domingo, dezembro 07, 2014

Mário Soares

Começo por uma declaração de interesses: sou amigo de Mário Soares.

Vi-o pela primeira vez em 1969, à porta da Sociedade Nacional de Belas Artes, na rua Barata Salgueiro, em Lisboa, numa noite em que o então líder da oposição socialista pretendia aí fazer uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e ouvi Soares, com voz forte e indignada, a contestar a decisão diante do famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Lembro-me bem de Soares perguntar, jocoso: "e que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão à entrada de um vizinho restaurante chinês, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga dos circunstantes.
 
Cruzaria depois Soares, ainda nesse ano, em duas outras reuniões da oposição. Eu estava então noutra onda política, longe das suas ideias, mas apreciava-lhe já a coragem e a determinação. Depois das "eleições" de outubro desse mesmo ano, em que Soares e os seus amigos tiveram um resultado muito fraco - relativamente ao resto da oposição -, o líder socialista saiu do país e, mais tarde, seria obrigado a permanecer no estrangeiro, sob pena de ser preso se regressasse a Portugal. Só aqui chegaria em 29 de abril de 1974.
 
Verdadeiramente, a primeira conversa que me lembro de ter tido com Mário Soares seria quase 20 anos depois, em Londres, na nossa embaixada, aquando da sua visita de Estado, como presidente, ao Reino Unido. Falámos desses episódios da luta contra a ditadura e de amigos comuns. Criámos uma imediata relação de simpatia.
 
Em fins de 1995, dar-me-ia posse como membro do governo e, poucos dias depois, acompanhei-o a Israel e à Palestina, escassos meses antes dele abandonar Belém. Lembro-me de uma frase que então me disse: "Sabe que, em 10 anos como presidente, é a primeira vez que sou acompanhado numa visita oficial ao estrangeiro por um membro do governo da minha família política?" Era verdade. Fui o primeiro e o último, embora Soares me tivesse contado histórias que revelavam o cordial entendimento que tinha tido com alguns governantes do "cavaquismo", período a que Guterres tinha posto um ponto final, semanas antes.
 
Desde então, convivi bastante com Mário Soares. Tive o gosto de o ter a prefaciar e a apresentar um livro meu. Andei com ele por vários locais, de Estrasburgo a Roma, de Brasília a Paris. Em Lisboa, na sua Fundação e em várias outras ocasiões, tive o ensejo de trocar com ele impressões sobre o mundo, sobre a Europa e sobre as pessoas que ele cruzou. Integrei a "comissão de honra" da sua frustrada terceira candidatura à Presidência da República, que achei dispensável mas que entendi ter o dever moral de acompanhar. 
 
Tenho orgulho em poder hoje afirmar que sou amigo de Mário Soares. Tenho por ele um imenso respeito, uma profunda consideração pela sua postura cívica, pela magistratura ética que representa para o nosso país. No passado, nem sempre estive de acordo com ele e, ainda hoje, divirjo de algumas atitudes que toma ou de declarações que faz, sendo que essa divergência é muitas vezes mais pela forma do que pelo conteúdo. Mas essa é a "graça" de Mário Soares: ter a coragem da opinião forte, não se importar com a polémica, saber arrostar com a crítica, não se calar perante a indignação. Ter-lhe-ia sido mais fácil, se quisesse passar imune por entre as pingas da conjuntura, remeter-se a um silêncio de "Colombey", construir um currículo de silêncios graves, numa parcimónia de palavras e gestos que é a patine que molda os estadistas de cera. Soares não é assim e felizmente que o não é.
 
Mário Soares faz hoje 90 anos. Vou estar com ele e com alguns dos seus muitos amigos para lhe dar um forte abraço e para lhe agradecer a ventura que é tê-lo connosco. Soares não durará sempre e, quando um dia desaparecer, tenho a certeza que o nosso país ficará tristemente órfão do seu exemplo cívico.

sábado, dezembro 06, 2014

Tratado orçamental

Parece-me pouco sensato ouvir agora, da boca de alguns responsáveis da nova direção do PS, a ideia de que a anterior liderança não devia ter concedido o seu voto ao Tratado Orçamental europeu, quando, em 2012, esse instrumento jurídico foi submetido à ratificação pelA Assembleia da República, depois da sua assinatura.

O Tratado Orçamental foi uma medida de reforço do rigor macroeconómico desenhada para tentar acalmar os mercados, num tempo de grande incerteza. Não se nega o seu caráter constrangente e mesmo o eventual irrealismo daquilo que prevê em termos de metas. O PS votou a favor do Tratado na Assembleia da República. O que teriam feito os socialistas se acaso fossem poder em Portugal, à época? Se acaso tivessem conduzido o país a um voto contra, Portugal teria ficado isolado e seriam acusados de um gesto de grande irresponsabilidade. Basta pensar o que aconteceu com os socialistas franceses que, depois de uma grande agitação retórica antes das eleições presidenciais, acabaram por subscrever o Tratado, logo que regressados ao poder.

Alguns poderão dizer: mas se, em 2012, havia na AR uma maioria de direita suficiente para fazer aprovar o Tratado, não poderia PS ter evitado "sujar as mãos" com esse seu voto? Não. O PS é um partido de poder, não poderia ter gestos oportunistas dessa índole sem atingir a sua credibilidade política internacional. António José Seguro fez muito bem em fazer votar o Tratado Orçamental.

Outra coisa, agora, é a necessidade do PS, como António Costa tem vindo a defender, se juntar a quantos, um pouco por toda a Europa que subscreveu o Tratado, pugnam por uma sua leitura "inteligente", nomeadamente no tocante à discussão dos fundamentos em que assenta o conceito de "défice estrutural" e na questão dos critérios caraterizadores dos ciclo económicos, que poderão flexibilizar o rigor dos seus preceitos.  Essa, sim, é uma "bonne guerre".

sexta-feira, dezembro 05, 2014

Gastronomia

Hoje, a Academia Portuguesa de Gastronomia, presidida por José Bento dos Santos e da qual faço parte, procedeu, no Grémio Literário, à entrega anual dos seus prémios. Com um almoço, naturalmente.

Dentre os prémios, quero destacar o prémio "Maria de Lourdes Modesto", destinado a premiar, "a título excecional", "um restaurante de cozinha tradicional portuguesa de grande qualidade". A distinção, cujo merecimento pessoalmente reitero, foi para o transmontano "Geadas", um excelente restaurante da cidade de Bragança.

Na ocasião, tive o gosto de conhecer a patrona do prémio, Maria de Lourdes Modesto. Para além de fazer parte da memória televisiva da minha geração, a ela se deve uma cuidadosa recolha de receituário culinário português que muito tem contribuído para a fixação desse nosso património cultural.

"Tudo pela Palestina?"

Há pouco mais de três anos, Paulo Portas, num sound bite mais apropriado a um título de “O Independente” do que a uma declaração de um responsável pela política externa de um Estado, saiu-se com a frase “Tudo pela Palestina, nada contra Israel”. Tentar resolver a quadratura do círculo é uma atitude estimável, mas gratuita.
 
A comunidade internacional vive, desde há anos, com o angustiante dilema de tentar proteger Israel do recorrente extremismo de alguns dos seus dirigentes. Simultaneamente, e não obstante a diversidade na abordagem, o mundo tem procurado dar alento, político e financeiro, à estruturação do Estado palestino, ciente de que não pode deixar de responder à profunda injustiça que atravessa o destino do seu povo.
 
Israel parece agora tentado a uma fuga para a frente a qual, a concretizar-se, pode vir a ter consequências naquilo que, até agora, era a sua identidade inatacável: a democraticidade do seu regime. Ao optar pelo caráter judaico do seu Estado, Israel caminha para um regime de “apartheid” – e devemos ter a coragem de dizer estas coisas com todas as letras.
 
É lamentável que o governo português revele uma imensa tibieza face ao crescente movimento europeu no sentido de reconhecer o Estado da Palestina, como se já não tivesse bastado a lamentável postura assumida por ocasião da integração da Palestina na UNESCO, que foi depois necessário retificar de forma atabalhoada na ONU. A política externa portuguesa deve mostrar-se coerente com o sentido de responsabilidade que revelou, por muitos anos, ao abordar a questão israelo-palestina. Assim, deveria agora ter estado na linha da frente deste reconhecimento, não ficando comodamente à espera da sua quase inevitabilidade, com conforto parlamentar, para fazer esse gesto. "Prudência e caldos de galinha" não ilustram uma postura internacional e tentar passar despercebido e ganhar tempo, apenas para agradar a amigos poderosos, é apenas uma forma de poder ser vir a ser acusado de oportunismo. Isso não dignifica Portugal, como nas Necessidades deviam saber.
 
Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias"

Interrogação

Hoje, no "Diário de Noticias", publico um artigo que intitulei "Tudo pela Palestina?".
 
Olho agora para o "online" do jornal e verifico que o ponto de interrogação desapareceu. Apenas no "online". Mas muda tudo. É a vida!

quinta-feira, dezembro 04, 2014

Sem Camarate

O exercício não deixa de ser fascinante, embora sem consequências.
 
Qual teria sido o futuro político de Francisco de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa se, na noite de 4 de dezembro de 1980, não tivessem morrido no desastre aéreo (fujo de qualificar como acidente ou atentado) de Camarate?
 
Há certezas: Eanes ganharia de igual modo as eleições presidenciais, dois dias mais tarde, contra Soares Carneiro. E Sá Carneiro não continuaria na chefia do governo. Mas haveria novas eleições, com Eanes a tentar "cavalgar" a sua vitória, ou a solução Balsemão iria de qualquer forma ter lugar, como aconteceu? E que faria Francisco Pinto Balsemão como primeiro-ministro, com Sá Carneiro fora de cena, a guardar para si a verdadeira legitimidade social-democrata? Sabe-se que Freitas do Amaral também não continuaria no executivo. E a Aliança Democrática? Manter-se-ia? Era muito pouco provável que Adelino Amaro da Costa viesse a ser a "cara" do CDS num governo Balsemão, tanto mais que fora ele o responsável pela falhada escolha de Soares Carneiro como candidato da direita. Que governo, liderado pelo PSD, surgiria no imediato?
 
Sá Carneiro teria hoje 80 anos. Qual teria sido o seu percurso desde então? Se não tivesse havido Camarate, seis anos depois, Portugal teria entrado de igual modo para a Europa comunitária. Que oportunidade teria entretanto tido Cavaco Silva para se afirmar no seio do PSD? Como teria sido a evolução da relação entre Sá Carneiro e Mário Soares, o verdadeiro contraponto geracional que se esperaria? Em 1986, Sá Carneiro teria sido eleito contra Mário Soares, que derrotou Freitas do Amaral com grande dificuldade? O carisma de Sá Carneiro seria suficiente para criar um grande partido de direita, absorvendo o CDS?
 
E Amaro da Costa? Continuaria a subordinar-se à tutela de Freitas do Amaral, ele que era politicamente muito mais hábil? Teria hoje 71 anos. Será que ele teria conseguido garantir uma melhor progressão dos centristas no espetro político, escapando aos períodos de grande instabilidade que afetaram o CDS?
 
Tudo isto são especulações. A realidade é o que está aí. 

As fotos

Há bastantes anos, num momento complexo de uma negociação financeira europeia, em que a posição portuguesa era muito delicada, dei uma entrevista a um jornal diário. Foi um prestação relutante, pela sua oportunidade, só realizada dada a particular consideração que a jornalista que a solicitou me merecia. Acrescia o facto de estar engripado e com um pouco de febre. A conversa correu bem, mas, talvez talvez pela minha concentração, distraí-me e não atentei no deambular do fotógrafo pelo gabinete. No dia seguinte, ao olhar para o jornal, dei-me conta do texto ter sido ilustrado por fotografias em que surjo com um braço estranhamente cruzado sobre a testa e numa atitude facial que poderia significar quase desespero. A seleção feita pelo paginador privilegiou imagens que pretendiam ilustrar um tempo de "tragédia". Na realidade, apenas refletiam um entrevistado febril.

Recordo-me que a jornalista que fez a entrevista ficou desagradada e me pediu desculpa pelo modo como ela fora tratada pelo jornal, no que havia sido, objetivamente, um ato de desrespeito pouco consentâneo com um profissionalismo correto. 

Com um fotógrafo a passarinhar à nossa volta durante largos minutos, é impossível que ele não fixe instantes que, se isolados, podem parecer ridículos. Os nossos gestos não são controlados ao ponto de mantermos sempre a maior das elegâncias, particularmente se estivermos descontraídos a falar com alguém. Todos nós temos a experiência de eliminar, com regularidade, fotografias em que achamos que "estamos mal". Imagine-se agora que era feito um álbum nosso precisamente com a coleção dessas imagens...

Tenho-me lembrado disto ao observar as fotografias que os jornais escolhem, nos últimos dias, para acompanhar as reportagens sobre José Sócrates. É uma interessante ilustração do modo como a seleção das imagens, o caráter sombrio dos planos ou os esgares captados numa imagem de rua ou numa pausa de uma cerimónia, servem para transmitir uma nota subliminar, ligada ao sentido da mensagem que o texto pretende fazer passar. Sublinho que esta minha observação não tem qualquer sentido crítico. É perfeitamente natural que isto assim suceda, que as reportagens procurem, nos arquivos, os apoios de imagem mais adequados, mas isso não impede que ache interessante que saibamos "desconstruir" o modo como as nossas sensações são condicionadas.

Uma questão talvez incómoda

Há semanas, num jantar com um antigo ministro de uma das antigas colónias portuguesas, que tinha vindo ao nosso país para estar presente numa evocação da Casa dos Estudantes do Império, coloquei-lhe uma questão: será que os novos países emergentes da colonização portuguesa manifestaram já o seu reconhecimento àqueles que, em Portugal, sob a repressão da ditadura, lutaram a seu lado, defendendo a independência dessas colónias?

A oposição ao Estado Novo chegou tarde ao anti-colonialismo. O patriotismo do movimento republicano, no final do século XIX, tinha a defesa das colónias no eixo da sua doutrina. Já no século XX, Portugal forçou a sua entrada na Grande Guerra como forma de poder sentar-se à mesa dos vencedores, que decidiria o futuro dos territórios. Cunha Leal e Norton de Matos, figuras destacadas da oposição a Salazar, eram orgulhosos "colonialistas", tendo-se confrontado nesse terreno com Salazar em termos meramente metodológicos. Nos anos 50, perante o movimento independentista que se generalizou às colónias britânicas, francesas e belgas, os democratas portugueses permaneceriam por muito tempo numa linha recuada.

Embora com um "timing" bastante atrasado face aos seus congéneres europeus, verificaremos que os comunistas portugueses foram os primeiros a iniciar uma leitura sobre a inevitabilidade da independência das nossas colónias. O desencadear da luta armada em Angola, e a tomada do Estado da Índia, em 1961, marcam o início desse novo tempo. Se nenhuma hesitação se pode igualmente registar da parte dos movimentos de extrema-esquerda, surgidos na vida política portuguesa a partir de 1962, já na área socialista o tema levou muito mais tempo a maturar: durante as "eleições" legislativas de 1969, o discurso "ultramarino" da Ação Socialista Portuguesa (ASP), liderada por Mário Soares na CEUD, manteve-se ainda muito equívoco. Já antes, aliás, na origem da crise da Resistência Republicana e Socialista, que daria origem à cisão entre a ASP e a Ação Democrato-Social, a questão colonial havia estado já ligeiramente presente.

Pode dizer-se que as eleições de 1969 representaram o momento em que a questão da luta anti-colonial passou a estar no centro do discurso oposicionista. É nessa altura que começam a multiplicar-se ações muito concretas de apoio aos "movimentos de libertação", com uma curiosa incidência nos meios católicos, enfunados pela leituras radicais do Concílio Vaticano II, de que o episódio da Capela do Rato (1972) é um exemplo importante. Exemplos como o CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial, reconvertido, após 1974, em Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral) e as ações violentas conduzidas pelas Brigadas Revolucionárias e pela Ação Revolucionária Armada são apenas algumas dentre as muitas estruturas cuja ação ilustrou, de forma muito clara, essa atitude anti-colonial no seio da oposição à ditadura. Note-se que a repressão policial tinha as expressões de apoio à luta armada nas colónias como alvo prioritário.

Apoiar a independência das colónias nunca foi fácil. Com tropas portuguesas a morrerem nas frentes africanas, no combate aos movimentos independentistas, estava longe de ser cómodo assumir, em Portugal, um apoio a esses grupos. Quem o fez arrostou - e às vezes ainda arrosta - com um labéu de "traidor", que se estendeu com particular virulência aos desertores. Ter razão antes do tempo é, quase sempre, bastante complexo.

E volto ao princípio, para me interrogar sobre se os novos Estados, passados que são quase 40 anos sobre as suas independências, marcaram já, de forma clara e inequívoca, o seu reconhecimento histórico face a quantos, deste lado europeu - mas também, em alguns casos, no seu próprio território -, arriscaram a sua vida e a sua segurança para apoiarem uma luta que consideravam justa. Não creio que isso tenha sido feito e tenho pena: essa seria uma ação pedagógica junto das próprias opiniões públicas das antigas colónias, que assim melhor perceberiam que os seus povos puderam contar, a partir das suas primeiras movimentações de contestação dos poderes de Lisboa, com bons e leais amigos na "frente" do próprio país colonizador, que por eles correram fortes riscos e muitos dos quais pagaram por isso um imenso preço. Talvez a própria imagem de Portugal junto desses novos Estados pudesse vir a ganhar com isso. Mas, um gesto desses, a ser feito, teria de sê-lo num prazo de tempo razoavelmente rápido. É que essa geração portuguesa começa já a desaparecer.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

A esquerda e as greves

Às vezes, há a ideia que ser de esquerda é estar, como regra, ao lado daqueles que fazem greves. Assim, não sei o que há-de fazer alguém que se considera de esquerda e que se opõe:
 
- às greves do pessoal da TAP, que afetam dia após dia, o valor da companhia e parecem ter como objetivo desvalorizá-la para a "passar a patacos" na privatização;
 
- às greves de enfermeiros por altura do surto da "legionella";
 
- às greves dos maquinistas da CP, que já se fazem substituir por atrizes brasileiras na condução a alta velocidade;
 
- às greves dos professores comandados pelo inefável Mário Nogueira, cujos estudantes a quem deu a última aula devem estar já à beira da reforma.

Concerto de beneficência

A Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA) organiza no Teatro Nacional de São Carlos um concerto para angariação de fundos, na sexta-feira, dia 12 de dezembro.
 
O reduzido número de doentes a nível mundial desta enfermidade genética (em Portugal são "apenas" 700) levou ao desinteresse dos laboratórios no investimento em investigação desta terrível doença degenerativa. Nos Estados Unidos iniciou-se um movimento de sensibilização (o "ice bucket", o balde de gelo) que levou personalidades como Bill Gates a doar 8 milhões de dólares. Em Portugal, os amigos e familiares desses doentes - e eu conheço alguns - tentam alertar e mobilizar as boas vontades para a gravidade do problema. Todos se recordarão, nas televisões e jornais, das cenas dos "bandes de gelo", com vista à recolha de fundos. Mas é necessário fazer mais e daí a razão deste concerto.
 
Na primeira parte do concerto, haverá música sinfónica com a Orquestra do Norte: obras de Manuel de Falla e Luis de Freitas Branco. A segunda parte será dedicada à ópera, com o cantor russo Sergei Leiferkus, a soprano Elmira Karakhanova e o baixo Misha Gravilov, acompanhados pela Orquestra do Norte, dirigida pelo seu maestro titular, José Ferreira Lobo. Serão interpretadas diversas árias e duetos famosos.
 
Pode reservar os seus bilhetes através do 910690559 e obter informação complementar através do mais gala.apela@gmail.com

Necessidades

É um retorno inesperado, confesso. Não fazia parte dos meus cenários de futuro regressar a questões ligadas à vida interna dos Negócios Estrangeiros, das quais me tinha afastado, por completo. Porém, a persistente insistência de um grupo de jovens diplomatas fez com que aceitasse, pelo período de um ano, regressar às lides do associativismo sindical diplomático.
 
A difícil situação que atravessa a "condição diplomática" obriga-me a dar um contributo, ainda que modesto, à organização dessa inquietação no seio da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP), como candidato à presidência da sua Assembleia Geral. É uma lista que tem os meus colegas e amigos Manuel Marcelo Curto e Josefina Carvalho, respetivamente, na chefia da Direção e do Conselho fiscal, acompanhados por gente das novas gerações que consideramos ser nosso dever apoiar, nestes tempos complexos.
 
Há precisamente 20 anos, tinha feito parte, como vice-presidente, de uma Direção da ASDP chefiada por António Santana Carlos, que desenvolveu um interessante trabalho de diálogo com o poder político de então, para a revisão do Estatuto da carreira diplomática. Agora, a agenda da ASDP centra-se precisamente no mesmo tema. Toynbee terá razão?

terça-feira, dezembro 02, 2014

Palestina

Quando, há algum tempo, publiquei no "Diário Económico" um artigo sobre Israel, muito crítico da posição do governo de Telavive, tive fortes mas espectáveis reações. Uma amiga israelita ofendeu-se e deixou de me falar, um amigo português telefonou a dizer esta frase curiosa: "Só hoje acreditei que não tens ambições políticas. Ninguém que as tivesse poderia escrever o que escreveste". Como se eu não soubesse isso.

Dou uma contribuição mais para essa avaliação ao dizer agora que acho profundamente lamentável que o Estado português revele uma imensa tibieza face ao crescente movimento europeu no sentido de reconhecer o Estado da Palestina. Como se já nos não tivesse bastado a triste postura assunida por ocasião da integração da Palestina na UNESCO, que foi depois necessário retificar de forma atabalhoada. A política externa portuguesa deveria mostrar-se leal e coerente com momentos do seu passado em que revelou um forte sentido de responsabilidade ao abordar a questão israelo-palestina e afirmar-se agora na linha da frente deste reconhecimento, não ficando comodamente à espera da sua quase inevitabilidade para fazer esse gesto. "Prudência e caldos de galinha" não ilustram uma postura internacional e tentar passar despercebido e ganhar tempo é apenas uma forma de poder ser vir a ser acusado de mero oportunismo. Isso não dignifica Portugal, como nas Necessidades deviam saber. Não me agrada trazer polémica a um terreno em que o consenso deve prevalecer, mas há limites.

segunda-feira, dezembro 01, 2014

O mistério da RTP

Com as trapalhadas supervenientes, dos vistos "gold" ao caso Sócrates, já quase esquecemos a desgraça do sistema informático da Justiça ou a incompetência sem par no início do ano letivo. 

Quando vivi no Brasil, num jantar, no auge de um escândalo qualquer, ouvi um político, entre o irónico e o sério, dizer mais ou menos o seguinte: "Temos de aguentar a pressão dos mídia uns dias mais. É que, pela estatística, deve estar por aí a surgir um outro caso que logo fará esquecer este..." E Portugal é uma "colónia" brasileira nesta matéria.

Mas uma coisa é ter de sofrer as eventualidades, outra é ser delas fautora. E, nesse aspeto, este governo não para de surpreender. É o que acontece com a crise na RTP, onde se espera que não venham a ser assacadas culpas à oposição (há ainda uma hipótese: dizerem que tudo é fruto da saída de Sócrates de comentador). Com uma inabilidade quase inédita no tratamento da RTP (e fazer pior que outros governos, de diferente orientação, é entrar para o Guiness!) este executivo fez "gato e sapato" da RTP, nomeou, desnomeou, teve e deixou de ter estratégias para a RTP 2, para a RTP i, criou conselhos, legislou sobre serviço público. O habitual na escola "agora é que é!" Lá dentro, na RTP mas também na RDP, vive-se um ambiente angustiado, de imensa incerteza, de grande desânimo e preocupação.

A propósito dos contratos do futebol - e seguramente mobilizado pelos concorrentes da televisão estatal, a quem é forçoso "ouvir", em época pré-eleitoral... -, está hoje estabelecida uma enorme confusão entre uma administração nomeada pelo governo e um conselho estratégico pelo governo nomeado. Se são tudo "valores entendidos", como antes se dizia, porque não se coordenam? Ou, como na anedota se recomendava: organizem-se! 

Pedaço de asno

Gosto da expressão "pedaço de asno". O meu amigo Ferreira Fernandes, numa das suas imperdíveis crónicas no DN, utilizou-a, há dias, para crismar um determinado escriba da imprensa a que temos direito. É um qualificativo forte, mas (pensando bem!) tem algo de elegante. Ao utilizá-lo em relação a alguém, foge-se do plebeísmo, não se usa "burro", "besta" ou mero "animal", recorre-se ao termo mais erudito, hoje protegido pelo politicamento correto da preservação das espécies. Asno é, no fundo, um "upgrade". E então se se usar o apóstrofo - "pedaço d'asno" - ascendemos mesmo à nobilitação do conceito. Além disso, quem assim é designado é apenas um pedaço, um bocado, uma fatia de um asno, pelo que, numa determinada leitura, fica mesmo "à porta" de ser um verdadeiro e completo asno. Numa perspetiva menos gloriosa, poderia dizer-se que nem dessa total categoria subequídia se pode reclamar. Mas, se se olhar pelo "bright side" das coisas, numa leitura benévola, a pessoa assim qualificada não chega a ser um verdadeiro asno, o que, de certo modo, pode ser, para ela, um elogio. E, para alguns, é mesmo.

Cá por mim, aprendi de há muito uma expressão para designar esses pobres em espírito: "paralelepípedo batizado". Há décadas que ouvi esta fórmula e acho que a irrecusável solidez do conceito, associado à sua dimensão telúrica, lhe confere uma dignidade que reforça a sua autenticidade. A um paralelepípedo, na sua rusticidade, não se pode exigir que pense mas, ao mesmo tempo, o facto de ser beneficiado com um nome permite-lhe poder reivindicar-se de uma identidade própria. O que não é pouco, para certos cretinos. Na minha terra, bem para o norte, quando a bondade nos leva a escapar dos qualificativos, costumamos atirar a essas figuras uma fórmula definitiva: "quem te atasse um arado!" Fica tudo dito!

Mas tem razão, Ferreira Fernandes, seja como for que os designemos, isto está cada vez mais cheio "deles"!

O 1° de dezembro

António Barreto chamou "estupidez" à decisão governamental que eliminou o 1° de dezembro do mapa dos feriados nacionais. Eu falei em "ignorância" e "irresponsabilidade". Não fixei exatamente os termos utilizados pelos restantes oradores, como Adriano Moreira e Eurico de Figueiredo, na crítica unânime a essa medida. Foi durante a sessão organizada pela Associação dos Antigos Alunos do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real, precisamente para comemorar a data da Restauração.

Juntámos cerca de duas centenas de pessoas, unidos pelo interesse em rememorar a data, a sua simbologia, muito para além das sensibilidades políticas. É que o 1° de dezembro não é uma data apropriável pelas ideologias, muito embora o Estado Novo me tivesse feito marchar algumas vezes, de camisa verde (a minha mãe enchouriçava-me de camisolas), calção castanho curto (!!!) e um cinto com um grande S (que era de Salazar mas que a vergonha levava os prosélitos do regime a dizer que era de Serviço), de braço estendido em saudação romana (e também nazi-fascista), sob o frio matinal de uma Vila Real invernosa. Nem assim fui dissuadido de venerar o gesto histórico dos conjurados que, em 1640, recuperaram a nossa independência de Madrid.

Para o ano, espero regressar a Vila Real no 1° de dezembro, já com o feriado reposto. Voltarei a encontrar os velhos amigos na "ceia" da véspera da data, que agora se faz já com as mulheres (no meu tempo de liceu, as "ceias" eram exclusivamente masculinas), com outros pratos para além do arroz de frango (a tradição era a ceia ser confecionada com as "penosas" desviadas dos quintais, por onde nos introduzíamos nas noites anteriores). Iremos, como sempre, cantar o Hino da Restauração e berrar os Efe-Erre-Ás de regra, com a romagem à estátua de Camilo Castelo Branco, no jardim da Carreira. E, a partir de então, procuraremos fazer esquecer à cidade que foi um primeiro-ministro dela originário quem decidiu promover a suspensão da comemoração dessa data fundacional da nossa identidade e do nosso orgulho como país.

Viva o 1° de dezembro!

domingo, novembro 30, 2014

Socialistas

António Costa venceu, da forma esmagadora que já se presumia, o congresso do PS. A sombra da tragédia que envolve José Sócrates pairou por algum tempo sobre o conclave socialista, mas Costa foi capaz de mobilizar as hostes e de dar um sentido de forte unidade política ao seu partido. Os "seguristas" terão sido respeitados, os "socratistas" não terão sido excluídos e só Francisco Assis terá visto o seu individualismo desenquadrado da nova liderança. O discurso de encerramento de António Costa foi uma lufada de esperança, pelo que é agora de presumir que o PS exerça, neste ano que o separa das eleições legislativas, uma oposição determinada e efetiva à maioria "sortante", como dizem os franceses. Este congresso acabou por correr muito melhor para o PS do que, à partida, se poderia esperar.

À porta do conclave ficaram dois nomes: Sócrates e Seguro.

O futuro de José Sócrates não passa pelo PS, mas o contrário não é necessariamente verdade. Se Sócrates estiver inocente e impoluto, como espero e desejo, essa será uma sua grande vitória pessoal e sairá pela porta grande, com tudo o que isso representará para o prestígio da nossa Justiça. Se acaso se viesse a provar que, no exercício de funções de Estado, Sócrates tinha cometido algum delito grave, esse já seria então um problema do qual o PS não sairia incólume. Para já, e porque o reino do "achismo" só aos especuladores interessa, aguardemos. Quanto ao juízo que os socialistas fazem do trabalho de Sócrates à frente dos governos, só posso esperar que haja seriedade, isto é, destaque público para o muito que foi feito de bom e uma reflexão serena e modesta sobre os aspectos negativos que haja a apontar. O resto é "espuma"...

António José Seguro, cujo comportamento durante a campanha interna no PS não me eximi de criticar, é uma figura de bem, cujo recato atual configura uma atitude de grande dignidade, à altura daquilo que, com grande sentido de Estado e de serviço público, executou durante os cerca de três anos do seu mandato. O PS deve a Seguro a construção, num tempo inigualavelmente difícil, de um património de ideias e propostas que, sem a menor dúvida, também estarão no centro do programa de António Costa. E fica igualmente devedor de um ato de abertura democrática do partido que permitiu o sopro de legitimidade de que António Costa é hoje beneficiário. António José Seguro pode não ter o élan mobilizador de Costa, mas é um homem respeitável que também integra a história do socialistas.

Este é o primeiro dia de um PS renovado que se espera possa estar à altura daquilo de que muita gente no país hoje espera.

António

Como o tempo passa! Há precisamente 40 anos, António Antunes - que assina simplesmente António - publicava no "Expresso" o seu primeiro cartoon. Ao longo destas décadas, o mais genial e talentoso cartoonista português fez um imenso retrato a cores do país e do mundo. Um e outro premiaram fartamente a sua obra, que hoje é conhecida por toda a parte.

Ao António, membro da nossa tertúlia da "mesa dois", deixo aqui um forte abraço de amizade e de parabéns. E resisto à quase obrigatória tentação de reproduzir aqui um dos seus desenhos - embora hesite muito quanto aos que prefiro, dentre uma obra tão rica - colocando o seu retrato, onde se destaca o permanente sorriso, mas de onde se não ouve a voz inconfundivelmente rouca, que, pelas noites do Procópio, nos traz a graça do seu humor e fina ironia.

sábado, novembro 29, 2014

O governador civil (3)

Estava-se em julho de 1969. Havia sido convidado pelo meu tio, Humberto Cardoso de Carvalho, para o acompanhar num passeio turístico com a família pelo sul de França. Colocava-se, porém, um obstáculo: eu estava em "idade militar", pelo que havia uma certa dificuldade em ser-me concedido um passaporte, necessitando de uma credibilitação prévia. Como o meu tio conhecia bem o governador civil, Torcato de Magalhães, fomos ambos por ele recebidos e o assunto resolveu-se, sem grandes dificuldades.

Fez-se a viagem. Passados dois meses, o país entrava em ebulição política com a preparação das primeiras "eleições" legislativas (à época, o regime não admitia outras e mesmo estas mereciam fortes aspas) da era Marcelo Caetano. Salazar caíra da cadeira em agosto do ano anterior, Caetano herdara-lhe o lugar, menos de dois meses depois. Durante as férias, o meu tio, que havia sido seduzido pela "abertura" política que então se anunciava aos quatro ventos, tinha-me dito que aceitara liderar a lista "marcelista" de deputados pelo distrito.

As hostes oposicionistas locais, pelo seu lado, não estavam paradas. Congregadas em torno da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), pediram uma audiência ao governador civil para lhe fazerem a entrega formal da sua lista dos candidatos a deputados pelo distrito. Solene mas cordial, Torcato de Magalhães recebeu uma manhã três responsáveis oposicionistas: Otílio de Figueiredo, Délio Machado e... eu. Ao ver-me entrar, senti que os seus olhos se arregalaram um pouco. Então aquele miúdo (eu tinha 21 anos) que, dois meses antes, lhe fora apresentado pelo agora líder politico local do regime, integrava o núcleo duro dos próceres do "reviralho"?

Acabada a cena, Torcato de Magalhães telefonou de imediato ao meu tio que, com toda a naturalidade, lhe respondeu que já sabia da minha opção e que "o rapaz tem todo o direito de ter as suas ideias". O governador civil deve ter ficado um pouco confundido. 

sexta-feira, novembro 28, 2014

O governador civil (2)

Esta é uma história que faz parte da mitologia de Vila Real e, ainda há semanas, a ela se referiu no Facebook o meu amigo Carlos Leite, um vilarealense "exilado" no refastelo do sol da Grécia.

Nos anos 50 do século passado, o Governo civil de Vila Real era chefiado pelo coronel Augusto Sequeira, um grande homem de bem a que me ligaram laços de amizade e grande simpatia, e a cuja comemoração do centenário de vida tive mesmo o privilégio de assistir. Era um "craveirista", um próximo de Craveiro Lopes, o presidente pouco cómodo de quem Salazar acabaria por se desfazer em 1958, optando por essa figura de antologia anedótica que se chamou Américo Tomaz.

Augusto Sequeira recebia nesse dia, em Vila Real, o então ministro do Interior, Trigo de Negreiros, um homem originário de Mirandela que também viria a cair politicamente em 1958. Passeavam-se os dois pelas ruas da cidade, numa tarde seca de inverno, aproximando-se a certa altura da Pastelaria Gomes, então (e ainda um pouco agora) o eixo social do burgo. À chegada à esquina no edifício, preparando-se para entrar no café, o valpacense Sequeira comentou alto, para Trigo de Negreiros, com a cumplicidade regional que os unia:

- Está um frio tipicamente transmontano!

Antes que Negreiros pudesse retorquir, a um gandulo de samarra que se encostava à esquina, fumando uma perisca, e quase sem os olhar, saiu esta frase que ficou nos anais locais:

- Transmontano o c...o ! Está mas é um frio f...o !

A doutrina divide-se sobre a sequência do episódio. As versões mais reviralhistas dão conta do rapaz ter sido encaminhado por um cívico para a esquadra da PSP, ali perto, por baixo do Governo civil. Leituras benévolas dão incidente por findo com uma repreensão risonha feita ao atrevido pelas figuras políticas. 

Uma coisa não mudou: passei há pouco pela esquina da Gomes e, embora não ousando a mesma ênfase lexical, sou levado a concluir que o famoso anónimo dos anos 50 do século passado continua a ter a sua razão...

quinta-feira, novembro 27, 2014

O governador civil

No tempo "da outra senhora", o lugar de governador civil, em especial na província, era um posto de alguma importância. Os ministros viajavam pouco, Lisboa podia ficar longe e competia aos governadores informar sobre a realidade local e representar localmente o governo. Porque os autarcas eram nomeados pelo partido único, cabia aos governadores - homens da estrita confiança do governo - um papel decisivo na seleção dos presidentes dos municípios e suas vereações. Daí a importância objetiva desses chefes dos distritos, que alguns relativizavam com maior ou menor simpatia, que a outros enfatuava o porte.

Em Vila Real, recordo-me das caras de vários governadores do Estado Novo. Deles me ficou a imagem de que se passeavam pelas ruas com alguma pompa, acompanhados de figuras, figurantes ou mesmo figurões locais, ungidos da vaidade de serem vistos a fazer parte do serralho do poder. O "senhor governador" era, sem exceção, o centro dessa coreografia, revelando o seu ascendente por um pormenor que, para mim, foi sempre significativo: se, durante o passeio, para sublinhar um argumento, ele decidia travar o passo, logo o rebanho à volta suspendia a marcha e atentava nas importantes palavras que sua excelência entendia relevar. E, ao seu estugar do andamento, todos os outros o seguiam. Se Roland Barthes passasse então em frente à Gomes ou na rua Central, retiraria dali um capítulo para os seus estudos de semiologia. No mínimo, dedicaria uma das suas "Mitologias" a essas curiosas figuras que compunham a teatralidade político-social da ditadura.

Porque me lembrei disto agora? Porque passei, há minutos, junto a um desvio para a aldeia de Moura Morta, entre Castro Daire e Lamego, e recordei-me que havia uma figura dessa aldeia que vinha com frequência a Vila Real e que, pela sua pose e ar majestático era conhecida na cidade, jocosamente, como o "governador civil de Moura Morta". Mas não tinha o exclusivo do apodo: um comerciante de Lordelo, às portas de Vila Real, aliás homem simpático e agradável, possuidor de uma "bela figura" e andar pausado, foi também, durante anos, conhecido como o "governador civil" de Lordelo. De certo modo, estas designações acabavam por ser um implícito reconhecimento do prestígio do cargo.

Com a chegada da democracia, os governadores civis deixaram de ter alguma "graça" - e que me perdoem alguns bons amigos que exerceram esse cargo. Com os autarcas a serem as figuras centrais do jogo político local, esses representantes do poder central foram sendo limitados nos seus poderes. O governo que aí anda decidiu mesmo acabar com eles. Não sou nostálgico, mas a entrada de um governador civil da "outra senhora" na Gomes era um espetáculo!

Negócios da China

Será curioso perceber qual o consenso possível deste lado do Atlântico face ao "bullying" a que Trump vai sujeitar a Europa, na su...