quarta-feira, agosto 04, 2010

Volta a Portugal

Com as etapas antecedidas, na televisão, por uma cobertura musical frenética e um tanto "pimba", começou ontem a Volta a Portugal (a 72ª!) em bicicleta. Dado que parece serem os municípios que subsidiam as etapas, não admira que os presidentes das Câmaras sejam hoje vedetas regulares dessas transmissões, nelas debitando diariamente banalidades regionalistas. Se isto pode contribuir para estimular o turismo interno, tudo bem.

Em abono da verdade, devo dizer que, para além dessa espécie de Poulidor português que se chama Cândido Barbosa - um popular ciclista, que nunca conseguiu ganhar uma Volta -, a quase generalidade dos nomes dos participantes diz-me muito pouco. E, talvez por essa razão, olho hoje muito desinteressado para o espetáculo.

Nem sempre foi assim. Na minha juventude, a chegada da Volta a Vila Real era um momento de grande emoção, tanto mais que então acompanhávamos, ao segundo, a evolução da classificação geral (e, também, de montanha e por pontos). Pela rádio, ficava a saber-se, a certa altura, que "já chegaram ao Alto de Espinho!", pelo que imaginávamos a descida rápida desses 15 km, que antecedia a curta subida para a meta na cidade. Depois, nas horas seguintes, era o espetáculo bizarro e colorido dos ciclistas sentados pelas esplanadas da avenida Carvalho Araújo, de chinelos, antes de recolherem às pensões Excelsior, Mondego, Coutinho ou Areias - salvo as equipas ricas, que se permitiam os luxos do hotel Tocaio.

Mas é da cobertura televisiva que também queria falar hoje, para lembrar um nome do jornalismo desportivo que, na minha memória, permanece ligado à Volta a Portugal: Amadeu José de Freitas. 

Era um homem simpático, com uma voz agradável, um grande nome da rádio e do jornalismo desportivo, que teve responsabilidades de direção naquele que foi o terceiro mais importante jornal desportivo do país, o "Mundo Desportivo" (ou outros eram, naturalmente e por essa ordem, "A Bola" e o "Record", vindo depois o regional "O Norte Desportivo"). Escreveu vários livros, acabando por ter uma morte trágica.

Creio que muitas gerações de telespectadores foram "educadas" no ciclismo através de Amadeu José de Freitas, para além de o terem "conhecido" como um dos mais capazes relatores de futebol - ao lado de Artur Agostinho ou Nuno Braz. Nunca o encontrei pessoalmente, mas ele faz parte das figuras que muito me ajudaram a entender o ciclismo português. Aqui lhe deixo o meu tributo, acompanhado da música que, desde há muito, associo à Volta.

"Sunny"

Há alguns cantores e compositores que ficaram conhecidos apenas por uma canção, êxitos que se lhes colaram à pele profissional e lhes marcaram as vidas - e que talvez os tenham "perseguido" ao longo de toda a carreira.

Estou muito longe de ser um especialista em música, pelo que pode ser defeito meu não conhecer outras canções importantes de Bobby Hebb, que agora morreu, além do seu sempiterno "Sunny", de 1966. Desse tema, tenho interpretações de Frank Sinatra, Dell Shannon (outra "vítima" da "canção de carreira" com "Runaway"), Marvin Gaye, Dusty Springfield, James Brown e os The Four Tops. E recordo muito bem, nos idos de 90, ter ouvido ao vivo a célebre versão de Georgie Fame, numa bela noite no "infamous" Ronnie's Scott, a catedral londrina do jazz.

Ouçam aqui a versão original de Hebb.

terça-feira, agosto 03, 2010

Bacalhau


O olhar trocado entre os nossos convidados não iludia. Havia um qualquer mal-estar entre todos eles, cuja razão não entendíamos. O resto do jantar iria confirmar que havíamos cometido uma "gaffe" diplomática.

Estávamos na Noruega, em 1979. Era o meu primeiro posto, como funcionário diplomático. A Noruega era e é um país de ótimo bacalhau, Não se estranhará, assim, que, mal lá chegado, eu tivesse procurado abastecer-me do produto. Nunca mais esqueci o nome, com sonoridades medievais, do cidadão português que passou a ser o meu fornecedor: Pero Diniz de Paiva.

O primeiro jantar "formal" que organizámos foi, como é natural, dedicado aos primeiros norugueses de quem nos havíamos tornado amigos. Num gesto que pretendemos fosse de gentileza, numa espécie de celebração da relação luso-norueguesa, decidimos apresentar um prato de bacalhau.

À chegada à mesa desse prato principal, eu havia decidido revelar aos presentes a intenção subjacente à nossa escolha. Os nossos convidados sorriram com simpatia e agradeceram o nosso gesto, iniciaram a degustação e... começaram, discretamemente, a pôr de lado o bacalhau, fingindo apenas que comiam. Não havia qualquer dúvida: não apreciaram o que lhes tinha sido oferecido. A nossa primeira iniciativa social fora um fracasso.

Ao contarmos o sucedido, dias depois, a um outro amigo, tudo ficou explicado. O bacalhau seco, para certa geração norueguesa, era um produto que ficara associado a um período trágico da vida do país, ao tempo da ocupação nazi. Como era barato e de fácil conservação, era usado em abundância pelas comunidades rurais isoladas, recordando assim tempos tristes e de miséria. Oferecer um prato de bacalhau seco em Oslo equivaleria, julgo eu, ao gesto catastrófico que hoje seria servir "peixe seco" à nova burguesia de Luanda.

Mas - convém que se diga - o bacalhau, na sua versão de peixe fresco, continua a ser hoje um produto muito apreciado na (muito duvidosa, na minha opinião) gastronomia noruguesa. Seco é que nunca! Ou melhor: só para exportar, a "preços nórdicos", nomeadamente para os pobres portugueses, espalhados pelo mundo...

Resta dizer que a imagem de Portugal e dos portugueses, nomeadamente em França, continua muito ligada ao consumo do bacalhau seco. Ainda que, nos dias de hoje, alguns outros países - a começar pelo Brasil - sejam muito mais importante consumidores do que nós, os portugueses passam por ser compulsivos fanáticos dos vários modos de cozinhar o antigo "fiel amigo" - e digo "antigo" porque os preços hoje já não permitem usar com propriedade o dito "p'ra quem é, bacalhau basta".

Os portugueses, aliás, contribuem voluntariamente para manter essa imagem, ao terem criado, um pouco por todo o mundo, mais de uma centena de "Academias do Bacalhau", uma rede de confrarias de jantaradas, originalmente surgidas no seio das comunidades portuguesas, a qual, ainda este ano, reunirá o seu "Congresso" em Paris.

Meo

Há dias, tive a infeliz ideia de procurar obter o serviço televisivo da Meo, uma espécie de heterónimo em que a PT se desdobra. Ingénuo, liguei para o número indicado no folheto. Fui atendido por uma "Marta" qualquer, que me falava um delicioso "tecniquês". Como estava com tempo, comecei por ter alguma paciência. Ao final de uns minutos, durante os quais procurei traduzir em linguagem para leigos as questões que me eram colocadas (entremeadas com o nº do contribuinte, BI e outras especificações cumulativas), foi-me dito que tinha uma conta em débito, de 50 e tal euros, já de Março de ano passado, e que, antes de poder ter o serviço Meo, teria de a pagar. 

Fiquei surpreendido, porque liquido sempre tudo por débito automático em conta, mas, desejoso de arrumar o assunto, perguntei como poderia efetuar o pagamento. E começou a saga. Eu tinha de falar com o departamento de faturação. Não podiam ser eles a ligar para lá? Não, era "procedimento" da empresa ser eu a fazê-lo. Então era eu que ia à procura de uma conta cuja origem não sabia, sobre a qual não tinha qualquer aviso? Assim era e assim foi.

Longos minutos passados, entre o "darem-me música" e o saltitar de opções de teclas, lá me apareceu outro "Marta" que, depois de aturada investigação, me informou que a matéria passara para o contencioso e que era com esse departamento que agora teria de falar. Podiam ligar-me para eles? Nem pensar! Era "procedimento" da empresa que tinha de ser eu a iniciar outra busca telefónica. Já devia ter desconfiado... De notar que, nesta fase do processo, a minha paciência começava a esgotar-se e os "Martas" sentiam isso na minha linguagem.

E lá fui, telefonicamente, para o contencioso, onde, depois de imensa espera e amplas buscas, me informaram que tinha já juros e me deram um determinado número de processo para poder pagar. Mas isso só era possível numa loja PT, nunca por multibanco - não faltava mais nada que isto fosse fácil!

Como eu tinha visto que havia uma loja PT perto de casa, foi-se lá tentar pagar. Na primeira visita, depois de 45 minutos de espera em fila, não foi possível detetar o débito: aparentemente eu não devia nada.  Numa segunda visita, com nova informação que eu tive de obter do contencioso, lá descobriram o montante em falta. Pronto: tudo ia ser resolvido, mas - atenção! - teria de ser em cheque ou em "cash". Não aceitam multibanco... claro! Quando se pretendeu pagar, a surpresa final: por ser uma loja concessionada, não era possível aceitar pagamentos de contas "em contencioso". Só numa "loja oficial PT". É nestas alturas que o calor também não ajuda à contenção verbal, como a balconista "concessionada" terá concluído. Lá se irá amanhã à "loja oficial"...

Resta dizer que, se conseguir vir a pagar (o que não é certo ainda) a tal misteriosa fatura (que nem quero saber a que respeita), o processo da aquisição do serviço Meo terá, então, de iniciar-se, de novo. Devo ter Meo em casa quando aterrar na rue de Noisiel.  E, com isto, terei perdido, ao telefone e pessoalmente, bastante mais de duas horas do "meo" tempo, faltando o que ainda está para vir.

É uma pena que Henrique Granadeiro e Zeinal Bava não necessitem de recorrer aos serviços da PT.

E devo dizer que agora percebo melhor agora porque há tantos crimes de sangue no verão.

Em tempo: a publicação deste post originou contactos da PT por mail e pelo telefone. Fico grato pela atenção. No caso do mail, respondi da seguinte forma:

"Aparentemente, com o pagamento que (ainda ontem) se conseguiu fazer (mas que obrigou a uma deslocação a um centro comercial e à perda total de cerca de mais de uma hora), a famigerada conta foi finalmente liquidada, embora continue sem saber a que respeitava e porque era devida. Espero assim que o processo de obtenção do Meo possa vir a iniciar-se (48 horas depois desse pagamento, ao que nos foi dito). Logo veremos se assim é.

O que me parece incrível é que, num caso como este, devido aos bizarros "procedimentos" da empresa, tenha de ser o cliente a andar a saltitar de uma instância da empresa para outra, não lhe sendo sequer facultada a possibilidade do assunto ser "passado" no quadro da mesma chamada telefónica. As vezes que tive de contar a mesma história foram imensas. E foram muito longos os minutos de espera. Ora, numa lógica de apoio ao utente, um cliente deveria ser tratado como uma única entidade por todos os departamentos da empresa: a partir do momento em que faz o contacto, o seu assunto deve ser seguido de forma sequencial, não devendo ser obrigado a repetir o problema a várias pessoas.

Por outro lado, acho insensato que - tal como pedi - não me tenha sido possível obter um código para pagamento por multibanco, da mesma forma que na loja PT ("concessionada") a que fomos não aceitassem esse tipo de pagamento. Numa era como a atual, uma empresa como a PT não deve contribuir para que haja necessidade de alguém se deslocar a um determinado local para pagar algo. Isso deve poder ser feito à distância, por internet ou por transferência bancária. No passado, a publicidade ao uso do telefone era "não vá, telefone". Muitas décadas depois, o lema da PT parece ser "não telefone, vá".

Uma nota final positiva: todas as pessoas da PT contactadas, telefónica ou pessoalmente, foram de um cordialidade profissional a registar, independentemente de não conseguirem dar o andamento pretendido ao problema."

segunda-feira, agosto 02, 2010

Partidos televisivos

Posso estar enganado, mas julgo que a generalidade dos portugueses não deve ter consciência de que o que se passa nos espaços informativos das suas televisões, em termos de informação política, não tem hoje paralelo na generalidade dos países de idêntica dimensão democrática. 

A circunstância de, a propósito de qualquer questão pública, aparecerem porta-vozes das diferentes forças políticas, normalmente tendo como pano de fundo os "Passos Perdidos" ou corredores do nosso parlamento, a debitarem diariamente a sua opinião, constitui um caso praticamente único. Criou-se em Portugal um "politicamente correto", um insuperável temor reverencial face ao sindicato das forças partidárias que faz com que, para evitar acusações de descriminação, todos sejam sempre ouvidos, a propósito de tudo e de nada. A relevância jornalística dos temas, que deveria ser o referencial para a dimensão das peças televisivas, é hoje um factor menor, perante o receio de acusações de favorecimento político. Já não se trata de respeitar o contraditório, de contrabalançar os pontos de vista: é necessário ouvir sempre, e cumulativamente, PS, PSD, CDS-PP, PCP e BE. O ridículo só mata quando dele se tem consciência e, aparentemente, em Portugal essa consciência não existe.

Essa é também uma das razões - somada aos acidentes, aos crimes e às peças sazonais (incêndios, praias, calor e estradas) - pela qual os telejornais, em Portugal, têm uma extensão verdadeiramente terceiro-mundista, única na Europa. Para quem não saiba, convém lembrar que, na generalidade dos países "civilizados" (e não elaboro deliberadamente sobre isto), os noticiários não ultrapassam 30 minutos, os diretos aos correspondentes no local não excedem um minuto e as peças sobre um determinado tema muito raramente vão para além dos 5 minutos. Por cá, é o que se vê!

Em tempo: num comentário a este post, a Dra. Helena Sacadura Cabral lembrou - e bem! - que os partidos políticos dispõem igualmente, em termos de quota de débito discursivo televisivo, de vários espaços de "frente-a-frente" e de outros modelos de programas onde estão representados, mais ou menos formalmente. Enfim, "tempos de antena" diários... 

domingo, agosto 01, 2010

Ruy Patrício

Conheci pessoalmente Ruy Patrício quando cheguei ao Brasil, como embaixador, em 2005. Foi em casa de Alberto Xavier, naquela que acabou por ser uma longa e agradável noite de conversa, onde falámos de amigos comuns e trocámos histórias de vida. Eu tinha curiosidade em conhecer o último ministro dos Negócios Estrangeiros do regime para cujo derrube tinha modestamente contribuído, em 1974. Ao Ruy, presumo, terá sido interessante saber um pouco mais do novo representante diplomático que Lisboa mandara para o Brasil, dos muitos que conhecera desde o exílio que se auto-impusera, depois da Revolução. Lembro-me bem de, nessa noite, lhe ter dito, na presença de um seu filho, que seria imperdoável se não publicasse as suas memórias.

Durante os anos que permaneci no Brasil, construímos uma muito agradável convivência, chegando mesmo a planear escrever um livro "a dois" - uma espécie de cruzamento de leituras sobre o papel de Portugal no mundo, antes e depois do 25 de abril. Julgo que o Ruy não me levará a mal a revelação pública desta nossa ideia. Por insuperáveis dificuldades logísticas e de agenda, nunca levámos a ideia à prática. Tive pena.

Há meses, a Leonor Xavier disse-me que estava a fazer uma longa entrevista ao Ruy, que iria passar a livro. Mandou-me o texto e, sobre ele, escrevi um comentário que, ao lado do de outros colegas diplomatas, é publicado na contracapa do livro:
 
"Ruy Patrício, um homem sem angústias na fidelidade ao seu passado, ajuda-nos a melhor entender certas decisões assumidas na política externa do Portugal de então, num curioso retrato, a preto e branco, do estertor da ditadura – uma foto, em alto contraste, de dois mundos separados por uma certa noite de Abril."

sábado, julho 31, 2010

Álvaro Salema (2)

O post que, há dias, publiquei, sobre Álvaro Salema, provocou surpresas: "Quem era? Nunca tinha ouvido falar". Creio que alguns, lá no íntimo, terão julgado que eu estava apenas a magnificar um conhecimento pessoal, por discriminação de simpatia.

Talvez estivesse, mas não estava sozinho. Leiam (um pequeno extrato d)o que escreveu Jorge Amado, na sua "Navegação de cabotagem", quando soube da morte de Álvaro Salema:

"A morte de Álvaro Salema chega-me pelo telefone (...). Ai, meu Deus! exclamo quando Nuno (Lima de Carvalho) me diz: desculpa chamar-te para má notícia, Salema morreu. (...) A partir de agora Portugal será menos ensolarado, menos alegre, menos fraterno. Perco o amigo português de toda a minha vida, o amigo perfeito, o de todos os instantes, aquele que tudo sabia e tudo podia entender.(...) Eu projetara ir a Portugal nesse outubro (...). Já não irei, cadê coragem de olhar para o rosto de Elisa, de pronunciar o nome de Álvaro? (...) O homem mais modesto, o mais corajoso, o mais leal, o mais digno, Álvaro Salema. Em silêncio se retirou de cena, pouco antes do final da tragicomédia, personificava a decência, já não tinha lugar no palco."

Rua José Saramago, Porto

Paris, 2010

sexta-feira, julho 30, 2010

Culpados públicos

Não é novidade para ninguém que há hoje figuras, que já eram ou se tornaram públicas, ligadas a processos judiciais, que surgem como irremediavelmente "condenadas" no imaginário popular, por muito que as imputações preliminares ou as reais acusações a eles dirigidas acabem por ser não provadas. 

Não se diga que esta atitude resulta apenas de deficiente formação cultural ou que está restrita a um mundo opinativo excessivamente condicionado pela comunicação social "tabloidizada". Quem, de entre nós, não acha que este ou aquele autarca "tem uma cara chapada" de corrupto, que aqueloutro dirigente desportivo "tem mesmo pinta de vígaro" ou que uma ou outra personagem "tem um arzinho" de pedófilo? Por muito que controlemos, em público, esses nossos sentimentos íntimos, a verdade é que há juízos de convicção que já formámos e que, no fundo, acabarão por condicionar o próprio modo como avaliamos o desfecho dos processos.

Com frieza, teremos de concluir que esta subjetividade apreciativa tem a ver com o modo como fomos "digerindo" aquilo que nos entrou portas dentro, pelas televisões ou pelos jornais, com a leitura que, intimamente ou em grupo, fomos fazendo de tomadas de posição ou das notícias vindas a público. Nestas se incluem as fugas ao segredo de justiça, os "leaks" promovidos, a "desinformação" provocada, além da má-fé e, quiçá, alguma informação verdadeira.

Mas - assumamos! - há outros fatores que nos condicionam a todos, uns de ordem política e ideológica, outros de mera simpatia ou antipatia, seja pelos sujeitos em causa, seja pelos veículos mediáticos ou pelos "opinion makers" que titularam posições nos diversos casos. Ninguém está virgem neste contexto, por mais neutral que possa julgar-se.

Duas entidades se salientam, para o bem e para o mal, em todas estas histórias: a justiça e a comunicação social.

Da primeira, o mínimo que se pode dizer é que perdeu, em poucos anos, um prestígio que, historicamente, mantinha no imaginário público, devida ou indevidamente. A ânsia de expressão mediática, as contradições entre os seus agentes e instâncias, a frequente propensão para jogar com os "media", a assumida lentidão de procedimentos e a comum dilação de atos formais  - tudo isso se traduz hoje numa imagem degradada do estado da justiça portuguesa, provavelmente muito superior àquele que corresponde à sua real situação. Aquilo que deveria ser um esteio de estabilidade psicológica na nossa sociedade transformou-se, infelizmente, num fator de polémica, de aparente arbítrio e de real insegurança.

Quanto à comunicação social, assistimos, nos últimos anos, à perversa absolutização do chamado "direito à informação", uma espécie de desígnio divino assumido, às vezes, por uns histéricos estagiários com um "corneto" ou um gravador na mão, arautos do interesse de uma opinião pública de que alguém os arvorou representantes. Vida privada e privacidade, presunção de inocência e distinção entre estádios de investigação, tudo isso são pormenores despiciendos para quem apenas tem como objetivo fazer títulos ou "peças" sonantes. O que ainda me espanta é que alguns profissionais, criados noutra escola deontológica, que levou anos a "ganhar" o seu estatuto em democracia, estejam agora a "mandar às urtigas" os princípios em que foram formados, mercantilizando-se para vender minutos de imagem ou páginas de jornais.

A conjugação da ação destas duas instâncias conduz a que, no termo dos processos, quando as conclusões da justiça não são aquelas a que já se haviam "sentenciado" algumas personalidades, a conclusão dos opinadores de sofá ou de "snack-bar" seja: "estão todos feitos uns com os outros", "eles sempre se safam" e "isto é tudo a mesma pandilha".

Será assim? Não é. Há culpados e inocentes, há vigaristas soltos, figuras caluniadas e, provavelmente, alguns injustiçados. Este é, contudo, o preço de uma democracia frágil, pouco educada e com um nível cívico muito baixo. É o retrato do Portugal de hoje, do país que somos. E, se não somos melhores, a nós e só a nós o devemos.

quinta-feira, julho 29, 2010

Outra "República"

Há 35 anos exatos, o António Pinto Rodrigues chegou uma noite a minha casa, em Lisboa, com uma ideia "genial". O "caso República" estava no auge, a polémica em torno da saída forçada de Raul Rego e dos restantes membros socialistas do jornal, tomado de assalto por uma linha radical, havia-se transformado num acontecimento internacional. Que tal publicar um livro "rápido", com um dossiê sobre o assunto? O mercado estava maduro...

Para quem o não conheça, convém começar por dizer que o António era e é um empreendedor nato, com ideias sempre a transbordar, às vezes só travadas por essa trágica parede de desilusão que é a realidade das coisas.

"Quem edita? Estás a brincar... Toda a gente quereria editar um livro desses, mas nessa é que não caímos: editamos nós! Vamos ganhar uma pipa de massa! Arranjamos uma tipografia, assinamos umas letras e damos ao Lopes do Souto para distribuir. É dinheiro em caixa. Vai por mim!". E eu fui.

A conversa com Lopes do Souto, uma figura consagrada da distribuição, que o António já conhecia, não me deixou sossegado: "Olhem que o mercado está saturado de livros políticos. Estamos no pico do Verão. Isto desatualiza-se rapidamente".

Qual quê! O António não se deixava ir nestas cantigas desanimadoras: "Estes gajos são uns medricas. Isto está para lavar e durar! Vai ser um êxito. E, para evitar a chatice das reedições, fazemos já 12 mil exemplares". A edição deste tipo de livros raramente excedia 1500 exemplares, mas o entusiasmo do António, que tinha trabalhado no ramo, calou as minhas dúvidas - num tempo em que eu estava mais ocupado a fazer a estranha transição entre ser militar do PREC e passar a diplomata dos Negócios Estrangeiros, em cujo concurso de entrada fora entretanto apurado.

Em duas noites, escrevi o texto que estruturava o livro. Hoje, sorrio ao observar a linguagem e o estilo dessa longa introdução, que é menos uma reflexão ponderada sobre o "caso" em si e, muito mais, um belo retrato de mim mesmo, nesses tempos. O livro ficou artesanal, com tipo e papel bem pobres, estrutura estilo "recorta-e-cola", com alguns depoimentos recolhidos à pressa, outros pirateados da comunicação social. Salvava-se a capa, com alguma graça. As gralhas foram mais do que muitas,  mas, apesar de tudo, muito menos que os milhares de exemplares que ficaram por vender e que, a certa altura, já nem sabíamos onde guardar.

Claro que, de imediato, veio a fatura. As letras venciam-se e nós tínhamos de as reformar, dos nossos próprios pobres salários da época. Era "fiador" o então sogro do António, José Palla e Carmo. Foi bastante duro, durante vários meses.

Depois, o António e eu fomos viver por esse mundo fora, encontrando-nos a espaços, amigos para sempre, tendo como "obra" comum "O Caso República". E a memória ímpar desse mítico verão de 1975.

Ah! não vale a pena procurarem um exemplar de "O Caso República". Está esgotadíssimo!

Prou!

terça-feira, julho 27, 2010

Verão!

40 anos

Estava um dia de intenso calor. Tinha acabado de desembarcar na estação da Régua, vindo de Vila Real, pela velha linha do Corgo. Aguardava o comboio que, partido de Barca d'Alva, me levaria ao Porto. Aí apanharia a ligação para Lisboa, onde deveria chegar depois de uma viagem de cerca de 10 horas. Era assim, no Portugal de então. "A rádio está a anunciar que morreu o Salazar", disse-me o meu cunhado, que tinha ido tentar apanhar, na tabacaria, o "Diário de Lisboa" do dia anterior, que não tinha chegado a Vila Real e cuja leitura era então, para nós, "obrigatória".

Recordo-me bem de não ter tido qualquer sentimento particular perante a notícia. Salazar tinha morrido politicamente quase dois anos antes, em Setembro de 1968, quando fora substituído por Marcelo Caetano. Desde então, a decadência física do antigo ditador havia sido exposta algumas vezes à mórbida curiosidade pública, com patéticas aparições cuja mediatização quase que parecia destinada a sublinhar o deperecimento político do próprio salazarismo. Alguns, mais bem informados, conheciam o episódio caricato da entrevista ao "L'Aurore", que revelava a existência de um cenário de ilusão em S. Bento, que dava a Salazar a ideia de que ainda era chefe do governo, com a participação teatral de alguns ministros.

No que aos portugueses verdadeiramente interessava, o caetanismo mostrara, nesse período, ter chegado ao limite em termos de abertura política. Uma crise académica séria atravessara o país. As eleições de 1969 haviam constituído uma enorme farsa, a política colonial mostrava-se, definitivamente, como o eixo cristalizador de um regime em que a repressão e a censura se acentuavam de novo. Sá Carneiro e a "ala liberal" iam perdendo as esperanças na propalada "primavera política".

Passam hoje 40 anos sobre esse dia, quase tantos quantos o regime autoritário dirigido por Salazar, que começou e se prolongou sob tutela militar, havia imposto a Portugal. Menos de quatro anos depois, outros militares iriam pôr termo ao que restava do salazarismo.

Desde então, Salazar transformou-se numa curiosidade histórica. Revindicado por saudosistas ou diabolizado pelos opositores, talvez venha a propósito lembrar que a única vez que se sujeitou a sufrágio - e foi eleito - foi durante a vilipendiada Primeira República. 

segunda-feira, julho 26, 2010

Chamar um embaixador

Há dias, a nossa comunicação social comentou bastante o facto do embaixador de Israel em Portugal ter sido chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, por virtude de declarações públicas que havia proferido e que Lisboa considerou menos consentâneas com o seu estatuto.

"Chamar um embaixador" estrangeiro é um gesto excecional, que, na maioria dos casos, se pratica e anuncia publicamente quando se pretende manifestar o desagrado do governo face ao Estado que esse embaixador representa ou, o que também acontece, perante o comportamento, tido por inadequado, de um dos seus agentes diplomáticos - como foi agora o caso. Mas outras situações podem justificar o ato.

(Como curiosidade, vale a pena deixar aqui registada aquela que é uma prática tradicional das diplomacias: quando há uma coisa desagradável a dizer a um governo estrangeiro, utiliza-se para tal o embaixador desse país na nossa capital; quando a mensagem é agradável, usa-se o nosso embaixador acreditado nesse país. A lógica, óbvia, é preservar mais o nosso diplomata...)

Há uns anos, vi-me obrigado a ser protagonista de um caso similar.

O representante diplomático em Lisboa de um país candidato à entrada na União Europeia, no decurso de um jantar numa outra embaixada, perante muitos convidados portugueses e estrangeiros, afirmou, alto e bom som, que o governo português de então (ao qual eu pertencia) era de uma "refinada hipocrisia". Segundo o diplomata, Portugal andava a espalhar que era favorável ao alargamento da União quando, na realidade, toda a gente sabia que tinha imensas reservas a isso e que tudo iria fazer para boicotar a entrada de novos países na União.

Esta acusação era perfeitamente infundada, como o futuro veio a provar à saciedade. Portugal terá sido, dentre os países comunitários, um dos que mais favoreceu o alargamento, por entendê-lo como um importante passo estratégico para a ideia de Europa que cultivava. Só que, pelos vistos!, isso não era ainda percebido por alguns.

O meu chefe de gabinete e uma alta responsável do MNE estavam presentes nesse jantar e reagiram de imediato, defrontando-se então com a reiteração obstinada do embaixador, que insistiu mesmo noutros comentários negativos sobre o nosso suposto comportamento, tudo isto dito perante larga audiência. Algum estímulo etílico poderia ter contribuído para a prolixidade crítica do embaixador, mas a inimputabilidade alcoólica não faz parte dos privilégios e imunidades dos diplomatas.

Mandei chamar o diplomata, com caráter de urgência, ao meu gabinete, sem o informar do tema. Recebi-o, acompanhado do director-geral político-económico do MNE. Disse-lhe ter sabido das suas afirmações (cujo teor exato eu tinha entretanto confirmado), as quais não pretendia comentar nem era minha intenção discutir. Queria que soubesse que considerávamos que ele estava no pleníssimo direito de ter, sobre o governo português e as suas atitudes, todas as opiniões que muito bem entendesse. Da mesma forma, o governo português sentia-se no direito de, em face dessas declarações, que entendia da maior gravidade, delas vir retirar todas as consequências que considerava óbvias para as relações futuras entre Portugal e o seu país. 

Dito isto, levantei-me e, com um "Have a good day!", dirigi-me à porta, onde fiquei à espera do embaixador, de cara fechada. O nosso homem ainda ficou sentado por um segundo, depois levantou-se, gelado e branco, tartamudeando, nos breves passos até à saída, algumas desculpas, onde figurava a ausência de quaisquer intenções ofensivas no que dissera. Estendi-lhe a mão, sem mais uma palavra, e fi-lo sair do gabinete. O diretor-geral, que me acompanhava e a quem eu não tinha prevenido do "modus operandi" que iria seguir, estava siderado e, logo que ficámos sós, soltou uma impublicável interjeição, surpreendido com o que testemunhara.

Não me arrependi. Para a história: as relações entre Portugal e esse excelente país não foram, claro!, afetadas. Fui, entretanto, sabendo que o pobre do embaixador passou a desfazer-se em elogios a Portugal e à política do nosso governo, em tudo quanto eram ocasiões públicas e perante interlocutores ele sabia que poderiam vir a informar-nos.

Respeitar o governo perante o qual se está acreditado, comportar-se com contenção na apreciação pública das suas políticas ou das suas autoridades e, em especial, esforçar-se por interpretar corretamente as intenções do governo local é uma regra de ouro para qualquer profissional da diplomacia. Nas comunicações internas que enviamos às autoridades que representamos temos o direito e a obrigação de dizer tudo o que pensamos, por mais cáustico que isso possa ser; nas nossas tomadas de posição públicas, mesmo em ocasiões sociais, temos que ter toda a parcimónia e consideração devidos ao país que nos acolhe. Quem assim não proceder, e em função da gravidade do ato praticado, deve saber que as regras são claras: ou é subtilmente "isolado" e desprezado pelas autoridades do país onde está acreditado, ficando com a sua atividade limitada, ou recebe uma "rabecada" formal, mais ou menos publicitada, ou, no limite, é considerado "persona non grata" e terá de abandonar o posto. A escolha é sempre do diplomata.

O futuro da CPLP

O pedido de ingresso da Guiné-Equatorial na CPLP, evidenciado na cimeira de Luanda, tem a virtualidade de lançar um debate identitário no seio da organização e de, por essa via, vir a potenciar e a clarificar alguns dos seus alinhamentos internos de forças - que são uma real floresta por detrás da árvore de retórica que sempre tem de envolver este tipo de cimeiras. 

Todas as eventuais clivagens que este processo possa vir a revelar devem ser encaradas com naturalidade, porque elas são apenas o salutar sintoma de que a CPLP começa a ter uma crescente relevância na projeção estratégica de alguns dos seus Estados-parte.

Lisboa, 41 º C !

domingo, julho 25, 2010

Cinema

António Pedro de Vasconcelos pertence a uma raça muito rara de cineastas portugueses que conseguem cumular três características: terem indiscutível qualidade, não serem chatos e, seguramente por isso, terem, entre nós, um público que paga para ver as suas obras - essa coisa pouco comum, algo "suspeita" e até menos dignificante, no peculiar mundo da produção cinematográfica lusa. José Fonseca e Costa é outro desses autores.

O cineasta tem, por essa razão, toda a autoridade - profissional e cultural - para se pronunciar como o fez, numa carta que dirigiu à ministra da Cultura, que pode ser lida aqui. A sua tese é simples: o Estado democrático não deve ter uma política do gosto.

Não tenho a menor dúvida que esta declaração, frontal e corajosa, de António Pedro de Vasconcelos vai ao arrepio da opinião de quantos, lá no fundo, não se importam de ver as salas de cinemas do nosso país "cheias" como a imagem documenta. São os adeptos de um cinema português para uns "happy few", onde se contam os amigos, os amigalhaços da crítica e, presumo, os membros dos júris que lhe atribuem os subsídios.

Personalidade

Quando o embaixador pediu ao motorista para parar o carro, aí a uns 500 metros do hotel para onde se dirigiam para almoçar, o jovem diplomata que o acompanhava ficou um tanto surpreendido. Estavam alguns graus negativos, o caminho tinha muita neve e, na realidade, não havia nenhuma justificação para que a viatura oficial os não deixasse, confortavelmente, à porta do hotel. Porquê ficar àquela distância? Atendendo, porém, ao facto de que o seu recém-chegado chefe estava a ser pródigo em atitudes algo bizarras, o nosso jovem já nem reagiu. "Vamos a pé", comandou o embaixador, levantando a gola e arrancando, sob o vento e a neve, para o distante hotel. 

O secretário de embaixada seguiu-o, naturalmente. A passada do embaixador começou, contudo, a acelerar, assumindo quase um ritmo idêntico ao dos corredores da marcha olímpica. O jovem diplomata ainda o acompanhou por algumas dezenas de metros mas, a certo ponto - o que é demais é erro! -, decidiu ir ao seu próprio ritmo, sem seguir aquela passada sem sentido, cansativa e desnecessária. Quando, por fim, chegou à porta do hotel, o embaixador esperava-o, há quase um minuto, com um sorriso leve. E foram almoçar.

Passou um ano. As relações entre o embaixador e o seu secretário estabilizaram num bom ambiente, com as manias do primeiro a serem aceites, já sem surpresas, pelo segundo. A certo ponto de uma conversa, o embaixador perguntou: "Você lembra-se, um dia, de eu ter acelerado muito o passo, numa ida a um restaurante, tendo você ficado para trás?". Claro que o secretário se lembrava desse episódio, nunca tento tido a ousadia de o referir. "Você marcou pontos nessa ocasião", disse o embaixador. "É que aquilo foi um teste. Eu tinha acabado de chegar, não o conhecia bem. Tomei essa atitude para o experimentar. Se você me tivesse seguido, no ritmo exagerado de passada que eu utilizei, isso significava que você era uma pessoa fraca. Como não me acompanhou, mantendo o seu próprio ritmo, percebi que você tinha personalidade e vontade própria. Passou no teste".

Esta é uma história verdadeira. As pequenas embaixadas são microcosmos onde se potenciam as idiossincrasias, onde por vezes se agudizam gratuitamente tensões e onde o isolamento faz vir ao de cima traços insuspeitados de caráter, às vezes mesquinhos e autoritários, outras vezes surpreendentemente generosos e delicados. São "caixas de Pandora" da personalidade de cada um, mas onde nem sempre as surpresas são as melhores.

Como Salazar dizia das pessoas que trabalhavam num certo departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por conta desta historieta, às vezes fico sem saber se há alguns que vão para a carreira diplomática porque são assim ou se ficam assim por terem ido para a carreira diplomática...

sábado, julho 24, 2010

Vuvuzelas

O Sporting foi o primeiro clube português a anunciar a proibição do uso de vuvuzelas no seu estádio.

Pode não vir a ganhar mais nada, mas já ganhou o campeonato do bom-senso.

Suissa

Ontem, numa emissão da RTP dedicada às comunidades portugueses no exterior, ao ser referido um tema de literatura, apareceu a identificação de um cidadão como residente em Genebra, na "Suissa".

É claro que o escriba da legenda não estava a procurar transcrever a forma antiga do nome do país alpino. Fê-lo, obviamente, por efeito dessa iliteracia que hoje se propaga como endemia, sem vacina à vista, na nossa comunicação social, que leva a erros de calibre bem mais chocante, de que as legendas que correm no fundo dos telejornais são recorrente sintoma.

O grande problema é que, no caso vertente, e muito provavelmente, ninguém fez qualquer observação ao "jornalista" em causa, os poucos que terão notado o erro não o devem ter considerado relevante e, dessa forma, tudo vai continuar na mesma. Aliás, é nessa "cultura" de facilismo e de falta de exigência que alegremente prossegue o "serviço público" fornecido por essa boa ideia transformada em tragédia "pimba" que dá pelo nome de RTP Internacional.

Álvaro Salema

Ontem, numa conversa, veio à baila o nome de Álvaro Salema. Muitos dos leitores deste blogue não o conhecerão bem, alguns nem sequer terão ouvido falar deste ensaísta e jornalista que desapareceu, com 77 anos, em 1991, e que, com Álvaro Cunhal, chegou a dar aulas a Mário Soares, no Colégio Moderno.

Devo começar por dizer que, de há muito, considero que Álvaro Salema é uma das  importantes figuras portuguesas a que o 25 de abril, por que tanto lutou, não fez a justiça que lhe era devida. A culpa é de todos nós, a começar pelo próprio Álvaro Salema. Já explico porquê.

Salema foi uma figura da maior importância na vida intelectual portuguesa, a partir dos anos 40. Professor e crítico literário, foi um escrupuloso cultivador de uma ética pública de grande rigor, que o levava a um auto-apagamento que acabou por afetar a visibilidade do lugar que lhe é devido na história cultural de Portugal. A política era, para ele, um espaço de exercício de serviço à comunidade, pelo que alimentava uma exigência que o tornava quase intolerante perante os que entendia que dela apenas se serviam. Com um intocável currículo na luta pela democracia,  ao tempo em que era arriscado assumi-la como objetivo, foi preso e perseguido. Nunca procurou cargos ou prebendas, alimentando mesmo um cáustico desprezo por quantos viviam nessa obsessão.

Durante muitos anos, Álvaro Salema foi redator principal do "Jornal do Comércio", um dos mais antigos diários económicos portugueses. Dirigiu os suplementos literários do "Diário de Lisboa" e de "A Capital" - ao tempo em que esses espaços tinham um papel fundamental na vida intelectual do país. Colaborou em inúmeras publicações, como a "Seara Nova", o "Sol Nascente" ou o "Colóquio Letras", tendo obtido distinções internacionais pelos seus trabalhos de crítica literária, distribuídos por vários livros.

Por razões que não vêm para o caso, tive o ensejo de privar com Álvaro Salema. Dele recolhi exemplos de postura ética que me levam a manter uma grande admiração pela sua memória. Achei importante dizê-lo aqui.

sexta-feira, julho 23, 2010

Talentos

É muito gratificante, como hoje aconteceu na distribuição dos Prémios Talento, ver indicadas e distinguidas várias personalidades que orgulham a nossa comunidade em França. 

A multiplicidade dos "talentos" nomeados - e muitos outros o poderiam ter sido - é bem demonstrativa do modo como os portugueses em França têm sabido construir os seus percursos de êxito. É o próprio nome de Portugal que resulta prestigiado dessa sua afirmação.

quinta-feira, julho 22, 2010

Forcados

A imagem que hoje deu a volta ao mundo - uma figura, dentre os assistentes da estrada, vestido de forcado a correr atrás dos líderes da etapa do Tour de France que terminou no histórico Col du Tourmalet - ilustra bem as dificuldades da diplomacia pública portuguesa.

"Slow limite"

"Grosses têtes" é um divertidíssimo programa radiofónico diário da RTL, que muitas vezes roça o "politicamente incorreto". Dirigido, desde 1977 (!), por Philippe Bouvard, é feito de questões muito diversas, colocadas pelo animador aos convidados, geralmente gente com muita graça e sentido de humor. Às vezes, são horas de grande gozo!

Há dias, um dos convidados, chamado a qualificar a canção "Et si tu n'existais pas", de Joe Dassin, saiu-se com esta: "No meu tempo, era chamado o "slow limite". Num baile, se com ele não se conseguisse 'sacar' uma namorada, então o caso estava perdido".

Aqui fica, para análise. ilustrada por uma imagem desviada dessa "Enciclopaedia Britannica" do romantismo que é o Criativemo-nos.

quarta-feira, julho 21, 2010

Ainda um telegrama

O curto e incisivo telegrama que ontem referi num "post" fez-me lembrar uma outra historieta similar, também famosa na nossa "casa".

Um dia, a um embaixador, foi pedido por telegrama que efetuasse uma determinada diligência, junto do ministério dos Negócios Estrangeiros local. O assunto era relativamente urgente. 

Passaram alguns dias e não houve resposta. Na antiga linguagem tradicional, que poupava artigos e preposições, Lisboa voltou a insistir: "Muito se agradeceria Vexa resposta urgente nosso ...." (indicando o número do telegrama que havia formulado o pedido).

O embaixador mantinha-se, contudo, em silêncio. O posto era distante, os telefonemas eram difíceis, a via telegráfica continuava a ser a única utilizável. 

Com paciência, a "Secretaria de Estado" (designação histórica pela qual todos nós tratamos a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, em especial na correspondência) lá insistiu, já mais seca: "Aditamento nossos .... e .... Solicita-se resposta urgente Vexa".

Nada. O nosso homem em posto continuava a não dar sinal de si. É nessa conjuntura que o Secretário-Geral, o chefe da carreira, abandonando a prudência de estilo que os hábitos da casa sempre impunham, expediu um curto, incisivo, claro e hoje histórico telegrama, com uma única palavra: "Então?!". A história não acolheu a resposta que o embaixador terá, finalmente, dado.

Recobro privado

"Para um T3, parece-me caro demais. Não tem outras opções? É que aquela zona vinha-me mesmo a calhar! O miúdo tem a escola perto".

Não era visível a cara da senhora funcionária do hospital que, em bem alta voz, usava, sem quaisquer peias (ou comentário reprovador de colegas), o seu telemóvel, na sala de recobro, onde os doentes acabados de sair de operações "regressam", desejavelmente em sossego, ao reino da consciência. Eu acordei da minha operação com a história do T3, que durou longos minutos. Outro doente, que gemia em permanência, pareceu-me pouco capaz de se entusiasmar com a transação em curso. Os restantes, ou estavam ainda sob o efeito da anestesia ou, silenciosamente, partilhavam, como eu, este interessante diálogo sobre o mercado imobiliário lisboeta. Registo que, acabada que foi a conversa sobre o apartamento, a temática do debate entre as funcionárias passou para hipóteses de troca de tarefas laborais para o resto da semana, ou coisa assim. Sempre em voz bem alta, claro. Seria de propósito, para nos acordar?

Era assim o ambiente de atendimento "profissional", ontem, ao final da tarde, na área de "recobro" de um conhecido hospital de Lisboa. Privado, para que reze a história. Imagino que, no tempo do Mundial de futebol, o recobro se devesse fazer com transmissão direta... 

terça-feira, julho 20, 2010

Quê?

Como aqui já referi, o modo mais vulgar de comunicações entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e os postos diplomáticos e consulares são os chamados “telegramas”. O nome advém do facto de, no passado, ser utilizada a via telegráfica para a expedição dessas mensagens. Nos dias de hoje, não obstante a via ser diferente, a designação manteve-se.

Todas as carreiras diplomáticas estão cheias de histórias em torno de famosos telegramas, que ficaram na respetiva memória coletiva, cujo estilo de escrita foi variando ao longo dos tempos, mas que sempre marcam muito o próprio retrato de quem os subscreve.  

Os telegramas que saem de Lisboa para os postos são sempre assinados “Nestrangeiros”, como acrónimo de “Negócios Estrangeiros”. Os diplomatas em posto, quando responsáveis pelas missões (em titularidade ou por substituição), usam uma forma abreviada do seu próprio nome, assente no apelido. Quando há diplomatas com o mesmo apelido (imaginemos, Silva), têm de se diferenciar adicionando um nome próprio (Carlos Silva ou José Silva) ou um outro apelido (Cruz Silva). O que nunca deve acontecer é alguém subscrever correspondência exclusivamente com nomes próprios (Carlos Manuel, por exemplo).  

Um dia, uma jovem e azougada diplomata chegou ao seu primeiro posto e, num arroubo de independência e modernidade, modelou assim o telegrama em que deu conta da sua chegada: “Assumi gerência. Isabel”. O Ministério, que não costuma achar muita graça a estas familiaridades, respondeu-lhe, de imediato: “Isabel quê? Nestrangeiros”.

segunda-feira, julho 19, 2010

Doinel

Quem gosta dos filmes de François Truffaut - e eu gosto imenso e julgo ter visto todos - guardou para sempre no seu imaginário a figura de Antoine Doinel, representada pelo ator Jean-Pierre Léaud. Numa inesquecível série de cinco filmes, iniciada com os "Quatre-cents coups", "Doinel" foi crescendo aos nossos olhos, a partir dos 14 anos, evoluindo num modelo que, contudo, fixou algumas linhas comportamentais comuns. Sempre agitado, com um rosto de gravidade assustada, misto de timidez e indecisão, mas capaz de rasgos atrevidos de surpresa, "Doinel" foi uma figura, em parte autobiográfica, que Truffaut utilizou, com o seu imenso génio, para nos retratar uma França em mudança acelerada de costumes.

O António Alves Martins, o MFB ("militante de fato branco") do MES de que em tempos aqui já falei, ao tempo em que era estudante de sociologia por Paris, contou-me ter ido passar férias com um grupo à Côte d'Azur, que incluía Jean-Pierre Léaud, cujos humores eram difíceis de prever e controlar, mas que podia ser divertidíssimo. Uma vez, em Nova Iorque, em 1992, fiquei numa mesa ao lado de Léaud, no "Michael's Pub", onde ambos e muita mais gente tinha ido ver Woody Allen tocar clarinete, nessas celebradas segundas-feiras. Passei a noite a tentar lembrar-me do seu nome e só me veio à memória "Antoine Doinel". Hoje, com o Google no Iphone, tudo seria mais fácil.

Jean-Pierre Léaud teve uma longa carreira no cinema francês. Para além de Truffaut foi muito utilizado por Jean-Luc Godard, tendo, ele próprio, dirigido alguns filmes. A meu ver - mas esta é uma opinião que vale o que vale - nunca foi um ator excecional e jamais ultrapassou uma aceitável mediania.  Porém, há que reconhecer nele um dos nomes emblemáticos da "Nouvelle Vague" francesa, em cuja história tem um lugar.

Há dias, numa madrugada televisiva, surgiu-me uma comédia romântica de 1996, intitulada "Pour rir!", na qual Léaud contracena com Ornela Mutti. Por uma imensa curiosidade, muito centrada na evolução artística de Léaud, vi o filme até ao fim. A opção iria revelar-se quase masoquista: tive de suportar a inenarrável prestação de Mutti. Machistamente, devo dizer que ela perdeu muitos dos atributos que, durante anos, nos faziam esquecer a sua mediocridade como atriz. Enfim, não ganhei muito para a minha cultura cinematográfica. Para o que aqui me interessa, foi quase patético ver um Léaud de 60 anos assumir os trejeitos e a "coreografia" típicos de um "Doinel" adolescente. 

Há atores que guardam uma imagem que acaba por se impor nas diferentes figuras que interpretam, por mais diversas que estas sejam. São "characters" - e isso pode ser uma coisa positiva ou tornar-se pesada e desinteressante, particularmente quando os filmes e as personagens têm de ser desenhados em função dessas suas conhecidas peculiaridades. Foi o que me pareceu, neste triste "Pour rir!",com Jean-Pierre Léaud. 

Boas férias, leitores...

domingo, julho 18, 2010

SAS

O escritor francês Gérard de Villiers revelou, numa entrevista, que acaba de regressar da Guiné-Bissau. Assim, podemos esperar que, dentro de algumas semanas, venha a surgir um romance centrado em Bissau, com uma capa em que erotismo e armas serão os fatores  indispensáveis, em que surgirão misturados política, dinheiro e mulheres, num complexo de personagens reais e de figuras fictícias, projetado num cenário de mistério e risco, em que o príncipe austríaco Marko Linge e a sua eterna noiva, a condessa Alexandra, acabarão por ultrapassar grandes perigos e maiores aventuras.

Desde há décadas, a um ritmo de três ou quatro romances anuais, a receita é idêntica. A série SAS - situada entre o policial e a espionagem -, cuja edição já conheceu melhores dias, mas que é ainda um garantido êxito de livraria (de aeroporto), acaba por ser uma espécie de roteiro turístico imaginário, centrado quase sempre em países em convulsão ou com tensões à flor da política local. Já experimentei testar diversos cenários descritos por Villiers com a realidade e, podem crer, as coisas aproximam-se muito.

Recordo-me do sucesso que, aí por 1976, fez em Portugal o seu "Les sorciers du Tage", onde se ficcionava a Revolução portuguesa, misturando figuras do MRPP e da LUAR, com ambientes lisboetas, em que cenas implausíveis se cruzavam com personagens que se aproximavam da realidade.

Neste tempo de férias, recomendo a quem puder que revisite aquele curioso romance de Gérard de Villiers.

Em tempo: hoje, por outras razões menos simpáticas, fiquei a saber melhor o que podem ser os feitiços do Tejo...

sábado, julho 17, 2010

Quai

Com variações ao longo das épocas, existe em França um certo fascínio em torno da atividade do Quai d'Orsay (o "Quai", para os iniciados), o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.

Esta mitificação está bem patente num album humorístico de banda desenhada, intitulado precisamente "Quai d'Orsay - chroniques diplomatiques", que está a ser um sucesso de vendas. O trabalho, que já se fala poder vir a ter uma sequência em breve, é claramente inspirado na figura do antigo ministro Dominique de Villepin, cuja memória de gestão frenética da casa se reflete no traço do desenho e no tom dos diálogos, que são da responsabilidade de um seu antigo colaborador. Não sendo uma obra excecional no género, devo reconhecer que não deixa de ser interessante reconhecer na história algumas das mais tradicionais liturgias diplomáticas, na descrição do dia-a-dia dos "Estrangeiros". 

Como seria uma visão humorística das Necessidades?

sexta-feira, julho 16, 2010

Basil Davidson (1914-2010)

Alguém dizia, há semanas, que, por vezes, é preciso alguém morrer para darmos conta de que, afinal, ainda estava vivo. É uma frase cruel, de que me lembrei ontem, ao dar de caras, num jornal, com um obituário de Basil Davidson, que pensava desaparecido há muito.

Davidson faz parte do elenco dos mais proeminentes europeus que apoiavam as lutas anti-coloniais. Historiador de grande mérito, que teve a África pré-colonial como objeto privilegiado de análise, viria a destacar-se num trabalho de divulgação internacional dos movimentos independentistas nas colónias portuguesas e na denúncia do "apartheid". Essa sua simpatia pelo anti-colonialismo levou Edward Said a dizer que "in effect, (he) crossed to the other side". Antes disso, porém, Basil Davidson teve um percurso aventuroso pelos mundos da "intelligence" britânica e uma carreira jornalística muito diversificada, em grande parte como correspondente parisiense de jornais britânicos.

Lembro-me bem do impacto que teve, nos meios oposicionistas portugueses, a publicação do seu "The Liberation of Guine", editado pela Penguin em 1969, um dos mais de 30 livros que escreveu, alguns editados em Portugal, mas só depois do 25 de abril.

Jornalismo adversativo

Portugal tem uma das mais brilhantes escolas daquilo que se pode qualificar como "jornalismo adversativo". Trata-se de um apurado estilo, que exige uma grande experiência para garantir a sua hábil utilização, que consiste em relativizar e atenuar, pela negativa, qualquer notícia através da qual possa transparecer uma ideia positiva ou otimista.

Há anos que constato que esta é, verdadeiramente, uma especialização de um certo jornalismo português, muito patente nos títulos dos jornais ou dos seus "sites" informáticos, mas igualmente presente, quase por  um peculiar imperativo deontológico doméstico, nos noticiários televisivos. Os exemplos são aos milhares, pelo que aconselho o leitor a estar atento, nos próximos dias, à eventual divulgação de qualquer estatística ou linha tendencial positiva. Logo verá que, no segundo seguinte, aparece uma frase começada por: "Porém ..." ou "Mas, contudo,..." ou "No entanto,...".

Querem exemplos? "As praias portuguesas foram consideradas das mais limpas da Europa, em 2009. Porém, neste domínio, a Itália evoluiu mais do que Portugal, nos últimos dez anos". Ou ainda: "Há menos incêndios em Portugal em Julho de 2010 do que em idêntico período de 2009, mas isso pode ter ficado a dever-se às temperaturas mais baixas".

As estatísticas económicas e sociais são "bombo da festa" deste "jornalismo". Qualquer índice positivo em Portugal aparecerá, inevitavelmente, diminuído por um outro que permita negativizá-lo ou por uma oportuna comparação ("Contudo, dentro da UE, a economia de Malta cresceu mais no mesmo período" ou "No entanto, Portugal não conseguiu chegar ao nível de recuperação de postos de trabalho obtido por Chipre").

De notar que há uma "regra de ouro" nesta escola de jornalismo: nunca se "poluem" as notícias negativas com notas positivas, como por exemplo: "Desemprego cresceu no último mês, mas a taxa do seu crescimento tem vindo a diminuir de forma sensível, o que aponta para uma recuperação". 

Era só o que faltava!, estarão a dizer os cultores do "jornalismo adversativo".

quinta-feira, julho 15, 2010

Novas Fronteiras

"Europa - Novas Fronteiras", revista do Centro Jacques Delors, a entidade portuguesa que possui a melhor base de dados sobre assuntos europeus, acaba de editar mais um número, desta vez dedicado aos 25 anos de adesão de Portugal às instituições europeias.

Contribuí para este volume com um texto sobre um tema delicado: a atitude dos diplomatas portugueses em face do projeto europeu, antes e depois do 25 de abril. Tenho a consciência que não é um texto consensual, que alguns colegas meus nele se não reverão, mas é o que eu penso. Quem o quiser ler, pode fazê-lo aqui.

quarta-feira, julho 14, 2010

"Concierges portugaises"

Invariavelmente, as referências são extremamente elogiosas: "A minha "concierge" (porteira) é portuguesa. Uma mulher seriíssima. Está no prédio há muitos anos". Ouvir coisas assim da boca de parisienses, em especial de residentes nas áreas mais ricas da cidade, é uma banalidade antiga, para qualquer embaixador português. As "concierges" portuguesas são uma imagem de marca da nossa presença em Paris e esses parisienses ricos não deixam de no-lo lembrar a todo o tempo. 

Talvez por isso, aqui há uns meses, num jantar social, decidi divertir-me um pouco, quando vizinhos de mesa voltaram a falar-me, pela enésima vez, das suas "concierges" portuguesas. Era a noite do 1º de abril, e lancei para a mesa aquilo a que os franceses chamam  um "poisson d'avril", uma "mentira de abril".

Fazendo um ar (falsamente) cansado, adiantei: "Nem me falem nas "concierges"! Não imaginam o problema orçamental que elas me criam!". Parte da mesa olhou-me, surpresa, porque não era óbvia a razão do impacto das "concierges" no orçamento do embaixador português.

Sem deixar "cair a bola", e baixando o tom de voz, esclareci: "Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior descrição". Com isso consegui, como é dos livros, uma atenção acrescida: "Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de "concierges" portuguesas em muitas casas de Paris não passou desapercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações".

A cara dos circunstantes, damas e cavalheiros da alta sociedade, alegrada pelos efeitos do lauto jantar, começou a fechar-se, aos poucos, com alguns convivas, até aí mais distraídos e distantes na mesa, a sentirem-se mobilizados para tentar seguir melhor o que eu dizia. 

"Há uns anos, consciente deste potencial, um dos meus antecessores propôs "trabalhar" essa rede em termos de obtenção de informações sobre personalidades de relevo. E, desde então, a Embaixada tem uma estrutura, com cerca de 10 pessoas, que se dedica a "debriefar" as "concierges" que se prontificaram a colaborar conosco - e muitas foram. Cabe sempre ao embaixador, claro!, separar o que é a informação com algum significado político ou económico daquela que se prende com costumes, vícios e outro "gossip". Tudo isso, posso garantir, é destruído imediatamente. Depois de eu ler, claro...".

Verifiquei ter ganho, nesses instantes, o silêncio reverencial dos meus pares, com alguns homens a emborcarem um forte golo de "armagnac" e algumas senhoras a tentarem diluir num copo de água o espanto que lhes causava esta minha surpreendente "revelação".

Alentado com a audiência, continuei: "O grande problema que tenho, como compreenderão, é que as nossas "concierges", com uma ou duas exceções, não fazem relatórios escritos, limitam-se a falar para um gravador, o que obriga a um moroso e custoso processo de transcrição. Ora isso ocupa-nos muita gente e, com as restrições orçamentais a que cada vez mais estamos sujeitos, o sistema começa a tornar-se insustentável".

Os convidados, casal anfitrião incluído, já não tugiam nem mugiam, imaginando eu que à mente lhes deveria estar a aflorar a imagem da madame Conceição ou da madame Isaura, com que sempre se cruzavam nas entradas das suas belas casas do XVIème. Para moderar o impacto financeiro da minha história, mas sempre com um ar de estudada gravidade, esclareci: "É claro que nós não pagamos nada às senhoras. Elas são voluntárias. Quando muito, às vezes, pelo Natal, mando-lhes uma garrafa de Porto. É um sistema similar àqueles que vocês, em França, fazem como os "honorables correspondants", que julgo que o vosso serviço de informações ainda utiliza pelo mundo...".

Trocas de olhares foram elucidativas da perturbação que a minha história estava a causar em alguns dos presentes. Poderia a sua "concierge portugaise" ser parte dessa rede de "intelligence", alimentada pelos embaixadores portugueses? Que saberíamos deles que não devêssemos saber? 

Deixei passar algum tempo mais antes de esclarecer, para imenso gaúdio de todos e algum visível alívio de alguns, que tudo não tinha passado de uma completa invenção da minha parte, uma mentira do 1º de abril, tão necessária a distender o ambiente nestes tempos pesados de crise.

Mas, quem sabe!, isso pode não ter impedido em absoluto que alguns desses amigos,  ao sairem de casa no dia seguinte, de atentarem melhor na cara de potencial Mata Hari da sua simpática "concierge portugaise"...

A aristocracia e a Revolução


Há uns meses, alguns portugueses residentes em Paris comentavam o facto de, não obstante a Revolução Francesa, de 1789, cuja data de 14 de julho é emblemática, ter sido muito violenta para com a aristocracia - ao lado dela, a Revolução do 5 de outubro de 1910 foi uma brincadeira -, há hoje em França muitas pessoas que usam abertamente os seus títulos nobiliárquicos - nos cartões de visita, nos convites e, em geral, na vida social. Isso acontece, aliás, muito mais do que em Portugal, onde parece haver uma maior contenção e parcimónia no seu uso.

Um feroz republicano, presente à conversa, comentou: "Pois eu conheço alguns aristocratas lusitanos que continuam bem ciosos desses seus pergaminhos, não obstante haver uma lei de 1910, ainda em vigor, que impede o uso público dessas designações". E logo acrescentou, agora para espanto de todos: "E esses meus amigos, claro!, recusam-se a andar em auto-estradas". Ninguém percebeu nada! "Não andam em auto-estradas porquê?". O nosso jacobino amigo, lá esclareceu: "Ora essa, porque eles leem 'retire o título' e não querem correr riscos"...

Hoje, ao atravessar mais de metade de Portugal em auto-estradas, várias vezes me recordei que estávamos no dia 14 de julho. 

terça-feira, julho 13, 2010

Rui Knopfli





Conheci o Rui Knopfli em Londres, em 1990. Conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal desde 1975, era uma figura prematuramente frágil, nos seus 58 anos de então. Vergado e cansado, pendurado num eterno cigarro, tinha o mais caótico gabinete de que tenho memória. Homem de vícios que o foram debilitando, mantinha uma ironia cáustica e, sendo de trato fácil, era de condução diária difícil, pelos corredores da rotina diplomática a que nunca se acomodara verdadeiramente. 

Eternizado em posto em Londres, aposto que olhava para nós, companheiros episódicos, saídos da "carreira", com o olho arguto do artista, estudando-nos para nos sobreviver, até que fôssemos substituídos. Várias vezes "me passei" com os seus descuidos, das tropelias do eterno cão às suas frequentes ausências, para além de algumas teimosas presenças ainda mais complicadas. Mas nunca me zanguei com ele. Ficámos amigos, creio. 

O Rui era um fotógrafo magnífico - vale a pena ver o seu livro sobre a ilha de Moçambique - e tinha um ouvido apurado e atento ao jazz, área onde me deu a conhecer algumas excelentes novidades. Da sua terra moçambicana, contava histórias interessantes e divertidas, tributárias desse mundo que sempre lhe ficou nos genes e na escrita. Como ele próprio dizia: "Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo".

Rui Knopfli foi um grande poeta, português e moçambicano. A sua "Obra Poética" está publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com um prefácio magistral do Luis de Sousa Rebelo, há meses desaparecido. Para abrir o apetite à sua leitura, nestes tempos de férias, deixo aqui o seu delicioso (e trágico) "Justerini & Brooks":


Este punhal de veludo,
esta fria estalactite,
esta cicuta tão lenta
e que tão profundamente
fere. Esta lâmina
líquida, doirada,
este filtro parecido ao sol,
este rarefeito odor simultâneo
ao fumo, à água, à pedra.
Este adormecer antes do sono,
só preâmbulo da vigília,
que é o gélido acordar
da imaginação para
as fronteiras dormentes
do horizonte protelado.
Este trajecto subterrâneo e húmido
pelos túneis do infortúnio,
que é o adiar moroso
da morte, no prolongar
silencioso da vida,
lágrimas da noite tornadas
pranto da madrigada,
rumor débil e distante
brandindo já no sangue
o endurecer das artérias.



Rui Kopfli morreu em Lisboa, em 1997.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...