segunda-feira, outubro 05, 2015

Um direito de veto

Eram aí umas seis e picos quando um amigo (do género daqueles que têm uma prima que vive com alguém que tem uma "fonte" no MAI ou coisa assim) me disse: "Isto está no papo! Os gajos vão levar uma cabazada das arábias. As sondagens eram uma miragem! Já podes ir abrindo o champanhe!". Adoro estas certezas muito "sportinguistas" e vivo bem com elas, mesmo que nelas nunca acredite. Não abri champanhe nenhum. Nem espumante. Bebi uma cerveja ao fim da noite no Snob, sob o sorriso do Sr. Albino (o Porto tinha ganho), e foi tudo em matéria de libações. Até porque não tinha razões para mais.

(Esclareço que escrevo esta nota sem ter ouvido um único comentador televisivo (nem um!) ao longo da noite. Apenas assisti à declaração de António Costa, tendo acompanhado sem som a coreografia do duo dinâmico da PàF.)

Eu tinha visto bem a composição etária do comício da FIL, tinha olhado com atenção os participantes na arruada do Chiado (muita CDE/CEUD, muita RIA, muita capela do Rato, muito MASPs...), cruzara por toda a parte essa formidável onda socialista de cabelos brancos (ou pintados), a qual, claramente, estava muito longe de poder dar para surfar uma vitória. Há muito que não acreditava que o PS pudesse ganhar estas eleições contra dois partidos coligados (Uma curiosidade: o CDS ainda existirá? Tem ainda programa próprio?), com muita comunicação social complacente, contra um Bloco de Esquerda cujas vedetas femininas raptavam a vontade da gente jovem, contra um PCP que, desde há muito, fizera dos socialistas o seu inimigo principal.

O PS apresentou-se a estas eleições liderado pelo seu mais competente quadro político. Não vale a pena ter quaisquer ilusões. Por muito respeito que me mereça a figura de António José Seguro - e merece-me muito - não considero que tivesse podido obter um resultado melhor do que este (mau) resultado conseguido por António Costa. Ninguém no PS faria melhor. 

As condições políticas que conduziram a esta derrota devem-se a um conjunto de circunstâncias muito desfavoráveis para o PS, algumas das quais têm essencialmente a ver com o próprio partido. O "cisma" Seguro-Costa nunca ficou sarado e deixou sequelas pelo país (agravadas na construção das listas eleitorais), a questão Sócrates esteve sempre "on the back of the mind" dos eleitores e mesmo o episódio Syriza acabou por ter o seu peso subliminar. Nas últimas semanas, ficou também claro que um setor do partido fazia alguma resistência passiva à campanha de Costa (em especial, à medida que as sondagens o iam desfavorecendo) e até a ala "socratista" foi tomando distâncias, como se fosse minimamente sensato que António Costa viesse a colar o PS à luta entre a Justiça e o antigo primeiro-ministro.

Acresce que a coligação, neste caso com a imperdoável anuência inicial de Seguro, deixou fixar no imaginário coletivo a "narrativa" da culpabilidade exclusiva dos socialistas na crise financeira 2010/2011 e António Costa não conseguiu invertê-la, depois da detenção de Sócrates. O governo, cuja governação foi uma espécie de "terceirização" subserviente da receita ditada de Berlim, beneficiou dos equilíbrios conjunturais europeus e, depois, fez uma condução muito competente da campanha, embora utilizando despudoradamente a seu favor a máquina do Estado. Mas quem o não fez no passado, quando pôde, que atire a primeira pedra...

Mas, então, o PS não cometeu erros? Claro que cometeu. O partido fará a sua avaliação, eu fiz e continuo a fazer a minha, com toda a liberdade opinativa. 

O PS não percebeu que, desde há muitos meses, o sentimento popular face à crise tinha mudado. Bastava olhar para o acelerar do consumo das famílias (prova de confiança no futuro), para a interiorização de um sentimento difuso de bem-estar (olhem-se as férias), alambicado diariamente por pequenas medidas oportunistas de facilitação fiscal ou de outra natureza (claro que outros também o fizeram, noutros tempos), para dever ter entendido que o tom catastrofista estava ultrapassado. O país já não estava tão "indignado" como estivera nos tempos da "troika". Por isso, falar obsessivamente do corte das pensões, da emigração, do desemprego e dos truques para o disfarçar e coisas assim era um discurso que já não estava em sintonia com quem queria desesperadamente boas notícias - e que já não tinha ouvidos para quem só lhe lembrava os tempos piores por que passara. O PS deveria ter assumido, sem complexos, que algumas coisas tinham entretanto mudado para melhor. Pior era se assim não fosse! O país ia sentindo isso e, estranhamente, o partido parecia manter uma espécie de permanente discurso "adversativo". É que, se a custo reconhecia que alguma coisa ia bem, logo vinha um "mas" a seguir a essa constatação relutante. O PS dispensou-se de falar para o futuro, deveria ter apresentado quatro ou cinco "bandeiras", medidas emblemáticas, de natureza política (saúde, educação, justiça). Pelo contrário, embrulhou-se em muitas pequenas propostas sem uma coerência global visível, demasiado economicistas. Entreteve-se a falar de um passado que, repito, a maioria dos portugueses quer esquecer, embora, de facto, ele ainda ande por aí no presente, ainda que edulcorado pela propaganda governamental. Mas esqueceu-se que, como dizia o manholas de Santa Comba, em política o que parece é. Este foi um erro de perspetiva.

O PS tentou credibilizar-se com a apresentação de um programa económico realista, que afastasse de si a imagem do despesismo, que o governo da coligação lhe havia colado definitivamente à pele política. Conseguiu-o até ao momento em que esse programa, e alguns dos seus pormenores, se converteu quase no centro exclusivo do debate. Convencido da genialidade intocável desse texto, o PS descurou mesmo a desmontagem das propostas que o governo enviara para Bruxelas e que eram o seu verdadeiro "programa". Com fraco trabalho de casa, em lugar de colocar figuras especializadas credíveis a procurar discutir em público as fragilidades desse tal "programa", deixou enredar o seu líder em discussões penosas, de cariz técnico, a que a coligação conseguiu ligar um ambiente de "insegurança", baseado na difícil explicação da questão da sustentabilidade do sistema de pensões. E António Costa ainda ajudou a potenciar o espetro do medo da "ingovernabilidade" ao não explicar com clareza a sua posição face ao orçamento. Este foi um erro de foco.

O PS, finalmente, deixou-se cair no logro de centrar toda a sua campanha na figura de Costa, pela certeza que tinha da sua imagem ser muito positiva perante o país, pelo capital de simpatia e competência que projetava e até pela ideia de "ganhador" que lhe estava associada em Lisboa. Talvez com receio de uma eventual cacofonia pela dispersão das mensagens, optou por não fazer avançar para a primeira linha de combate os jovens muito talentosos que tem no seu gabinete de estudos, bem como outras novas figuras, algumas incluídas nas listas de deputados, que podia apresentar como a imagem da renovação do partido. A única cara que, desse espetro mais jovem, surgiu com deliberada evidência foi João Galamba, um quadro seguramente muito capaz mas que "esquerdizou" bastante a imagem económica do PS e, como ficou evidente, não contribuiu para evitar a deriva de setores de esquerda para o Bloco (como se vê pelos resultados, o Bloco não tirou votos ao PCP, embora tenha limitado o seu crescimento, subindo exclusivamente à custa do PS). E o PS também não mostrou as muitas mulheres que, pelo país, estiveram na construção da alternativa: caras novas e algumas sem passado político muito firmado, num tempo em que ter passado é quase mais cadastro do que curriculum. Este foi um erro de "casting".    

O PS perdeu. A coligação permanece no poder, mas perdeu a preciosa maioria absoluta, o que a impede de continuar a fazer, como total impunidade, algumas das barbaridades que fez no passado. Agora, dia após dia, se quiser aprovar alguma coisa na Assembleia da República, vai ter de negociar com o PS, num "negócio" que seguramente lhe sairá caro, mas sempre mais "barato" do que fazê-lo com o Bloco ou com o PCP. Espera-se que perceba isso desde cedo. Claro que um dia vai clamar que "assim" não consegue governar e vai pedir eleições antecipadas. Por essa razão é que a eleição presidencial que aí vem é decisiva.

António Costa, na sua declaração final, disse uma coisa muito importante, que é simultaneamente um compromisso e uma nota de responsabilidade: "Não inviabilizamos governos sem termos um governo para viabilizar", deixando ao mesmo tempo bem claro (nomeadamente para ouvidos europeus) que a "esquerda da esquerda" não pode contar com ele para operações que ponham em causa a governabilidade do país. Mas também disse outra coisa: o PS só avalizará políticas que correspondam ao seu programa, pelo que o novo governo terá de ter isso em conta no dia a dia das suas propostas. Nomeadamente nos orçamentos.

O PS perdeu as eleições, mas ganhou um direito de veto. 

domingo, outubro 04, 2015

Começou o inverno!


Chove, venta e os dias que aí vêm não se anunciam promissores.

A chuva, quando cai, cai para todos? Não é bem assim, alguns defendem-se melhor, a vida deu-lhes meios para escapar, com conforto, à inclemência dos elementos. Os mais fracos, esses sentirão as intempéries de forma mais acentuada, sem maneira de se protegerem, acabando por sofrer bastante mais.

É a vida? É, mas podia ser diferente.

VOTE !!!


José Vilhena

Faço parte dos privilegiados que têm (quase) a coleção completa dos livros que José Vilhena editou antes de 25 de abril. São várias dezenas. Ao folhear alguns deles, fico com aquela sensação de distância que temos ao rever certos filmes antigos. O que nos fazia rir nesses textos de Vilhena, pela ousadia e pela insinuação ambígua, perdeu hoje grande parte da sua graça, ou melhor, só nos faz recordar o que éramos quando os líamos.

José Vilhena era um magnífico ilustrador e descobriu, durante a ditadura, um filão editorial. Os pequenos volumes que misturavam desenhos de "capitosas" (era assim que se dizia) e bem "descascadas" pequenas com a crítica feroz aos costumes hipócritas do tempo, com muito anti-clericalismo à mistura, tornavam José Vilhena um autor muito procurado, simultaneamente, pelos seus ávidos leitores e pela polícia, que fazia devastadoras apreensões dessas obras. O rumor que corria de que "saiu mais um livro do Vilhena!" levava-nos a discretos pedidos de "reserva" nas livrarias e tabacarias por onde passava a sua venda. Trocavam-se os volumes entre amigos (masculinos, claro) e, entre gargalhadas, citavam-se algumas das frases mais sonoras dos textos. Vilhena pagou com várias estadas na prisão a sua ousadia, mas imagino que nenhum dos polícias que o prendeu deixava de se divertir com os seus textos - que hoje seriam considerados machistas, sexistas e homofóbicos, aqui e ali com um toque a rondar a pedofilia, que os tempos de então, como é sabido, não condenavam com o rigor atual. Às vezes ponho-me a pensar que um cidadão português de hoje, na casa dos 20 ou dos 30 anos, deve achar uma "charopada" sem o menor sentido se acaso olhar esses badalados escritos do Vilhena, a que tanta piada achávamos.

Com o 25 de abril, tal como aconteceria com as "revistas" do Parque Mayer, José Vilhena "perdeu-se". De início, a "Gaiola Aberta", a revista colorida que passou a editar nesses tempos de liberdade, teve grande popularidade, de certo modo como aconteceu com a "moda" dos filmes eróticos e pornográficos que então invadiu Portugal. Depois, com o tempo e com o desbragamento da linguagem a que passou a recorrer, Vilhena deixou, pelo menos para mim, de ter o menor interesse. Deixou-se cair num registo ordinário, recheado de palavrões, com os próprios "cartoons" a não escaparem a esse declínio de imaginação, embora não na qualidade de traço, que se manteve sempre excelente, servindo porém "scripts" cada vez mais banais.

José Vilhena morreu ontem, aos 88 anos. Andei à procura de uma sua imagem para ilustrar este post. Encontrei algumas muito curiosas, outras que até brincavam com eleições, o que até dava jeito. Optei, porém, por uma bem antiga que, a meu ver, representa muito bem um certo Portugal dos anos 60 ou 70, de que José Vilhena foi um extraordinário retratista.

sábado, outubro 03, 2015

Os inimigos do Barão Vermelho


Ferreira Fernandes elabora hoje no DN sobre Corto Maltese. Tudo bem! Nada me move contra esse aventureiro de cepa maltesa, saído do traço do genial Hugo Pratt, cujas deambulações também tentei seguir, por aqui ou por ali, embora sem o empenho das que FF nos descreve. 

Verifico mesmo que cruzámos algumas esquinas e mares comuns, à sombra das memórias de Corto. Imagino que também ele tenha procurado, nos arredores de Buenos Aires, as míticas "duas luas". Uma noite, convenci quem me acompanhava a fazer essa aventura e acabei por ser brindado com uma lua nova. Ou seriam duas? Nunca se sabe, com uma lua nova...

Como é sabido, Corto Maltese encontrou nos seus caminhos essa figura histórica que foi Manfred von Richthofen, o Barão Vermelho alemão, que atazanou as tropas aliadas na primeira Guerra Mundial. Na crónica, Ferreira Fernandes não alude, creio que deliberadamente, a esse episódio da imensa saga do seu herói de estimação. Pressinto que sei por que o faz. E perdoo-lhe isso. 

É que Ferreira Fernandes sabia que seria indelicado, e até menorizante, fazê-lo no dia de hoje. É que faz hoje precisamente 65 anos que nasceu uma figura cujo imaginário viria a ter combates épicos com Von Richthofen, documentados pela pena de Charles Schultz nos "Peanuts". O Corto, caro Ferreira Fernandes, pode ter criado alguns engulhos ao Barão, personagem cuja cor nos afasta e aproxima. Mas Snoopy, esse herói silencioso, viria a inflingir ao aristocrata alado de Berlim alguns banhos imemoriais de luta, por céus de glória infinda. Não há comparação! Você sabe...

Agora que vamos entrar num tempo em que a paciência de cão vai ser mais necessária do que nunca, e reconhecendo embora que pode ser de valia a "expertise" de Corto com a pirataria que por aí anda, agora ainda mais à solta, devo dizer que anseio ver o Snoopy a morder as canelas dos piratas do pote. Connosco a atiçá-lo, claro!

Nicolau Santos


Na sexta-feira à noite, quase duas centenas de amigos de Nicolau Santos juntaram-se no ISEG para uma "cerimónia" muito especial. 

Nicolau fazia 35 anos de jornalismo e decidiu comemorar a ocasião com uma festa muito especial, nela juntando três ingredientes infalíveis para mais de duas horas muito bem passadas: a amizade, a música e a poesia. Ah! e um copo no final.

Encontrei por lá gente muito diversa, de várias "lateralizações" ideológicas, unida apenas pelo desejo de manifestar ao amigo - mas também ao grande profissional que Nicolau Santos é - o apreço que ele a todos merece, pela sua verticalidade, pela sua competência, pelo seu humor e por aquele modo direto e nada pretensioso como nos serve, regularmente, do melhor jornalismo que se pratica em Portugal.

Foi uma bela festa, Nicolau!

sexta-feira, outubro 02, 2015

Vermelho


Este blogue anda hoje muito pela "esquerda da esquerda"..,

Há horas, no Chiado, ali entre o lugar onde já estiveram a famosa Livraria Moraes e, para gostos e memórias de dimensão lúdica mais ligeira, o cabaret Nina, estava à conversa com o meu amigo José Vera Jardim quando surgiu, vindo do lado do teatro S. Luís, o secretário-geral do PCP. Não saía, pela certa, da "arruada" muito grisalha do Partido Socialista que, pouco tempo antes, descera aos vivas e num esforçado entusiasmo militante a rua Garrett, "queimando os últimos cartuxos" e exaurindo as derradeiras esperanças.

Jerónimo de Sousa ia apressado, porque estes tempos de campanha são muito exigentes. Cumprimentámo-nos e o José Vera Jardim gabou a elegância física dos seus 68 anos. O líder comunista gracejou com o elogio e despediu-se, depois do breve encontro.

Creio que em 2008, Jerónimo de Sousa foi ao Brasil, a convite do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que é hoje uma coisa bastante diferente do histórico Partido Comunista Brasileiro, o "partidão", cuja figura mais importante foi o mítico Luiz Carlos Prestes, o "cavaleiro da esperança", retratado por Jorge Amado. Nos dias que correm, o PC do B parece ser o interlocutor brasileiro do PCP.

Uma visita de Jerónimo de Sousa a Brasília no quadro dos seus contactos brasileiros coincidia com a comemoração do 10 de junho que eu organizava na embaixada. Transmiti-lhe um convite para estar presente, mas, segundo fui informado, a sua agenda era incompatível com o evento. Tive pena.

Dois dias depois, porém, tive de deslocar-me ao Rio de Janeiro, para uma cerimónia na Academia Brasileira de Letras. Dei-me então conta, pelos jornais, que, uma hora e tal antes dessa ocasião, Jerónimo de Sousa proferia uma conferência na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a convite do PC do B. Aproveitei o tempo que tinha livre e fui assistir ao início da conferência do líder comunista, aproveitando para o cumprimentar pessoalmente e colocar a embaixada à disposição do que de nós necessitasse.

Jerónimo de Sousa, como é seu timbre pessoal, acolheu-me com grande simpatia, agradecendo a minha presença. Mas devo dizer que pressenti que ficou um tanto surpreendido ao ver o principal representante diplomático português naquele país num evento daquela natureza.

A nossa ordem constitucional funciona hoje com toda a normalidade, mas arrisco afirmar, com boa dose de probabilidade, que se devem contar pelos dedos de uma mão, em 40 anos de democracia, as ocasiões em que um embaixador de Portugal esteve presente num evento deste género, envolvendo o líder dos comunistas portugueses. Por mim, achei perfeitamente natural fazê-lo e, como é de regra, informei posteriormente Lisboa do facto. Contudo, a distância física não me permitiu assistir ao provável cerrar de alguns sobrolhos. Foi, porém, o lado para que dormi melhor...

João Semedo


Há pouco mais de um ano, João Semedo, à época co-lider do Bloco de Esquerda com Catarina Martins, sondou a minha disponibilidade para estar presente na "universidade de verão" do seu partido, para falar sobre a situação na Europa. Declinei o amável convite, por razões, de natureza logística e de fundo, que lhe referi: não estaria em Portugal nessa altura e, mesmo que estivesse, mantinha com o BE uma divergência política insanável que inviabilizaria a minha presença, como na ocasião lhe expliquei. Na nossa troca de mensagens, confirmei a grande dignidade de João Semedo e o seu modo urbano e sereno de estar na política. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, no almoço dos 90 anos de Mário Soares.

João Semedo teve entretanto um grave problema de saúde, que o obrigou a afastar-se da liderança do Bloco. Há dias, com satisfação, vi-o surgir numa ação do seu partido, aparentemente recuperado. Imagino que deva estar, nos dias de hoje, bem contente com a excelente "performance" do Bloco no caminho para as eleições de domingo, que muito deve às prestações de Catarina Martins e Mariana Mortágua, cada uma, a seu modo, grandes revelações naquela área política. Aquilo que chegou a ser prenunciado como a lenta desaparição do Bloco, a ser "canibalizado", à esquerda e à direita, respetivamente pelo PCP e pelo PS, parece não ir acontecer.

Quero deixar aqui uma nota de forte simpatia a João Semedo, uma figura que me merece um grande respeito como um homem de convicções, as quais, não sendo necessariamente as minhas, não deixam representar a marca da diversidade e do pluralismo que são necessários e enriquecem a democracia portuguesa.

Pode alguém ser quem não é?


Amanhã é dia de reflexão. Detesto este paternalismo oficial, como se os eleitores portugueses, que já são maiores e vacinados, precisassem de ser preservados por via legal da influência deletéria das campanhas, para, no remanso íntimo da sua consciência e do seu lar, ponderarem melhor em quem hão-de votar.

Amanhã, os jornais e as televisões fingirão que “nada se passa”, num artificialismo ridículo que afetará o seu alinhamento noticioso. Até me surpreende que esta tutela profilática, que soa menos a democracia e bastante mais a autoritarismo, não tenha ido ao ponto de criminalizar os dichotes políticos à mesa dos cafés.

Se os partidos mais responsáveis tivessem um mínimo de bom senso aproveitariam o início da próxima legislatura para pôr cobro a este absurdo período de pousio político. E, de caminho, podiam e deviam aprovar legislação que reduzisse drasticamente os prazos longuíssimos que, entre nós, rodeiam a realização das eleições e a formação subsequente dos governos. O país ganharia muito com isso e ficar-lhes-ia grato. Mas não tenho grandes esperanças, confesso. A nossa classe política detesta autoreformar-se.

Sob a atual lei, se esta minha coluna saísse no sábado, teria de escrever qualquer coisa como “pra não dizer que não falei das flores”, como era o título irónico da famosa canção de protesto, durante o silêncio de chumbo imposto pela ditadura brasileira. Mas não, a coluna sai hoje e isso dá-me o ensejo de ainda aqui lhes falar das eleições de domingo.

Não tenho muito para dizer, mas o que tenho vou afirmá-lo, sem surpresas, com a maior clareza: vou votar no domingo com o desejo de que António Costa possa vir a ser o próximo primeiro-ministro de Portugal. Porquê? Porque, sinceramente, considero que ele é, a uma grande distância, a pessoa melhor preparada para dirigir o país nos tempos que aí vêm, tendo para isso apresentado um programa sólido e responsável. Conheço-o dos mais de cinco anos em que fui seu colega em governos, acompanhei depois com atenção o magnífico percurso que fez em diversos lugares de Estado e no município de Lisboa, sei que é um homem inteligente, capaz e íntegro.

Nunca ouvi António Costa mentir. E, infelizmente, nos últimos anos, vi frequentemente o meu conterrâneo Pedro Passos Coelho dizer uma coisa e fazer outra. Por isso, nunca lhe daria a minha confiança política, além de que faço uma avaliação muito negativa da sua governação. Lamentarei, assim, se o seu mandato vier a ser renovado.

Em abril de 1974, sublevei-me como militar para que o povo pudesse livremente decidir do seu destino. O eleitorado português oferecerá agora a si próprio exatamente aquilo que quiser. E a resposta à pergunta que dá o título à canção de Sérgio Godinho que escolhi para abrir este artigo é, claro, negativa.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, outubro 01, 2015

A nova hora da Rússia

A grande "novidade" da política internacional nos últimos dias é a disposição manifestada pela Rússia para intervir militarmente no conflito sírio, ao lado do governo de Assad. O que não fica claro dos resultados dos primeiros ataques é se a prioridade nos alvos russos será o Estado Islâmico ou os restantes oponentes ao regime de Damasco.

Curiosamente, por estes tempos, muitos acham natural que os Estados Unidos e a França estejam a bombardear as posições do Estado Islâmico, sem qualquer mandato das Nações Unidas, mas levanta-se logo um "aqui d'el rei!" quando a Rússia toma uma atitude numa zona cuja proximidade ao seu território é bem maior do que de Washington ou Paris. Assad está longe de ser "flor que se cheire", mas até a comunidade ocidental já entendeu que tem que contar com ele se quiser tentar resolver o problema bem maior que é o surto islâmico armado que desestabiliza a região e aterroriza o mundo e está na origem próxima da vaga de refugiados que hoje é a questão que preocupa o ocidente e afeta particularmente a União Europeia. O que é verdadeiramente novo é que Assad passa a ter um aliado com força militar, a combater a seu lado.

Ninguém que atue militarmente naquela zona, fora do seu território nacional, pode reivindicar-se hoje de estar a agir sob qualquer legitimidade internacional, isto é, coberto por mandato das Nações Unidas. Dir-se-á que foi a Rússia (e a China) que impediu que o Conselho de Segurança das NU autorizasse uma intervenção na Síria, aquando do início da guerra civil naquele país. É verdade, mas também é um facto que, pouco antes, um mandato similar havia sido utilizado pela França e pelo Reino Unido na Líbia, com "backing" logístico dos EUA, acabando abusivamente por ser usado para derrubar Kadhafy, com os resultados que redundaram na "balcanização" tribal do país, com efeitos diretos na tragédia que é o tráfico de migrantes para a Europa. A Rússia aprendeu que os Estados ocidentais têm uma mentalidade de mestre-de-obras e que são sempre tentados a ações do tipo "já agora"...

A Rússia, entre ser respeitada a ser temida, escolheu a segunda opção. Ao reverter a seu favor a situação na Geórgia, ao "equilibrar" as pretensões ocidentais na Ucrânia e ao tomar a Crimeia sem qualquer cerimónia, Moscovo reassumiu-se como potência defensora daquilo que entende serem os seus interesses, de forma despudorada e algo preocupante, tanto mais que não é um poder sob um escrutínio interno democrático credível. Fá-lo agora também na Síria. Devemos sempre estar muito atentos quando um poder atua fora do seu território de forma militar, nomeadamente olhando sempre a proporcionalidade que vierem a assumir essas ações e o modo como elas correspondem, ou não, à vontade de outros Estados afetados. Mas, com franqueza!, os Estados Unidos, depois do caos que espalharam pelo Médio Oriente, com a invasão não autorizada pela ONU do Iraque, à procura das miríficas "armas de destruição maciça", são os últimos a poderem levantar um dedo acusador à Rússia.

A Rússia "está-se nas tintas" por ter sido excluída do G9, que assim regressou ao G8 original. A "credencial" de respeitabilidade do mundo ocidental, que pareceu seduzir Moscovo na década e meia subsequente ao fim da URSS, hoje já lhe importa muito pouco, porque entendeu que o preço a pagar por ela, em termos de fragilização do seu papel, não necessariamente num mundo para o qual não tem poder de influência, mas essencialmente no seu "near abroad" estratégico, estava a ser muito elevado. O caso ucraniano levou ao extremo o seu isolamento e o regime das sanções daí decorrentes é pesado, porque afetam a sua depauperada economia, causticada simultaneamente pela queda dos preços do petróleo. Porém, com estas ações na Síria, a Rússia torna-se cada vez mais mais relevante geoestrategicamente perante o mundo. Tenho para mim que, no caso desta sua intervenção vir a redundar numa ajuda efetiva à contenção do Estado Islâmico (tendo como "side effect" e contrapartida a anulação ou contenção da guerrilha anti-Assad), um progressivo acolhimento deste novo perfil de Moscovo por parte do ocidente deverá vir a ocorrer.

Ferreira Fernandes


quarta-feira, setembro 30, 2015

"Política externa portuguesa"


Tiago Moreira de Sá é um académico de mérito, que há muito trabalha, com seriedade e muita qualidade, questões relacionadas com as relações externas de Portugal. 

Publicou agora um pequeno mas muito interessante livro nas edições da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dedicado à "Política externa portuguesa".

Começo por uma recomendação: comprem (é muito barato) e leiam este livro. Está bem escrito e faz uma súmula muito completa das principais dimensões da nossa ação externa. Os diplomatas, em especial os mais jovens, ganhariam muito em refletir sobre este trabalho.

Aqui e ali, tenho uma perspetiva diferenciada da que Tiago Moreira de Sá desenvolve no seu texto, relativamente à importância relativa de alguns vetores da nossa política externa. Também por essa razão, divirjo de alguns "conselhos" que deixa para o futuro. Mas, no essencial, que é muito, estamos de acordo. 

terça-feira, setembro 29, 2015

"Origem Transmontana"

É impressionante como o nome de uma empresa, associado à emergência de alguns casos de uma doença chamada botulismo, pode afetar a imagem de toda uma regiào.

Vamos aos factos.

Uma empresa com o nome (um pouco estranho, há que dizer) de "Origem Transmontana" - e pergunto-me como foi possível ser autorizada uma designação tão enganadora como esta - foi acusada de comercializar produtos que se provou associados a uma doença derivada da cadeia alimentar, felizmente sem consequências mortais.

O que é impressionante é não se ter assistido a uma reação oficial das autoridades do setor, bem como do conjunto das autoridades locais, esclarecendo duas coisas muito simples:

- a marca "Origem Transmontana" deriva de uma empresa que representa apenas uma ínfima parte da produção de queijos e enchidos da zona de Trás-os-Montes.

- a generalidade dos produtos alimentares transmontanos, nomeadamente dos referidos produtos, é de excelente qualidade e não oferece o menor risco para os consumidores.

Este incidente é da maior gravidade, porque lança um labéu negativo sobre estruturas comerciais e industriais de uma inteira região. 

É importante que este esclarecimento seja divulgado e partilhado.

segunda-feira, setembro 28, 2015

Margarida Lima, fotógrafa. Conhecem?
















Epicur

Está já por aí o número de Outono da revista "Epicur", candidata a ser talvez a mais bonita publicação do género em Portugal.

Nela relato uma visita que fiz ao restaurante "Tomba Lobos", em Portalegre. Podem ler o texto aqui? Podem, mas - acreditem! - não é a mesma coisa... Em revista é muito melhor e há imensas coisas mais para apreciar!

domingo, setembro 27, 2015

Outro grande embuste


Desta vez, a RTP está de fora e só a SIC e a TVI estão implicadas. Trata-se dos espaços de comentário televisivo de Marcelo Rebelo de Sousa e de Marques Mendes.

É espantoso que a alegada Comissão Nacional de Eleições permita que dois comentadores avençados façam, em canal aberto, campanha eleitoral despudorada em favor da coligação de direita, "armando" em comentadores independentes, quando se percebe bem a respetiva agenda partidária e, num dos casos, com um interesse pessoal direto.

Uma outra grande burla pública, desta vez em proveito exclusivo da direita política.

O grande embuste



Há uma certeza que hoje tenho: a maioria dos profissionais de televisão e dos fotógrafos de imprensa que cobrem as campanhas eleitorais não está a cumprir o seu papel. Mais claramente, está a ser cúmplice de uma imensa e complacente burla. Será por medo?

Posso estar equivocado mas parece-me que esses jornalistas estão, manifestamente, a "fazer o jogo" das diversas candidaturas. De quase todas, talvez com exceção das pequenas formações, raramente poupadas à revelação das suas fragilidades. 

A maioria das fotografias e planos televisivos parecem-me corresponder apenas àquilo que são os interesses dos partidos que concorrem às eleições. As imagens recolhidas correspondem, de forma quase subserviente, àquilo que os gestores das campanhas pretendem. Não se vislumbram clareiras, as imagem são "contidas", são filmadas essencialmente as bandeiras em movimento, em nenhum momento se olha para trás dos cenários de apoiantes, não se revela a relação entre os espaços ocupados pelas campanhas e os espaços vazios à volta. Mais parecem tempos de antena do que verdadeiro jornalismo. É vergonhoso e ninguém protesta. Porquê? Porque todos são beneficiados, perdendo apenas os eleitores, a quem é servido um produto falseado. 

Parece-me haver hoje uma verdadeira cobardia na recolha de imagens, não se revela que, por detrás das "jotas" em agitação, dos militantes arrebanhados para o espetáculo, as coisas são muito diferentes, há sempre muito menos gente do que aquilo que as televisões mostram. Fazer jornalismo é outra coisa: é mostrar a realidade, revelar aquilo que são os factos e não apenas aquilo que as máquinas partidárias pretendem. Estamos perante jornalistas ou face a colaboradores das agências de marketing?

Todos sabemos que os comícios e arruadas não são organizados para usufruto de quem os frequenta. Quem lá vai é porque está já convencido. O objetivo das campanhas é, exclusivamente, aquilo que as televisões vão apresentar, é dar uma imagem de grandeza dos eventos, os quais, muitas vezes, são pífios e medíocres. O que vemos são profissionais de televisões a serem cúmplices complacentes de um grande embuste, que favorece PSD, CDS, PS, PCP e Bloco e prejudica a informação que nos ajudaria às nossas decisões. Querem nomes dos mandantes dos "ajudantes" desse enorme embuste? Chamam-se RTP, SIC e TVI. 

Sobre o papa

Nada me liga às crenças religiosas, salvo um batismo por que não fui responsável (e de onde, aliás, rezam as crónicas familiares, saí com uma pneumonia de que me salvei à justa). Mas, naturalmente, sou tributário de um "template" moral marcado pelos princípios católicos, como a esmagadora maioria dos portugueses. Grande parte das pessoas que me são próximas definem-se (mais ou menos) como católicas, respeito as suas convicções e reconheço, porque é uma evidência, o importante papel institucional da igreja católica na sociedade portuguesa. O automatismo da resposta de setores religiosos portugueses na questão dos refugiados demonstra um elevado sentido de responsabilidade social. Aliás, muitas das melhores pessoas que conheço são católicas. No entanto, isso não me impede de continuar a olhar, com escandalizada estupefação, para a circunstância da igreja católica acolher alegremente, sem os estigmatizar e denunciar, como me pareceria natural, quantos dos seus ditos "fiéis" que, no seu dia-a-dia, se comportam à persistente revelia dos seus princípios. E há imensos! A igreja pode, com isso, continuar a assegurar paletes de prosélitos, mas desqualifica-se como referente ético. Mas, na realidade, nada tenho a ver com isso, não são eu quem gere essas regras, sou e serei sempre "de outra freguesia"!

Aquando da eleição do papa que está em funções, dei por aqui nota de que o assunto me era quase indiferente. Na realidade, era e não era. Não gostei de Ratzinger, embora apreciasse a profundidade do seu pensamento, em especial em temáticas europeias, e nunca tive qualquer simpatia por Karol Wojtyla, não podendo nunca esquecer a sua imensa hipocrisia no caso de Timor-Leste. Aliás, a diplomacia "florentina" do Vaticano, que parece fascinar muitos, incluindo no nosso MNE, apenas me interessa como objeto de estudo. Sempre a considerei eivada de grande oportunismo e de um sentido complacente que releva basicamente de uma fria "realpolitik", que tem a maximização e preservação da influência como objetivo central. Faço parte de quantos têm suficiente memória para ainda recordar o cardeal Cerejeira, o destino do bispo do Porto e a medalha do Vaticano dada a Silva Pais pelo papa Montini. (Já sei! O mesmo que recebeu os líderes independentistas das colónias portuguesas).

Quero com isto dizer que a escolha do atual papa me surpreendeu. Um católico dirá que o conclave que o selecionou foi inspirado, como é de regra, por "pressões" exteriores à Roma terrena. Tudo bem. Mas, na leitura menos espiritual que é a minha, gostava de sublinhar, ao ver e ouvir o atual líder da religião católica, a profunda (e muito sincera) admiração que sinto pela sabedoria que, muitas vezes, tem prevalecido na seleção das figuras dirigentes do Vaticano. A igreja católica, pense-se dela o que se pensar, é uma máquina institucional inteligente e sábia. A escolha do atual papa, uma figura humana notável, com uma coragem e uma sensibilidade muito raras para interpretar o sentimento de muitos, foi um ato de grande inteligência estratégica. Às vezes, a sobrevivência da instituição tem levado a igreja católica a compromissos que eu quase ousaria dizer "com o diabo". Mas uma outra face desse mesmo instinto obriga-a a procurar a sintonia com a maioria dos crentes, o que conduz a escolhas tão interessantes como a que trouxe à ribalta o papa Francisco. Para um não crente, apetece dizer: "Chapeau!" Ou deveria dizer "Mitra"?

sábado, setembro 26, 2015

"Livraria Ler"


Faço parte de uma geração de "flâneurs" regulares por livrarias. Há mais de cinco décadas. Talvez por ter vivido metade desse tempo no estrangeiro, sentindo necessidade de me atualizar constantemente sobre as edições portuguesas, habituei-me a não olhar apenas para as montras e para aquilo que as mesas das livrarias nos mostram. Passo o tempo de cabeça "à banda", a ler lombadas, a ver livros já por aí "arquivados" há muito, que me possam entretanto ter escapado. Uma vez por semana, no mínimo, visito livrarias, às vezes só para ver o que entretanto "saiu". (Imagino que alguns irão dizer que usam a "Amazon", que isso é muito mais cómodo. Eu também compro por essa via, mas reconheço pertencer ainda à "geração táctil", que gosta de folhear os livros antes de os adquirir).

Não desgosto de passear pelos grandes espaços livreiros - tipo FNAC, Almedina, Bertand, Bulhosa ou Barata - mas confesso ter sempre maior prazer em visitar livrarias mais pequenas. Em especial, gosto de sentir que tenho como interlocutores potenciais os livreiros, pessoas que sabem "da poda" e gostam do que fazem, que conhecem as edições e percebem um mínimo daquilo que um leitor e comprador atento está à espera. Não há muitos, mas há-os ainda de grande qualidade. Pessoas que não se impõem, mas que sabemos que estão lá, com vontade de nos serem úteis, para o caso de deles necessitarmos.

(Recordo, por contraste, uma historieta, ocorrida no Brasil, que um dia já por aqui contei. 
Eram lojas livreiras superpopuladas de funcionários, que nos seguiam e nos interrogavam desde a porta de entrada, acompanhando incomodamente as nossas deambulações pelas mesas e estantes. Ao final de uns minutos, quando pegava num livro, aproximava-se de mim um empregado com um outro livro na mão e perguntava: "Não lhe interessa este livro?". 
A primeira vez que isso me sucedeu fiquei siderado, sem saber por que diabo o homem me estava a chamar a atenção para uma outra obra: "Porque é que pergunta isso? Por que razão podia eu estar interessado em ler esse livro?". A resposta foi simples: "Porque, se está a consultar um livro dessa mesa, é porque se interessa por esses temas e este livro, acabado de sair, é desse mesmo tema...". 
Fiquei sempre com a sensação de que esses funcionários, normalmente muito jovens, não faziam a mais leve ideia do conteúdo do livro que estavam a propor, mas que apenas se dedicavam a pôr em prática uma técnica de "marketing" que lhes tinham imposto. E, devo dizer, só a inexcedível simpatia dos empregados das lojas no Brasil evitou, a partir daí, que eu manifestasse a minha permanente irritação com este horroroso método promocional.)

Vem isto hoje a propósito da Livraria Ler, numa esquina do Jardim da Parada, em Campo de Ourique, lugar que sempre visito com imenso prazer e por onde há pouco passei. Não é uma loja deslumbrante em matéria estética, mas as coisas estão por ali bem arrumadas, sente-se que não há uma subordinação cega à "ditadura" das grandes editoras, há livros "antigos" (isto é, anteriores a 2014, 2013...) e, sem descurar o que está "na moda" e suporta o mercado, encontram-se muitas outras edições de muito boa qualidade. "Last but not least", na Livraria Ler os preços são em geral muito mais interessantes do que na maioria das livrarias de Lisboa. Por ali, os "descontos" são permanentes, é uma "feira do livro" contínua. Se não acreditarem, passem por lá e comparem!

Ainda bem que não vivo em Campo de Ourique! Caso contrário, o drama das minhas estantes iria agravar-se ainda mais...

sexta-feira, setembro 25, 2015

Evasões


Hoje, na "Evasões", o excelente suplemento que o "Diário de Notícias" publica às sextas-feiras, escrevo uma crónica sobre um curioso restaurante de Lisboa, numa zona inesperada e com uma bela relação qualidade/preço. Ah! o "Chefe Costa" da imagem não sou eu, claro!

Quem tiver curiosidade, leia aqui.

Diplomacia económica

Ontem, por um  amável convite da Fundação AEP, fui ao Porto falar a uma dezenas de empresários sobre as alterações geopolíticas na Europa e as suas implicações nos mercados e para as empresas. Uma palestra que culminou num debate muito interessante.

No final, foi-me oferecido um livro recentemente editado pela Fundação AEP e pela Fundação de Serralves, sob o título "Portugal no mundo". O tema interessa-me bastante pelo que, na viagem de regresso no Alfa, passei uma vista de olhos pelos textos incluídos. E não é que deparei com 10 páginas assinadas por mim, sobre Diplomacia Económica?! Era uma intervenção que eu tinha feito, há quase um ano, nas Jornadas Empresariais AEP/Serralves. Reli o texto e, hoje, não lhe retiraria nem uma linha. Quem tiver curiosidade, pode lê-lo aqui.

Beatriz Berrini


Um dia, quando era embaixador no Brasil, fui apresentado à professora Beatriz Berrini, uma das maiores especialistas mundiais na obra de Eça de Queiroz. Falei-lhe da minha imensa admiração pelo escritor e do facto de, sobre ele, ter lido escritos da sua autoria.

Beatriz Berrini não foi modesta: "Se gosta muito de Eça, tinha de conhecer a minha obra". Achei graça ao auto-elogio no comentário, mas ela tinha óbvia razão. Era, no Brasil, a figura mais destacada nos estudos "ecistas", como naquele país são chamados os "queirozianos". 

Foi agora anunciada a morte de Beatriz Berrini, aos 92 anos.

Os indecisos



As eleições não se ganham apenas com os votos dos militantes e dos simpatizantes ferrenhos. PS e PSD têm, cada um, uma percentagem basicamente similar de votantes garantidos (que alguns dizem rondar 22-25%, cada um). Essa quase metade do país votante, em princípio, “não mexe”, não depende dos líderes que os partidos tiverem, tem um estado de alma “clubista”. Não é a eles que se destinam as campanhas eleitorais. Tenho a certeza de que muitos leitores, qualquer que seja a sua “lateralização” política, reveem-se neste retrato.

Descontados os votantes regulares em outros partidos menores, as campanhas são conduzidas com vista a seduzir um número de pessoas bem inferior a metade do eleitorado, os quais, como diz um amigo meu, “é afinal quem manda no país”. É a flutuação de voto dessas pessoas, de quem se move alternadamente nas duas direções, que faz a diferença: derrota uns e elege outros. É nestes “swinging voters” que estarão os muitos indecisos que as sondagens revelam. Porquê tantos? Cada um terá a sua explicação, eu tenho a minha.

Desde logo, porque há muita gente que não quer reeditar a experiência deste governo e lhe recusa o voto. Gente que não esquece o que se passou: os cortes a torto e a direito, o desemprego, a emigração, a permanente instabilidade na sua vida e dos seus, a arrogância, legislativa e não só. Gente que olha para o nível da nossa dívida e, agora também, para o défice e, com razão, duvida que tenham valido a pena os sacrifícios feitos. Gente que não compra o discurso de que “Portugal está melhor, embora os portugueses possam estar pior”. Gente que percebe que é a Europa que aqui induz esta aparente acalmia, vendida como melhoria virtuosa. Gente que preferirá abster-se a votar nesta maioria.

Mas, se assim é, por que é que essas pessoas não decidem optar pelo PS, a única real alternativa à coligação?

Porque o PS, causticado pela imagem de um passado, que um conjunto de fatores acumulados impediu de explicar devidamente, optou por fazer uma campanha sem um mínimo de demagogia, assente num grande sentido de responsabilidade. E na verdade. O “cenário macroeconómico” e o programa do PS não trazem mudanças entusiasmantes? Talvez, mas trazem políticas que rompem com a austeridade sem romper com os compromissos e indiciam medidas para um futuro de crescimento. Medidas quantificadas e não ideias vagas, como acontece do outro lado do espetro político.

É aos indecisos que cabe entender que, no dia 4 de outubro, mais do que uma eleição, estarão perante um plebiscito: serão eles a decidir se querem repetir a experiência de uma governação que lhes infernizou o passado recente ou se pretendem uma mudança moderada, titulada por um líder com provas dadas, que recusa ser “económico com a verdade”?


(Artigo que hoje publico no "Jornal de Noticias")

quinta-feira, setembro 24, 2015

Bom senso

O jornal i titulava ontem, na sua primeira página, citando-me: "O PS não fez passar a mensagem de credibilidade".

A citação está correta. A conversa telefónica de um minuto com uma jornalista andou à volta do elevado número de indecisos detetados nas sondagens e das razões pelas quais esse valor ainda se mantém elevado. Na opinião que dei, referi que muitas pessoas não gostavam do governo mas hesitavam ainda em votar no PS, porque este partido não tinha ainda conseguido fazer passar uma mensagem de credibilidade suscetível de lhes garantir uma mudança de vida para melhor.

E é verdade. O que as sondagens evidenciam é que, não obstante António Costa ser visto de forma esmagadora como mais confiável para primeiro-ministro, o PS ainda não conseguiu convencer as pessoas de que, chegado ao poder, fará melhor do que a coligação. É triste? Claro que é, mas a democracia é isto mesmo. É o que as sondagens refletem, pelo menos por ora, fazendo eu figas para que mudem.

Esta minha declaração, embora óbvia, surpreendeu, ao que parcece, alguns amigos meus. Para os compensar, deixo uma frase que hoje retirei de um texto de José Manuel Fernandes (esse mesmo!) com a qual esses amigos tenho a certeza que vão estar de acordo: "apesar do empate técnico das sondagens, o PS ainda é o favorito, pois será mesmo surpreeendente que os portugueses, depois de tantos sacrifícios, reelejam a mesma maioria e o mesmo primeiro-ministro". Ele escreveu mesmo isto? É verdade. Enfim, um ataque de bom-senso nunca fica mal a ninguém, não é?

quarta-feira, setembro 23, 2015

Amigos de Órban?


O partido do primeiro-ministro húngaro, senhor Órban, cujo destaque nos últimos dias se fica a dever às atitudes repressivas que assume sobre refugiados que pretendem atravessar o seu país, para se acolherem em países que generosamente se disponibilizam para os receber, está inserido numa grande família política europeia, o Partido Popular Europeu.

Em Portugal, o PSD e o CDS-PP são membros do PPE. Longe de mim comparar com as posições do senhor Órban, face ao drama dos refugiados, com a atitude que tem vindo a ser assumida governo português, que tem seguido a honrosa sensatez da esmagadora maioria dos seus parceiros europeus.

Porém, não ficaria nada mal ao PSD e ao CDS-PP tomarem publicamente uma atitude de distanciamento face ao modo como o seu partido-irmão húngaro se está a comportar. Seria digno e talvez contribuísse para que o PPE pudesse fazer evoluir a sua posição de cobarde tibieza face ao senhor Órban e o colocasse numa saudável quarentena política.

Sylvia Athayde


Morreu a Sylvia Athayde! Confesso que ainda estamos em estado de choque. Há meses, numa passagem sua por Lisboa, não conseguimos ver-nos, como era sempre de regra. E agora, nunca mais teremos aquele sorriso aberto, aquele humor, aquela conversa à volta das coisas que nos eram comuns, dos conhecidos que partilhávamos, mas também do futuro, do Brasil e de nós. Era uma conversa sempre calma, suave, sem deixar de ser incisiva e muito atenta a tudo. Através dela, percebi melhor a Bahia, o sentido da complexa política local, os clãs e os seus conflitos, a graça imensa de um terra onde está, melhor que em qualquer outra parte, a alma cruzada do Brasil. Portugal, que ela amava como poucos brasileiros, fica a dever-lhe anos de contínuo interesse pela nossa cultura, que tão bem tratou no Museu de Arte da Bahia, que superiormente dirigia. O grande oficialato da Ordem do Infante Dom Henrique que recebeu em 2007 atesta o modo como Portugal também a reconhecia.

Conheci a Sylvia logo da primeira vez que fui à Salvador. Passou a ser nossa companhia permanente nas muitas vezes que por lá voltei. Ajudou-me muito a dar dignidade e projeção à contribuição portuguesa para a parte baiana das comemorações dos 200 anos da chegada da corte. Nenhum interesse português lhe era alheio, por nós movia mundos e fundos. Só uma grande insistência dela me conseguiu convencer a fazer um simples jantar a quatro, no Hotel Convento do Carmo, depois da gongórica comemoração oficial da "abertura dos portos", que dom João teve a triste ideia de ir decretar logo no dia que, dois séculos depois, iria ser o do meu 60º aniversário...

A nosso convite, esteve em Brasília a falar da passagem da corte portuguesa por Salvador. Depois de eu sair do Brasil, mantivemo-nos em permanente contacto. Visitou-nos por mais de uma vez em Paris, nas viagens que ela adorava fazer pela Europa da cultura. Em Lisboa, era ela quem nos mostrava novos restaurantes, de tal modo conhecia a cidade, aliás como todo o país, que percorria de lés-a-lés, cuja arte nos descrevia com detalhe e saber. Tinha amigos fiéis e devotados um pouco por todo o mundo, porque era uma mulher generosa, bem disposta, muito atenta a quem dela gostava, amante da vida que agora lhe fugiu, aos 75 anos.

Isto não é um lugar comum que se diz quando alguém morre: a Sylvia vai-nos fazer muita falta!

(Deixo aqui uma nota publicada na imprensa brasileira)

terça-feira, setembro 22, 2015

Poesia no Cais

Ontem, no final do jantar numa tertúlia, uma amiga anunciou: "Vou ouvir poesia para o Cais do Sodré!". Tive um sobressalto, por um instante. O Cais do Sodré é hoje uma coisa radicalmente diferente da imagem que ainda me ocorre à imaginação quando alguém me fala em "Cais do Sodré". Por muitos e (talvez menos) bons anos, era um local pouco frequentável, exceto por marinheiros e "rufias", com um grau de insegurança muito elevado em certas ruas. No que me toca, as exceções eram por ali três: o "British Bar", o "Porto de Abrigo" (um clássico, que há muito se foi e tinha um arroz de pato "de truz") e o cacau da Ribeira. Nos anos 80, com o "Jamaica" a mudar, o bairro começou a "abrir" mas, verdadeiramente, só na última década é que se deu a grande e agradável mudança que hoje por ali se vive, com espaços muito simpáticos, ajudando a esta nova Lisboa onde cada vez mais apetece viver. Deve-se, com certeza, à idade o facto de eu manter ainda este mesmo reflexo quando se fala do Cais do Sodré (seria a mesma coisa se me falassem do Intendente.) No fundo, ouvir dizer a alguém, principalmente a uma senhora, que ia "ouvir poesia" para o Cais do Sodré provocou em mim a mesma reação que os habitantes do "Pátio das Cantigas" tiveram quando o "Evaristo" lhes anunciou que ia "de águas para o Cartaxo"... Mas também quem é que ainda se lembra disso?

Nós e a Alemanha


No dia 8 de outubro, pelas 19 horas, no Beatus Bar, na rua Acácio Barreiros, nº 3, em Lisboa, será apresentada a versão portuguesa do livro "Pontes por construir - Portugal e Alemanha", organizado e apresentado por Luisa Coelho, com visões portuguesas sobre a Alemanha e sobre as nossas relações bilarerais. 

Este livro, cujo alvo primário é o público da Alemanha, terá uma edição em língua alemã num futuro próximo.

Os textos são da responsabilidade de 17 autores, entre os quais figuro com um capítulo intitulado "O lugar de Portugal".

segunda-feira, setembro 21, 2015

Regras para diplomatas


Já aqui falei um dia de Miguel Serpa Soares, que desempenha em Nova Iorque o importante cargo de principal consultor jurídico do secretário-geral das Nações Unidas.

Há dias, Serpa Soares deu uma entrevista ao "Diário do Alentejo" na qual falou das suas atuais funções e do método que utiliza para nelas ser eficaz. Retive isto, a propósito das intervenções em reuniões: "Pensar bem as nossas intervenções, preparar com cuidado as apresentações, fazer um esforço para ser sucinto e, claro está, não ter intervenções inúteis ou superficiais".

Como seria importante que esta recomendação de bom senso estivesse afixada em muitas salas onde vulgarmente, e durante horas, assistimos a monólogos de quem só se ouve a si próprio, de quem intervem apenas por intervir e para marcar o ponto, de quantos se enfatuam em platitudes e lugares-comuns, com ares de profundidade e importância que só o próprio parece reconhecer. Falar pouco, dizer apenas o essencial e, em especial, não tornar a repetir, por outras palavras, o que imediatamente antes já se disse - são algumas regras de ouro para a prática dos diplomatas, mas não só.

O barco


A conversa com aquele meu amigo teve lugar há muito tempo. Aliás, ele morreu também já há alguns anos, naquela localidade de província onde, com alguma regularidade, nos íamos vendo, nas minhas visitas.

Um pouco mais velho que eu, era uma pessoa metida consigo mesma, com muitos azares na vida, feitos de erros de percurso, as mais das vezes evitáveis por uma sensatez que a sua agitação interior não permitia. Era muito teimoso e reagia de forma às vezes desabrida quando eu, por realismo, tinha a ousadia de procurar dar-lhe algum conselho. Mas éramos bastante amigos, sempre o fomos. Ele sabia que podia contar comigo - e por uma vez ou duas contou, em situações de emergência - e eu tinha a sua lealdade pessoal por garantida.

Não me recordo de termos falado alguma vez de política. Mas isso deve ter acontecido, conhecendo-me... Ele sabia muito bem, e de há muito, por que lados eu andava e eu sentia-o tendencialmente conservador, fruto da sua passagem na guerra colonial e dos escassos círculos em que andava se situarem maioritariamente por essa área. Mas nunca por nunca o vi inclinado a afirmar-se em termos partidários.

Foi assim que, um dia, o encontrei num café. Durante uma boa hora, "pusemos a escrita em dia". Veio à conversa, num certo momento, a casa onde ele vivera com os pais. Perguntei-lhe se lá residia. Disse-me que não, que vivia agora num bairro social, que estava mesmo muito satisfeito com o apartamento novo que havia obtido. Não era grande, mas chegava para as suas necessidades.

- Mas não foi nada fácil. Antes, tive de entrar para o barco! 

Estranhei a expressão. Barco? O que era isso de "entrar para o barco".

- Oh! Como se tu não soubesses como essas coisas são...

Eu não sabia, confesso! "O que é o barco? Diz lá!", insisti.

E então ele revelou que tivera de se inscrever no partido que dominava o município, antes que a assistente social que tratava dos processos de candidatura recebesse luz verde para lhe atribuir residência.

A política portuguesa tinha (tem) destas "grandezas", infelizmente, ao que parece, dos vários lados do espetro político.

domingo, setembro 20, 2015

Lembram-se da Grécia ?

Há menos de um ano, as eleições na Grécia traziam à Europa duas vias claras. 

Depois, foi o que se viu. As propostas gregas encontraram a oposição absoluta de quem manda na Europa do euro e o governo do partido que titulara essa recusa acabou por aceitar tudo quanto essa mesma Europa lhe impôs.

Imagino que, no dia de hoje, um cidadão de Atenas deve, mais do que nunca, "sentir-se grego", ao ter que optar pela austeridade ou ... pela austeridade!

sábado, setembro 19, 2015

De um arco, em Paris


Não foram poucas as vezes, quando vivi em Paris, que, chegado a um determinado local, senti pena por não ter por ali comigo o meu pai, falecido pouco antes. Gostaria imenso de poder ter andado com ele pelas ruas da cidade que, desde criança, me descrevia com pormenores afetivos que, durante anos, encheram a minha imaginação. Ele que, nesse tempo, nunca lá tinha ido! Mas, em nossa casa, havia um mapa com o centro da cidade desenhado em pormenor, com o título "Paris à vol d'oiseau" e um guia Baedeker que nos ensinava a capital francesa como se lá estivéssemos! Com o meu pai, nessa passagem dos anos 50 para 60, o que eu aprendi a "passear" pelos boulevards e a conhecer os nomes de alguns daqueles edifícios e de episódios da História que lhes está associada!

Francófilo como era, o meu pai deu, durante cerca de 20 anos, explicações gratuitas de francês a filhos de familiares e amigos, apenas pelo amor que tinha a uma língua que identificava com a liberdade. Estou certo de que teria gostado muito de rever comigo, com calma, os lugares da sua "pátria" de adoção, quando citava Thomas Jefferson: "Tout homme a deux patries: la sienne et la France". E teria um imenso gosto em saber que acabei a minha carreira como embaixador por lá.

Há dias, passei a pé junto ao Arco do Triunfo do Carrousel, um monumento situado entre o Louvre e a praça da Concórdia, no jardim das Tulherias, mandado construir por Napoléon Bonaparte para comemorar a vitória em Austerlitz. Subitamente, lembrei-me do meu pai. É que daquele pequeno arco, "pequeno" se comparado com o Arco do Triunfo na Étoile, possuo em Vila Real, deixada por ele, uma pequena reprodução em mármore, um objeto que sempre representou muito para mim. Bem miúdo, lembro-me, como se fosse hoje, de ouvir o meu pai dizer: "Se olhares deste Arco de Triunfo do Carrousel do lado do Louvre, irás ver que ele está em linha precisa com o obelisco egípcio da praça da Concórdia e, ao fundo, no alto dos Campos Elísios, verás o grande Arco do Triunfo, na Étoile". Ao tempo, repito, ele apenas sabia que as coisas eram assim.

Da primeira vez que fui a Paris, comecei a visita à cidade por aquele arco. Não para confirmar a asserção do meu pai, que era uma evidência óbvia, mas para começar a conhecer verdadeiramente a cidade pelo monumento que tinha iniciado o meu infindo gosto por ela.

Na tarde da passada segunda-feira, voltei a olhar os dois arcos, com o obelisco de ponta dourada pelo meio. E, olhando ao longe, os Campos Elísios, recordei o tom grave com que o meu pai descrevia a humilhação que a França sentira ao ver as tropas alemãs de ocupação descerem aquela avenida - ele que era um aliadófilo feroz. E de contar-me como, no dia da Libertação, De Gaulle caminhara, em apoteose, pelo mesmo caminho. É que, deste lado da Europa, o meu pai também sentiu que havia ganho a guerra!

Nem imaginam o que se pode ver de um pequeno arco quando as memórias são agradáveis!

Uma constatação óbvia

A decisão das agências de notação de subir a nota de Portugal significa, sem a menor dúvida, duas coisas incontestáveis e algo diversas entre si.

Desde logo, uma apreciação positiva sobre o modo como o nosso país se aproxima das metas macro-económicas que são desejáveis pelos investidores, o que representa um elogio para o trabalho do governo.

Mas esta decisão, a escassos dias de um ato eleitoral cujo resultado está totalmente em aberto, anuncia claramente que os mercados não veem o menor risco para estabilidade económico-financeira do país se acaso o partido oposicionaista mais bem colocado vier a ser governo.

sexta-feira, setembro 18, 2015

As aventuras de um diplomata de aviário


Hoje, com a assertividade e o rigor a que nos habituou, o "Correio da Manhã" titula "Diplomata acusado de desviar 962 mil euros".

Devemos nós ficar envergonhados por esta acusação a este nosso "colega"? Mas será que ele é "nosso colega", será que o "diplomata do Correio da Manhã" - quase que poderíamos dizer "o diplomata do crime" - é mesmo diplomata?

Já perdi a esperança, de tanto o tentar sem sucesso, de explicar à comunicação social que diplomatas são funcionários de uma carreira para cujo acesso se faz aquela que é, sem a menor sombra de dúvida e sem contestação, a mais exigente prova de acesso à função pública portuguesa. É verdade que, das não muitas centenas de pessoas que, em Portugal, já passaram pela carreira diplomática, nem todos nos deixaram orgulhosos, alguns - muito poucos, felizmente - não honraram o nome da profissão e não dignificaram o serviço do Estado que juraram respeitar. Mas isso foi uma escassa minoria. Na grande generalidade dos casos, a carreira diplomática é constituída por gente séria e honesta.

O alegado delinquente a que agora são atribuídas algumas falcatruas, não é nem nunca foi um diplomata, é uma figura a quem, por razões e "cunhas" que talvez fosse interessante o tão falado "jornalismo de investigação" desenvolver, foi nomeado para "vice-cônsul" numa cidade do Brasil, numa escolha completamente arbitrária e discricionária.

Ao tempo em que eu era embaixador no Brasil, numa asneira deliberada, erigida em política para as Comunidades, foi decidido fazer renascer a figura dos "vice-cônsules", que estava (e bem) arquivada nas páginas do regulamento consular e de que um iluminado de segunda linha se lembrou então, com o manifesto objetivo de afastar verdadeiros diplomatas da chefia de alguns postos consulares. Ao saber dessa intenção, alertei por escrito (para algum incómodo nas Necessidades) que achava que assim se estava a abrir caminho à emergência de alguns "vício-cônsules".

(Um parêntesis para dizer que gente séria, honesta e competente foi nomeada nesta leva, mas que a consequência lateral foi, como se vê, abrir caminho a figurões do jaez que agora se aprecia).

O renascimento da figura dos "vice-cônsules" não ofereceu, aparentemente, as menores dúvidas à oposição de então, bem como à máquina sindical que se alimenta da estrutura administrativa do MNE. Pudera! Todos ganhavam... PS e PSD podiam colocar por esses postos, sem concurso e "a olho" político, o seu pessoal fiel e ver-se livres de diplomatas de carreira; o sindicato do ramo via, também por ali, uma janela de oportunidade para ter gente sua a substituir os verdadeiros diplomatas - relembrando eu que estes últimos estão sujeitos a regras e escrutínio de que os vice-cônsules estão dispensados. Prometo que um dia, darei alguma contribuição escrita para a revelação das artimanhas, por via do "Diário da República" deste "bloco central" de interesses, onde também figuram alguns "cônsules honorários" (e aqui poder-se-ia falar-se, por exemplo, do alegado "diplomata" do negócio dos submarinos...)

Uma vez mais, foi a imagem dos verdadeiros diplomatas que "pagou as favas". Mas não tenho esperança que o "Correio da Manhã" corrija isto, claro!

Jogos com fronteiras

Talvez não nos estejamos a dar bem conta da real dimensão do que se está a passar, mas quero crer que a crise dos refugiados e as repercussões que ela está a ter na confiança entre os estados da União Europeia são, com grande probabilidade, o desafio mais importante que esta enfrenta desde a sua criação.
A presente situação testa os limites da coesão do processo europeu porque traz à evidência o modo diferenciado como os países encaram a partilha das responsabilidades a que a pertença ao espaço comunitário automaticamente os obrigaria. Muito raramente a distância entre os países europeus foi tão profunda. E isso é altamente preocupante.
Vivemos hoje um tempo em que se joga com as fronteiras à luz da preeminência dos medos nacionais, potenciando reações xenófobas, desrespeitando regras mas, essencialmente, desprezando valores que tínhamos por património comum. Alguns estados estão a mostrar-se indignos da solidariedade que, num passado não muito distante, os beneficiou.
No processo de discussão do futuro da liberdade de circulação na Europa, que inevitavelmente já se iniciou, a posição de Portugal tem de ser sempre de uma cristalina firmeza, evitando a tentação de seguidismo com outros, por mais poderosos e conjunturalmente próximos que pareçam. Como país geograficamente periférico, emissor regular de vagas migratórias, qualquer evolução que, neste domínio, pudesse apontar em sentido restritivo seria altamente detrimental para os nossos interesses. Também no plano económico, nomeadamente em matéria de liberdade dos fluxos turísticos, um reposicionamento prolongado de fronteiras teria sempre impactos muito negativos, sem contar com os efeitos nefastos para o interesse global europeu, que hoje integra também o interesse nacional.
Mas os nossos interesses como país não são apenas económicos e políticos, são também éticos. Ao longo dos anos, independentemente dos regimes, a voz moral de Portugal fez-se sempre ouvir em favor daqueles que o mundo tinha deserdado da sorte. Basta recordar o modo como soubemos responder aos apelos dos refugiados da 2.ª guerra mundial e o exemplo nobre de Aristides de Sousa Mendes. Nos conflitos e nas tragédias, o nosso país, nomeadamente a sua sociedade civil, soube sempre respeitar uma reiterada tradição humanista, de generosidade e solidariedade. Nesta crise, é justo lembrar que Jorge Sampaio cedo instituiu um exemplar processo de acolhimento de estudantes sírios e que António Guterres se tem ilustrado como um extraordinário alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Gostaria de ter a certeza que, no auge deste intrincado problema, o nome de Portugal, no plano internacional, continuará a soar como sinónimo de dignidade.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...