"Está tudo acabado entre nós!". Às vezes, fico com a sensação de que a frase clássica pode, de um momento para o outro, ser pronunciada entre os dirigentes europeus, tão distantes parece serem já os projetos que se cruzam nesta que um dia foi uma "casa comum" e que, nas horas que correm, mais parece um "pátio das cantigas", com vizinhas envolvidas numa sonora bulha verbal, cada vez mais despudorada e aparentemente sem recuo.
Que se passou na Europa, que aconteceu entre nós, como é que, num espaço curto de alguns anos, passamos a olhar o vizinho com desconfiança, tomamos sempre como alheia a agenda dos outros, somamos, no dia a dia de Bruxelas, razões para nos acantonarmos, de novo nos descobrimos soberanistas? De espaço de esperança e de algum sonho, convertemo-nos, num tempo muito curto em termos de História, numa mera folha de Excel, para a qual convocamos a demagogia egoísta, nos entrincheiramos em inventários de interesses próprios, como se o projeto fosse sustentável pelo seu simples somatório, como se não houvesse contradições a gerir e a acomodar.
Quem traiu a Europa? Quem foi (mais) infiel ao projeto que nos unia, à cultura de reconciliação e usufruto de diferenças que era (foi?) a nossa riqueza? Quem repudiou a solidariedade, quem aduba hoje sentimentos mesquinhos, atitudes de superioridade de grupo, uma espécie de "racismo" que só uma réstia de cobardia, que não de vergonha, não deixa emergir em todo o seu chocante despudor?
Anda por aí um juízo de facilidade que, em síntese, reduz a crise europeia ao efeito dos últimos alargamentos. Alguns observam o comportamento de alguns desses novos parceiros, a sua crescente distância face ao paradigma do anterior projeto, a sua bem maior gratidão ao outro lado do Atlântico e, pura e simplesmente, pensam de si para consigo: "esta gente não devia ter entrado na Europa!".
E, no entanto, "essa gente" são opiniões públicas que expressam os seus temores e anseios, titulados por quem lhes não faz um mínimo de pedagogia sobre os imensos custos da "não-Europa", por líderes que se limitam a ecoar algumas dessas ideias estranhas e simplórias, de quem só vê o futuro até à próxima esquina da História. São esses povos os culpados por tê-las, por escolherem dirigentes que se limitam a ser câmara de eco dessa cultura de retração? A Europa que "já cá estava" poderia ter feito outra coisa diferente que não fosse acolher esses países, essas culturas, esses medos, essas desconfianças? Não e sim.
A Europa "de cá" não podia dizer "não" a quem lhe batia à porta, seduzida pelo projeto de liberdade e desenvolvimento que, por décadas, andou a gritar para o outro lado do muro. Mas, "sim", essa Europa podia ter feito diferente no modelo por que optou para acolher os novos membros do clube.
A Europa traiu o seu futuro ao ter cedido, por cobardia estratégica, ao deixar que o seu padrão ético que levou décadas a estabilizat fosse corrompido por facilitismos, por cedências sucessivas, por precedentes cumulados, talvez na convicção pateta de que, com o tempo, tudo "iria ao sítio". Foi a "realpolitik" dos que verdadeiramente contam na decisão que forçou, deliberadamente, para debaixo do tapete, o que se sabia serem as fragilidades da estrutura legal de alguns candidatos, o "apartheid" que outros já praticavam face a minorias internas, as barbaridades já evidentes nos "checks-and-balances" institucionais, as tentações de controlo dos meios de comunicação que estão na matriz de alguns de alguns demagogos ou iluminados. Tudo isso era (e é) mais do que conhecido em Bruxelas e Estrasburgo e, no entanto, a hipocrisia dos sorrisos e das fotos de família, do rotineiro "perp walk" do Berlaymont ou do Justus Lipsius, com as bandeirinhas das estrelinhas em fundo, tudo continuou (e continua) a disfarçar. Não há consenso para medidas radicais? Chamem-se "os bois pelos nomes", faça-se um corajoso "naming names" e acabe-se com a hipocrisia dos esgares faciais.
Há que dizer que a terapia preferida por alguns, de forma mais ou menos explícita, passaria agora pelo recuo, tido como confortável, ao núcleo fundador do projeto. É uma ilusão estúpida, como se a França de Le Pen, os populismos holandeses, a Bruxelas de Molenbeek e outras Europas que também fazem parte desta Europa tivessem alguma coisa a ver com os "avós fundadores", de Di Gasperi a Adenauer. Recordo sempre uma noite tumultuosa de debate europeu em que um "grande líder" mandou praticamente calar um dirigente luxemburguês, lembrando-lhe que, se houvesse uma nova guerra na Europa, o seu país não teria espaço para acomodar todas as sepulturas. É este o "espírito europeu" dos "seis" a que se pretende regressar?
A Europa é hoje uma grande mentira mais ou menos bem encenada, muito arrumadinha no palco dos interesses, com os seus bastidores em cacos. Quem a traiu? Todos levámos longe demais o teatro do entendimento ideal, todos fomos militantes do sorriso complacente. Para não comprar chatices hoje, hipotecámos o futuro e desvirtuámos quase por completo um projeto bem original. Será tarde, agora?
Confesso que não sei, mas sinto que a nossa infidelidade ao projeto comum pode ter, um dia, como preço, virmos a ouvir a tal frase: "está tudo acabado entre nós!" O que virá a seguir só se pode suspeitar.
Confesso que não sei, mas sinto que a nossa infidelidade ao projeto comum pode ter, um dia, como preço, virmos a ouvir a tal frase: "está tudo acabado entre nós!" O que virá a seguir só se pode suspeitar.
(Artigo que publico no último número da revista "Egoísta")