quarta-feira, julho 13, 2016

O estado do conselho

O Conselho de Estado é um órgão de consulta do Presidente da República. Os seus membros, que o integram por inerência de certas funções e por escolha do parlamento ou do chefe do Estado, comprometem-se a guardar absoluto sigilo do que nele se passa, do teor das suas discussões e, muito em particular, das posições individuais assumidas durante as mesmas.

Contudo, o que se tem visto cada vez mais é a circunstância dessas conversas, que deveriam ser sigilosas, até para preservar a liberdade de cada um de poder ser totalmente franco, acabarem por surgir na praça pública, dias depois, através da imprensa. É um excelente retrato do nível a que chegou a ética cívica da paróquia! 

Imagino que os arautos da "transparência" defendam que deveria haver mesmo uma transmissão televisiva em direto das sessões daquele órgão de Estado - "o povo tem o direito de saber!" - mas nunca será demais lembrar que a demagogia no poder não é sinónimo de democracia. Bem pelo contrário!

Clostermann em Vila Real


Ontem, num texto numa rede social, um familiar de alguém que teve funções muito relevantes na aeronáutica portuguesa falava de Pierre Clostermann e, de repente, veio-me à memória um episódio de que tenho um registo incompleto.

Noto, para quem não saiba, que Pierre Clostermann foi um célebre piloto francês durante a Segunda Guerra Mundial. Nascido no Brasil, filho de um diplomata, Clostermann integrou as forças gaullistas durante o conflito, combatendo integrado na Royal Air Force e, após o termo da guerra, fez uma carreira política em França. Publicou pelo menos três livros, de que tenho um exemplar do mais famoso, "O Grande Circo". Morreu em 2006, aos 85 anos. Alguém, também nas redes sociais, referiu hoje que Clostermann terá sido proprietário de uma casa de férias em Sesimbra.

Ao ler o nome de Clostermann, veio-me à memória uma história que sempre ouvi na minha família. Um dia, que dato nos anos 50, um avião pilotado por Pierre Clostermann foi obrigado a fazer uma aterragem de emergência na Campeã, uma localidade perto de Vila Real. O piloto, que terá saído ileso dessa arriscada aterragem, foi trazido para a cidade, onde se hospedou por uns dias no Hotel Tocaio. A cidade pacata que Vila Real então era ficou em polvorosa com a presença de Clostermann. É tudo quanto lembro ter ouvido.

Alguém, em Vila Real, terá memória deste episódio? Algum dos jornais locais o referiu? Ou a censura achou mais conveniente que a imprensa "ignorasse" o assunto? Se o meu amigo Elísio Neves, o mais qualificado "vilarrealógrafo" à face da terra, não sabe do assunto, então ninguém saberá!

EM TEMPO: Aqui vai o que me chegou de um amigo de infância, Antonio Lopes, através de um contacto:

"O piloto fez uma primeira tentativa de aterragem no Alto Velão, acabando por efectuá-la na zona da Sardoeira (Campeã) tendo saído ileso. Passados três ou quatro dias, foram colocadas chapas de ferro ao longo do vale, numa determinada extensão, para uma tentativa de levantamento de voo, que não resultou. Assim, como solução, desmontaram as asas do avião que foi posteriormente rebocado para Vila Real e depois levado para a pista da Chã-Alijó. Aí foram novamente colocadas as asas e levantou voo rumo a França." Este facto é datado de 1958.

terça-feira, julho 12, 2016

Sanções

"Perdi a mão" há muito do dia-a-dia de Bruxelas, mas a minha leitura (de quem só lê sinais e não tem a menor informação privilegiada) leva-me a concluir, depois do "eurogrupo" (ministros das Finanças dos países do euro) de ontem, que o Ecofin (ministros das Finanças de toda a UE) irá propor sanções (o facto de ser anunciado que será "por unanimidade", exceto o próprio país em causa, significa que Portugal votará a favor de sanções à Espanha e vice-versa) que caberá depois à Comissão decidir no detalhe. 

Porque Portugal e Espanha não são masoquistas, quer-me parecer que o "deal" passa por aprovar o princípio das sanções e ter a garantia (já negociada com a Comissão) de que essas sanções serão iguais "a zero". 

Fica salva a "honra do convento" e, na prática, as sanções são teóricas e sem incidência orçamental. Os países mais radicais ganham a aplicação do princípio e os "faltosos" a não punição efetiva.

Uma hipótese que sempre me pareceu implausível, no atual contexto (Brexit) seria uma "linha dura" no Ecofin reclamar sanções efetivas, obrigando à "recolha" de votos para conseguir uma minoria de bloqueio. Nem os tempos estão para isso, nem o "mood" da Comissão dava garantias de que esta pudesse "obedecer" substantivamente a um conselho de ministros "severo" (mesmo com "instruções" de Berlim).

Aliás, as conclusões do colégio de comissários de há dias já apontavam no sentido da Comissão não querer o "odioso" de propor as sanções: o Ecofin que as decida politicamente e a Comissão lá estará para as definir (previamente deixando claro que serão igual "a zero"). A Comissão passará, por esta vez, a "bom da fita".

É este um bom acordo? É melhor do que multas e cortes nos fundos estruturais. Uma dúvida, no que nacionalmente nos toca, é se, no acordo, haverá ou não alguns "strings attached", com uma espécie de condicionamento a montante do orçamento para 2017. E saber se haverá, por via desta decisão de "censura", efeitos reputacionais que, no nosso caso, possam vir a afetar a leitura das agências de notação.

Uma coisa é clara: ao votar a imposição de sanções (ainda que teóricas) a Espanha, Portugal dá um passo no sentido de aceitar formalizar a aplicação, pela primeira vez, desta disposição do Tratado Orçamental. Era inevitável? Talvez. Verdade seja que a posição do FMI, a montante da reunião do "eurogrupo", não ajudou a "fugir" a este condicionamento.

A ser assim que as coisas se passam, elas não estarão muito fáceis para nós, a partir daqui. Mas qual era a opção, de facto? 

Mas posso estar completamente enganado e acabar por não ser nada disto que escrevi. Logo veremos.

As esperanças

Vi-o há dias. Ele não me viu. Caminhava por uma rua de Lisboa. Inteligente, culto, com boa capacidade expositiva em várias línguas, razoável escrita e dedicação ao trabalho. E, contudo, teve uma carreira diplomática com alguns flagrantes insucessos. Porquê? Por falta de bom-senso, que o levou a multiplicar as incompatibilidades, a ter atitudes impensadas e insensatas, a dizer coisas inconvenientes no lugar errado. Como consequência, esteve colocado em postos que sofreu como injustos, onde não se sentiu bem e, claro, onde a sua "performance" se ressentiu desse mesmo mal-estar. O que o conduziu a novos atos que acabaram por afetar o seu currículo. E a criar-lhe uma "fama", essa imagem "de corredor" que, numa carreira onde as pessoas passam muitas vezes anos a milhares de quilómetros das outras, cada diplomata transporta consigo, para o bem e para o mal. 

Ao longo de quase quatro décadas de vida profissional, conheci bem mais de uma dezena de casos de gente assim, que acabou por ter uma carreira que passou muito ao lado daquilo que as suas qualidades intelectuais poderiam justificar. Gente que começou bem, mas que jogou contra si mesma. Alguns eram "trouble-makers" (que têm genialidade para complicar tudo e que colocam sempre o ónus nos outros). Outros eram arrogantes ou indisciplinados (confundindo isso com a qualidade da frontalidade). Há ainda os azedos ou sarcásticos (ou que assim se tornaram, muitas vezes frequentando já os terrenos da intriga, da inveja ou da má língua). Não raramente, é verdade, alguma sorte não os bafejou, mas o facto é que eles não souberam dar a volta ao destino, ou ter a humildade de arrepiar caminho, e não se deixar apanhar, em definitivo, por um azar conjuntural. As mais das vezes, olhando com frieza mas com simpatia, foram eles os principais criadores da ratoeira em que acabaram por cair. 

Tive e tenho amigos nesta classe: "esperanças" no início da carreira e que, com o tempo, se revelaram "estrelas cadentes". Tenho pena por eles e pelo país que neles investiu e deles não pôde retirar todo o potencial que tinham para dar. 

segunda-feira, julho 11, 2016

A vitória e a sorte


São três e meia da manhã. Agora, que ninguém estará a ler o blogue, posso confessar? Nunca acreditei que Portugal pudesse ser campeão europeu de futebol em 2016. Porquê? Porque não tinha nenhuma "fezada" nesta equipa. (Podia estar aqui a dizer o contrário, aproveitando a onda da vitória, mas acho mais honesto, embora talvez impopular, dizer simplesmente a verdade). Claro que ainda tinha uma esperança muito residual de que houvesse uma conjugação ideal de fatores, se bem que improvável, que levasse a equipa portuguesa ao título. Mas, ontem, quando vi Cristiano Ronaldo lesionado, a minha réstea de esperança foi-se quase por completo. E apenas fiz figas - e só porque tinha lá Rui Patrício e Pepe - para que não sofrêssemos nenhum golo e pudéssemos chegar aos penáltis. Porque aí, eu confiava que Patrício não teria as angústias que consagraram a obra de Peter Handke.

Felizmente, eu estava redondamente enganado. E Portugal ganhou. Esta vitória, precisamente porque era improvável, tornou-se muito mais preciosa. Faz bem à nossa auto-estima, faz-nos esquecer, por uns dias, o espetro das sanções, faz feliz um país que tem passado "as passas do Algarve". Não nos reduz o défice, não nos atenua a dívida, não dá emprego a quem o não tem, mas tornou, por horas ou dias, as pessoas mais alegres. E isso é muito importante. Houve, neste título, coisas dadas pela sorte? Claro que sim! Mas "a sorte protege os audazes", como soe dizer-se. E, como português, estou cansado de ver o meu país não ter sorte. Também eu tive a tentação de pensar que era mais fácil um "dois cavalos" ganhar o Mundial de Fórmula Um do que Portugal um Europeu de futebol com Éder a "ponta de lança". E, no entanto, foi Éder quem nos deu a vitória. Esta é a beleza e a bizarria do futebol. Onde o improvável pode acontecer, onde, na final e afinal, Gary Lineker deixou de ter razão e não foi a Alemanha que ganhou. 

Ganhámos nós! Mas muito mais importante do que para os portugueses que vivem em Portugal - e sei que muitos não entenderão isto - ganhou a "concierge" do XVIème, que esta manhã, de olheiras sorridentes, vai cruzar-se com locatários apressados de cara fechada. Ganhou o operário do "bâtiment", que, daqui a pouco, com sorriso irónico e boca de sarro, deixará graçolas intraduzíveis aos colegas do país que, no Stade de France, só tinha papelinhos azuis, brancos e vermelhos, porque nunca pensou ser necessário utilizar a cor verde, que é a da esperança que ele (não eu) tinha. Ganhou o Mathis, de que aqui falei ontem, que pode atirar agora uma piadas orgulhosas aos seus colegas, nacionais de um grande e extraordinário país onde, porém, por um "azar dos Távoras", nasceu um dia um soldado de seu nome Chauvin, que lhes destinou para todo o sempre um vírus de nacionalismo arrogante de que nunca se libertaram, a que se dá o nome de chauvinismo.

Foi muito boa e saborosa esta vitória. Quando acordarmos (também dela), a segunda-feira estará aí e os nossos problemas não desapareceram, por um passe de mágica. Mas, caramba, quase tão importante como ganhar, faz-nos muito bem ter sorte!

domingo, julho 10, 2016

Post

Este blogue tem, pelo menos, um post por dia. Os temas são quase sempre "o que vier à rede", como sabe quem por aqui passa. Há pouco, quando pensei em escrever, percebi que seria muito estranho, num dia como o de hoje, em que a atenção do país vai estar concentrada no jogo da seleção, se acaso me desse para falar de algo diferente. Seria como que uma espécie de snobeira, de implícita promoção insensata de uma distração face a esse nosso desejo coletivo de vitória. E, contudo, era o que me apetecia fazer. Às tantas, para esconjurar alguma coisa. Por isso, e por ora, fico-me por aqui.

sábado, julho 09, 2016

Portugal e a França

Há um mundo de "não ditos" na relação entre os povos, nas mútuas perceções. Neste tempo de emoções coletivas fortes, que o futebol proporciona, alguns sentem-se legitimados para deixar escapar aquilo que lhes vai no fundo da alma, da mesma forma que o empolgamento de uma bancada permite exprimir a muitos aquilo que, com serenidade, nunca diriam.

Na nossa vida diária, nunca dizemos "tudo" aos outros, tudo aquilo que deles pensamos, com o objetivo de salvaguardar o essencial, que é a relação pessoal. Por isso, e até por vício profissional, sempre entendi que, no tocante aos países estrangeiros e ao que deles pensamos (naquele redutor e caricatural "eles"), há que procurar manter alguma contenção, embora perceba que este tempo de "pátria em chuteiras" não ajude muito a isso.

Centenas de milhares de cidadãos portugueses vão continuar a viver em França, depois de segunda-feira, independentemente do que vier a passar-se no domingo. Muitos terão, nas suas famílias e nos seus amigos, quem esteja muito dividido ou quem seja ferrenhamente por um dos lados. Espero, com sinceridade, que as tensões destes dias, os exageros verbais de parte a parte, não acabem por ter um efeito negativo no quadro de relacionamento entre muitos franceses e outros tantos portugueses que vivem em França. Seja lá isso o que for, na realidade dos factos, para além da mútua retórica.    

Carta ao Mathis, que hoje tem mais seis anos


Hoje, véspera do jogo entre a França e Portugal, lembrei-me desta "carta ao Mathis" que, há mais de seis anos, publiquei neste blogue. Eu era na altura embaixador português em França e a carta fala por si. Que será feito do Mathis, já com mais seis anos? Gostava bem que, amanhã, ele tivesse uma grande alegria, igual à de todos nós:

Olá, Mathis

Soube há pouco, por um jornal, que não te deixaram entrar na escola, aqui em França, porque levavas vestida a camisola da seleção portuguesa. Os teus pais, ao que parece, ficaram aborrecidos com isso.

Queria dizer-te que não deves ficar preocupado com o que aconteceu. Pelos vistos, o objetivo da direção da tua escola foi evitar a possibilidade de outros meninos, de várias nacionalidades - a começar pelos franceses -, poderem meter-se contigo e criar alguma confusão. Se calhar, na tua escola, há meninos da Coreia do Norte*...

É muito bom que tenhas sentido orgulho em usar a nossa camisola. A França é o país onde vives mas, como se viu, Portugal é o país que trazes no teu coração. É aqui que, provavelmente, irás fazer a tua vida, no futuro, mas isso não te torna menos português. A França é uma terra onde há muita gente que veio de outros países, como de Portugal, à procura de oportunidades para trabalhar. A França deu-lhes essa possibilidade e os portugueses retribuíram com o seu esforço, com a sua seriedade e a sua honestidade, para a riqueza da sociedade francesa. E aqui estão, também em sua casa. Ninguém deve nada a ninguém. E tu és a melhor prova do sucesso da integração dos portugueses em França, com a tua mãe francesa e o teu pai luso-descendente.

Os portugueses que aqui vivem devem ser sempre leais para com a França que os acolhe, da mesma maneira que a França tem de aceitar que tu, tal como os outros meninos que se sintam ligados a Portugal, possam mostrar isso, nas ruas ou nas camisolas. Pode discutir-se se a escola é o lugar mais indicado para andar com as camisolas da nossa seleção, mas, aos teus amigos de cá, deves lembrar que foi a Revolução Francesa, aquela que está na bela "La Marseillaise", que ensinou o mundo a lutar pela liberdade, a defender a igualdade entre todos e a demonstrar a nossa fraternidade perante os outros.

Para ti, caro Mathis, quero deixar-te um abraço bem lusitano e um convite para, um destes dias, vires, com os teus pais, visitar a Embaixada. E também espero que, qualquer que seja o resultado que a seleção portuguesa venha a ter no Mundial, tragas vestida a camisola das quinas. É que nós, os portugueses, temos por tradição ser muito orgulhosos do nosso país, tanto nos bons como nos maus momentos.

Francisco Seixas da Costa


* Portugal jogou por esses dias com a Coreia do Norte

sexta-feira, julho 08, 2016

"Brexit, projeto europeu e interesses de Portugal"


Hoje, no jornal "Público", subscrevo com Fernando Bello, João Costa Pinto, João Ferreira do Amaral, João Salgueiro, José Manuel Felix Ribeiro, Júlio Castro Caldas e Miguel Lobo Antunes o texto "Brexit", projeto europeu e interesses de Portugal".

Por não haver link disponível, o texto pode ser consultado aqui

Dias sem sol


Detesto dias de sol para ocasiões tristes. Acho contranatura que uma luz gloriosa testemunhe horas de pesar. Há ocasiões da vida, ou do fim dela, que só deviam ocorrer sob um céu carregado e ameaçador. A natureza não sabe o que faz, é o que é.

Consensos externos



Um dos consensos entre nós teoricamente mais estimado nas grandes questões de Estado prende-se com a política externa e de defesa. O Portugal democrático revelou que as opções centrais em matéria desse espetro de relações internacionais do país – Europa, lusofonia e diáspora, relação transatlântica e NATO – constituem um corpo de prioridades que colhe um apoio maioritário dentre as forças políticas com representação parlamentar.

Por alguns anos o CDS/PP “foi ali e já veio” em matéria de política europeia, flirtando o soberanismo. O PCP, herdeiro do alinhamento soviético, mantém o natural ódio de estimação à NATO, tendo-se aculturado criticamente à União Europeia, com a entrada no euro nunca devidamente digerida. O Bloco alimenta uma agenda de coloridas reticências, refletindo o que for popular e ecoe nos potenciais votantes, embora as mais das vezes acabe próximo das posições dos comunistas – com a relação com Angola como uma flagrante diferença.

Na prática, contudo, os grandes consensos revelam algumas falhas. Basta lembrar que, no tocante à política europeia, onde se porfiou por muito tempo para garantir uma forte atitude nacional comum, o último quinquénio fez emergir uma polémica governação que se furtou a todos os entendimentos que não significassem um mero “ámen” às suas muito discutíveis opções, aliás com a notória cumplicidade do chefe de Estado de então.

Um outro tempo houve também em que PSD/CDS não cuidaram em preservar a unidade de ação com os socialistas, numa vertente tão importante para Portugal como é a política transatlântica. Estou-me a referir à irresponsável colagem de Portugal, simbolizada pela organização da famigerada “cimeira da Lajes”, àqueles países que, sem mandato internacional legitimador, decidiram em 2003, sob impulso americano, atacar o Iraque, lançando as sementes de toda a tragédia que desde então inflama o Médio Oriente, levando ao caos sem fim e à morte de centenas de milhares de pessoas.

Por estes dias, foi publicado em Londres o relatório Chilcot, que demonstra que a mentira das “armas de destruição maciça” foi utilizada, com total má-fé, pelo governo de Tony Blair, para justificar a participação na agressão. Estranho muito não ver por cá questionado que foi precisamente com base nas mesmas “evidências” que o governo PSD/CDS de então arrastou Portugal para essa vergonhosa opção seguidista com a administração Bush, rompendo sem o menor pudor o consenso interpartidário, numa área tão importante para a imagem do país. No Reino Unido, Blair é hoje quase unanimemente condenado. E por cá? Será que toda a gente esqueceu já os nomes de quem, sobre o mesmo assunto, mentiu então descaradamente aos portugueses?

quinta-feira, julho 07, 2016

A Europa e as "Europas"


Gostei muito da experiência. A convite do Grupo de Amigos do Museu Soares dos Reis, no Porto, na presença de um interessado auditório de muitas dezenas de pessoas, fiz, na noite de terça-feira, uma palestra sob o tema "A Europa e as 'Europas' ", em que tentei identificar o modo diferenciado como os Estados membros e as opiniões públicas da União olham para as várias dimensões de um projeto que se quis comum mas que hoje revela preocupantes clivagens, que colocam em risco a sua sustentabilidade. 

Questões como a crise das dívidas soberanas, o fraco desempenho económico global do espaço da União, a crise do modelo social europeu, as migrações e os refugiados, os problemas securitários (no plano interno e na vizinhança geopolítica), os impactos da saída do Reino Unido e o surto crescente de euroceticismo acabaram por dominar o debate que se seguiu, que foi animado por notas de "contraponto" à minha palestra, colocadas por António Lobo Xavier. 

Naturalmente que, como pano de fundo de todo este mosaico de problemas esteve, como não podia deixar de ser, a situação portuguesa, a crise da nossa dívida e as dificuldades sentidas pelo país no cumprimento dos "targets" impostos pela zona euro, etc. Nomes como os de Merkel ou Schaüble estiveram muito "na berra", como seria de esperar.

Tive o gosto de encontrar na assistência que se deslocou para a palestra, que com o debate durou mais de duas horas, amigos nortenhos como Valente de Oliveira, Miguel Cadilhe, Arnaldo Saraiva, Fátima Marinho, Silva Peneda, Manuela Melo, Nuno Portas, Afonso Camões ou Virgílio Folhadela Moreira, entre outros. 

Foi uma estimulante ocasião, proporcionada pelo dinamismo de Álvaro Sequeira Pinto, presidente do Grupo de Amigos, a quem agradeço o convite e felicito pela oportunidade de promoção deste debate.

quarta-feira, julho 06, 2016

O relvado e não só


Há quase três anos, num almoço na Universidade Autónoma, com a qual eu iniciara uma colaboração, fiquei sentado ao lado de Raquel Vaz-Pinto. Conhecia-a de intervenções televisivas sobre temáticas internacionais e foi por aí que a nossa conversa começou, com toda a naturalidade.

A certo passo, naquelas voltas que os diálogos soltos dão, veio à baila o futebol. E logo descobri na Raquel, não um benfiquismo ligeiro, mas um lampionismo sofisticado. A Segunda Circular que nos dividia não estragou a conversa, bem antes pelo contrário. É que o amor da Raquel ao seu clube, não era um carnidismo primário: era servido por um conhecimento detalhado e profundo de todo o mundo do futebol, das táticas às histórias das agremiações e das seleções. O que ela sabia! E isso era fascinante.

Um dia, fomos almoçar os dois e, com os minutos a passarem rápidos, numa conversa super-interessante, fiquei positivamente esmagado por toda aquela "aficción", pelo prazer puro no saborear do encanto da modalidade, pela capacidade de análise das jogadas, de golos históricos, de nomes - de jogadores, de treinadores e de líderes de equipas - que deram glória ao desporto. A Raquel confessou-me que via imenso futebol com a família, no seu pouso alentejano, e que, desde criança, sempre jogara "à bola"...

Há poucas semanas, a Raquel Vaz-Pinto publicou, numa daquelas edições lindíssimas da "Tinta da China" (às vezes apetece-me escrever um livro só para o ver editado por aquela casa), o "Para lá do relvado - o que podemos aprender com o Futebol".

Raramente me diverti (e aprendi!) tanto com um texto sobre uma modalidade desportiva tão emocionante como é o futebol como com este livro. Por ali passa uma vida imensamente atenta ao fenómeno futebolístico, à sua história e às suas histórias, com um fascínio particular pelo mundo do "calcio" italiano. O facto da Raquel ser uma politóloga, com uma profundidade de análise nas dimensões internacionais, ajuda-a a melhor situar os fenómenos nos seus contextos nacionais e à escala global. Saí da leitura deste livro muito mais rico e, claramente, consciente de que sou um imenso ignorante ao pé da cultura futebolística da Raquel. E, com sinceridade, com uma imensa admiração por ela - uma figura qualificada do mundo académico que tem a coragem de "trabalhar", com devoção e saber, um outro mundo, feito de emoção e técnica, que é o futebol.

A esta hora, a minutos desse jogo que ditará se passamos à final do Europeu de futebol, vejo ali, na RTP 1, a Raquel perorar, ao lado de "catedráticos" da bola, com uma rara profundidade de análise (só liguei o som para a ouvir!). Como eu gostaria de saber de futebol como ela sabe! E, aqui entre nós, que pena tenho que ela não seja do Sporting! Mas isso não vai ser possível...

Leiam o livro da Raquel Vaz.Pinto! Mesmo os sportinguistas (a capa é verde...)! Quem gostar de futebol e do fenómeno futebolístico no mundo, garanto - a 100% - que não se arrependerá.


São

É isso que sinto. Raiva. Ainda antes da tristeza. Por mais estranho que possa parecer. Há pouco mais de uma semana, no nosso tradicional passeio no Tejo, estavas com aquele sorriso bom e sereno que era o teu. Preocupada com o bem-estar dos outros, nesse gosto, generoso, simples e natural, de criar um ambiente positivo, para que todos nos sentíssemos alegres e felizes. Falámos dos dias comuns que nos esperavam em Tróia, da vossa viagem "de pequenas" a Milão, em setembro, e de como nós, os maridos que por cá ficariam "de Rodriguez", iríamos aproveitar a "folga". Claro que havia, de permeio, a tua intervenção cirúrgica, mais uma, mas esta era bem simples, "vai correr bem, claro que vai!", disseste, connosco sem razões para não partilhar a tua confiança. Não correu. 

É verdade que há muito que aquele brilho luminoso no olhar beirão do Zé já não era o mesmo. Quando, às vezes, nos surgia pela "Dois", para um copo noturno, nele pairava quase sempre a sombra da preocupação, fruto do realismo trágico de quem é da profissão dos que cuidavam de ti. Na maneira como nos falava de como ias, sentiamo-lo a convencer-se a si mesmo de que ganhar tempo era ganhar-te vida. E que isso era o mais importante. Até hoje. Saíste agora, discreta, da cena dessa vida. Com esse tal sorriso bom e sereno com que sempre te recordaremos. Com imensa tristeza, mas também com uma incontida raiva, quase egoísta, por já não poderes estar connosco, por aí. Adeus, São.

terça-feira, julho 05, 2016

Francisco Quevedo Crespo


Acabo de me chegar a notícia da morte do Francisco Quevedo Crespo. Sabia-o doente, desde há bastante tempo, a viver na Bélgica.

Conheci o "Chico Quevedo" logo no início da minha carreira. Abrira uma vaga na embaixada de Portugal em Rabat e o embaixador Paulo Ennes, meu chefe nas "Económicas", disse-me que recomendara o meu nome ao nosso embaixador em Marrocos, Mena e Mendonça, que aceitara a sugestão. Estupidamente, recusei. Não me apetecia então sair para o estrangeiro (só o fiz, quase "à força", cerca de dois anos depois) e perdi a oportunidade de ser colocado num posto que, com Madrid, vim a constatar que me "faltou" no percurso profissional que desejaria ter tido. Surpreendentemente, o lugar foi preenchido pelo Chico Quevedo, um colega bastante mais velho, creio que já conselheiro, e que, se bem me lembro, vinha da nossa embaixada em Praga.

Um dia, num corredor das "Económicas", um homem elegante e simpático, fumando um cigarro com boquilha, aproximou-se de mim: "Você é o Seixas da Costa? Então não quis ir para Rabat?" Creio ter sido essa a primeira e última vez que nos tratámos por "você". O Chico, generoso para com o seu jovem colega, passou a tratar-me de imediato por tu. E eu retribuí.

O Francisco Quevedo era uma pessoa encantadora, casado com uma senhora belga, muito bonita e simpática, a Patty. Anos mais tarde, em 1983, "telexou-me" de S. Tomé e Príncipe para Luanda, a convidar-me para organizar a visita que o presidente Ramalho Eanes ia fazer àquele país. Tinha-lhe constado que, três anos antes, eu montara, com algum sucesso, uma operação idêntica na Noruega. E lá fui eu para S. Tomé, por alguns dias. Na memória ficou-me uma sala de cinema, com centenas de fitas Betamax, onde ele e a Patty atenuavam a "seca" daquele posto. E reforçámos o conhecimento, transformado em amizade, com ele a mandar para Lisboa, no fim da "operação Eanes", um simpático e laudatório telegrama sobre a ajuda que eu lhe prestara.

Voltámos a ver-nos na Tunísia, anos mais tarde, onde ele fora colocado como embaixador, onde a sua fabulosa coleção de Companhia das Índias dava brilho à nossa residência em Cartago, que ainda hoje continua a ser a mesma. Depois, o Chico veio para Lisboa, para as Necessidades, num tempo de reforma da estrutura funcional da "casa" que não foi fácil de implementar e que ele não apreciava muito, como me confidenciou. Recordo um agradável almoço numa belíssima casa em Sintra, onde vivia e para a qual me convidou. E creio que foi em Londres que nos vimos pela última vez, ocasião em que ele me disse uma frase que guardei: "Dizem que os fatos de Saville Row são muito caros. É falso! Duram toda a vida! Acabam por ser baratíssimos...". Nunca comprei um fato nos alfaiates clássicos de Mayfair, mas guardei a dica.

Na carreira diplomática, por andarmos por sítios distantes uns dos outros, vamo-nos perdendo. Eu perdi as conversas com o Chico há muito e, agora, perdi-o como bom amigo, para sempre. Um beijo sentido à Patty.

O aperto

Pareciam árbitros num jogo de ténis de mesa, observando a coreografia dos atletas, oscilando a mirada.

De um lado, o presidente da República, no braseiro da tarde transmontana, sem pingo visível de suor, dedicava-se, "comme d'habitude", à orgia das "selfies", a caminho dos caixilhos nas salas de estar.

Do outro, José Sócrates, surgido "out of the blue", mantinha-se a pouco mais de cinco metros, olhar esfíngico, no meio da multidão. 

Eles, os jornalistas, povo em Bics, olhavam, à vez, ora para um, ora para outro, pingpongueando a atenção, não fosse perderem algum esgar, alguma nota fisionómica de reportagem.

A distância entre os dois mantinha-se. As câmaras das tv rodavam, os microfones, feitos miragem de cornetos da Olá, naqueles 35 graus, orientavam-se, expectantes.

No túnel do Marão, António Costa trocara-lhes as voltas e eles, furibundos, haviam sido iludidos, sem imagem do encontro com Sócrates. Agora, era impossível. A geringonça escapara? Belém não se safaria do confronto.

Eles ali estavam, Marcelo e Sócrates, "à mão de semear", condenados a encontrarem-se fisicamente, a saudarem-se, mais minuto menos minuto. A foto, a imagem, a nota de reportagem que faltava. Que iriam dizer um ao outro? Trariam frases estudadas? Como sairia Costa da troca de palavras? E Passos Coelho? Falariam das sanções europeias? Ou da justiça?

A ocasião era a inauguração dessa bela peça arquitetónica que é o Centro Miguel Torga, de Souto Moura. Ele, o arquiteto, por ali andava, mas o que é que isso agora interessava, como diria Teresa Guilherme? A filha de Torga também estava presente? O que é que representava esse mero pormenor filial, ao pé da expetativa de um cumprimento, seguramente embaraçado, entre o recém presidente e o primeiro-ministro de há quase um quinquénio? 

A certo passo, a ocasião começou a acontecer! Ainda um pouco antes de "las cinco de la tarde", a "praça" suspendeu-se, abriram-se as alas, o caminho entre ambos começou a encurtar-se, a História fazia-se, num quase silêncio de instante épico. Seria o "doctor Livingstone, I presume?", o Salgueiro Maia, no Arsenal, a enfrentar o brigadeiro patético do século XIX, Clay a cruzar a mão de Frazier antes do decisivo "uppercut". Como iria de facto ser? Ronaldo recusaria a camisola ao islandês desconhecido ("who are you?")? 

Em instantes, Marcelo e Sócrates ao pé um do outro, saudaram-se, trocaram obviedades e lugares-comuns, felizmente dissecados, com rigor de Pulitzer, por exegetas da comunicação. 

Um simples "fait-divers"? Essa agora! Foi a História (com H grande). Claro que ali faltaram Rui Ramos, Fátima Bonifácio, Hermano Saraiva, Damião Peres, Herculano, Fernão Lopes. Nenhum deles estava, mas estava o Correio da Manhã, que dá uma abada de tiragem aos Annales.  

Ah! E houve o aperto. De mão.

O sentido da vida

Aquele amigo não era conhecido por ter excessos de vaidade, nem por ser muito "apegado a coisinhas" - como alguém uma vez qualificou, com graça, um novo rico deslumbrado, daquele género assaloiado que gosta de ter o último modelo de tudo o que tecnologicamente está "na berra".

Porém, naquele dia, ao mostrar o automóvel que acabara de comprar, de gama alta, claramente identificável com um estatuto social "a puxar para" o elevado, não se conteve e perguntou a um conhecido, impante e seguro da resposta:

- Então, que achas? Já é mais para cima do que para baixo, não te parece? 

A expressão ficou na "história", entre os conhecidos dessa figura excelente, cuja vida correu sempre bem "mais para cima do que para baixo". Aliás, merecidamente.

Lembrei-me disso hoje, ao ter uma conversa com um concessionário da marca do carro que possuo. É que a opção que estou a encarar, para possível compra, é de um modelo de gama abaixo daquela que hoje tenho. Pensei para comigo: isto começa a estragar-se! Estou a "andar" já mais para baixo do que para cima...

segunda-feira, julho 04, 2016

O Ramalheda

Só quem é de Vila Real de outro tempo sabe quem era o Ramalheda. O nome é "bom" e sonoro. Um dia, andava eu na escola primária, o meu pai disse-me: "Aquele é o senhor Ramalheda". (Faço parte de uma geração em que os nossos pais, referindo-se a terceiros, nos habituavam a anteceder o seu nome de família por "senhor"). Recordo vagamente a figura. O Ramalheda (o senhor Ramalheda) era um industrial de fogos de artifício, sedeado algures próximo de Vila Real. Não havia "fogo" nas festas da cidade ou redondezas que não fosse fornecido pelo Ramalheda.

(Em Viana do Castelo, recordo-me bem, as coisas, durante anos, eram bem mais complexas e o "mercado" funcionava: os Silvas e os Castros competiam pelo fornecimento do produto, numa rivalidade feroz, de que a qualidade do "fogo" só ganhava. Eram três ocasiões. Começava pelo fogo "do jardim", o "fogo preso", no primeiro dia. Quem se lembra ainda do eterno" ciclista", que pedalava "lá em cima"? No segundo dia, tínhamos o fogo "da santa" ou "fogo do meio", saído da ribeira. E, finalmente, no último dia, a "serenata", com "fogo" de barcos no Lima, com a "cachoeira" da ponte a fechar as Festas. Há que ter uma piedade cristã por quem sofre dessa trágica lacuna de nunca ter ido a Viana, às Festas, ver o "fogo". Quem vos diz isto, com toda a independência, é o presidente da "comissão de honra" das Festas da Senhora da Agonia 2016...)

Voltemos ao "vilarrealense" Ramalheda. Um dia do final dos anos 50, um acidente ocorreu nos arredores da cidade, durante as festas de Nossa Senhora da Pena (a "Sedapâna", na linguagem oral comum; era o tempo em que, se alguém colocava muitos faróis "extra" no carro, recebia a graça irónica, na esquina da Gomes: "pareces o arraial da Sedapâna!"). Houve uma explosão na área dos fogos do Ramalheda e uma família inteira morreu, entre os quais um colega meu de escola primária. Eu tinha, creio, 6 anos, e lembro-me do lugar vago que, estupidamente, o professor Pena (mais Pena!) deixou por semanas na cadeiras da escola "do Trem".

Ontem, precisamenfe às seis da manhã, lembrei-me, para mal dos meus pecados, do Ramalheda: uns atrasados mentais de uma qualquer Junta de Freguesia perto de Abambres, decidiram lançar uma série de cerca de trinta morteiros. Às seis da manhã?! Verdade seja que só me acordaram porque eu estava já acordado (não é contraditório, podem crer). 18 horas mais tarde, do mesmo local, pela meia-noite de ontem, veio finalmente, o "fogo". Foram cerca de dez minutos. Que tal? "Tant bien que mal", porque, por mais que me esforce em complacência, os meus "benchmark" continuam fixados nas passagens de ano em Sidney, Rio e no Funchal, no 14 juillet em Paris, no 4th of July em Nova Iorque e, claro, na "serenata" da Senhora da Agonia, em Viana. Mas o "fogo" nos arredores de Abambres lá terminou, como mandam as regras, com uma vistosa "girândola final", seguida dos derradeiros três morteiros da praxe. Como é que eu sei estas coisas? Ora essa! Eu li cedo, do Cortazar, a propósito de coisas bem diferentes, o "todos os fogos o fogo"!

Ainda trabalhará no "fogo", a família do Ramalheda?

domingo, julho 03, 2016

Manhãs


Sempre tive a ideia de que há qualquer coisa de naïf no modo como olhamos as belas manhãs. Um dia a nascer com um sol de exceção cria a expetativa de que as coisas vão correr muito bem, que o resto do dia vai estar à altura do modo como começou. Ora a experiência mostrou-me que só muito raramente as coisas se passam assim. Os dias correm como têm de correr, às vezes mal, outras bem e, na maioria dos casos, assim-assim, que é a sina média das coisas. A mim, com toda a franqueza, isso já não me angustia minimamente. Cada vez mais, vivo bem e sereno com a uma mediania razoável de objetivos, satisfaço-me e valorizo "o que vier à rede". (Até a simplória "filosofia de almanaque" de que este texto está imbuído é prova evidente disso). Transformei-me, desde há bastante tempo, num militante fervoroso do "possibilismo", uma "técnica" que refinei ao requinte e que me permite raramente ter desilusões (e, podem crer!, relativiza e atenua as chatices, na lógica sábia de que "o que não tem remédio remediado está"). Aliás, olho quase sempre com algum gozo sobranceiro para a ambição obsessiva de alguns, embora reconheça que é ela que, lá no fundo, tem o poder de mudar a sério as coisas. Só que eu já há muito que não "ando por aí", não "estou nessa", razão por que repito, sem a menor melancolia, a frase conformada, desencantada e tão verdadeira, mas que sei que irrita bastante alguns: "é a vida!". Será por isso que, desde sempre, estas manhãs radiosas me "dizem" tão pouco?

Ilustração

Por alguns dias, os textos a publicar por aqui vão surgir sem imagens. Como sei que a maioria dos leitores faz parte da geração que consegue ler sem "figurinhas", espero que não levem a mal. Se tiver tempo, e retrospetivamente, ilustrarei mais tarde os escritos.

As palavras "em estrangeiro"

Alguns leitores - aqui no blogue e em artigos - queixam-se do facto de eu utilizar, com exagerada frequência, palavras e expressões estrangeiras.

Reconheço sem qualquer problema que padeço desse vício, aceito que ele não seja "bonito" para uma escrita que se desejaria em bom e puro português, exponho-me mesmo à crítica justa de algum excesso de "cosmopolitismo", a roçar a snobeira. Tudo o que quiserem! 

Mas não tenciono mudar, desculpem lá! A minha escrita nestes espaços é, cada vez mais, espontânea, imediata e próxima da oralidade. Falo como escrevo e escrevo como falo. Como vício adquirido por quem viveu bastante tempo fora do país, ficaram-me essas "bengalas" de facilidade expressiva (noto que também uso imensas aspas, o que igualmente desfeia a escrita, tal como os parêntesis em que escrevo isto mesmo). Quem por aqui fizer o favor de andar terá de conviver com elas.

OK?

sábado, julho 02, 2016

Michel Rocard

Morreu Michel Rocard, uma das figuras mais brilhantes da esquerda francesa. Foi o criador do PSU (Partido Socialista Unificado) que, para alguns, nos quais me contava, muito inspirou essa aventura improvável que foi o nosso MES (Movimento de Esquerda Socialista).

Rocard teve um percurso interessante na vida política da França. Foi primeiro-ministro de François Mitterrand, que nunca o apreciou e desconfiava imenso da sua evidente ambição. A modernidade e o brilho da suas ideias, onde assentava uma capacidade extraordinária de olhar o futuro, com criatividade e inteligência, chegou a seduzir áreas fora do mundo socialista. Talvez por isso, o rótulo de "Rocard d'Estaing" foi-lhe colocado um dia, de forma crítica, pelos setores do PSF que sempre cuidaram em "fazer-lhe a cama", travando, com sucesso, a sua ascenção ao Eliseu.

Rocard tinha amigos portugueses, entre os quais se contava António Guterres, que muito admirava, como um dia me disse em Estrasburgo, depois de uma intervenção do primeiro-ministro português no plenário, que o deixou entusiasmado. Havia qualquer coisa de comum entre essas duas figuras.

Tive pena de, nos quatro anos que passei na embaixada em Paris, não ter procurado o seu convívio. Nunca me perdoei disso.

Referendo europeu

Faço um "disclaimer" prévio: sou arraigadamente contra o instituto do referendo, sempre achei a sua inserção constitucional uma insensatez e nunca coloquei o meu voto num referendo. Nem o farei nunca. Ou alguém quer testar a sensatez popular e arriscar um referendo sobre se deve ou não haver impostos? 

Dito isto, acho normal, em democracia, que haja quem goste de referendos e até que, à suiça, os procure organizar por tudo e por nada. Estão no seu pleníssimo direito.

Por isso vi, com naturalidade, que ao  Bloco de Esquerda, claramente para fazer um "número" mediático, num encontro qualquer que realizou, lhe desse na veneta propor um referendo sobre a Europa. 

Como já se está na fase de rapar o fundo do tacho dos temas fraturantes (embora o Bloco não tenha coragem para arriscar um referendo às touradas, não vá o povo espetar-lhe a bandarilha do "sim"), à boleia do Brexit saiu-lhes aquela imaginativa pérola.

Em 15 segundos, o presidente da República arquivou-lhes a insensatez e o PS, coitado, lá teve de dizer aquelas coisas oblíquas que é obrigado a exprimir, quase sempre argumentando contra a "oportunidade", perante os humores ciclotímicos dos "compagnons de route" da geringonça, obrigados a fazer prova de vida própria.

Tudo acabou por aí? Não! Alguma direita mediática e uns tenores partidários sem serviço atribuído vêm agora falar da "gravidade" da proposta do Bloco, da imagem de irresponsabilidade que isso projeta sobre a imagem do governo, sobre Portugal e, se calhar, sobre a civilização ocidental.

Conhecendo-os, estou certo que os mais importantes embaixadores estrangeiros em Lisboa terão dado ao assunto a importância que ele tinha. Isto é, nenhuma.

Diplomacia europeia


Nos dias que correm, muito daquilo que os governos fazem no tocante à Europa passa pela área das Finanças e pelos gabinetes dos primeiros-ministros. A obsessiva agenda económico-financeira, que absorve o discurso da União Europeia, ajuda bastante a que assim seja. Acresce que o Tratado de Lisboa, ao afastar os ministros dos Negócios Estrangeiros do Conselho Europeu (instância máxima de decisão da União), veio criar (desnecessárias) dificuldades ao trabalho das diplomacias nacionais no processo funcional em Bruxelas.

Quando o atual executivo foi criado, fiquei curioso em observar como se processaria articulação funcional entre o primeiro-ministro, o chefe da diplomacia e a secretária de Estado dos Assuntos europeus. Como penso que se compreenderá, mantenho uma particular atenção ao tema, desde que, já há mais de quinze anos, tive algumas responsabilidade por essas áreas - se bem que entre a Europa desse tempo e a de hoje haja um imenso mundo de diferenças. 

Devo dizer que, à partida, tinha uma expetativa de que as coisas se iriam passar bem. António Costa detinha uma grande experiência europeia, por ter sido ministro de várias pastas, por ter dirigido conselhos de ministros europeus e por ter sido vice-presidente do Parlamento europeu. Augusto Santos Silva, embora sem prática política direta no setor, tinha um vasto, diversificado e rico currículo governativo, além de ser uma das melhores "cabeças" do executivo, de que em boa hora passou a ser "número dois". Finalmente, Margarida Marques é, nos dias de hoje, sem a menor dúvida, pelo seu profundo conhecimento da maquinaria bruxelense, com décadas de experiência na estrutura da Comissão e com uma valiosa e atualizada rede de contactos, uma das pessoas melhor habilitadas em Portugal neste domínio.

Ao final destes meses, as minhas expetativas, como observador exterior, foram francamente excedidas. Acho que o "triângulo" institucional referido projeta uma imagem de grande eficácia, de conhecimento e de elevada sensibilidade para os problemas, numa das vertentes que hoje são mais decisivas para o futuro de todos nós. A rápida, adequada e certeira reação às diatribes do ministro germânico das Finanças mostra uma forte determinação e um assinalável sentido de responsabilidade.

Como português, antigo diplomata e já longínquo "operacional" nessa área, fico muito satisfeito por ver a diplomacia europeia de Portugal em excelentes mãos, o que só comprova a capacidade de montagem e gestão de equipas de António Costa. 

sexta-feira, julho 01, 2016

Perceber Schauble




Custa-me ter dizer isto, mas eu percebo muito bem Wolfgang Schauble!
Quando, há dois dias, observei o coro ofendido de vozes lusitanas a adjetivar de insultos, por vezes soezes, o ministro das Finanças alemão, tive um sentimento de compreensão pela atitude daquela figura, que, com determinação germânica, teve a coragem de apontar, com dedo disciplinador, o rumo que entendia melhor para esse relapso país do Sul que nós somos. Um Estado que se permite, de forma que ele lê como absolutamente irresponsável e irracional, colocar no terreno algumas políticas que abertamente contrariam a lógica que ele, e quantos pensam como ele – muito em especial, neste respeitável jornal que tão generosamente me acolhe no seu seio -, acarinham as ideias que ele perfilha, para bem da estabilidade da Europa, da sanidade das suas políticas públicas, das “contas certas” de quantos pensam que, se se quer pertencer a um “clube”, se deve subscrever, custe o que lhes custar, as regras que se assinaram.
Não sou alemão, mas percebo-os muito bem. Os leitores não necessitam sequer de ir a um atlas para se darem conta do que mudou, nos últimos anos, no panorama de segurança do continente. Basta que recuem até ao fim da Guerra Fria, que olhem para a Alemanha desse tempo, pelo meio da qual passava então a fronteira entre o mundo democrático e a Europa autoritária de Leste, tutelada por Moscovo. Pela RFA desses tempos passava a “cortina de ferro” (para utilizar a expressão forte de Churchill, no discurso de Fulton), a senhora Merkel gozava então as delícias frugais de ser uma jovem “pioneira” na RDA, os pacifistas estavam a Oeste e mísseis a Leste, como lembrava Mitterrand. Depois, a URSS implodiu, económica e politicamente, e Reagan e um papa amigo ganharam essa guerra sem necessidade de disparar um tiro. A União Europeia e a NATO limitaram-se a integrar institucionalmente essa nova realidade, como a América indicou que seria a coisa mais sensata a fazer.
Olhem agora, caros leitores, para a Europa de hoje: a Alemanha está, de novo, centrada em Berlim. Entre as suas fronteiras e as da Rússia, sucessora da URSS, há uma “buffer zone” de segurança que lhe confere uma centralidade única. Até se pode permitir adubar as pulsões traumáticas dessa “nova Europa”, criada a Leste pelos alargamentos, esse mundo de aventuras de proselitismo democrático ocidental por terras georgianas e ucranianas, suportado por dinheiros de Bruxelas.
Agora, os britânicos avisam que querem sair da Europa. Em Berlim, passado o primeiro momento de espanto, fazem-se as contas. Que tal recompor, sob a tutela germânica, o “núcleo duro”, agora que Londres desaparece como constante ameaça da afirmação soberanista? A França está em frangalhos, com Hollande a não ser levado a sério por ninguém. A Itália, numa crise só disfarçada pelos esgares de Renzi, é hoje um “joke” na equação europeia. O Benelux é o Benelux, isto é, uma periferia alemã sem identidade e prestígio, desejosa de ser cooptada para um futuro onde possa sobreviver, com bicicletas e bem-estar. Fora dos “seis”, a Espanha e a Polónia não contam, pelas diferenciadas fragilidades que conjunturalmente atravessam.
A Eurozona tutelada por Berlim é, assim, o “core” do futuro. Todo? Não. Expurgado dos relapsos, Grécia e Portugal, num tempo em que as aritméticas políticas retiraram do poder os obedientes amigos locais de Berlim. Fazê-los cair, agravar os sinais que os mercados possam ler como desestabilizantes, fará com que Lisboa e Atenas abandonem progressivamente o mundo “puro” do regenerado euro. Às tantas, até nos podemos dar ao luxo de fazer um “haircut” compensatório na sua dívida, para atenuar o seu “phasing out” do clube, deve estar a pensar Schauble. Como eu o compreendo!

Para inglês ver



"Nos três primeiros pontos, a nossa posição é a que está neste texto. Nos restantes, que não nos afetam, espere pela atitude britânica e, depois, apoie aquilo que eles disserem."

Num primeiro momento, pensei ter ouvido mal as instruções, dadas num gabinete do palácio das Necessidades, na véspera da minha partida para uma reunião no Luxemburgo, nesse primeiro semestre de 1986, entrados “de fresco” nas instituições comunitárias. A minha surpresa tinha também a ver com o facto de, nas tais questões em que deveria “seguir os ingleses”, ter alguma opinião e fundamentos para ela, numa matéria que estudara e julgava conhecer bem. Nada disso me valeu: devia proceder como indicado. Regressei ao meu serviço, então bem longe do edifício central do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a secreta e residual esperança de que Londres pensasse como eu... Já não sei como tudo acabou.

Foi assim durante muitos anos. Séculos. Na ida da corte para o Brasil, na abertura dos portos lá decidida, na tutela permanente da nossa política externa, com o fantasma de Madrid no nosso horizonte. Um dia, o nosso “mapa cor-de-rosa” foi contraditório com o projeto inglês de ligar o Cairo ao Cabo e lá veio o “ultimatum”. O país entrou numa daquelas emoções nacionalistas que, a espaços, lhe sobrevêm, num “afrontamento” típico de uma nação em menopausa. Fez um hino em que apelava a “contra os bretões, marchar, marchar!”. Depois, “baixou a bola” e, no lugar de “bretões”  colocou “canhões”, como se nada se tivesse passado. Pelas costas, Londres negociou duas vezes com a Alemanha uma partilha das nossas colónias e ainda flirtou com Madrid, quando pensava poder cá recolocar o rei que acolhia.

Os republicanos, repudiados por Londres, só com o sacrifício da Flandres conseguiram lugar à mesa de Versalhes. Depois, a Inglaterra acomodou-se ao Estado Novo, controlou-lhe as hesitações face aos “aliados” e, no fim da guerra, ficou-lhe grato pelo volfrâmio e pelos Açores. Salvou a pele política a Salazar, numa “neutralidade colaborante” com a ditadura, que teve então o desplante de dizer que fazia eleições “tão livres como na livre Inglaterra”. Esquecendo os crimes do regime, colocou Portugal no “mundo livre” da NATO e, depois, na EFTA. E, diplomaticamente, excetuada a questão colonial, domesticou as Necessidades, onde o “lobo” ibérico justificava uma permanente ideologia de subordinação.

A entrada na UE “libertou” Portugal de Londres, mesmo se, no início, episódios como aquele com que abri este texto ainda ocorressem. Mas foi sol de pouca dura. Em política europeia, cada um foi por seu lado. E agora? Regressamos à “oldest alliance”, recuperada nos últimos dias na retórica caseira? Acredito tanto nela como os britânicos.

"Expresso da Meia Noite"


Hoje, sexta-feira, dia 1 de julho, pelas 23.00 horas, estarei no "Expresso da Meia Noite" a discutir a Europa pós-Brexit

quinta-feira, junho 30, 2016

Ramalho Eanes

                           

Comecemos pelo fim. António Ramalho Eanes é um democrata, um homem impoluto e uma pessoa de bem. O regime que saiu do 25 de abril ganha em ter, dentre as personalidades que o representaram num lugar cimeiro, uma figura como ele. Achei muito oportuno e justo que, no momento em que se comemoram os 40 anos da sua posse como presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa tenha decidido homenageá-lo.

Recordo-me bem de assistir, durante a famosa Assembleia "selvagem" do MFA, em 11 de março de 1975, a apelos insanos de alguns excitados participantes, apelando à prisão de Ramalho Eanes, que, ao tempo, era presidente da RTP. Foi Vasco Lourenço quem, com grande vigor, então o defendeu. Tempos depois, na minha memória política, guardo a sua figura ascética, de óculos estranhamente escuros, a receber Costa Gomes na Amadora, ao fim do dia 25 de novembro desse mesmo ano, depois de ter conduzido as operações militares, do lado que se opunha ao radicalismo de esquerda, nesse dia de trágico confronto castrense. 

Um ano depois, Eanes era candidato à presidência da República, com o apoio do PS e PPD (a ordem é inversa, porque Sá Carneiro, sabendo por um "leak" que os socialistas iam convidá-lo, resolveu tomar a dianteira). Eanes seria eleito com facilidade. Não votei nele nessa eleição, porque o seu perfil político e pessoal não me inspirava então a menor confiança. Mas acabei por votar nele cinco anos depois, na sua reeleição, mais "by default" do que por entusiasmo, porque do outro lado estava a figura preocupante de Soares Carneiro, um general de perfil autoritário e muito discutíveis credenciais democráticas, apoiado por toda a direita.

Enquanto presidente, Eanes conseguiu um raro pleno ao entrar em conflito simultâneo com os líderes do PS, PPD e CDS. Os tempos da vida político-partidária eram complexos e, reconheça-se, o seu papel não era fácil, até porque era a ele que competia "desenhar" o primeiro recorte de um chefe de Estado em democracia, num regime semi-presidencialista ainda em teste. Em 1980 e 1983, coube-me, por coincidência, a responsabilidade de organizar, logisticamente, duas visitas de Estado de Ramalho Eanes, respetivamente à Noruega e a S. Tomé e Príncipe. Fiquei então com respeito pelo seu elevado sentido de Estado, demonstrado em ambas as ocasiões, embora essa coincidência funcional não tivesse contribuído para criar uma empatia pessoal com a sua figura humana, demasiado rígida para o meu gosto.

Porém, muito ainda antes disso, o que em nada contribuiu para que melhorasse a imagem inicial que dele criara, havia sido o modo como deu livre curso à subida ao poder de uma geração de oficiais generais que se dedicaram, com lamentável zelo revanchista, a prejudicar alguns militares de abril que muito prezo. Faço uma avaliação francamente negativa do seu papel nesse período, mas, pelos vistos, estou quase "sozinho": já constatei que os seus críticos militares de então, aqueles que terá prejudicado, são, nos tempos que correm, seus grandes admiradores...

Porém, a minha maior crítica a António Ramalho Eanes, com quem me "cruzei" pontualmente no apoio (no caso dele, indireto) à candidatura presidencial de Salgado Zenha, em 1986, tem a ver com a iniciativa, que titulou, da criação do Partido Renovador Democrático (PRD), uma nefasta estrutura partidária, assente numa doutrina de "um partido anti-partidos", que se reivindicava de uma superioridade ética que o tempo revelou falsa e, na minha perspetiva, tinha germes que, noutros países e noutras circunstâncias, levaram a aventuras políticas que nem é bom lembrar. O PRD tinha a intenção de aniquilar o Partido Socialista. Para evitar isto, Mário Soares - que tinha em Eanes o seu inimigo de estimação, atitude que creio correspondida durante largos anos - acabou por tomar o gesto político de dissolver a Assembleia da República, abrindo caminho a uma década de cavaquismo governativo. Há coisas que se pagam...

Eanes iniciou depois um percurso marcado por alguma discrição, dedicando--se a estudos universitários e, de quando em vez, brindando-nos com algumas dissertações em público, algo rebuscadas, mas onde revelou a maturação de um pensamento político crescentemente próximo de posições progressistas. Neste contexto, o seu apoio às candidaturas de Cavaco Silva tem difícil explicação, a qual terá sempre de ser lida na difícil articulação com o seu surgimento como o grande promotor de Sampaio da Nóvoa no recente sufrágio presidencial.

A vida ensinou-me a olhar de uma forma muito mais ponderada e equilibrada para as pessoas e para as coisas. E, sem qualquer esforço, sou hoje levado a concluir que António Ramalho Eanes é uma figura com grande dignidade, a quem o país deve admiração e merece considerar como umas das referências do nosso regime democrático.

quarta-feira, junho 29, 2016

País organizado


"Convém-lhe mais às três ou às três e meia?"

A pergunta era feita por um amigo, que me convidara para fazer uma palestra numa universidade, fora de Lisboa.

"Talvez às três e meia...", respondi-lhe, já a pensar em não ter que apressar a almoçarada. Já que ia àquela cidade, aproveitaria para ir comer nesse dia a um restaurante de que me haviam falado muito bem.

O leitor perguntar-se-á que diabo tem este curto diálogo de notável para ser aqui reproduzido. De facto, nada. Ou melhor, talvez a circunstância da data da palestra ser em meados de novembro possa demonstrar que este país, afinal, organiza o seu futuro.

As malhas que o império deixa

Tinha-o notado no aeroporto de Lisboa. De "balalaika" cinzenta era, com toda a certeza, uma figura grada do "establishment" de um país africano de língua portuguesa. Tratava-se de um cavalheiro na casa dos cinquenta, negro, que viajava como se "deve" viajar: sem rigorosamente nada na mão. 

(Comparado comigo, ganhava-me à légua. Eu levava um pasta pesadíssima, "laptop", iPad, um livro, várias revistas, três jornais diários do dia, a que somei, na FNAC do aeroporto (não, não ia em "business class"...) o "Financial Times" e o "El Pais". E uma saca com roupa e higiene. Ele não: como "deve ser", despachara a bagagem).

Chegados a Amesterdão, caminhou, à minha frente, calmo e sem pressas, pela manga de acesso, apenas com um jornal na mão, seguramente obtido na classe "executiva" em que viajara.

Chegado ao topo da manga, aguardavam-no dois cavalheiros, também negros, engravatados, diplomatas pela certa (só diplomatas poderiam aceder àquela área).

Tudo o que até aqui relatei é irrelevante. O importante é o que vem a seguir.

No encontro entre o cavalheiro, chegado de Lisboa, e as duas figuras que o aguardavam, eu, que vinha imediatamente atrás, testemunhei o seguinte diálogo:

- Querem o "Record"? Trouxe-o do avião.

- Não havia "A Bola"?

- Não...

- Bom, sempre é melhor que "O Jogo"...

Perdemos um império, mas há coisas que não passam...

terça-feira, junho 28, 2016

O casario do Bragado


Há dias, ao sair da A24 para as Pedras Salgadas, olhei uma placa de trânsito com o nome de Bragado, uma aldeia ali perto, e lembrei-me da história. Ouvi-a, há anos, a alguém a quem lha tinha contado quem também a ouvira a terceiros. Mas logo verão que o essencial se não perde.

Estava-se nos primeiros anos dessa trágica aventura migratória portuguesa para terras de França, no final dos anos 50. Do Norte, de Trás-os-Montes, tal como do Minho e das Beiras, saíram "a salto" esses primeiros heróis, em pequenos grupos, às vezes explorados pelas máfias de "passadores" que os "ajudavam" na travessia das fronteiras e, também muitas vezes, abandonavam à sua sorte quem não falava uma palavra das terras de línguas estranhas que tinham de atravessar. Enfrentar o desconhecido, para quem vinha de pequenos povoados, deve ter sido uma saga difícil de imaginar.

Estamos a falar de gente muito simples, lançada num mundo onde cabiam as referências básicas do que lhe fora dado ver, nesse trauma de imagens e medos, de realidades inesperadas e surpreendentes, gerados num percurso bizarro, entre aldeias recônditas e periferias de imensas cidades, que só avistavam ao longe, ou a partir das obras onde iam trabalhar, então quase de sol-a-sol.

O episódio que vou contar é desse tempo, de uma conversa, nas férias em Portugal, de um desses emigrantes, numa roda de amigos, em Vila Pouca de Aguiar. O nosso homem estava a relatar, para benefício de um auditório de gente que nunca tinha ido muito mais longe do que o perímetro da sua aldeia, o que eram as terras do seu destino de trabalho.

A certo passo, um amigo perguntou-lhe: "Olha lá! E de que tamanho é que é Paris?" 

Imagino a dificuldade do homem em explicar a ordem de grandeza de uma cidade cujo centro, pela certa, nunca tinha visitado, cujo recorte apenas vislumbrava no caminho para Champigny ou de outro "bidonville" onde a pobreza portuguesa se ia então refugiar, à procura daquilo que o país onde nascera lhe negara. 

Pensou um pouco e, com medidas comparativas que os amigos talvez pudessem melhor avaliar, lá se decidiu adiantar:

- Paris é muito grande. É assim de um tamanho que vai de Vila Pouca até às Pedras e que chega até a algum casario do Bragado.

Se pensarmos que de Vila Pouca às Pedras Salgadas são seis quilómetros e o Bragado fica apenas mais dois adiante, e que só o periférico à volta da parte central de Paris tem 35 km de comprimento, poderemos apreciar o erro de perspetiva do nosso homem. De uma coisa estou certo: os amigos que o ouviam ficaram cientes, de forma muito clara, de que Paris era uma cidade muito grande. E isso é que importava.

Por vezes, ao atravessar Paris, quando por lá era embaixador, ao percorrer longas distâncias de um ponto ao outro da cidade, senti-me quase a chegar a "algum casario do Bragado".

O "opt-out" final

(Na noite/manhã do Brexit, publiquei no Observador, a convite desse site, o texto que se segue. Dei-me agora conta de que, por lapso, não o reproduzi, como sempre faço, quanto mais não seja "for the record", neste blogue.)
David Cameron vai ficar na História do Reino Unido e da Europa. É mais do que um pé-de-página. É o titular de um dos mais tristes capítulos que um país com a responsabilidade global do Reino Unido inscreve no curso dos factos europeus.
O primeiro-ministro cessante, que os últimos meses consagraram como um irresponsável bombeiro pirómano, brincou com o futuro do seu país para tentar sarar uma ferida partidária que só acabou por agravar. Fez emergir, com uma evidência sem par, uma detalhada agenda eurocrítica que vai agora ser apropriada por setores em todos os Estados membros. Só partilho com ele a sua derrota.
O anúncio da saída britânica da União vai estimular pulsões referendárias noutros Estados membros e, em alguns outros, suscitar “condições” para a permanência no projeto comum, que passarão por alguma maior “flexibilidade”, isto é, pela aproximação e aproveitamento de alguns aspetos da integração diferenciada de que o Reino Unido já dispunha. As eleições presidenciais francesas estão à porta e o dia de ontem não podia ter corrido melhor a Marine Le Pen.
Alguns dirão: se mais de metade dos eleitores britânicos votaram contra a permanência do seu país na União é que, pela certa, alguma razão terão.
Claro que sim! Nenhum eleitorado fica insensível a uma campanha demagógica que colocou a União Europeia como a fonte de todos os males, como o bode expiatório de tudo quanto não funciona, dos migrantes à burocracia, da insegurança das ruas à do emprego.
E, particularmente, nenhum eleitorado consegue reagir a esta demagogia organizada se, ao seu lado, não tiver uma pedagogia assumida oficialmente em favor da Europa, da causa europeia, dos valores do projeto integracionista, dessa soma de vontades que trouxe décadas de paz, de estabilidade e de bem-estar a centenas de milhões de pessoas. E de esperança a muita gente, como os cidadãos das antigas “democracias populares”, que perceberam que era a este projeto de sucesso que queriam aliar-se, para a defesa da democracia conquistada, do desenvolvimento desejado, da segurança coletiva que nele vislumbram.
Cameron, ao invés, fez uma campanha através do medo, instilando a angústia do salto para o desconhecido, a isso juntando o sublinhar egoísta daquilo que supostamente tinha conseguido para o Reino Unido – aquilo que os outros não tinham! Até explicou, sob o silêncio vergonhoso mas não envergonhado dos líderes europeus que a isso o autorizaram, que podia vangloriar-se de ter limitado os direitos sociais ligados a essa imensa conquista (passada) que era a livre circulação de pessoas no espaço comunitário, complemento indispensável do mercado interno de que Londres é um dos maiores beneficiários.
O Reino Unido, contudo, já tinha quase tudo. Não estava na moeda única, pelo que detém autonomia monetária, isenta os seus bancos da supervisão do BCE, gere a seu bel-prazer a política de rendimentos e preços, não se preocupava com o Pacto de Estabilidade do senhor Theo Weigel nem com os limites do Tratado Orçamental. No orçamento, beneficiava do seu indiscutido “rebate” (ou cheque compensatório de volta), obtido por Margareth Thatcher. Pela City londrina passam 40% dos títulos emitidos em euros. Etc, etc., porque a lista das “exceções” britânicas é bem mais longa e, espante-se que não souber, nem a Carta dos Direitos Fundamentais lhe tinha escapado.
Em relação à Europa, os primeiros-ministros britânicos foram formatados num “template” tipo Alberto João Jardim, que empochava as conquistas obtidas, “taken for granted”, e, no minuto seguinte, logo reclamava novas vantagens e concessões. Ser ilha terá alguma coisa a ver com essa similitude?
A União Europeia nunca soube, desde sempre, lidar com o Reino Unido. Pressentia a importância de não perder a 5ª economia do mundo (e a 2ª no seu seio), com lugar na foto de família sorridente do G8, o seu poder militar mais significativo, uma voz internacional (com assento permanente e veto no Conselho de Segurança da ONU), com uma rainha que ciclicamente encena o sucedâneo coreográfico do império que é a Commonwealth.
Desde o dia 1 da sua entrada no clube europeu, o Reino Unido consagrou-se como um parceiro relutante, difícil, cioso da diferença. Estava, diga-se, no seu pleno direito, como estava no direito dos restantes parceiros terem resistido a esse tropismo endémico, em busca galopante do regime de “exceção”. Se, em tempo oportuno, lhes tivesse sido dito “se estão mal, mudem-se!”, talvez não tivéssemos entrado por este plano inclinado, politicamente obsceno, de “opt out” sistemáticos. Esse movimento descendente, erigido como política oficial, apontava, a prazo, para o destino deste “opt out” final.
O Brexit passou. Mas, volto atrás, a mais de metade da opinião pública britânica, que agora se revoltou contra a União Europeia, vai, com toda a certeza, pressionar – porque a democracia parlamentar no Reino Unido funciona – os seus deputados e governos por resultados concretos, exigindo tudo aqui que, afinal, não tinham por “culpa de Bruxelas”. E a outra quase metade, derrotada na sua aposta em ficar, vai exigir ao poder que sobrar em Londres que lhe garanta o que, com o tempo, se tornará mais evidente serem as vantagens que, afinal, advinham da pertença ao clube com sede em Bruxelas. Não vai ser fácil ser governo em Londres na próxima década.
No imediato, confesso que não posso esperar para ver a prosápia de Cameron, naquele “perpwalk” que vai ser a sua entrada – encenada, apressada, vigorosa – no Justus Lipsius, daqui a dias, lá por Bruxelas. Estou interessado em perceber como vai ele, como os britânicos quase sempre fazem, fazer da derrota uma imensa vitória. A menos que tenha a decência de “step out”, o que está longe de ser certo.
A questão britânica importa-me, naturalmente, mas interessa-me muito mais, confesso, o futuro europeu. E aqui, como dizem os ingleses, estamos em “unchartered waters”, isto é, no nosso poético dizer, “por águas nunca antes navegadas”. Até pode acontecer que, passada uma turbulência inicial, mais ou menos controlada politicamente, este “Lehman Brothers” europeu acabe por amainar, na ciclotimia dos mercados. E até há quem diga que, daqui a semanas, todos concluiremos que, afinal, este traumatismo tido por cataclismo não passou de um susto, como o “millenium bug”.
Mas não, não vai ser assim, quaisquer que seja o percurso dos primeiros tempos. O Reino Unido vai ter de votar, no plano parlamentar, o “leave” – e nós sabemos que a democracia britânica tem uma linearidade que, neste domínio, nos não trará surpresas. Antes ou depois disso, Londres vai ser forçado a invocar o Artigo 50º do Tratado de Lisboa e uma longa negociação de “divórcio” (litigioso, podem crer) vai iniciar-se.
Não é fácil lidar com os britânicos em terreno de negócios. Como alguém dizia, “os ingleses não têm amigos, têm interesses”. Às vezes, contudo, têm interesse em ter amigos, mas agora alienaram-nos. Vamos, a Europa que resta, ter grandes dificuldades pela frente, desde logo desmantelar todo o arsenal de acordos externos que a União (com os britânicos dentro) tem. São “só” 54 países! Londres tem os direitos dos nossos trabalhadores como reféns, pelo que isso será moeda de troca valiosa para o que viermos a exigir deles.
Este passo britânico vai ter efeitos muito deletérios no ambiente europeu. No passado, sempre falámos de “construção europeia”, agora iniciámos um tempo novo, o da “desconstrução”. Como disse, o tropismo em favor da generalização de “exceções” pode começar a “cogumelizar” (os ingleses têm para isso a bela expressão “mushrooming”, faça-se-lhes essa justiça!) por aí adiante. E isso, ao contrário do que alguns pretendentes caseiros à recuperação de soberania possam pensar, pode virar-se contra nós, contra Portugal.
Eu explico: no estado caótico em que o projeto europeu se encontra, sem lideranças nem visões de futuro, esta decisão britânica, por muito que demore a concretizar-se, abre um ambiente favorável a que germinem algumas ideias em torno de uma espécie de “refundação”, assente nesse saudoso núcleo duro que viveu as “trente glorieuses” (os trinta anos de sucesso económico), com mão-de-obra barata, protecionismo aduaneiro e outras delícias. Foi um tempo que permitiu estruturar o modelo social europeu, agora em risco por um endémico crescimento sofrível, fruto da perda de competitividade europeia, por uma má gestão da globalização, a que se soma uma crise demográfica que não é compensada, por razões políticas que este referendo deixou bem evidentes, por uma política racional de imigração.
E tenho para mim muito claro que qualquer modelo centrípeto dessa natureza implicará a formação de um “núcleo duro”, para a entrada no qual será preciso mais do que vontade, isto é, será essencial ter capacidade económica e sustentabilidade financeira, nos termos que a Alemanha vier a ditar. Nesse modelo, dificilmente Portugal estará presente. Esta é a minha convicção, mas adoraria estar enganado.

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...