sexta-feira, dezembro 11, 2015

Os riscos do medo


Há muito que a agenda europeia é dominada pelos medos. Foi, aliás, o medo perante a ameaça soviética, nos tempos da Guerra Fria, que cimentou a construção europeia, razão por que alguns consideram que, para além de Schumann e Monnet, há mais alguém que merece algum crédito pela solidificação do projeto integrador: Josef Stalin…

Aquilo a que Fourastié chamou os “trinta gloriosos” anos, entre o final da Segunda Guerra e a crise petrolífera de 1973, trouxeram à Europa crescimento, prosperidade e emprego, criando, deste lado do Atlântico, uma sociedade de consumo similar àquela que os EUA já gozavam. Do lado “de cá” da “cortina de ferro”, permaneceram sempre óbvios os temores defensivos. Mas o medo essencial na Europa morava então nas casas e nas ruas do “socialismo real”, tutelado por Moscovo.

Com os tempos económicos a serem menos favoráveis, com os alargamentos sucessivos a induzirem uma imparável diversidade e a conduzirem a uma objetiva mudança de natureza da União, esta tornou-se muito mais desigual. E, com o tempo, bastante menos otimista. O euroceticismo começou a bater à porta dos europeus, mais a uns do que a outros pela assimetria dos efeitos, fruto dos egoísmos nacionais que tornam Bruxelas o bode expiatório de tudo quanto corre mal em casa, adubado pelas quebras de solidariedade num projeto que se sente cada vez mais economicista e só residualmente tributário dos valores que haviam estado na sua origem.

Os medos regressaram em força às populações europeias e o projeto integrador, em lugar de ser visto como uma defesa para esses receios, começou a ser olhado como a verdadeira causa dos problemas. Se os alargamentos já haviam induzido o medo às deslocalizações de empresas, a imigração económica somou-se como uma nova ameaça ao emprego e, mais do que isso, induziu pulsões securitárias de novo tipo, afetando a bondade da livre circulação. A isso acresceu, nos últimos tempos, a questão dos refugiados e, ainda mais recentemente, a vaga terrorista, que veio “legitimar” o mal-estar intercultural e inter-religioso que já emergia em muitos países.

Este complexo quadro é o terreno ideal para quantos hoje advogam um recuo no processo integrador. Para Portugal, é muito claro que qualquer diluição desse paradigma seria muito negativo e agravador da nossa perifericidade.

Deixo um alerta específico: qualquer cedência ao Reino Unido, no seu pedido de “devolução” de poderes, que pudesse configurar um recuo nos direitos dos nossos trabalhadores seria um precedente muito nefasto. É que nunca se sabe se, aberta a porta, a senhora Marine Le Pen não poderia começar a ter algumas outras ideias…  

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Pedido de Ajuda


Alguém pode acreditar que estas são as traseiras do Palácio onde, na noite de ontem, o chefe do Estado ofereceu um banquete oficial a um convidado estrangeiro, de um espaço museológico com pergaminhos, onde se situam as instalações do Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (!!!) e, last but not least, do Ministério da Cultura? 

Um dia, num Conselho de ministros em que estive presente, vai para 20 anos, recordo-me deste "escândalo" ter sido aflorado. Não me recordo de pormenores do que então se decidiu. A única coisa que sei é que as coisas estão ainda hoje no estado que se pode ver na imagem e passível de ser observado por quem suba a Calçada da Ajuda a caminho de Monsanto.

Há mais de dois anos, escrevi por aqui isto:

A "malapata" de Santa Engrácia acabou nos anos 70. Fizeram-se entretanto o CCB e imensos quilómetros de autoestradas, pavilhões gimno-desportivos, rotundas, milhares de obras, muitas delas inúteis, para encher o olho e o bolso patobravista autárquico. Terá também havido dinheiro para construir, de raíz, um novo e muito discutível Museu dos Coches. Neste mar de fundos, por que será que o Palácio da Ajuda permanece como o parente pobre do nosso mais valioso património histórico-arquitetónico?

O novo ministro da Cultura, João Soares, que foi um magnífico presidente do município lisboeta, tem, agora, mesmo à porta do seu gabinete, esta tragédia arquitetónica com que Lisboa convive há demasiados anos. Juntamente com Fernando Medina, que hoje dirige com saudável dinamismo a Câmara municipal, e com António Costa, que chefia o governo depois de muito tempo de sucesso no mesmo posto, seria importante que conseguisse encontrar uma solução para este estado de coisas. Ninguém reclama o impossível "completamento" do palácio, mas também se aguarda que não se acabe num remate modernaço, com ruínas e vidro. É que as "ruínas" da Ajuda não têm dignidade para serem salvas, são apenas um fruto "santaengraciano" da inércia e do desleixo.

Leia-se sobre este assunto o artigo de Paulo Ferrero no Público de hoje. 

Conselho de Estado


Devo dizer que não tenho uma opinião muito elevada sobre o papel do Conselho de Estado no nosso ordenamento constitucional. Com todo o respeito que, por razões formais, os órgãos e as instituições da República devem merecer a qualquer cidadão, confesso que não dou ao Conselho de Estado uma grande importância. E desconfio que os presidentes da República também não. Se assim não fosse, fariam uma leitura alargada das razões para a respetiva convocação e utilizá-lo-iam com muito maior frequência. E não é isso que acontece.

E por que o não fazem? Desde logo porque a opinião da esmagadora maioria das figuras institucionais que o compõem é quase sempre conhecida de antemão. Uma ou duas pode criar pontualmente alguma surpresa, mas, conhecendo-as, elas não fugirão muito ao "script" da instituição que titulam. O mesmo acontecerá, com certeza, às personalidades indicadas pelos partidos. A regra (também há exceções) leva a que a sua posição coincida com a da formação partidária que os indicou. Restam as escolhas do chefe do Estado, essas personalidades que tanto podem ser próximos do presidente, e que neste caso tenderão a segui-lo, ou nomes destinadas a colmatar a representação de partidos não beneficiados pela votação parlamentar e que, por maioria de razão, tenderão a espelhar a posição dessas mesmas formações (Cavaco Silva não favoreceu este modelo de seleção para o Conselho de Estado).

Não estranho por isso que os presidentes optem por ouvir outras entidades, quando estão em causa decisões importantes. Observámos isso quando Jorge Sampaio se aconselhou por ocasião da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes e, mais recentemente, quando Cavaco Silva auscultou várias figuras ligadas a determinadas instituiçõess, antes de nomear António Costa. Resta saber se, em especial no segundo caso, o chefe do Estado teve alguma surpresa nas opiniões que ouviu (seguramente que a teve no caso de Fernando Ulrich, mas quem conhece o seu espírito independente não terá estranhado muito).

Que pensam os candidatos presidenciais do papel do Conselho de Estado? Marcelo Rebelo de Sousa já o disse, prometendo dar-lhe mais atenção. Vou estar atento para ouvir o que Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém tenham para dizer sobre o tema. Não que isso signifique muito, na realidade prática das coisas, mas sempre ajuda a caraterizar o perfil institucional daquelas ou daqueles em que acabaremos por votar.

Dito isto, a verdade é que os partidos políticos adoram ter representantes no Conselho de Estado, porquanto isso funciona como um fator de prestígio e uma consagração institucional. Se o Conselho é um espelho da sociedade, nomeadamente da sociedade política, tem de facto uma certa lógica que os cerca de 20% de votos que partidos como o PCP e o Bloco de Esquerda representam possam dar lugar a uma presença no órgão. Daí que seja natural que aproveitem o seu apoio aos socialistas para tentarem garantir esse estatuto.

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Complacência


Tenho a maior das penas pelas famílias dos adolescentes que morreram quando pintavam comboios numa estação do Porto. E, naturalmente, pelas vidas que se foram. Mas o reconhecimento da tragédia não me leva a ter a menor complacência para com esses atos delinquentes, que anualmente causam à empresa ferroviária portuguesa (isto é, a todos nós) centenas de milhares de euros de prejuízos.

Mas, quase tanto quanto essa atividade, choca-me a atitude de "compreensão", travestida no reconhecimento dessa forma marginal de arte, que hoje é muito comum ouvir-se e ler-se por aí. Como se acaso a marginalidade fosse um valor em si, como se sempre emanasse dos comportamentos desviantes uma espécie de "aura" criadora, como se fosse natural a aceitação de uma cultura de transgressão, mesmo que daí derivem custos para outros. 

Acho muito bem que possam ser dados meios a quem usa com jeito sprays de tinta para alegrar paredes ou casas em ruinas, para criar ambientes de arte de rua em locais apropriados. Mas acho que deve haver mão dura para os delinquentes que delapidam bens públicos e privados, que não resistem a riscar uma parede imaculada, apenas para puro gozo pessoal. E que seja apontada a cumplicidade de quem lhes dá guarida "teórica" e que, muito provavelmente, ficaria furioso se fosse a sua porta ou o seu carro a sofrer esses danos.     

Benn


Há mais de um ano, "deixei-o" morrer, aos 89 anos, sem aqui lhe deixar a  nota devida. A sua saída discreta de cena fez com que não desse o destaque que a figura de Tony Benn justificaria.

Tony Benn foi um proeminente político trabalhista britânico. Ocupou funções governamentais com Harold Wilson e James Callaghan, tendo, posteriormente, feito uma forte inflexão à esquerda, de que foi considerado um dos mais importantes ícones na política britânica das últimas décadas. Entre outras atitudes polémicas, esteve a favor da famosa greve dos mineiros, opôs-se à guerra das Falkland, apoiou o Sinn Féin na Irlanda do Norte e, até ao final da sua vida, converteu-se numa permanente dor de cabeça para as diversas lideranças trabalhistas. Ficou também famosa a sua luta por se manter na Câmara dos Comuns e recusar-se a ingressar, pela herança do título nobiliárquico do seu pai, na Câmara dos Lordes, o que obrigou a uma importante mudança legislativa. Ao todo, foi deputado por 47 anos e a sua voz, marcada por um falar "axim" que o notabilizou, era sempre escutada com grande respeito, não obstante o radicalismo das suas teses.

Benn deixou como herança literária uma coleção de uma dezena de "Diários", muito bem escritos e diz-se que factualmente irrepreensíveis, que hoje são um importante referencial para se conhecer a vida política britânica de mais de cinco décadas. Outros dos seus livros, mais programáticos e até panfletários, têm menor graça.

(Um dia, num almoço com Mário Soares, fiz uma referência a Tony Benn. Soares conhecia-o, embora o não apreciasse, e logo me disse: "Ele diz mal de mim no volume X desses Diários". Lá fui confirmar e era verdade. Benn, no seu esquerdismo, fora muito crítico do papel político de Mário Soares no período posterior à Revolução de 1974, embora o tema Portugal estivesse muito distante dos seus interesses regulares.)

Por que razão falo hoje aqui de Benn? Por uma curiosidade. Há semanas, dera conta que do "governo sombra" do novo líder trabalhista, Jeremy Corbyn, fazia parte, com a "pasta" de "shadow Foreign secretary", Hilary Benn. Nunca tinha ouvido falar nesse nome, nem percebi se era mulher ou homem, mas fiquei com curiosidade em saber se era parente de Tony Benn. Era filho.

Há dias, nos Comuns, Benn filho fez um discurso sobre a guerra da Síria. Opondo-se abertamente ao seu líder, a intervenção de Hilary Benn, que passou, de repente, a figura de destaque da política britânica, constituiu uma defesa muito forte do envolvimento britânico no conflito com o Estado Islâmico. Tenho a convicção de que Tony Benn não teria gostado das teses do discurso do seu filho, mas teria ficado orgulhoso com a magnífica qualidade do mesmo. A quem tiver uns minutos, aconselho fortemente a visualização dessa excelente peça de oratória, clicando aqui.

Este post leva uma imagem de Tony Benn. A seu tempo, e se o vier a justificar de novo, o seu filho Hilary será para aqui chamado no futuro.

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Manuel Pinto Machado


Conheci Manuel Pinto Machado há muitos anos, quando era um colaborador muito próximo de Adelino Amaro da Costa. Fomo-nos encontrando por aí, ao longo dos anos, nomeadamente ao tempo em que foi a figura central da UCCLA.

Há pouco mais de um ano, tive o gosto de o encontrar, aquando de uma palestra que fiz no Instituto Democracia e Liberdade - Adelino Amaro da Costa, a  que ele me deu o gosto de assistir. Conversámos então pela última vez, como a imagem documenta. Soube agora que a vida lhe pregou a partida decisiva. Aqui fica o registo sentido.

domingo, dezembro 06, 2015

França

Mais número menos número, os resultados das eleições regionais francesas, cuja primeira volta teve lugar hoje, revelaram que um em cada três franceses favorece a linha política de Marine Le Pen, a lider do "Front National", o partido criado pelo seu pai e para o qual tem vindo a conquistar uma posição cada vez mais sólida da política francesa. 

Ao longo dos últimos anos, Marine Le Pen cuidou em afastar-se de algumas das bandeiras mais repugnantes que Jean-Marie Le Pen sempre teimou em titular, tais como a desculpabilização do colaboracionismo com a Alemanha nazi, a desvalorização dos crimes contra a humanidade praticados pelo regime hitleriano e uma diversidade de tomadas de posição racistas e xenófobas que o tinham tornado "infréquentable" no cenário político francês.

Explorando os receios provocados pela crise económico-social, com fortes impactos no emprego, pela insegurança pública e, mais recentemente, pelo agravamento dos choques culturais e religiosos que o advento do islamismo radical consagrou, Marine Le Pen estruturou um discurso nacionalista de "proteção" dos franceses, que se revela crescentemente apelativo. Nestas que são as últimas eleições antes das presidenciais de 2017, um bom resultado para o "Front National" representará a confirmação de uma deriva em direção a uma França cada vez mais radicalmente conservadora.

A direita democrática, representada pelo "Republicanos" do regressado Nicolas Sarkozy, vai situar-se neste sufrágio acima do Partido Socialista de François Hollande, que não conseguiu capitalizar a melhoria da apreciação de imagem que a forma como geriu a crise securitária lhe havia trazido nas sondagens. Há quem pense que Sarkozy poderá ser tentado a radicalizar o seu discurso político, disputando franjas do eleitorado de Le Pen, o que não deixará de trazer consequências importantes no equilíbrio político interno do país.

Os próximos tempos confirmarão se o crescimento eleitoral do partido de Marine Le Pen virá ou não a atingir valores ainda mais elevados. Se isso ocorrer, se passar a ser vista como uma potencial vencedora das eleições presidenciais de 2017, com imediato impacto no panorama legislativo e governamental, então a França do futuro será uma outra coisa muito diferente. E a Europa também, claro. Será então tarde para os setores da comunidade portuguesa, que hoje se deixam seduzir pelas propostas do "Front National", perceberem o embuste em que caíram e o que lhes pode vir a acontecer.

O segredo (de polichinelo) de justiça

Diz S. Exª a senhora Procuradora-Geral da República, citada por um jornal: "Todos os magistrados do Ministério Público, todos os magistrados judiciais, todos os funcionários, todos os advogados e todos os intervenientes que por qualquer forma tenham acesso aos processos têm de fazer um esforço conjunto" sobre as quebras de segredo de justiça.

Um "esforço conjunto"? E não ajudaria a esse "esforço" se os inquéritos da PGR sobre as quebras do segredo de justiça no seu seio fossem conclusivos, se dessem origem a processos e decisões disciplinares? Quantos magistrados e funcionários foram até hoje punidos por esses crimes diários? Será que os vários inquéritos sobre a quebra do segredo de justiça ainda estarão ... em segredo de justiça? E qual será a razão que faz com que, nestes casos, e curiosamente, não surjam "quebras" desse segredo? E já repararam que na lista de "intervenientes" a senhora Procuradora-Geral evitou mencionar a palavra "jornalistas"?

Detesto que servidores públicos pagos pelos nossos impostos queiram tomar-nos por parvos. Foi o que fez a senhora Procuradora-Geral com esta sua declaração.

Os izes


Ontem à noite, estive a assistir ao Marítimo-Sporting num café de uma pequena aldeia transmontana. Conheço muito bem aquele espaço desde a minha infância, passo por lá todos os anos, embora muito brevemente, e ainda me recordo dele quando aquela era a única loja comercial a alguns quilómetros de distância. Por ali se vendia um pouco de tudo, funcionando num misto de tasca e de mercearia, ambiente que era muito típico do Portugal rural.

Ao olhar os jovens donos que a loja hoje tem, lembrei-me de uma historieta que sempre ouvia na minha infância e que envolvia uma senhora que, nos anos 30 e 40 do século passado, foi proprietária dessa "venda".

Ao que se contava, as crianças da aldeia, quando agarravam uns escassos tostões, passavam por lá para comprar umas pequenas bolachas que reproduziam as diversas letras do alfabeto, uma novidade que tinha surgido na oferta da "venda". Os miúdos selecionavam, na lata das bolachas, as letras que lhes apeteciam. A dona da loja deu-se no entanto conta de que certas letras, porque mais pequenas em dimensão, iam ficando para trás e assim não eram escoadas. Um dia, a senhora, desagradada com a escolha dos miúdos, reagiu, com a linguagem e na sonoridade da aldeia, numa frase que faz parte da minha mais antiga memória:

- Isto não pode ser! Só lebaides os mezes e os nezes. Habeisde comer também os izes...

Alguém quer hoje comer os "izes"?

Boas festas

Tenho um amigo que, desde há anos, tem por hábito enviar os seus votos de Boas Festas por SMS, ainda durante o mês de novembro. É uma prática algo bizarra, mas já todos nos habituámos a ela. Alguns de nós, na resposta e retribuição que damos, não deixamos às vezes de aludir ironicamente ao insólito do facto.

Este ano, um desses amigos, teve uma resposta interessante: "Agradeço e retribuo e, desde já, aproveito para lhe enviar votos de muito Boa Páscoa".

sábado, dezembro 05, 2015

Debater a Europa


Com António Lobo Xavier, conversei na noite de ontem, em Vila Real, à volta do tema "Portugal na Europa e no euro", perante umas largas dezenas de pessoas que se inscreveram para o jantar promovido pelo restaurante "Cais da Vila" e o escritório de advogados "Cavaleiro & Associados", em mais uma iniciativa integrada no ciclo de debates "Portugal e os Caminhos do Futuro".

Os novos desafios colocados a Portugal pelas profundas mudanças ocorridas na Europa, neste quase trinta anos de presença portuguesa nas instituições comunitárias, em especial as exigências decorrentes da pertença ao euro, foram o eixo das nossas intervenções, complementadas com um debate vivo e interessado por parte do público.

Ando há muitos anos a discutir a Europa e o papel de Portugal no seu seio. O tema é o mesmo, mas é sempre diferente. Não deixa de ser curioso verificar que a Europa nos surpreende, a cada dia, com o surgimento de novas prioridades, com a emergência de novas urgências, que exigem respostas cada vez mais rápidas. O ceticismo que existe sobre a capacidade da Europa enquanto potência convive com a consciência subliminar coletiva de que é no seu seio, e já não necessariamente no espaço das ordens políticas nacionais, que é possível encontrar as soluções mais eficazes para os grandes problemas do continente.

Em tempo: um blogue fez uma síntese em dois posts do debate.

Uma agenda para o mundo

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O governo de António Costa parece determinado em dar à política externa um lugar de topo nas suas preocupações. O facto do Ministro dos Negócios Estrangeiros ser o segundo na hierarquia do executivo, e de ter sido escolhido para o posto um qualificado “peso pesado” socialista, é disso prova evidente. Se a isso somarmos a circunstância do MNE ter, pela primeira vez, quatro secretários de Estado, um dos quais dedicado exclusivamente à internacionalização da economia – que é outra maneira de dizer que coordena a AICEP -, fica claro que as Necessidades passam a ter um forte controlo sobre toda a ação externa.

Depois de um tempo em que a obsessão financeira fez estiolar a nossa afirmação internacional, as tarefas de Augusto Santos Silva e da sua equipa são muito exigentes. No plano europeu, vai ser necessário, desde logo … criar uma política! Sem prejuízo da centralidade inevitável das relações com Berlim, é tempo de explorar uma nova geometria variável de alianças, começando por uma participação ativa nas grandes reflexões temáticas europeias. O respeito pelos compromissos assumidos por Portugal em nada é contraditório com a sua eventual associação à revisão de quadros institucionais que o futuro venha a determinar como necessária.
   
A voz e as posições portuguesas têm de ser fazer ouvir, com determinação e coerência, nos grandes debates que aí estão – desde a governança do euro à política de refugiados, do combate ao terrorismo às relações com a Rússia, de uma resposta firme à provocadora agenda de “devolution” britânica até à fixação dos termos da Parceria Transatlântica. E, desde já, será necessário fixar uma posição portuguesa muito clara na revisão do acordo de Schengen e na coordenação das políticas migratórias, bem como definir cuidadosamente o grau de envolvimento nacional no combate coletivo ao Estado islâmico.

Para atenuar o insensato alarmismo lançado pelo chefe de Estado, o governo necessita de diluir rapidamente quaisquer preocupações criadas em torno dos compromissos nacionais no domínio transatlântico. As relações com Washington têm de ser cuidadas desde a primeira hora e a sequência do tratamento da questão das Lages será uma boa oportunidade para tal.

Independentemente do seu futuro político, a Espanha permanecerá o nosso primeiro parceiro comercial. As nossas relações passam por Madrid, e só por Madrid, se me faço entender. Por isso, não nos sendo indiferentes, as questões intra-espanholas continuarão a ser apenas isso mesmo.

Um terreno interessante, que parece pedir um “restart”, é a questão lusófona, com a política da língua associada. Lançar um debate sobre a CPLP, aproveitando para tal a futura presidência do Brasil e o facto do novo secretário-executivo vir a ser um português, pode ser uma oportunidade interessante, até para desmentir a ideia de que os socialistas não se sentem à vontade com os dossiês africanos. Um primeiro teste terá de ser, desde logo, a questão das relações com Angola, um tema delicado mas, como agora se diz, realmente incontornável, para o qual se espera que os partidos apoiantes do governo no parlamento, pelo menos, não atrapalhem.

Importa também, sem ceder a demagogias, retificar alguns erros crassos que se fizeram nos últimos anos em matéria da rede e da estrutura das missões diplomáticas e consulares, aproveitando para tentar refletir sobre o modelo do relacionamento com uma diáspora em crescente mutação.

E, “last but not least”, é da maior importância garantir um acompanhamento, eficaz mas sem o foguetório promocional recente, do extraordinário trabalho das nossas empresas no exterior, procurando, em paralelo, captar investimento produtivo e manter o turismo nas grandes prioridades da economia nacional.

Conhecendo os novos governantes e a dedicação e qualidade da nossa máquina diplomática, devo confessar que me sinto bastante otimista.

(Artigo que hoje publico a convite do "Diário de Notícias")

Entrevista ao Jornal i


sexta-feira, dezembro 04, 2015

Em que ficamos?


Há pouco tempo, assistimos a um espetáculo insólito: no dia em que o governo minoritário PSD/CDS foi derrubado na AR, sindicatos ligados à CGTP organizaram uma manifestação em frente de S. Bento. 

Em Portugal, ninguém põe em causa o direito de reunião de quem quer que seja, dos sindicalistas ao grupo de “tias” que então contestou a legitimidade da união das esquerdas. O 25 de abril fez-se para isso mesmo. 

É essa liberdade que reivindico para exprimir o desconforto que senti com a realização dessa manifestação (a outra era mero folclore e deve ter acabado nos antiquários de S. Bento, p’cebe?). No momento em que, cá dentro e lá fora, se suscitavam fantasmas sobre a inédita opção de António Costa, “cercar” o parlamento traria inevitavelmente à memória o triste episódio de há 40 anos, quando sindicalistas, sob a cobardia ou a impotência do MFA, sequestraram os deputados à Assembleia Constituinte. 

Desta vez é diferente? É, mas não deixa de ser de uma imensa inoportunidade. Além disso, o gesto funcionou como um recado aos representantes eleitos do povo: “lembrem-se de que estamos aqui, que, se as vossas decisões nos não agradarem, cá estaremos na rua para vos contestar”. É como se a vontade expressa pelo povo português nas eleições legislativas ficasse refém dos interesses corporativos das tropas do senhor Arménio Carlos.

Talvez seja ingénuo, porque não estou no segredo dos deuses das conversas “das esquerdas”. Porém, tinha por adquirido que um governo do PS, com o inédito apoio parlamentar do PCP (o Bloco é irrelevante para esta história), poderia vir a contar com um apaziguamento relativo das tensões sindicais, pelo menos por algum tempo. Ao assumir o gesto de reverter o processo de privatização de algumas empresas públicas de transportes, o PS havia dado um passo com um elevado custo, no mínimo político. A gratidão não é um conceito da vida pública, mas imaginei que, pelo menos até assentar a poeira desta crise, os sindicatos revelassem alguma contenção.

Pois não senhor! O que se anuncia é uma onda de greves, nomeadamente na área dos falidos transportes públicos, o setor onde o governo assumiu o mais difícil dos seus gestos. Já se percebeu que a estratégia do senhor Arménio Carlos – estranho já o silêncio do senhor Mário Nogueira, com certeza desejoso de reeditar a miserável campanha que organizou contra Maria de Lurdes Rodrigues – é “esticar a corda”, agora que o saldo financeiro das quotizações sindicais já está garantido nos bolsos da CGTP.

E o PCP, de cujo Comité Central estas figuras fazem parte? Não tem nada a dizer sobre isto?

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, dezembro 03, 2015

Cúmulo

Aquele velho e prestigiado diplomata, que ocupava o lugar de topo da hierarquia da carreira das Necessidades, ouvia com atenção a opinião sobre um funcionário que recentemente fora colocado numa determinada função. As primeiras avaliações sobre ele eram dececionantes. Porém, por razões legais, tão cedo não seria possível mudá-lo de tarefas. O dirigente que lhe transmitia o parecer foi ao ponto de afirmar que o homem lhe parecia, muito simplesmente, "estúpido".

O chefe da carreira perguntou então:

- E ele trabalha?

A resposta também não foi animadora. Além de pouco dotado, o funcionário não era dedicado ao serviço e trabalhava muito pouco.

- Ótimo!

O dirigente que qualificava o funcionário ficou baralhado. Por que razão era "ótimo" que ele fosse um mau funcionário, para além de ser pouco dotado?

- Ó homem, se ele tem de ser estúpido, ao menos que seja preguiçoso...

Brasil

Jantei na noite de ontem com um amigo, diplomata de um importante país europeu, que comigo coincidiu como embaixador no Brasil. Disse-me da tristeza com que estava a seguir a situação naquele país e, muito em especial, o seu sentimento de que a linha de rumo hoje confirmada, com o início do processo de afastamento da presidente Dilma Russeff, lhe parecia poder vir a desencadear uma crise que muito afetaria a imagem do Brasil no mundo. 

Sou da mesma opinião. O facto desse processo ser desencadeado por um presidente da Câmara de Deputados sobre o qual impendem graves acusações, deixando a ideia de que se está perante um mero processo retaliatório, torna tudo muito mais estranho, o que parece encaminhar o Brasil para uma crise institucional muito grave.

Nunca vi aquele país tão dividido. Nem no tempo da ditadura militar, ao que me recordo, se sentia este ambiente confrontacional. Chega a ser incomodativo falar com alguns amigos brasileiros, de tal forma a polarização está acesa no debate popular. Tenho assistido, em situações sociais, a uma agressividade entre as pessoas que julgava que não regressaria ao debate político dessa grande democracia da América do Sul. Há dias, num jantar, referi a minha amizade pessoal por uma figura secundária, ligada ao atual poder político. O ar de quase desprezo com que, de imediato, fui olhado por vários dos presente revelou-me o tempo de intolerância que se atravessa.

Sou apenas um observador estrangeiro e é aos brasileiros que compete definir o seu destino. Porém, como sincero amigo do país, não consigo deixar de ter opinião sobre uma realidade política que acompanhei bem de perto. Não tendo a menor simpatia pessoal por Dilma Rousseff, cuja atitude negativa face a Portugal me parece uma evidência, devo contudo dizer que os dados que conheço sobre o processo de "impeachment" que lhe diz respeito me parece serem muito mais uma espécie de "terceira volta", por via parlamentar, das eleições de há pouco mais de um ano do que um caso com reais fundamentos juridico-políticos. E isto é muito perigoso para o prestígio do país Brasil na ordem internacional.  

quarta-feira, dezembro 02, 2015

Stiglitz


Foi uma interessante e muito concorrida sessão aquela que a Fundação Calouste Gulbenkian ontem organizou, com a conferência do prémio Nobel da Economia, Joseph Stiglitz. A apresentação, substantiva e profunda, feita pelo presidente da Fundação, Artur Santos Silva, valorizou ainda mais o momento.

Sei que o convite ao economista liberal americano (e o conceito de "liberal" é, nos EUA, praticamente o oposto da noção que a Europa dele tem) foi formulado já há muitos meses, mas quase se poderia considerar, por aquilo que Stiglitz disse, que tinha vindo a Lisboa para apoiar abertamente o governo socialista no poder, tal foi a identidade de pontos de vista que manifestou com o programa do novo executivo. Diria mesmo que, em certos aspetos, Stiglitz foi bem mais ousado do que as ideias económicas de Mário Centeno.

Curioso foi também o ataque mortífero que Stiglitz fez à Parceria Transatlântica, perante o olhar fortement desaprovador do embaixador americano em Portugal, Robert Shearman, que tanto se tem esforçado por promover esta iniciativa entre nós. O apoio da sala às fortes críticas de Stiglitz deve ter levado Shearman a pensar que, às vezes, a vida de um diplomata não é nada fácil... 

Forum do Centro Norte-Sul


Numa iniciativa do Centro Norte-Sul, do Conselho da Europa, tem lugar em Lisboa, em 3 e 4 de dezembro, mais um Forum anual desta estrutura sedeada em Portugal, desta vez dedicada ao oportuníssimo tema "Como combater a radicalização e o terrorismo: instrumentos de prevenção e conhecimento partilhado no espaço europeu e mediterrânico", com a presença de participantes oriundos de 40 países.

Lamento não poder corresponder, por virtude de outros compromissos, ao convite que me foi formulado para participar neste Forum, que desde há vários anos tem sabido congregar vozes de ambas as margens do Mediterrâneo, na persistente promoção de um diálogo pela paz e pelo entendimento.

Quero deixar aqui expressa a minha continuada admiração pelo magnífico trabalho que o CNS tem vindo a desenvolver, com uma pequena mas muito qualificada equipa, dirigida pelo diplomata Frederico Ludovice, que, vai para dois anos, me sucedeu na direção executiva do Centro. É graças ao seu entusiasmo e competência - e, convém deixar claro, também ao apoio permanenente do Ministério português dos Negócios Estrangeiros, nomeadamente da nossa missão junto do Conselho da Europa, dirigida pelo embaixador Luis Castro Mendes - que tem sido possível continuar a assegurar a existência do Centro Norte-Sul, que tem já um quarto de século de vida.

terça-feira, dezembro 01, 2015

Ainda a tempo do primeiro de dezembro


"Portugal divided by austerity"


No preciso dia em que passou a ser propriedade de um grupo japonês (seria interessante verificar o que de importante permanece hoje 100% em mãos britânicas, lá pelo Reino Unido), o mais influente órgão de imprensa financeira do mundo, o "Financial Times", insere hoje um suplemento sobre Portugal, com o subtítulo "Investing in Portugal" e com o título de "Portugal divided by austerity".

Tive o gosto de fazer parte das pessoas ouvidas pelo "Financial Times", com Pedro Ferraz da Costa, António Costa, Mário Centeno, António Barroso, Catarina Martins, Arménio Carlos e Pedro Santa-Clara.

Fortunato da Câmara


Será hoje, terça-feira, dia 1 de dezembro, pelas 19.00 horas, na FNAC do Chiado, que Fortunato da Câmara, crítico gastronómico do "Expresso", onde tem hoje a imensa responsabilidade de substituir José Quitério, apresenta este seu novo livro, um curioso trabalho que assume como "um manual bem-humorado para quem gosta de comida e restaurantes".

Há anos, tive o gosto de prefaciar, bem como de apresentar, neste mesmo local (e também no Porto), o seu "Os Mistérios do Abade de Priscos e outras histórias curiosas e deliciosas da gastronomia", um livro que foi um sucesso editorial. Espero, sinceramente, que este também o seja.  

A pedido de várias famílias...

Parece que o filtro que introduzi nos comentários está a pôr a cabeça em água a muita gente, que não está inscrita no Google nem sabe como isso se faz. Além disso, a saída do Facebook levou a que várias pessoas deixassem de poder dizer fosse o que fosse sobre o que por aqui escrevo. Por isso, "a pedido de várias famílias", como antigamente se dizia, voltamos à fórmula inicial. Cá me encarregarei de ser eu o filtro, embora a partir de agora com bastante menos paciência para ser masoquista na aceitação de insultos ou insídias, não obstante admitir naturalmente a crítica serena e educada. Quem quiser comentar e não tiver conta, assinale no quadradinho "Anónimo", escreva o que quiser e, no final, se lhe apetecer, coloque (ou não) o seu nome.

Fernando Pessoa


Fernando Pessoa morreu faz agora 80 anos. Foi uma figura complexa, de afetos e desafetos não lineares, como a sua poesia deixa transparecer. Sobre Salazar escreveu isto, que tem a sua graça: 


António de Oliveira Salazar
Três nomes em sequência regular...
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
Água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu...

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.

Mas afinal é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

(Poema de Fernando Pessoa)

segunda-feira, novembro 30, 2015

Reacionário me confesso...


A pressa (qual é a pressa?) de legislar para acabar com o exame da "quarta classe" (sou de um outro tempo, pois claro) é algo que não consigo entender. Ou melhor: posso perceber que estas micro-agendas dos "compagnons de route" do PS possam fazer sentido para eles, mobilizados por temáticas modernaças e de "contemporaneidade". Mas não entendo por que é que o PS vai a reboque delas.

O exame colocava "stress" nas criancinhas? Claro que sim! E depois? Lembro-me de ter dormido muito mal antes do meu exame da "quarta classe", de ter tido pesadelos nas vésperas do "exame de admissão" ao liceu (e fiz também à Escola Comercial e Industrial, não fosse dar-se o caso de reprovar no liceu). E o que eu passei, entre angústias e insónias, antes da montanha de exames do 2º ano do liceu, com os meus pobres 12 anos. E as noites longas, a "marrar" temas áridos de História do Matoso (do outro) no 5º ano? Ou a decorar as funções da Câmara Corporativa, no exame de OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação) do 7º ano? (Saí com com 20 - vinte, ouviram?).

Tive suores frios, tomei Fosfero Ferrero, desesperei, perdi horas, sublinhei, reli alto, decorei montes de coisas inúteis, para poder estar preparado para todos os muitos exames que fiz ao longo da minha vida? Claro que sim. E também "chumbei" em alguns, perdi um ano inteiro, tive de repetir cadeiras (em segunda e terceira "época") e, nem por isso, tive depressões ou me suicidei ou sequer fiquei psicologicamente afetadoo. E, claro, fiz exames para o meu primeiro emprego público, passei na prova exigentíssima para a minha segunda e última profissão e, querem saber?, dei-os a todos por muito bem empregados. Endureci na vida, "saiu-me do pêlo", aprendi (sem gravurinhas para amenizar a dificuldade dos temas) o que tinha de aprender, se calhar ainda menos do que devia mas, de certeza!, muito mais do que aquilo que observo (e mais não digo!) na esmagadora maioria dos alunos que agora tenho. E, com tudo isso, construí uma carreira e progredi e tive nela o sucesso que consegui ter - sempre com todas essas chatices, essas tensões, essas exigências, essas muitas horas de trabalho e de esforço. Teria tudo sido melhor se tivesse tido menos exames, se tudo fosse de avaliação mais "diacrónica" e menos "sincrónica"? Não sou dado a teses de que "no meu tempo é que era bom", mas que não vejo a menor desvantagem nessa aferição pontual de conhecimentos que os exames constituem, lá isso é verdade.

Volto ao princípio. Percebo que o Bloco de Esquerda tenha esse tipo de agendas. Já percebo menos que o PS se deixe ir nessa onda "modernaça", que entre pelo facilitismo, que queira reverter a obrigatoriedade dos exames para a miudagem, os quais, é sabido, podem provocar stresses, angústias e tremores, mas que não matam ninguém e ajudam os miúdos a perceber que a vida não é um armazém do Toys r Us e que não há nenhum direito divino às playstations, às roupas de marca e aos hamburgers na Disneylândia. 

E já agora, também não percebo que se volte atrás na exigência dos exames àqueles que querem ser professores. Eu também fiz um exame de admissão profissional, depois de acabado o curso. Às tantas, talvez valesse mesmo a pena que alguns dos docentes atualmente em atividade, que por vezes andam aí com um ar que converte os arrumadores de carros em "gentlemen" do Downton Abbey, que devem funcionam como "belos" exemplos e modelos para as crianças, fossem também obrigados a efetuar provas a meio da carreira. E a alguns outros profissionais, tal como os diplomatas, menos do que avaliação contínua muito deficiente como a que hoje têm com o famigerado Siadap, talvez uns examezitos a meio do percurso lhe não fizesse mal e os forçasse a atualizarem-se e a ler mais.

Isso, aliás, devia ser obrigatório para os ex-professores que "sindicalizaram" grande parte da sua vida, por forma a se aferir se já "perderam a mão". Ou não será estranho que esse tal de Mário Nogueira, que regularmente agita o bigode, a raiva e o verbo pelas grades da multidão com cartazes na 5 de outubro, tenha dado a sua última aula presumo que ainda antes do novo ministro da Educação nascer?

"Estás um bom reacionário, estás!", já estou a ouvir de algumas amigas e amigos, daqui a horas, quando lerem este post. E então dos corajosos anónimos que por aí polulam vai ser um fartote. Mas, como costumava dizer uma sobrinha minha, na sua infância: e a mim que me importa!

E agora, Francisca?

O que se passou na noite de ontem, com a transmissão pela CMTV de parte do interrogatório do ex-ministro Miguel Macedo e do ex-diretor do SEF Manuel Palos, pode representar um teste muito importante para o futuro do nosso regime democrático e da determinação do governo que acaba de tomar posse em defendê-lo. Estou a exagerar? Acho que não.

Vou ser muito claro. O caso Sócrates vem a demonstrar, desde há muito, a existência de um ambiente de conivência entre setores do sistema judicial e alguns órgãos de comunicação social. Com razão ou sem ela, está instalada a ideia de que a acusação terá procurado garantir junto da opinião pública um apoio para o "peso" que significava ter um antigo primeiro-ministro detido. O método escolhido terá sido "alambicar" informação sobre o andamento do respetivo processo, credibilizando progressivamente as suspeitas, dessa forma garantindo que o vasto setor da opinião pública portuguesa que detesta José Sócrates acabaria por constituir um espécie de "clube de fãs" que iria servir de escudo protetor do procurador e do juíz que têm o caso a seu cargo. Com o país dividido entre os que detestam José Sócrates, e que acham que tudo o que dele se diz de mal - do curso ao "Freeport", da corrupção à fraude fiscal e "tutti quanti" - é pura verdade, e os que juram a pés juntos que este processo mais não é uma vil cabala inventada pelos seus inimigos de A a Z, está instalado à volta do processo do antigo primeiro-ministro uma espécie de "empate" técnico. 

A propósito da responsabilidade criminal sobre os "leaks" que regularmente continuam a sair para a imprensa sobre o processo Sócrates, terá já havido inquéritos - "rigorosos" como é de bom tom dizer-se - mas os respetivos resultados parecem manter-se por detrás dos sorrisos esfíngicos da senhora Procuradora-Geral da República quando, com estranha raridade, algumas perguntas lhe são colocadas sobre o assunto. O país parece mesmo conviver com isto com curiosa naturalidade, sendo que a menor das surpresas ainda será assistir ao silêncio de chumbo que Belém preserva sobre estes atentados à integridade do sistema judicial pelo qual, recorde-se, também lhe compete velar.

Ontem, porém, abriu-se um capítulo novo e a cuscuvilhice sobre processos envolvendo figuras mais ou menos famosas foi bastante mais longe, ao termos assistido às incríveis imagens televisivas de Miguel Macedo e Manuel Palos a serem interrogados por uma procuradora. Por mim, ao ver àquilo, senti-me enojado e triste, com um sentimento de vergonha pela justiça do meu país - e não é por acaso que hoje não uso maiúscula para a qualificar. Não conheço nem nunca falei com Miguel Macedo, figura política que, tanto quanto sei, não suscitará uma polarização de simpatia/antipatia como é o caso de Sócrates. Quero com isto dizer que, salvo a menina do CMTV que logo cuidou de avisar que se tratava de imagens "de interesse público", o país não vai acordar amanhã com grupos de cidadãos a defender os autores destes novos "leaks", talvez apenas alguns "jornalistas" amigalhaços, à espera de também serem usufrutuários futuros destes comportamentos miseráveis. Por isso me pergunto se isto ficará "assim", uma vez mais.

Custa-me ter de colocar esta simples questão à pessoa com que tenho a relação mais próxima dentre todos os membros do novo governo: e agora, Francisca?

domingo, novembro 29, 2015

Notas britânicas (2)


1. O Reino Unido reedita, ciclicamente, controvérsias sobre a sua política de defesa. Muitos nos lembramos das várias campanhas da CND (Campaign for Nuclear Disarmament), dos anos da Guerra Fria, que colou os pacifistas aos "vermelhos" (alguns eram "vermelhos", de facto, outros eram mera gente com boas intenções ou inocentes úteis). Mais tarde, seria o Iraque, com Tony Blair (um trabalhista, há que lembrar sempre, para memória futura) a colar as tropas britânicas à aventura criminosa de George W. Bush no Iraque, sem mandato legitimador (por cá também tivemos uns patéticos seguidores acríticos, que por aí "observam" nos dias que passam). Agora é a Síria. Perante o imperativo de bom-senso que é a necessidade de desmantelar o Estado Islâmico, o Partido Trabalhista mostra-se fortemente dividido. Verdade seja que setores minoritários conservadores, liberal-democratas e escoceses também hesitam. Os apoiantes do novo lider Jeremy Corbyn, recusam "boots on the ground" (aliás, como a maioria dos países), mas, por outro, opõem-se a ataques exclusivamente aéreos, que o governo de Cameron pretende levar a cabo, a exemplo dos franceses. Conclusão: optam por não fazer nada. Cá por mim, acho que o Reino Unido acabará por avançar, mas as clivagens internas ficarão muito evidentes.

2. Gosto de passar pelas zonas onde se situam casas onde um dia vivi. Fi-lo ontem, ao entrar de automóvel em Londres. Era perto do Hyde Park e de Knightsbridge. Uma casa alugada a Paulo Marques, esse simpático anglófilo já desaparecido. Gostei de viver e trabalhar em Londres, de onde vim há minutos. Foi um tempo muito interessante da política britânica, entre 1990 e 1994, com a Europa na sua agenda diária: nos conservadores, assisti aos últimos tempos políticos de Margareth Thatcher, à ascensão do cinzento John Major e à desilusão de Michael Heseltine; nos trabalhistas, vi Niel Kinnock falhar a sua grande oportunidade, a eleição e morte de John Smith, a esperançosa liderança de Tony Blair. Viver em Londres era divertido e entusiasmante. Mas era já então uma cidade muito cara (hoje está impossível!), ia-se jantar fora com grande parcimónia, os espetáculos eram escolhidos com muito critério. Mas deu para visitar bem o país, para olhar a bizarria snob e divertida de Ascot e Henley, para me arruinar nas livrarias. E, essencialmente, para fazer muitos e bons amigos, que não larguei desde então. Tenho por muito claro: fora de Portugal, e se tivesse dinheiro, Londres era a minha cidade.

3. Há pouco, no quiosque de Heathrow, comprei (quase dois quilos) do "The Sunday Times". Adoro estes jornais britânicos de fim-de-semana, desde o conservador "The Sunday Telegraph" aos mais abertos "The Observer" e "Independent on Sunday". Estes "quality papers", juntos com o "The Financial Times" de sábado/domingo, são de uma riqueza informativa que é ímpar no mundo. Se a isso somarmos o "The Economist", o "The Spectator", o "Private Eye" e o (agora renovado) "The New Statesman" (uma revista trabalhista que se afasta claramente de Corbyn), estamos perante uma oferta jornalística fabulosa. Já para não falar no "The London Review of Books". Não conheço os equivalentes alemães ou italianos, mas Paris e mesmo Nova Iorque não chegam "aos calcanhares" de Londres. 

4. Tomei há pouco um "mini-cab" para o aeroporto de Londres. Bem mais baratos que os taxis normais, aparentemente deixaram já os veículos manhosos em que, durante décadas, às vezes temíamos entrar, tal a sujidade dos carros e o ar sebento dos motoristas, com que era difícil comunicar. Hoje, viajei num "mini-cab" bem confortável, com um condutor apresentável, quase um Uber! (Ontem, em Oxford, um dos participantes na homenagem a Helder Macedo era da Uberlândia, uma importante região do Estado de Minas Gerais, no Brasil. Sugeri-lhe que, se fosse a Portugal, não se lembrasse de referir a sua região de origem aos nossos taxistas...)

5. Londres estava hoje fria, ventosa, com chuva "de molha tolos", daquelas que dá para abrir e fechar incessantemente o guarda-chuva. Não obstante, os turistas continuavam às centenas à volta do Harrods e do Harvey Nichols. Tal como Paris ou Roma ou Nova Iorque, faça chuva ou faça sol, com terrorismo ou sem ele, estas serão para sempre as "mecas" dos viajantes do mundo. Pode deixar-se de ir às pirâmides do Egito ou às praias da Tunísia, se um azar (lagarto! lagarto!) nos rompesse a quietude do quotidiano no Porto ou em Lisboa, os turistas deixariam de aparecer por cá, mas estas grandes metrópoles terão eternamente os seus adeptos - com monumentos e museus ímpares, com os espetáculos, com a oferta gastronómica e comercial praticamente inigualável em qualidade e diversidade. Há cidades felizes. Londres é uma delas.

O cromo


Na minha infância, havia muitas coleções de cromos, uns que vinham com revistas, outros com chocolates ou rebuçados, outros em pequenos envelopes que se adquiriam nas tabacarias. Comprava-se as cadernetas e iam-se colando, desde os jogadores de futebol às raças humanas, passando por detetives e escritores de ficção policial, entre muitos outros. Quando as coleções se aproximavam do fim, as coisas fiavam mais fino. A probabilidade de nos surgirem os cromos em falta ia diminuindo e entrava-se então nas trocas com os que sobravam aos outros, às vezes tendo de mercadear um "custoso" por vários exemplares que tínhamos repetidos. Não sei onde param as minhas cadernetas de infância, mas as bolandas das casas em que os meus pais viveram faz-me pensar que devem ter ido desta para melhor. 

Porque é que me lembro disto agora? Porque, ao ler na net um jornal lisboeta de hoje, verifico que, finalmente, um certo cromo, dos que me faltava na minha galeria de adversários políticos, finalmente me arremessa uma farpa, num seu artigo semanal. Já tinha quase todos na minha "coleção" particular (se o leitor deteta algum gozo no que ora escrevo, tem alguma razão para isso) mas este nunca mais aparecia. Pronto, quebrou-se hoje o enguiço, ufh!

Por que fui atacado? Aparentemente por eu ter lançado, noutro espaço informático, a ideia (pelos vistos tenebrosa e atentatória das liberdades) de que deveria acabar-se em absoluto com o anonimato na internet. Essa proposta "radical" de propor que quem faz uma afirmação ponha o seu nome real por baixo, sem refúgio em pseudónimos ou iniciais equívocas, é, pelos vistos, altamente sinistra. Cá para mim, quem não deve não teme - embora imagine que seja muito "corajoso" e cómodo insultar e caluniar os outros, sem mostrar a cara. 

Vá lá que o cromo assina todos os artigos, o que só lhe fica bem.

sábado, novembro 28, 2015

Os novos camaradas

Estava-se em outubro de 1995. O Partido Socialista ia constituir um governo minoritário, chefiado por António Guterres. O Palácio das Necessidades fervilhava de agitação. Quem seria o ministro? Quem seriam os secretários de Estado? Que mudanças iriam ocorrer? Alguns postos seriam "mexidos", fruto da nova onda política? Haveria "saneamentos", depois de uma década de cavaquismo?

Era não conhecer o PS, era não entender que a história da gestão da máquina diplomática pelos socialistas, desde os tempos de Mário Soares em 1974, se pautou sempre pelo privilégio do mérito profissional, nunca optou por práticas sectárias de promoção e benefício da "sua gente". As opções ideológicas de cada um, legítimas e naturais (os diplomatas não são eunucos políticos, como eu repito há anos), não são levadas em conta na generalidade das colocações. Nesse ano, e nos seguintes, Jaime Gama daria aliás prova concreta do rigor dessa orientação. Como seu secretário de Estado por cerca de cinco anos e meio, fui disso testemunha privilegiada.

Um determinado diplomata, de categoria profissional média, homem conservador, que tinha gozado de uma boa carreira no consulado cavaquista, andava contudo ansioso por se colar ao novo poder, convencido que disso poderia vir beneficiar no futuro. O medo leva ao oportunismo e este é um espelho do caráter.

Poucos dias depois dessas eleições de 1 de outubro de 1995, numa escada do palácio das Necessidades, o tal diplomata encontra um colega que era conhecido como socialista, creio mesmo que militante do PS. Com a cordialidade que era habitual entre eles, mas com uma pretendida "camaradagem", o diplomata lança, ao ouvido do colega socialista, esta pérola, em linguarejar que ele achava adequadamente popularucho: "Os gajos estão à rasca com a nossa vitória!" O diplomata socialista fez uma cara de espanto, sem saber o que dizer, mas o outro lá partiu, feliz e contente, "mensagem" transmitida. E, vá lá!, não lhe correu mal a vida...

Helder Macedo


Vim a Oxford exclusivamente para estar com o meu amigo Helder Macedo, escritor e professor, uma grande figura de intelectual e um homem de grande integridade, no dia em que a universidade de Oxford o homenageia. 

Conhecemo-nos em Londres, nos idos de 90, pela mão saudosa do Bartolomeu Cid dos Santos e, de então para cá, cultivamos uma amizade sem mácula, partilhando grandes cumplicidades e crescentes ironias. Deixo aqui reproduzido um texto que publiquei num livro organizado em sua honra, há mais de uma década, aquando da passagem formal à reforma, estado que, no Helder, é uma perfeita contradição em termos, como desde então se tem vindo a constatar: 

Confesso ter uma limitação quase dramática quando me proponho dizer algo sobre o Helder Macedo. É que eu mal conheço o Helder. Aliás, não sou o único, mesmo os que o frequentam no dia-a-dia estão muito longe de o conhecer – com a eventual excepção da Suzete, e mesmo assim… E não o consigo conhecer porque o Helder se mantém, para mim, um objecto humano não identificado com o conformismo, uma contínua descoberta, na escrita como na vida. Quanto mais com ele convivemos e tendemos a nos acomodar à imagem que dele criamos, mais o Helder se nos escapa na esquina seguinte, nos reaparece adiante, sempre muito adiante de nós. Há muito que com ele aprendi que a liberdade começa por se forjar dentro de cada um, que a postura e o empenhamento cívicos são um mero prolongamento da nossa íntima disponibilidade para mergulhar no cultivo da diferença, para a viver e a deixar viver nos nossos sonhos, individuais e colectivos. E, no que a estes últimos toca, para forçar com estrondo a porta do circo, escarnecer da gravidade dos palhaços, vaiar os equilibristas do compromisso, patear os prestidigitadores da mentira. O Helder vai-se reformar ? Esperem para ver !

Notas britânicas

1. "Have you tried to be nice to people?". Saiu-me a frase ao assistir a um arrogante (e latagão, o que torna o meu gesto bem mais "heróico") condutor de autocarro, antes da partida de Heathrow para Oxford, tratar de forma displicente um casal de estrangeiros, que, justificada e delicadamente, pretendiam uma qualquer indicação. O fulano olhou-me de alto (era alto...) mas não reagiu muito, embora grunhisse em voz baixa o que imagino fosse um palavrão (o meu léxico de "slang" anda um bocado por baixo, foi o que me valeu...). Talvez pelo meu tom tivesse percebido que eu estava preparado para chamar de imediato o "supervisor" ou lá quem quer que fosse de quem ele dependia. E metia-se em chatices, porque eu sou muito ASAE...

2. E quem me manda a mim andar às compras num "Boots" num "Black Friday"?! Chusmas de adolescentes (e de outras que o foram, até há anos que agora procuram atenuar) a aproveitar os saldos brutais nos cosméticos, fazendo filas de longos minutos para pagar. Adoro o "Boots": descubro aí sempre coisas estranhas que (julgo que) não há em Portugal. Como sou um hipocondríaco com sorte (às vezes tenho mesmo doenças; o hipocondríaco sem sorte é alguém que se queixa muito mas que está sempre fino que nem um pêro), descortino sempre uns medicamentos de venda livre que me vão fazer um jeitão... mas que, chegado a Lisboa, alguém mete lá para umas gavetas sem fundo e, quando se vai a dar conta, já perderam a validade. Mas lá vou outra vez com alguns na mala, daqui de Oxford!

3. Também em matéria de "stationery" saio aviado. Não que a qualidade da WHSmith onde fui de compras seja por aí além, mas ainda há por lá uns blocos, umas canetas de "ballpoint" a que me afeiçoei e um papel de carta a que não resisti. Já estou a presumir a reação de snobeira de alguns amigos: "Olha! Para esse nível podias ter ido à Ryman, ias na mesma mal servido...", deixando depois cair na conversa, finíssimos e londrinos eternos que eles são, que, para essas coisas "só se vai" ao Smythson. Pode ser que sim, mas um reformado não pode pagar o triplo do preço que o Smythson leva por coisas que o WHSmith tem quase idênticas.

4. Bati com o nariz na porta da fantástica livraria da Oxford University Press e, provavelmente, amanhã não vou conseguir passar por lá. Nunca pensei que fechasse às 5.30, logo num "Black Friday", em que as compras tomam conta do dia. Em alternativa, lá corri os quatro pisos da Waterstones, de onde saí ajoujado de livralhada. Ao passar pela secção de "crime" voltei a ter uma sensação esquisita, que há muito me acontece: olho para as caras das pessoas que nessas áreas dedilham os livros e dou comigo a descortinar fisionomias de potenciais assassinos. Sim, porque essa gente em algum lado aprende e o Reino Unido é nisso mestre, como os factos e a literatura nos atestam. Como eu, na minha pesquisa, os olho fixamente, vejo-os quase sempre retribuir-me com um olhar frio, o que me aumenta as suspeitas. E a inquietude. Ontem, havia por lá um cavalheiro, de cabelos revoltos, óculos de aros grossos, gabardine longa, que, pela certa, ia dali para cometer um crime. Tirava-se-lhe pela pinta. É só esperar pelos tablóides...

5. Muito português há em Oxford! Ouvi imensos jovens - nas ruas, nas lojas e até na mesa ao lado no restaurante - a falar português de Portugal. Numa esquina, estava um ao telefone, conversando com um ou uma compatriota: "Aquilo vai durar pouco, dizem-me de Lisboa. Lá para o Verão zangam-se todos e o governo cai". Não resisti e, sem parar a passada, lancei-lhe: "Olhe que não! Olhe que não!" Ficou parado e calou-se, pelo menos até eu desaparecer. De uma coisa tenho a certeza: não tinha idade para fazer a mais leve ideia da paternidade da frase que eu reproduzira.

sexta-feira, novembro 27, 2015

As empresas e a esquerda


Não vale a pena alimentar o menor equívoco: existe uma desconfiança entre uma parte significativa do empresariado português e a esquerda. Convém assumir isto sem dramas e com realismo.

Do lado de muitos empresários, são recordados os traumas pós-revolucionários, razão por que alimentam uma forte desconfiança do PCP e do BE, em cujos programas vislumbram uma linguagem agressiva para com os detentores de capital, sendo apenas travados, nos seus amanhãs revolucionários, pelas limitações do voto.

Com o PS a relação é muito diferente. Anos de convívio deram aos empresários a certeza de que os governos socialistas sabem respeitar plenamente as virtualidades da economia de mercado. Porém, os empresários detetam ainda nos socialistas um dualismo pouco confortável: aqueles que reconhecem as suas qualidades como promotores de crescimento, de emprego e do bem-estar económico-social, lado a lado com outros que, aqui ou ali, deixam cair comentários hostis, de onde emerge, no mínimo, a regular ameaça da mão fiscal, agora que os mitos estatizantes desapareceram de cena.

Por essa razão, um número significativo de empresários portugueses, não obstante poderem ter algumas queixas da coligação que agora saiu, teria preferido mil vezes vê-la continuar no poder. Isso é claramente agravado pelo facto do atual PS surgir apoiado pelos seus inimigos mais jurados.

Assim, este novo governo do PS, mais do que qualquer outro anterior, tem de saber lançar as bases de uma relação de confiança com o empresariado, das PME às grandes empresas, onde assenta o essencial do investimento produtivo e a criação de emprego. A grande questão está em saber como vai ser possível estruturar essa agenda de confiança quando, à sua esquerda, se irá com toda a certeza manter a hostilidade do discurso anti-capitalista.

Mas uma agenda “business-friendly” quer dizer o quê? Desde logo, menos burocracia, menos e melhor legislação, acusada hoje de abafar o trabalho das empresas e de aumentar os seus custos. Depois, é evidente, significaria (e não é por acaso que coloco o verbo no condicional) garantias de estabilidade fiscal, por forma a permitir planear, com menos riscos, os investimentos. Finalmente, os empresários gostariam de ter por muito claro se os socialistas vão ou não mexer nas atuais regras laborais.

Nos últimos anos, há uma coisa que aprendi sobre os empresários portugueses: eles estão dispostos a operar, cá dentro ou lá fora, em cenários políticos difíceis, mas detestam a instabilidade, a imprevisibilidade, o não saberem se, no dia seguinte, as regras vão mudar, se o enquadramento legal que gere a sua vida irá subitamente variar.

No fundo, se pensarmos bem, os empresários portugueses temem que lhes possa vir a acontecer o que ocorreu, nos últimos quatro anos, a milhões de portugueses, mal governados pela coligação que tão simpática era aos olhos de alguns deles.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Não lhes perdoo!

Acaba hoje aquela que constitui a mais penosa experiência política a que me foi dado assistir na minha vida adulta em democracia. Salvaguardadas as exceções que sempre existem, quero dizer que nunca me senti tão distante de uma governação como daquela que este país sofreu desde 2011.

Não duvido que alguns dos governantes que hoje transitam para o passado tentaram fazer o seu melhor ao longo destes cerca de quatro anos e meio. Em alguns deles detetei mesmo competência técnica e profissional, fidelidade a uma linha de orientação que consideraram ser a melhor para o país que lhes calhou governarem. Mas há coisas que, na globalidade do governo a que pertenceram, nunca lhes perdoarei.

Desde logo, a mentira, a descarada mentira com que conquistaram os votos crédulos dos portugueses em 2011, para, poucas semanas depois, virem a pôr em prática uma governação em que viriam a fazer precisamente o contrário daquilo que haviam prometido. As palavras fortes existem para serem usadas e a isso chama-se desonestidade política.

Depois, a insensibilidade social. Assistimos no governo que agora se vai, sempre com cobertura ao nível mais elevado, a uma obscena política de agravamento das clivagens sociais, destruidora do tecido de solidariedade que faz parte da nossa matriz como país, como que insultando e tratando com desprezo as pessoas idosas e mais frágeis, desenvolvendo uma doutrina que teve o seu expoente na frase de um anormal que jocosamente falou, sem reação de ninguém com responsabilidade, de "peste grisalha". Vimos surgir, escudado na cumplicidade objetiva do primeiro-ministro, um discurso "jeuniste" que chegou mesmo a procurar filosofar sobre a legitimidade da quebra da solidariedade inter-geracional.

Um dia, ouvi da boca de um dos "golden boys" desta governação, a enormidade de assumir que considerava "legítimo que os reformados e pensionistas fossem os mais sacrificados nos cortes, pela fatia que isso representava nas despesas do Estado mas, igualmente, pela circunstância da sua capacidade reivindicativa de reação ser muito menor dos que os trabalhadores no ativo", o que suscitava menos problemas políticos na execução das medidas. Essa personagem foi ao ponto de sugerir a necessidade de medidas que estimulassem, presumo que de forma não constrangente, o regresso dos velhos reformados e pensionistas, residentes nas grandes cidades, "à provincia de onde tinham saído", onde uma vida mais barata poderia ser mais compatível com a redução dos seus meios de subsistência.

Fui testemunha de atos de desprezo por interesses económicos geoestratégicos do país, pela assunção, por mera opção ideológica, por sectarismo político nunca antes visto, de um desmantelar do papel do Estado na economia, que chegou a limites quase criminosos. Assisti a um governante, que hoje sai do poder feito ministro, dizer um dia, com ar orgulhosamente convicto, perante investidores estrangeiros, que "depois deste processo de privatizações, o Estado não ficará na sua posse com nada que dê lucro".

Ouvi da boca de outro alto responsável, a propósito do processo de privatizações, que "o encaixe de capital está longe de ser a nossa principal preocupação. O que queremos mostrar com a aceleração desse processo, bem como com o fim das "golden shares" e pela anulação de todos os mecanismos de intervenção e controlo do Estado na economia, é que Portugal passa a ser a sociedade mais liberal da Europa, onde o investimento encontra um terreno sem o menor obstáculo, com a menor regulação possível, ao nível dos países mais "business-friendly" do mundo".

Assisti a isto e a muito mais. Fui testemunha do desprezo profundo com que a nossa Administração Pública foi tratada, pela fabricação artificial da clivagem público-privado, fruto da acaparação da máquina do Estado por um grupo organizado que verdadeiramente o odiava, que o tentou destruir, que arruinou serviços públicos, procurando que o cidadão-utente, ao corporizar o seu mal-estar na entidade Estado, acabasse por se sentir solidário com as próprias políticas que aviltavam a máquina pública.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, fui testemunha de uma operação de desmantelamento criterioso das estruturas que serviam os cidadãos expatriados e garantiam a capacidade mínima para dar a Portugal meios para sustentar a sua projeção e a possibilidade da máquina diplomática e consular defender os interesses nacionais na ordem externa. Assisti ao encerramento cego de estruturas consulares e diplomáticas (e à alegre reversão de algumas destas medidas, quando conveio), à retirada de meios financeiros e humanos um pouco por todo o lado, à delapidação de património adquirido com esforço pelo país durante décadas, cuja alienação se fez com uma irresponsável leveza de decisão.

Nunca lhes perdoarei o que fizeram a este país ao longo dos últimos anos. E, muito em especial, não esquecerei que a atuação dessas pessoas, à frente de um Estado que tinham por jurado inimigo e no seio do qual foram uma assumida "quinta coluna", conseguiu criar em mim, pela primeira vez em mais de quatro décadas de dedicação ao serviço público - em que cultivei um orgulho de ser servidor do Estado, que aprendi com os exemplos do meu avô e do meu pai -, um sentimento de desgostosa dessolidarização com o Estado que lhes coube titular durante este triste quadriénio.

Por essa razão, neste dia em que, com imensa alegria, os vejo partir, não podia calar este meu sentimento profundo. Há dúvidas quanto ao futuro que aí vem? Pode haver, mas todas as dúvidas serão sempre mais promissoras que este passado recente que nos fizeram atravessar. Fosse eu católico e dir-lhes-ia: vão com deus. Como não sou, deixo-lhe apenas o meu silêncio.

quarta-feira, novembro 25, 2015

O novo governo

Começo por uma constatação que me parece uma evidência: este governo é incomparavelmente melhor do que aqueles que existiram desde 2011. O perfil técnico e político das figuras escolhidas por António Costa é de grande qualidade, seguindo aliás aquilo que o PS costuma fazer nos inícios de ciclo, isto é, juntar figuras independentes e com prestigiado perfil académico com fortes e experimentados quadros políticos. 

António Costa começa muito bem. Escolhe uma equipa relativamente jovem, colocando na sensível área económica nomes com grande credibilidade, que os mercados acolherão, com toda a certeza, com total confiança. Ninguém poderá dizer que este é um governo "esquerdista" e nenhum dos nomes apresentados pode sugerir que o primeiro-ministro fez, na escolha da sua equipa, qualquer concessão aos seus apoiantes da "esquerda da esquerda". Noto que os nomes-surpresa nas quatro pastas de soberania (aquilo a que os franceses chamam as pastas "régaliennes": Justiça, Administração Interna, Defesa e Negócios Estrangeiros) são, sem exceção, figuras de elevada e indiscutível qualificação, que dão fortes garantias.

Uma nota particular sobre os Negócios Estrangeiros. Como quem me conhece sabe desde há muito, considero que ter diplomatas à frente das Necessidades, independentemente da sua qualidade profissional e sensibilidade política, não é necessariamente uma boa ideia. O MNE sempre ganhou, em termos da sua força relativa no seio do governo, quando foi titulado por personalidades com peso político próprio. E isso é o que acontece com Augusto Santos Silva.

O novo ministro não é apenas um intelectual prestigiado e com elevada qualificação académica. Estamos perante aquele que é o mais experiente membro do governo, que dispõe do mais competo currículo ministerial, pela diversidade dos cargos exercidos (Educação, Cultura, Assuntos Parlamentares, Defesa). Em especial, noto que, na Defesa, uma pasta delicadíssima, Augusto Santos Silva desenvolveu um trabalho notável, claramente reconhecido pelas Forças Armadas.

A política externa portuguesa fica excelentemente servida com o nome escolhido por António Costa para a dirigir e Augusto Santos Silva vai rapidamente dar-se conta de que terá à sua disposição um dos mais qualificados, dedicados e leais corpos profissionais da nossa Administração Pública.

... e logo se vai ver!

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