação do seu discurso!" E acrescentou outras amenidades, que toda a tribuna e os oficiais presentes ouviram. Sorrindo por dentro, fui juntar-me ao grupo de Aspirantes e Alferes que assistiam à cerimónia, alguns discretamente divertidos pelo equívoco com que eu tinha "levado" o brigadeiro. Recordo bem o comentário do Alferes Mário Viegas - esse mesmo, o ator e criador teatral, na imagem - que me disse, baixo: "quando o gajo te chamou, julguei que era para te dar voz de prisão..."

À cerimónia, seguiu-se um beberete. Notei que o comandante da unidade, o tal que havia dado o seu "visto prévio" ao texto, me olhava de soslaio. A certa altura, disse-me: "Estive a pensar melhor no seu discurso. É, de facto, um belo texto. Aqui ou na Checoslováaquia...". Fiz uma "cara de caso" e terei dito: "Não estou a perceber, meu comandante...". Ao que ele retorquiu, antes de me virar as costas: "Está, está!". Meses depois, quando participei na sua detenção, na manhã de 25 de abril, é capaz de ter-se lembrado do episódio.

Rockwell