A vida tinha-me levado, por umas semanas, à chefia interina do Protocolo de Estado. Numa conjuntura complicada, a maioria dos funcionários do serviço tivera de se ausentar para o estrangeiro e coube-me a mim, a pedido do Secretário-geral, tomar conta das coisas. Essencialmente, tratava-se de assegurar a rotina e procurar garantir que todos os dossiês pendentes iam sendo encaminhados.
(Recordo-me que me deu "uma de zelo" e que mandei recolher a montanha de papelada que pairava sobre todas as secretárias e pastas de despacho, dando andamento imediato a tudo e procurando resolver todos os problemas pendentes ou atrasados, fosse de que ordem fossem. Os funcionários administrativos do Protocolo ficaram siderados e os dois diplomatas que comigo colaboravam, Fátima Mendes e João Corte-Real, andavam divertidos e deliciados. Constou-me que alguns dos meus colegas ausentes, quando regressaram, ficaram verdadeiramente furiosos, ao depararem com tudo "limpo" e em dia...)
Uma tarde, entrou-me no gabinete um velho embaixador, há muito aposentado. Era uma homem com um sorriso constante, quase um esgar, que nos habituáramos, ao longo dos anos, a ver calcorrear os corredores da casa. O ministério era a sua verdadeira família e passear-se por lá estava-lhe na massa do sangue. Por isso, ele fazia já parte da "mobília".
Recebi-o com a atenção que lhe era devida. Era um nome célebre na casa. Estivera em grandes postos, tivera grandes responsabilidades, sobre ele circulavam inúmeras historietas, tendo sempre como pano de fundo o facto de ser um grande servidor público. Dizia-se que detestava tudo quanto dissesse respeito à cultura ("a cultura só traz chatices", seria uma sua frase célebre), que era um "charmeur" com as senhoras e de uma persistência profissional sem limites. Constava também que mantinha uma grande influência nas colocações e promoções de pessoas amigas. Os seus protegidos eram conhecidos pelos "rapazes do..." e, na realidade, era prova provada que obtinham vantagens por virtude dessa tutela. Aquele embaixador era, assim, uma verdadeira lenda.
Com toda a deferência, mandei-o sentar. "O colega deve estar com muito que fazer, não quero incomodá-lo", disse, delicado. Fui referindo que estava ali "por empréstimo", interinamente. Ele sabia vagamente quem eu era, devia ter recolhido de mim a "opinião de corredor", que é uma espécie de "label" que, com maior ou menor justiça, todos vamos criando e "afinando" ao longo dos anos de carreira, na memória coletiva. A ele era-lhe indiferente quem eu era, o seu propósito era outro.
"O colega está a tratar da visita presidencial?" Tratava-se de uma próxima deslocação de um chefe de Estado estrangeiro a Portugal. O dossiê andava por ali, mas ainda faltavam algumas semanas, seguramente já não seria eu a conduzi-lo, embora houvesse coisas que estavam já a ser feitas por nós, nesse contexto. Expliquei-lhe o estado da arte.
O velho embaixador, continuando a insistir em que não queria perturbar o meu trabalho, deixou então cair a razão da sua visita: "Eu só queria pedir ao colega um favor. É que, se possível, deixasse no processo uma nota para serem convidados, para o banquete de Estado na Ajuda, os embaixadores portugueses - os vivos, claro... - que serviram nesse país. É que, como por certo concordará, os estrangeiros estranhariam se nós lá não estivéssemos..."
Balbuciei a minha concordância de que seria "impensável" se assim não fosse e, desde logo, prontifiquei-me a deixar uma nota no processo e, mesmo, a chamar a atenção do chefe do Protocolo. O embaixador ajuizou melhor o meu ar interino e, arguto, tendo-se apercebido da fragilidade da minha influência na decisão final, acrescentou: "Fico-lhe muito grato que faça isso. Mas eu ainda passarei por cá outra vez, daqui a uns tempos...".
Quando saiu, senti tristeza pela imagem de um embaixador a mendigar um lugar numa mesa oficial. E prometi a mim mesmo lembrar-me disso, quando deixasse o serviço ativo, para nunca vir a ter a tentação de incorrer numa atitude similar. É precisamente isso o que estou a fazer agora.