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segunda-feira, maio 16, 2016

António Gomes da Costa


Acabo de saber que, por motivos pessoais, António Gomes da Costa deixou a presidência das várias instituições luso-brasileiras a que, por várias décadas, dedicou a sua vida e o seu empenhamento pessoal. Na história da comunidade luso-brasileira, poucas pessoas podem ombrear com António Gomes de Costa na sua devoção à tarefa de proteger, no Brasil, e com persistência, o bom nome dos portugueses, a dignidade da história lusa, a promoção da amizade entre os dois povos. Fê-lo através da sua intervenção cívica, da sua palavra na imprensa, da sua ação de acompanhamento, de direção e coordenação dessa notável rede de instituições, que em tempos foram geradas pelos portugueses no Brasil, fantásticos exemplos de realizações de que todos temos obrigação de nos orgulhar. Uma obra que é pena que não seja mais conhecida do que é, tanto por portugueses como por brasileiros.

Quando cheguei ao Brasil, em 2005, para assumir as funções de novo embaixador português, Gomes da Costa sabia que tinha à sua frente alguém de quem estava bastante distante no plano das ideias políticas. Por razões que não vêm aqui para o caso, e que o curso histórico ajuda a explicar, há setores da nossa comunidade no Brasil nos quais permanece uma afetividade ao tempo que precedeu a rutura política ocorrida em 1974. A circunstância dessa comunidade ter passado a integrar, após o 25 de abril, figuras do mundo político e económico que então buscaram refúgio no Brasil, face aos ventos revolucionários que, à época, sopravam em Lisboa, criou por ali um caldo de cultura conservadora que, como é natural, muito marcou a matriz política de algumas - ainda que não de todas - as instituições luso-brasileiras. Acresce, nesse contexto, que muitos portugueses que viviam até então na África tutelada pelo regime português, e que, em desespero, foram viver para o Brasil, reforçaram com naturalidade esse sentimento. Isso é simbolizado, até hoje, em alguma iconografia de figuras do Estado Novo que sobrevive nos salões de muitas dessas instituições, memória de um passado que alguns entendem dever continuar a reverenciar. Como é do seu pleno direito.

Um embaixador de Portugal é o embaixador de todos os portugueses que vivem no país onde está acreditado. Representa o chefe do Estado, a República e a democracia, mas tem de entender que pode haver, na comunidade desse país, quem tenha ideias que contrariam os valores que lhe cabe afirmar e promover. Isso não o deve impedir de tratar esses portugueses como quaisquer outros, porque a tal o obrigam as regras do Estado democrático que lhe cumpre defender e aplicar. Essa é, a meu ver, a superioridade moral das democracias.

É aqui que devo uma palavra de reconhecimento e muito respeito a António Gomes da Costa. Sabendo quem eu era, conhecendo as minhas ideias e as nossas diferenças, Gomes da Costa soube, com grande inteligência, desenhar um terreno de integração do novo embaixador em setores da comunidade onde figuravam muitas das idiossincrasias que referi, num entendimento subliminar onde prevaleceu sempre o muito que nos unia - o interesse de elevar o nome de Portugal e da dignidade da comunidade luso-brasileira. Recordo, como uma memória muito positiva, os muitos momentos gratificantes que passei nessa segunda "embaixada" portuguesa que é o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em eventos de diversa natureza, ao lado de António Gomes da Costa, que aí foi por muitos anos a figura referencial. E quero dar público testemunho de que, em todas as ocasiões em que procurei o seu apoio para iniciativas em que o seu auxílio podia ser necessário, obtive sempre a sua imediata atenção desinteressada - ou melhor, sempre interessada em contribuir para tudo o que pudesse ser útil à promoção dos valores portugueses no Brasil. Devo-lhe um sem número de atenções e, no momento em que abandona a sua generosa entrega às causas da comunidade, quero afirmar-lhe a minha sincera gratidão e admiração, na qualidade de antigo embaixador de Portugal.

Termino com uma nota um pouco mais pessoal. Um dia, eu e António Gomes da Costa demo-nos conta de que, em tempos comuns mas com um oceano de permeio, ambos havíamos trabalhado para essa grande instituição estatal que é a Caixa Geral de Depósitos. É assim ao meu amigo, mas também ao ex-colega, António Gomes da Costa que aqui deixo um forte abraço.

segunda-feira, outubro 26, 2020

Caetano e os portugueses no Brasil


Faz hoje quarenta anos que morreu, no Rio de Janeiro, Marcelo Caetano. Por vontade expressa em vida, os restos mortais do chefe do governo derrubado em 25 de abril de 1974 permanecem no Brasil.

Há pouco mais de quinze anos, assumi funções como embaixador português no Brasil. Algumas semanas passadas sobre o início das minhas funções, fui recebido numa sessão solene, como sempre acontece a todos os embaixadores portugueses, no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro. Fez as honras da casa o Dr. António Gomes da Costa, à época presidente daquela instituição.

O Real Gabinete é, muito provavelmente, a mais emblemática instituição da comunidade portuguesa e luso-brasileira. Outras importantes e prestigiadas estruturas com esta raiz existem no Brasil, mas o simbolismo do Real Gabinete é reconhecidamente único.

O Dr. António Gomes da Costa era um homem que eu sabia bastante conservador. Ele, aliás, não o escondia, nomeadamente nos artigos que regularmente publicava em “A Voz de Trás-os-Montes”, o jornal da minha terra. 

Posso imaginar que alguma desconfiança sobre o novo embaixador pudesse pairar no seu espírito. De facto, eu afirmava com orgulho ter estado “implicado” no 25 de Abril, sabendo nós que em importantes setores da comunidade lusíada no Brasil essa continua a não ser uma data demasiado reverenciada, e estou a ser irónico. 

Nas palavras que deixei nessa cerimónia, traduzindo exatamente o que pensava e sentia, afirmei, deliberadamente, estar ali como representante oficial do Estado - e não do governo de turno em Portugal -, logo, ao serviço de todos os portugueses residentes no Brasil, independentemente das respetivas ideias. Imagino que, para alguns ouvintes, o que disse tenha sido entendido como uma flor de retórica. Julgo que o saldo dos meus quatro anos no Brasil provou que estava a falar a sério.

Mas não é isso que hoje importa. No final da sessão, sob a sombra tutelar do busto de Salazar, que continua a decorar politicamente uma das salas do Real Gabinete, chamei o Dr. Gomes da Costa à parte e perguntei-lhe se ele sabia em que estado estava o túmulo do professor Marcelo Caetano. Notei a sua cara de surpresa. Mas continuei. Pretendia saber se estava cuidado, bem tratado, preservado. Sendo o lugar onde estavam os restos mortais de uma figura de Estado portuguesa, entendia que devia ser prestado um permanente cuidado ao local, pelo que lhe pedia o favor de tentar saber se isso estava assegurado. Se necessário, a embaixada tentaria providenciar meios para tal.

Recordo-me de António Gomes da Costa continuar um pouco espantado. A última coisa de que deveria estar à espera é que aquele diplomata, que ali havia chegado precedido de uma imagem de esquerda, mostrasse preocupação com o túmulo de um político que, com visível gosto, ajudara a derrubar. Mal ele sabia que eu, que não nutria a menor admiração política pela figura de Caetano, estava a ser muito sincero nos meus propósitos.

António Gomes da Costa disse-me ter conhecimento de que um grupo de nossos compatriotas residentes no Rio mantinha a sepultura a seu cargo. Mas que não deixaria de contactar-me, se acaso soubesse haver algum problema. Nunca me voltou a falar no assunto, pelo que presumi que a questão nunca se colocou.

Ao final da minha estada no Brasil, fiquei amigo de António Gomes da Costa. Trocámos cartas já depois desse período. Lamentei a sua morte, ocorrida há já algum tempo, num artigo publicado da imprensa portuguesa local. Era um patriota à sua maneira, que estava nos antípodas da minha, mas em quem reconheci a extrema dedicação que devotava ao Real Gabinete e às outras estruturas associativas a que estava ligado. Tenho por regra não medir as amizades pela bitola das ideias políticas. Este foi apenas mais um caso.

Neste que é o dia da morte de Marcelo Caetano, lembrei-me de contar este episódio.

sábado, maio 20, 2017

Agora Marcelo Caetano

Como aqui assinalei, morreu, há dias, no Rio de Janeiro, António Gomes da Costa, um dos mais destacados líderes da Comunidade portuguesa no Brasil. 

Foi uma figura cuja ação sempre admirei, pela sua empenhada dedicação à promoção de Portugal no Brasil e ao aprofundamento das relações luso-brasileiras. Era um homem profundamente conservador, apreciador confesso das virtualidades do regime derrubado em 1974, crítico regular no novo regime então surgido.

Isso nunca o impediu de manter um relacionamento impecável com os representantes do Estado, em democracia, como foi o meu caso, entre 2005 e 2009.

Num depoimento que hoje enviei para o JL - Jornal de Letras, contei um episódio passado no primeiro encontro que tive com António Gomes da Costa, em inícios de 2005. 

Perguntei-lhe então sobre o estado de conservação da sepultura do professor Marcelo Caetano. Respondeu-me que tinha indicações de que o espaço estava bem cuidado, por pessoas da nossa comunidade. Notei, contudo, a sua surpresa, pelo facto de eu ter abordado o assunto. Expliquei-lhe – e fazia-o com total sinceridade – que era minha preocupação, como embaixador, garantir, durante o tempo que durasse a minha missão no Brasil, que o local onde estavam os restos mortais daquele antigo chefe do governo estivesse preservado com a dignidade necessária, assegurando que a embaixada tinha toda a disponibilidade para auxiliar em tudo quanto, nesse domínio, viesse a ser necessário fazer. 

António Gomes da Costa terá percebido nesse instante que a minha atitude relevava de uma leitura de Estado, muito para além das trincheiras políticas muito diversas que ocupávamos. E julgo que isso contribuiu para que, a partir daí, nos tivéssemos relacionado sempre sem o menor problema. Continuando nós, bem entendido, cada um "na sua", em matéria política.


É que uma coisa que todo o diplomata deve ter sempre bem presente, quando está em serviço no estrangeiro, é que, estando embora sob as ordens conjunturais do governo de turno, ele representa o Estado e é depositário de toda a História que o país carrega consigo. Toda, mesmo.

quarta-feira, maio 04, 2016

Manifesto

RECONFIGURAÇÃO  DA  BANCA  EM  PORTUGAL

–  DESAFIOS  E  LINHAS  VERMELHAS  –
  1. Tudo indica que os problemas de reconfiguração da banca em curso em Portugal permanecem, infelizmente, uma questão de relevante actualidade. É público e manifesto o desagrado e preocupações com o modo como esta questão têm sido abordada e decidida, e com a evolução daí resultante. O recente resgate do BANIF é apontado, a vários títulos, como um mau exemplo, que não pode repetir-se: excessivo voluntarismo, pouca transparência, deficiente gestão estratégica, falta de liderança política, destruição de valor e custos significativos e prolongados, para a economia portuguesa. Em particular, são motivos de inquietação  a metodologia e objectivos adoptados pelas autoridades europeias, não devidamente compensados pela actuação dos decisores nacionais.  O  receio de que as falhas identificadas no processo possam vir a afectar qualquer  outro banco português, com graves consequências para o sistema bancário e para o futuro do País, justifica, em nosso entender, uma tomada de posição clara por parte dos que não concordam com o recente curso dos acontecimentos.         
  2. A actividade bancária constitui um sector estratégico, que assegura a intermediação indispensável ao funcionamento de qualquer economia e ao desenvolvimento das suas relações com o exterior. As avaliações e decisões dos bancos  em matéria de concessão de crédito seleccionam, na prática, quais  as empresas e projectos que irão ser financiados. Desse modo, influenciam a composição das actividades produtivas, o crescimento  e a criação de emprego. Por outro lado, o sistema bancário – pelo contacto directo com a diversidade da actividade económica – pode e deve desempenhar também um relevante papel na concretização de iniciativas de investimento e comércio, parcerias e aquisições ou fusões.
  3. A importante função da banca numa economia só poderá no entanto ser assegurada se o sector estiver adequadamente estruturado. Não sendo garantidas as necessárias condições de competitividade na configuração do sector,  é previsível que qualquer banco, ao preferir menor risco e maior rendibilidade nas suas aplicações, oriente as poupanças que lhe são confiadas para os centros de maior dinamismo, agravando assim eventuais desequilíbrios regionais, não apenas no espaço nacional mas também no europeu.
  4. A diversidade de instituições financeiras  pode, pois,  contribuir significativamente para uma concorrência mais transparente, melhor aderência às realidades económicas  e sociais locais, e até para mais eficaz resposta às políticas monetárias, evitando-se  assim a dependência excessiva em bancos “too big to fail” e outros conglomerados financeiros, com os associados riscos sistémicos conhecidos.  Não é aliás por acaso que na Europa e noutras regiões desenvolvidas do globo a propriedade das instituições bancárias tem sido preservada em estreita relação com as comunidades nacionais e regionais.
  1. A crise do sector bancário em Portugal (a partir de 2011) e o recente arranque da implementação da União Bancária Europeia tornam inevitável uma profunda reconfiguração do nosso sector financeiro. É indispensável que esta seja acompanhada com realismo , rigor e transparência  pelas autoridades nacionais e europeias, de forma a permitir que, em complemento de uma adequada política fiscal, o sector bancário em Portugal  contribua para o reforço da poupança nacional e do  investimento produtivo no País.  Uma reconfiguração mal orientada, pelo contrário, redundará previsivelmente no agravamento do actual quadro de estagnação económica e desemprego, podendo mesmo contribuir para  suspeitas e rejeição do projecto de integração europeia.
  1. A diversificação da origem do capital é neste contexto factor determinante da concorrência, i.e.  a estrutura  bancária tem de assentar na diversidade  das instituições accionistas e  da correspondente origem, por forma a que  as empresas portuguesas possam beneficiar de fontes de financiamento provenientes de diferentes nacionalidades e de centros de interesse distintos. Tal não poderá  manifestamente ser garantido, se a propriedade da banca privada portuguesa vier a estar concentrada e/ou dominada por instituições de um qualquer único país estrangeiro.
  1. O triste caso do resgate do BANIF indicia a adoção de um paradigma inaceitável, que não pode ser replicado em casos futuros. Se o que parece é, a actuação do BCE neste caso, em vez de viabilizar soluções com menores custos e igualmente credíveis, antes reflecte uma estratégia que coloca a banca privada nacional na dependência de um muito escasso número de bancos de um país estrangeiro. Além de colocar Portugal numa posição de evidente vulnerabilidade relativamente a quaisquer questões bilaterais ou sistémicas, tal estratégia resultaria em claro detrimento da concorrência e da diversificação do relacionamento bancário externo.
  1. Neste caso do BANIF é também patente que a actuação do BCE menosprezou a dimensão da concorrência e a possibilidade das empresas portuguesas poderem beneficiar de fontes de financiamento  provenientes de nacionalidades diversas e de centros de interesse distintos. Não é compreensível a razão para terem sido afastados do concurso concorrentes de nacionalidade distinta, detentores de licença para o exercício da actividade bancária e com ofertas de montantes significativamente superiores.
  1. Não cabe ao BCE pré- definir a configuração do sector bancário de qualquer país, nem o quadro das suas relações externas. Uma vez definido claramente,  no âmbito  da União Bancária, o quadro estratégico a prosseguir, sem discriminação  de países ou regiões geográficas, compete aos reguladores nacionais, em articulação com os respectivos governos, zelar pela apropriada estruturação, sustentabilidade e solvabilidade da configuração resultante. O regulador nacional não é uma mera delegação do BCE, e não pode eximir-se  a prestar contas às entidades nacionais, especialmente nesta fase de transição para a União Bancária, em que as decisões críticas são tomadas pelo BCE  mas os inerentes custos são suportados exclusivamente pelo país em causa.
  1. No processo de venda do BANIF, registaram-se igualmente fragilidades e omissões na actuação das autoridades portuguesas e em particular do regulador, nomeadamente ao aceitarem – sem devido escrutínio e explicita ponderação de alternativas – um processo de resolução que, além de não devidamente experimentado na Europa, acarreta significativos custos para o sistema bancário e os portugueses.
  1. O caso do BANIF leva-nos a rejeitar a repetição de desenlaces semelhantes  em casos futuros, e desde logo para o Novo Banco e o BCP. Em particular, não é aceitável  que a reconfiguração do nosso sistema bancário possa decorrer em condições menos favoráveis – quanto a prazos e exigências de resgates – do que as facultadas  a outros países europeus,  e que permanecem em vigor.  Há que ter em conta soluções que tornem possível a valorização dos activos, tendo em vista a sua eventual alienação, fusão ou detenção pública a título trasitório. Ou seja, sem recursos públicos adicionais, para além dos requeridos para a continuação da CGD na posse do Estado, uma vez que não é aceitável que, também neste caso, o accionista não deva capitalizar a sua empresa, como é sua obrigação. Acresce que os Tratados em vigor não autorizam discriminações de acordo com a natureza dos accionistas  – privados, públicos ou mutualistas. Compete , pois, ao Governo diligenciar junto das entidades europeias ( e em particular da DGConcorrência) para que as soluções indispensáveis sejam susceptíveis de concretização.
  1. Em síntese, há que assegurar que em futuros casos, incluindo o do Novo Banco, a solução a adoptar tenha em conta a dimensão estratégica ( de longo prazo ) do problema e não somente os aspetos financeiros de curto prazo. Impõe-se por isso que, no caso da venda do Novo Banco, o momento e a forma escolhidos para a sua eventual concretização sejam clara e objectivamente discutidos. Uma extensão do prazo de venda, até Agosto de 2019, tal como a lei permite, poderá justificar-se, tendo em vista o estudo de soluções alternativas, nomeadamente processos de fusão entre instituições, ou de oferta pública de venda (IPO) que assegure um  elevado número de novos accionistas. É igualmente importante que a modalidade de venda escolhida permita que entidades portuguesas relevantes possam participar do processo. Neste contexto não é de excluir, e seria mesmo desejável, a emergência de um banco de capitais portugueses, com expressão significativa no mercado. Importa, assim,  que o processo seja clarificado, definido , tornado público e aberto a todos os potenciais interessados, em totais condições de igualdade,  sendo inadmissível qualquer forma de escolha antecipada dos vencedores.
  1. A finalizar, considera-se indispensável que no âmbito da definição da estrutura accionista do Novo Banco e do BCP, sejam conhecidos os intervenientes que irão contribuir para a clarificação da situação e identificados os responsáveis pela decisão final, por forma a assegurar a transparência do processo, a competitividade do sistema e a sua contribuiçaõ efectiva para o desenvolvimento da nossa economia.
  1. O sector bancário português encontra-se actualmente numa encruzilhada entre dois caminhos distintos: A) reconfigurar-se por forma a conseguir a emergência de bancos fortes ( quer portugueses quer de  nacionalidades diversas) que facilitem e promovam as relações de Portugal com os diferentes continentes; B) aceitar uma redução de autonomia, com crescente dependência da nossa economia do espaço ibérico – como parece decorrer da actuação  recente das instituições europeias – interrompendo e contrariando a longa tradição portuguesa de participação activa e independente na globalização mundial.
O primeiro caminho exige um combate político determinado, com  demarcação clara, por parte dos responsáveis – sem por em causa compromissos europeus e regras inerentes ao funcionamento da economia social de mercado em que nos inserimos – de uma linha vermelha entre soluções que são aceitáveis e as que  não são admissíveis.

É este o desafio que se coloca aos portugueses e em particular  aos seus governantes.

Lisboa, 28 de Abril de 2016

-  Alberto Ramalheira
– Alberto Regueira
– Alexandra Costa Gomes
– Álvaro Beleza
– Ângelo Correia
– António Bagão Felix
– António Barreto
– António d’Orey Capucho
– António Mendonça Pinto
– António Leite Garcia
– António Santiago Baptista
– Aurélio de Sousa
– Bernardo Frazão Sardinha
– Bruno Bobone
– Carlos Fernandes
– Carlos Melancia
– Carlos Morais
– Carlos Pereira
– Carlos Silva
– Celeste Coimbra
– Clemente Pedro Nunes
– Diogo Freitas do Amaral
– Eduardo Catroga
– Eduardo Madeira Correia
– Eduardo Marçal Grilo
– Feliciano Barreiras Duarte
– Fernando Bello
– Fernando Gomes da Silva
– Fernando Correia da Silva
– Francisco Seixas da Costa
– Henrique Neto
– Henrique Simões dos Reis
– Jaime Lacerda
– Joaquim Lopes
– João Baptista da Silva
– João Cortez de Lobão
– João Duque
– João Ferreira do Amaral
– João Miranda
– João Salgueiro
– João Vieira Lopes
– João Alexandre Oliveira
– José António Girão
– José Ribeiro e Castro
– José Roquette
– José Sales Henriques
– José Torres Campos
– Júlio Castro Caldas
– Luís Janeiro
– Luís Aires de Sousa
– Manuel Pinto Barbosa
– Manuel Ramalhete
– Manuela Ferreira Leite
– Manuela Morgado
– Miguel Beleza
– Miguel Lobo Antunes
– Nuno Diniz
– Nuno Morais Sarmento
– Olga Correia
– Paulino Balão Fernandes
– Pedro Ferraz da Costa
– Pedro Teles Baltazar
– Renato Baptista
– Rui Rio

quarta-feira, julho 29, 2020

Adeus, meu capitão!


O capitão Teófilo Bento surgiu um dia na parada do quartel com um megafone. Estávamos nos primeiros meses de 1974, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, a unidade que, tempos depois, na madrugada de 25 de abril, iria ser a primeira a sair para a rua, para tomar o objetivo estratégico que eram os estúdios da RTP.

Lembro-me de alguns de nós termos estranhado o inusitado uso daquele aparelho nas mãos do Bento, porque nada em particular o justificava. Creio que a ninguém passou pela cabeça ligar o uso do aparelho a uma revolução que estivesse ao virar da esquina. Porém, esse megafone iria ser a sua imagem de marca no 25 de abril.

À época, eu era, simultaneamente, bibliotecário, diretor do jornal “O Intendente”, oficial de Ação Psicológica da EPAM e instrutor dos cursos da oficiais e sargentos milicianos. Uma tarde de fevereiro de 1974, no meio da parada da unidade, Bento, com quem eu tinha uma relação simpática, mas respeitosamente distante, dirigiu-se-me:

“Ó Seixas da Costa, preciso de falar consigo!” E como se fosse a coisa mais natural do mundo, foi adiantando: “Você estaria disponível para entrar numa ação militar para deitar abaixo o regime?” ou uma frase parecida.

Caí das nuvens! Tinha algum conhecimento da agitação que atravessava os meios militares, tinha estado presente em duas reuniões clandestinas de milicianos, onde se procurava acompanhar essas movimenrações, mas não tinha a menor ideia de que Teófilo Bento tivesse um papel relevante nesse contexto. Reagi, por isso, com grande prudência, não fosse tratar-se de uma provocação:

“Ó meu capitão! Isso é um assunto que não pode ser tratado assim! Tenho de ter mais informações para pensar nele”.

“Muito bem. Um destes dias falamos melhor”, respondeu-me Bento.

Ainda nessa tarde, falei com António Reis, aspirante como eu, que politicamente “bebia do fino” e que, rindo-se da inabilidade conspirativa do Bento, me confirmou que o capitão era a figura central da EPAM para uma organização do que estava em curso. E que falaria com ele sobre o “incidente”. 

Depois, as coisas aceleraram. Veio o 16 de março e, pelo modo como as pessoas na unidade reagiram a esse golpe frustrado, ficou mais claro de lado estava cada um e com quem era possível contar para uma eventual nova ação.

Na madrugada de 25 de abril, o capitão Teófilo Bento, acompanhado do alferes Geraldes e do António Reis, iriam ter um papel destacado na sublevação da unidade e na organização da coluna que iria tomar a RTP.

Ainda na noite desse dia, foi Teófilo Bento quem, com todos nós a seu lado, fez as “honras da casa”, na RTP, a Spínola e à Junta de Salvação Nacional, que dali se dirigiu ao país.

Dois dias depois, a 27 de Abril, Teófilo Bento, que interinamente passou a chefiar a RTP, coordenou, na sala da biblioteca da EPAM, um encontro com um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" em que foi acolitado por António Reis e por mim. Pela sala espalhavam-se figuras como Luís de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luís Filipe Costa, Luís Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que cerca de duas dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística.

Spínola tinha entretanto outras ideias para a RTP e elas não passavam pela manutenção de Teófilo Bento e dos militares da EPAM por lá, em funções que ultrapassassem a segurança das instalações. Teófilo Bento viria a sair da EPAM. Iria mais tarde dirigir o empreendimento agrícola do Cachão, perto de Mirandela. 

Perdemo-nos de vista por muitos anos. Cruzámo-nos episodicamente e mantivemos sempre uma relação solidária de camaradagem, fruto desses dias únicos que vivemos em conjunto.

O Bento foi um “puro”, um homem bom, com grande humor e forte sentido solidário. Estava, desde há não muitos anos, recolhido num lar, de onde um dia me telefonou, quando por aqui o referi num texto.

Teófilo Bento morreu hoje. Deixo esta nota de saudade

quarta-feira, abril 25, 2018

Um bom 25 de abril, meu capitão!


Um dia, o capitão Teófilo Bento surgiu na parada com um megafone. Estávamos nos primeiros meses de 1974, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), na Alameda das Linhas de Torres, uma unidade que, tempos depois, iria ser uma das primeiras a “sair para a rua”, para tomar o objetivo estratégico próximo, que eram os estúdios da RTP.

Lembro-me de alguns de nós termos estranhado o inusitado uso daquele aparelho nas mãos do Bento, porque nada o justificava. Creio que a ninguém passou pela cabeça ligar o uso do aparelho à Revolução que aí vinha. Porém, esse megafone iria ser a sua imagem de marca no 25 de abril, que se aproximava.

À época, eu era, simultaneamente, bibliotecário, diretor do jornal da unidade “O Intendente”, oficial e instrutor de Ação Psicológica na EPAM. Meses antes, ao ter ficado classificado em primeiro lugar entre os nove selecionados para a tal APSIC, fora convidado para ficar na EPAM naquele cúmulo de funções, tendo como principal missão coordenar os cursos de formação dos futuros oficial daquela especialidade.

Devo dizer que nunca percebi como fui parar à APSIC. Embora sem nunca ter pertencido a nenhuma estrutura política clandestina, tinha tido uma atividade bastante visível na CDE de Vila Real, durante as eleições de 1969. Na universidade, a minha eleição para órgãos associativos fora “não homologada” duas vezes, por decisão do governo, tendo ainda sido objeto de uma suspensão por “agitação académica”, que me impedira de frequentar as aulas e só ser autorizado a fazer as ‘frequências” e os exames finais. Estava longe, contudo, de ser um ativista ou um “politicamente ativo”, na gíria da PIDE/DGS. Por isso, estranhei um pouco a minha seleção para uma especialidade militar daquela natureza. Mas esses erros não eram incomuns: meses antes, António Reis, com muito destacada ação política e que fora candidato a deputado pela CDE, também viria a integrar o curso de APSIC.

Voltemos ao capitão Teófilo Bento. Uma tarde de fevereiro de 1974, no meio da parada da unidade, Bento, com quem eu tinha uma relação simpática, mas respeitosamente distante, dirigiu-se-me:

“Ó Seixas da Costa, preciso de falar consigo!” E como se fosse a coisa mais natural do mundo, foi adiantando: “Você estaria disponível para nos ajudar numa ação militar para deitar abaixo o regime?

Caí das nuvens! Tinha algum conhecimento da agitação que atravessava os meios militares, tinha estado presente em duas reuniões clandestinas de milicianos (uma num apartamento em Campolide, outra perto do Areeiro), mas não tinha a menor ideia de que a EPAM estivesse envolvida e de que Teófilo Bento tivesse um papel nesse contexto. Reagi, por isso, com grande prudência, não fosse tratar-se de uma provocação:

“Ó meu capitão! Isso é um assunto que não pode ser tratado assim! Tenho de ter mais informações para pensar nele”.

“Muito bem. Um destes dias falamos melhor”, respondeu-me Bento.

Nessa tarde, falei com o António Reis, que politicamente “bebia do fino” e que, rindo-se da inabilidade conspirativa do Bento, me confirmou que o capitão era a figura central da EPAM para as movimentações do que estavam em preparação. E que falaria com ele sobre o “incidente”.

Depois, as coisas aceleraram. Veio o 16 de março e, pelo modo como as pessoas na unidade reagiram a esse golpe frustrado, ficou mais claro quem estava com que lado.

Na madrugada de 25 de abril, o capitão Teófilo Bento, acompanhado do alferes Geraldes e do aspirante António Reis, teriam papel destacado na sublevação da unidade e na organização da coluna que iria tomar a RTP.

Na noite desse dia, foi Teófilo Bento quem, com todos nós a seu lado, fez as “honras da casa” na RTP a Spínola e à Junta de Salvação Nacional, que dali se dirigiu ao país.

Dois dias depois, a 27 de Abril, Teófilo Bento, que interinamente passou a chefiar a RTP, coordenou, na sala da biblioteca da EPAM, um encontro com um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" em que foi acolitado por António Reis e por mim. Pela sala espalhavam-se figuras como Luís de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luis Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que cerca de duas dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística (ficarei muito grato a quem puder ajudar a completar esta lista).

Spínola tinha entretanto outras ideias para a RTP e elas não passavam pela manutenção de Teófilo Bento e dos militares da EPAM por lá, em funções que ultrapassassem a segurança das instalações. (No 25 de novembro do ano seguinte, o meu amigo Duran Clemente ainda procurou “recordar”, na RTP o papel original da EPAM).

Teófilo Bento viria a sair da EPAM. Iria mais tarde dirigir o empreendimento agrícola do Cachão, perto de Mirandela. Perdemo-nos de vista por muitos anos. Cruzámo-nos episodicamente e mantemos uma relação solidária de camaradagem, fruto desses dias únicos que vivemos em conjunto.

Um forte abraço, amigo Teófilo Bento! 

segunda-feira, abril 15, 2019

O bibinha


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til), mas também o inefável "Diário de Notícias" e o ritualista “O Século” trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa e sinistra ditadura, a que se somou uma sangrenta guerra colonial, e tudo até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que ali vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo, até certa altura, foi muito parcimonioso no uso da figura de "secretário de Estado"), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Braga não é apenas a cidade do país que deu origem a mais expressões populares, como ontem aqui notei. É também, mas admito que possa estar enganado na minha “contabilidade”, aquela em que me parece que a estatuária urbana mais preserva, pelas figuras que celebra, alguns peculiares tempos políticos, antes e depois do 25 de abril.

Há pouco, em Braga, ao passar pelo monumento a Santos da Cunha, lembrei-me desta historieta. Verdadeira, claro.

domingo, abril 24, 2011

As vésperas de Abril


Com o ar sereno que projectava confiança, a que a calvície precoce também ajudava, o António juntou-se à mesa do Montecarlo onde, sem arranjos prévios, nos íamos encontrando em algumas noites desses últimos meses de 1973. Forte da sua aura de resistente, que sabíamos ligado ao “Partido” ainda antes das lutas de 69 em Coimbra, com contactos cuja solidez nos não passava pela cabeça pôr em causa, lançou em tom algo displicente, seguro de antecipar a nossa ignorância: “Então, já há mais novidades de Castelo Branco?”. 

Porque outra coisa não seria presumível na sua boca, habitualmente dada ao sério reportar de eventos heróicos das “massas”, logo nos cheirou a bernarda política sobre a qual, porém, a nossa troca de olhares rapidamente traiu uma amesquinhante comunhão no desconhecimento. Explorando o embaraço colectivo, o António, sem largar o tom algo sobranceiro de quem “bebe do fino”, mas já aberto a alguma generosidade informativa, lá esclareceu: “Então vocês não sabem do levantamento de rancho e da saída das tropas para a rua?”. 

Ninguém sabia de nada, ninguém tinha ouvido falar de qualquer movimentação de tropas, parte substancial da mesa acordara nesse segundo para a própria existência de um regimento em Castelo Branco.

Registe-se, para a História, que era tudo mentira, que nem uma palha mexera na tropa das Beiras, que o boato surgira, como habitualmente, da magnificação de uma qualquer rixa menor, lida à luz da matriz de esperança que à época pintava qualquer buliço castrense, com que a rapaziada à roda do PCP ia alimentando a perpétua madrugada dos amanhãs que por cá tardavam em cantar.

Era assim o Portugal de então, para quantos dentre nós, na casa dos 20 e dos 30, nos entretínhamos, na cavaqueira após o jantar, a cultivar pequenas historietas com ressonância política, enquadrando-as nessa manta de retalhos informativos que individualmente coleccionávamos e que nos dava a ilusão de estarmos a acompanhar o curso das coisas, de percebermos o fio condutor do que politicamente se passava à nossa volta.

(Previno, desde já, o leitor que não encontrará, no que se vai seguir, veleidades de generalização sociológica e que assumo, sem hesitações, o carácter subjectivo da minha própria experiência pessoal e o datado simplismo da perspectiva que deixo registada. Mas arrisco poder representar, em muita dessa vivência e desse mesmo olhar, um ambiente que combinou o tempo estudantil de alguns, a diversa vida já profissional de uns quantos e o percurso jornalístico-intelectual de outros escassos eleitos que quase todos invejávamos.) 

Juntos construíamos, no cultivo do debate de âmbito quase renascentista e da troca do “gossip” político-cultural, nessa Lisboa de pouco antes de Abril, um terreno de convivialidade dispersa que marcou alguma da nossa geração.

A Lisboa dos cafés, onde muitos de nós atenuávamos a solidão de quem caíra na capital um tanto desamparado, era um espaço de absorção, por vezes um tanto impressionista, de uma imensidão de sinais culturais que, ainda que sem grande critério, pressentíamos essenciais à afirmação de uma certa modernidade de pensamento, que nos dava a cómoda sensação de pertença à tribo. 

As novidades francesas recolhidas (sabe-se lá como...) das mesas da Livrelco ou da cómoda solidão da Universitária, os suplementos literários dos vespertinos, os ciclos de cinema francês e as sessões de cine-clube do Chile, os cursos político-culturais e os colóquios no “novo” Centro Nacional de Cultura iam de par com debates mais pesados que atravessavam as páginas da “Vértice”, da “Seara”, do “Notícias da Amadora” ou, mesmo, do “Jornal do Fundão”. À época, “O Tempo e o Modo” estava já entregue a um radicalismo sem remissão, o róseo “Comércio do Funchal” deixara de ser novidade e até o “& etc” perdera a sua graça meio anarca. 

As raras polémicas na imprensa, quase sempre envolvendo apenas figuras de sensibilidades da esquerda, acabavam por funcionar como mecanismos de substituição do debate democrático que não tínhamos e davam a cada um de nós um gozo proporcional à respectiva capacidade de partilha do código de leitura dos textos que o regime censório deixava passar, pela certeza que tinha da sua inocuidade prática em termos de proselitismo ideológico.

Marcados por uma evolução mais radical, alguns dessa geração assumiam ao tempo uma actividade política mais empenhada, de paralelo ou em substituição da militância associativa universitária. Uma vezes inserindo-se na proliferação esquerdista em crescendo (do maoísmo à LUAR, passando pelo PRP ou por aquilo que viria a ser o MES), as mais das vezes caminhando ao lado de um PCP cujos “revisionismo” e alegada passividade não esmoreciam as convicções de quem continuava a ver no “Partido” o eixo incontornável da vida política da oposição.

Alguns vindos dos áureos tempos do Vává, dos sobressaltos românticos da Suprema ou das noitadas da Alga, muitos de nós empreendêramos entretanto uma transição geográfica em moda, da Grã-fina até ao Montecarlo. Neste coabitavam já mundos muito diversos, da tertúlia neo-realista à marginalidade sexual, do vário jornalismo a um certo “bas-fond”, confinado este à área do dominó protegido pelos bilhares. O Montecarlo era um curioso espaço plural, uma espécie de permanentes “estados gerais” de uma esquerda em definição de projectos que, quando abonada, assomava ao bife nas “toalhas” e, na rotina da crise, se resumia à imperial do fim de tarde ou à bica da noite.

Esse é também o tempo da passagem frequente para “o outro lado da noite”, de que o Bolero e, mais tarde, o Jamaica vão ser exemplos fortes, aliás numa linha de colagem de mundos que várias gerações de Lisboa sempre se entretiveram a cultivar e de que o Maxime e o Ritz Club, e noutras horas o British Bar, serão pilares eternos. 

A política era, porém, um cenário de referência comum, se bem que com graus muito diversos de afirmação, de sensibilidade e, em particular, de intervenção. O choque eleitoral de 1969, complementado com as ressacas tardias do Maio do ano anterior, tinha ajudado a adubar o saudável mal-estar que se sabia atravessar estudantes, sindicatos e, ao que se dizia, também militares. Se a revolução não parecia estar ao virar da esquina, o fumo do fim do regime pressentia-se já no horizonte, embora sem saídas naturais muito evidentes.

Marcelo Caetano revelava-se sem garra para recuperar, através de reforma ousada, as brechas psicológicas provocadas na opinião pública pelo cansaço da guerra colonial, pela dessintonia institucional com um mundo exterior que se infiltrava no país por todos os lados, tendo como pano de fundo a crise económica que a situação petrolífera acentuara no edifício do regime. O marcelismo, fórmula recauchutada do salazarismo por via inábil, havia-se refugiado na revisão semântica (DGS, ANP, Exame Prévio) como elemento de auto-convencimento da vontade da mudança, desmentida pelo abandono com estrondo da “ala liberal”, pela forçada inoperância da solução SEDES e pelo enveredar pela reciclagem do pessoal da “situação”. Marcelo simbolizava a modorra do empate político, entre os “ultras” que pareciam tutelar Tomás e o bando disperso de renovadores sem aparente liderança.

O “Expresso” era a face mais visível do descontentamento do pessoal mais liberal - que, há que confessá-lo, muitos de nós olhávamos à época com algum desdém, por identificarmos com um sector da classe política dominante que apenas vivia na não respeitável ânsia de tentar garantir espaço para uma qualquer via reformista que evitasse a ruptura radical. Ainda assim, o jornal era a porta mais aberta ao nosso “voyeurisme” face ao regime, que apreciávamos com algum deleite exterior, porque era muito mais criativo que o discurso ainda um tanto reviralhista do “República” e só acompanhado pela subtileza persistente do “Lisboa”. 

Mas a guerra continuava a ser, para muitos dentre nós, o verdadeiro elemento de fronteira que distinguia o que era politicamente correcto (o termo tinha então um significado bem diferente do actual) de tudo quanto se colava ao regime. O estatuto dos “movimentos de libertação” impunha-se então como um dogma sem contestação, erigido mesmo num símbolo de pureza ideológica que utilizávamos para absolver as nossas próprias fraquezas. Estar desse lado, sem condições, impunha-se à esquerda de então como uma evidência, um pouco como o que sucedeu mais tarde a todos nós com a causa timorense.

É claro que nem todos tinham a mesma visão táctica. Em crescendo, os maoístas iam ocupando com eficácia o terreno das escolas, sofrendo, ciclicamente, uma repressão selectiva que potenciava novas ondas de contestação, que o regime se via em palpos de aranha para controlar. Das manifestações-relâmpago à proliferação panfletária, os grupos que se reclamavam de Pequim e Tirana iam tecendo um interessante, embora heterogéneo, movimento de destabilização académica que, como sempre, desagradava profundamente ao PCP, que perdia em terreno o que ganhava em diabolização ideológica.

Para os comunistas “oficiais”, que a polícia continuava a manter como alvo preferido, o período eleitoral de 73 consagrara, porém, o passo unitário prenunciado no Congresso de Aveiro, ao terem conseguido um entendimento com a corrente socialista, o que atenuou os dissídios fratricidas de 69. A isso se cumulava o seu crescente ascendente junto de uma parte do movimento católico, cada vez mais radicalizado desde os acontecimentos da Capela do Rato, parte chegando mesmo a ligar-se a uma deriva bombista, que o próprio PCP se vira forçado a acompanhar por via da ARA. 

Algumas faixas do movimento católico democrático mantinham-se, contudo, à distância destas tentações e fixavam o pessoal político que caminhava na órbita declaratória da SEDES, que o 25 de Abril viria a espalhar pelo PS e pelo PPD.

Num registo menos dado a movimentações de massas, os socialistas haviam finalmente concretizado em Bad Münstereifel a sua estruturação em partido, sob um programa político algo avançado para a sua base social tradicional. Esta continuava a não ultrapassar as profissões liberais de província e um conjunto de quadros urbanos da pequena e média burguesia, que em Lisboa se sabia agrupados num sector da “Seara”, em cooperativas e em alguns ritos persistentes, para além de cada vez mais dominantes na linha do “República”. Ideologicamente, continuavam federados pela imagem exilada de Mário Soares, recém-prestigiado pela publicação de um “Portugal baillonné” que nos chegara pelas cumplicidades na “Barata”, na “Moraes” ou na “Opinião”.

Neste quadro, onde seguramente falta muita gente, começavam finalmente a aparecer os militares. De início eram apenas uns rumores de descontentamento de carreiras, através de uns textos que relevavam mais do corporativismo que da revolta com possíveis consequências. Sabia-se de Spínola e da sua corte de apaniguados da Guiné, mas temia-se que a distância que o separava de Kaúlza fosse sempre mais curta do que a que ia até à Esquerda. Entre as operações “Mar Verde” e “Nó Górdio” não se via uma diferença que justificasse um mínimo de crédito. Longe pareciam os tempos dos militares políticos da Sé ou de Beja, e só os mais informados conheciam Melo Antunes, embora duvidassem que tivesse condições para levar à prática o seu rigor.

Reconheça-se que a experiência de convivência militar de muitos de nós, muito em especial desde os penosos tempos de Mafra, não aconselhava ao alimentar da esperança numa regeneração das Forças Armadas, que o passado ensinara penderem facilmente para o partido da ordem, temerosas com os descontrolos da rua. Acresce que, com escassas excepções, originadas pela abertura social do recrutamento, os militares de carreira que íamos frequentando, se bem que sensíveis a um certo desinquietar ideológico esquerdizante, nos pareciam ainda muito presos a reflexos de casta. Daí as reticências, e até alguma distância, com que víamos as suas movimentações e as raras virtualidades que lhes atribuíamos. 

Felizmente, a realidade tem muito mais imaginação que os homens. Nesses idos de 73 e inícios de 74, a força da movimentação democrática na tropa acabou por nos surpreender a todos, pela inesperada conversão de reivindicações corporativas, de raiz algo discriminatória face aos milicianos, numa consciência de poder potencial que levou à definição de um inesperado programa de democratização, com o fim da guerra como cenário, embora então apenas implícito. 

A certa altura, aqueles que, como eu, serviam de militares a prazo, foram obrigados pela força das coisas a ter de levar a sério a “rapaziada do quadro” e a tentar integrar a nova onda política que se começava a formar, quanto mais não fosse para ensaiar participar nalgum controlo do sentido do seu rebentamento. 

As informações que nos iam chegando começaram a prenunciar coisa séria e forçaram-nos mesmo a gizar um entendimento exterior, por sobre as nossas próprias divisões políticas. Recordo duas tumultuosas reuniões de milicianos - uma delas em Campolide, outra perto da Almirante Reis - onde, num granel organizativo e informativo que roçava a irresponsabilidade em termos de segurança, verificámos o muito que estava a mexer no “quadro permanente” e que as coisas tinham já uma dimensão que seria suicídio não procurar explorar.

Verdade seja que, para muitos, não era claro se a ruptura pressentida iria, de facto, desembocar numa linha afirmadamente democrática (e muito socializante, como alguns então pretendíamos) ou se, ao invés, não estaríamos a dar vento e a ser inocentes úteis para uma qualquer “quartelada” da qual nos acabasse por sair um Kaúlza ou figura de idêntico jaez. Mas a parada valia o risco.

Seguem-se a edição do “Portugal e o Futuro”, a cena da “brigada do reumático” e as demissões de Spínola e Costa Gomes. Não havia ilusões de que o Portugal que emanava do livro de Spínola era uma espécie de gaullismo requentado, sem óbvio futuro mas com a simpática virtualidade de dividir as hostes e trazer para o campo contra o regime sectores a que a Esquerda tradicional não chegaria nunca. A aventura das Caldas não nos sossegou quanto ao que resultaria de um golpe militar, mas deixou-nos mais optimistas face ao estado de alma dos que discretamente se mobilizaram então para o apoiar.

Nas noites inquietas que se seguiram, cruzámos boatos e revimos sinais, para tentar perceber em que sentido o que estava prestes a acontecer encaminharia o futuro de todos. Ninguém tinha uma percepção total das coisas, mas a progressiva junção de dados começava a tornar o “puzzle” mais coerente e com perspectivas de resolução.

Estou a ver o sorriso nervoso e o tom de gravidade histórica com que o António Reis nos disse, na biblioteca do quartel da EPAM, ao fim da manhã de 24 de Abril : “É hoje à noite!”. Quando saiu, os três ou quatro que partilharam o segredo entraram num minuto estranho de silêncio, na consciência do peso insuportável da informação recebida. Todos sentimos que o dia seguinte - a que ninguém se lembrou então de chamar “25 de Abril” - seria o princípio de uma história diferente para todos nós, acontecesse o que acontecesse.

O resto é conhecido. Não me consta que o outro António, de que lhes falei no início do texto - e que por aí anda -, haja aparecido nessa noite no Montecarlo a anunciar o arranque do Maia da parada de Santarém ou os golpes de mão à RTP e ao Rádio Clube, para daí a pouco. E ninguém lhe terá dito que, a essa mesma hora, Castelo Branco estava - agora sim!- a sair para a rua, rumo à vitória por que lutara. 

O Montecarlo é hoje uma loja espanhola, mas os espaços de liberdade que se abriram nessa noite valem bem todos os cafés do mundo que perdemos.

(Recupero aqui um texto que publiquei, há 15 anos, na revista "Camões".  Não lhe mudaria uma vírgula)

sábado, setembro 22, 2012

Manifestação


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til) e o inefável "Diário de Notícias" trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa ditadura e uma sangrenta guerra colonial e até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo só criou a figura de "secretário de Estado" bastante tarde), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Desse povo e desse tempo de "bibinhas", deixo uma bela e clássica fotografia de Gérard Castello-Lopes.

sexta-feira, janeiro 07, 2022

O adversário ausente

Dei comigo a perguntar que consequências podem resultar do embate televisivo entre António Costa e André Ventura, que acabo de ver.

Estamos perante dois “campeonatos” diferentes: não acredito que Ventura tenha conseguido deslocar sequer um voto de um eleitor que estivesse a pensar votar no PS, do mesmo modo que só por milagre alguém que estivesse inclinado a votar no Chega se convenceu, subitamente, das vantagens “do socialismo”, só por ouvir Costa. Não creio que “le coeur balance” entre o PS e o Chega no peito de muita gente.

Ventura está neste jogo para segurar o que for possível do meio milhão de votos que obteve nas presidenciais. O seu mercado eleitoral são faixas à direita que, orfãs de Passos ou de um outro PSD que fosse um seu “genérico”, se não reveem na moderação de Rui Rio, vivem irritadas com a “cumplicidade” de Marcelo com Costa e podem sentir-se tentadas a usar o voto no presidente do Chega para “partir a louça e depois logo se vê”.

Os slogans populistas e simplistas de Ventura, convocando indignações de vários matizes, têm eco em imensos ouvidos - mesmo nos de alguns que não vão votar nele: “o tipo até diz algumas verdades, mas não transmite confiança e já se sabe que não ganha”, ouve-se, às vezes. É por isso que o adversário de André Ventura, em qualquer debate, se chama, apenas e só, Rui Rio. Este é o terreiro da sua “guerra”.

O eleitorado potencial de António Costa é, como é natural, muito mais complexo.

Além do PS, que é, com razão, “taken for granted”, Costa quer ser visto, neste confronto com Ventura, como o representante da esquerda “eficaz”. Quero com isto dizer que Costa pretende vir a assegurar o apoio de muitos adeptos da Geringonça que, no passado, tendo sido capturados afetivamente pelo voto “útil” no PCP e pelo Bloco, para evitar que o PS tivesse excessivo poder, acordaram um dia com um orçamento chumbado e, tal como no PEC IV em 2011, para seu susto, pela mão da mesma esquerda em quem tinham confiado, viram aberto o caminho a um possível regresso da direita ao poder. Costa tenta demonstrar a essas pessoas, a maioria das quais votou Ana Gomes nas presidenciais, que, afinal, votar PS nas legislativas evitaria os riscos que agora se confirmaram. É o discurso do “eu não dizia?”

Mas Costa também fala para um outro eleitorado flutuante, bem mais importante em termos quantitativos, aquele que, às vezes, também vota PSD e que ele tenta agora captar com o seu estilo “statesmanlike”, forte dos galões que crê ter ganhado na luta contra a pandemia e no desenho das políticas económicas compensatórias para fazer face aos seus efeitos. Embora com destinatários de mensagem em geral diferentes dos de Ventura, também aqui o seu adversário se chama Rui Rio, face ao qual Costa pretende ser visto como um operador governativo incomparavelmente mais capaz, numa conjuntura difícil, onde “não convém arriscar”.

Ontem à noite, Rui Rio deve ter ficado com as orelhas a arder. 

sábado, novembro 05, 2011

Aristides Sousa Mendes

Uma conversa com João Crisóstomo, o indefectível defensor da memória de Aristides Sousa Mendes nos Estados Unidos, que aqui anotei há semanas, trouxe-me à evidência a questão do estado deplorável da preservação da residência do antigo diplomata, em Cabanas de Viriato. 

Não fui o único a chocar-me e, por essa razão, integro um grupo de pessoas que hoje divulga no jornal "Público" uma texto-alerta.  Assinei-o porque me parece muito justa a posição tomada e também, no meu caso pessoal, porque considero que, depois de tantos anos e de tantas boas-vontades mobilizadas e desperdiçadas, estamos perante um verdadeiro escândalo, onde se misturam incúria, incompetência e o exacerbamento de alguns egos. A memória de Aristides Sousa Mendes não é propriedade de ninguém e muito menos o poderá ser de alguns que, nada fazendo, nada deixam que nada se faça. Quem assim procede não parece entender que está a fazer o jogo objetivo dos inimigos póstumos do diplomata - e, podem crer, eles não são poucos.

Aqui fica o texto do artigo hoje publicado, sob o título "Em defesa da Casa do Passal, de Aristides Sousa Mendes":

Não é possível aceitar o estado de extrema degradação em que se encontra a Casa do Passal, situada em Cabanas de Viriato, concelho de Carregal do Sal. Uma situação tanto mais indigna, porquanto se encontra classificada como património nacional.

Falar do Passal é lembrar a figura notável de Aristides de Sousa Mendes, «o cônsul de Bordéus», como ficou conhecido,  que, de Novembro de 1939 a fins de Junho de 1940, contrariando as ordens de Salazar, concedeu vistos a cerca de 30.000 refugiados, de diferentes nacionalidades, 10.000  dos quais judeus, salvando-os da perseguição das tropas nazis que haviam invadido a França. Um acto desinteressado, e nas suas palavras, «inspirado  única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de generosidade», mas que, paradoxalmente, lhe mereceu uma severa punição. 

Sousa Mendes não foi "o Schindler português" como, muitas vezes, se afirma. Com efeito, o seu procedimento não teve outra «recompensa» senão a «satisfação da [sua] consciência», e da desobediência às instruções de Salazar, que não permitiam «dar vistos a cidadãos dos países já ocupados pelos alemães» e em caso algum «a Judeus, Russos, Polacos, Checos e os sem-pátria», resultou o seu afastamento compulsivo da carreira diplomática e a impossibilidade de exercer a advocacia, situações que se repercutiram dramaticamente na Família, aliás numerosa, e que o apoiara no trabalho exaustivo da emissão de vistos. Sousa Mendes não elaborou uma qualquer lista de gente a salvar; disse sim a quantos, desesperadamente, o procuraram, indo para além das suas possibilidades. Testemunham-no a memória de documentos e de descendentes de refugiados salvos. Em carta dirigida ao embaixador do Brasil, pedindo-lhe que intercedesse em seu favor, ditou ao seu filho Luís Filipe: «Esperava eu que, terminada a guerra, Salazar reconsiderasse a sua injusta decisão, mas tal não sucedeu, encontrando-me eu actualmente não só na mais cruel miséria com a minha numerosa família, mas gravemente doente». (Figueira da Foz, 7-9-1945).

É esta Casa, espaço alicerçado na memória histórica, que ameaça ruir por completo, caso não se proceda a intervenções, neste momento, inadiáveis. A saber: execução de uma cobertura provisória e medidas provisórias de estabilização estrutural. Surpreendente é o facto de estes 2 projectos já existirem desde 2010, por iniciativa do Eng. Vítor Cóias, Presidente do GECoRPA – Grémio do Património (www.gecorpa.pt), uma associação sem fins lucrativos que defende a excelência na recuperação e reabilitação do património.  Estes dois projectos foram entregues à Câmara de Carregal do Sal e encontram-se ambos aprovados (2010) pelo IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico). Também em 2010, Francisco Manso realizou um documentário sobre a Casa do Passal, que está disponível  na internet, em português e em inglês. Refira-se ainda que a Direcção-Regional da Cultura Centro está a preparar o caderno de encargos para a cobertura provisória  e  para os trabalhos de consolidação, com base nos projectos do Eng. Vítor Cóias. 

Perante a situação de intolerável abandono a que está votada a Casa do Passal, onde viveu Aristides de Sousa Mendes com a sua família, um grupo de cidadãos, certamente acompanhado por todos os portugueses, e não só, apela à Fundação Aristides de Sousa Mendes (www.fundacaoaristidesdesousamendes.com) que, em articulação com a Câmara de Carregal do Sal e outras Instituições, actue rapidamente, envidando esforços para a concretização dos 2 projectos  acima  referidos  que,  necessariamente, exigirão a intervenção de mecenato. 

Assinam este texto:

Maria do Carmo Vieira (professora do Ensino secundário), Vítor Cóias (engenheiro e presidente da GECoRPA), António Barreto (professor), António Monteiro (embaixador), Francisco Seixas da Costa (embaixador), D. Januário Torgal Ferreira (bispo), Iva Delgado (presidente da Fundação Humberto Delgado), Gastão Cruz (poeta), João Pombeiro (director da Revista LER), Pedro Tamen (poeta e tradutor), Pedro Mexia (escritor), Carlos Calvet (arquitecto e pintor), Isabel Allegro de Magalhães (professora universitária), Teresa Cadete (professora universitária), Rui Baptista (professor universitário), Emília Nadal (pintora), Maria Filomena Molder (professora universitária), Jorge Molder (fotógrafo), Emanuel Pimenta (músico e compositor), Teolinda Gersão (escritora), Inês Pedrosa (rscritora), Fernando Ornelas Marques (professor universitário), Santana Castilho (professor universitário), Joshua Ruah (médico), José António Melo Gomes (médico), João Carlos Alvim (editor), Carlos Fragateiro (encenador), Guilherme Valente (editor da Gradiva), Maria Amaral (pintora), Maria João Cantinho (poetisa e professora do ensino secundário), Maria do Carmo Abreu (tradutora), Rui Zink (escritor). 

segunda-feira, outubro 02, 2017

Em oito pontos

Desde que comecei a deixar algumas coisas escritas, nas redes sociais e nos jornais, quando me meto a falar sobre o futuro, dou-me conta de que, nas coisas da política, me engano bastante. É que a realidade é muito mais imaginativa do que as pessoas e prega-nos imensas surpresas. O resultado das eleições autárquicas levou-me a tirar algumas conclusões. Pelo que atrás disse, elas valem o que valem, mas aí ficam:

1. Fiquei surpreendido com a dimensão da vitória socialista. Não esperava este resultado, obtida "pró-ciclo". Mas o país está "bem disposto" com o governo e quis dar a António Costa um "sorriso" eleitoral. Espero que o PS não embandeire em arco, num triunfalismo que leve parte do seu aparelho a tentar "explorar o sucesso". António Costa e, em especial, Ana Catarina Mendes (mas também Vieira da Silva e outros "powers that be") devem ter o maior cuidado na travagem de algumas tentações que possam vir a surgir.

2. Acho importante refletir no discurso de Jerónimo de Sousa, na noite eleitoral. O PCP "nunca perde" eleições, arranja forma de as "ganhar sempre". Mas, desta vez, o seu líder pôs uma iniludível cara de enterro, percebendo uma coisa muito simples: muito do seu eleitorado, satisfeito com as políticas do governo, deu o crédito delas ao... governo, isto é, ao PS. Quer isto significar que os socialistas capitalizaram para si os efeitos da "geringonça", não dando os votantes ao PCP os louros (verdadeiros, aliás) de ter sido ele a forçar o governo do PS a tomar algumas medidas que os beneficiou. O PCP terá constatado nesta ocasião os efeitos nefastos da "geringonça" sobre a estabilidade do seu eleitorado. Perder Almada é um terramoto que deve ter sido sentido na Soeiro Pereira Gomes em registo de tragédia. Irá o PCP tender a abalar a "geringonça"? Talvez o não faça imediatamente, mas as negociaçōes do Orçamento vão já ser um inferno. Por mim, não acredito que o PCP possa aceitar ir até ao fim da legislatura. Entretanto, irá pôr na rua as suas "tropas" sindicais, como anda a fazer.

3. O PSD perdeu ainda mais do que aquilo que se pensava possível. O resultado em Lisboa revela que Miguel Relvas tinha razão quando falava da "ruralização" do partido. Nunca pensei, contudo, que uma certa base urbana (que deveria andar nos 15 a 20%) abandonasse o PSD, nem que fosse apenas por "clubite" (há um certo PSD que encanita com o CDS). Os social-democratas apenas reagiram bem nos escassos locais onde tinham presidentes fortes (Braga, Cascais, Guarda), isto é, onde o trabalho, visto como positivo, dos seus autarcas conseguiu não ser poluído pela imagem nacional de declínio que o PSD de Passos Coelho hoje projeta.

4. Acho que Passos Coelho se vai embora. Vai, contudo, tentar gerir a transição, para evitar que o partido caia na mão dos seus inimigos internos. Procurará talvez deixar no seu lugar Luis Montenegro, para travar Rui Rio. Mas não será candidato a um congresso, que talvez tenha de ser antecipado - caso contrário o seu "phasing-out" será devastador. Mas não subestimemos em absoluto a sua teimosia...

5. O Bloco de Esquerda tive um dia mauzote. Salvaterra voltou a escapar-lhe, não elegeu o seu excelente candidato no Porto e apenas um lugar em Lisboa e alguns fogachos irrelevantes pelo país não chegam para dar um mínimo de corpo a uma, ainda que mínima, ambição autárquica. Assim, encarando as coisas com um ar mais alegre do que o PCP, o Bloco também terá percebido que a "geringonça" lhe traz um certo desgaste: parte do seu eleitorado, habituado a olhar para o PS como uma "direita da esquerda", terá sido entretanto seduzida por António Costa e por este "novo PS". E começa a votar PS...

6. O CDS fez a festa em Lisboa. Cristas legitimou a sua liderança, num CDS onde as contas pós-Portas não estavam ainda fechadas. O PSD não lhe vai perdoar tão cedo a humilhação, mas o seu estilo truculento começa a render. O CDS só pode crescer à custa dos votantes flutuantes entre ele e o PSD. A luta, portanto, vai ser sobre a liderança retórica da direita, a partir do momento em que o substituto de Passos Coelho surja. Vai ter graça.

7. Uma nota para o Porto. Um estranho candidato do PSD levou uma monumental "abada", por uma razão bem simples: a direita no Porto vota Rui Moreira, que é visto como uma figura conservadora, com a vantagem de não ser ligado à governação Coelho-Portas. O PS, não obstante um crescimento notável de Manuel Pizarro (atenção a ele!), ficou à porta da Câmara, mas o futuro anda por ali.

8. Em Oeiras, um certo país provou que pertencer a um nível social com elevada educação académica e de rendimentos não significa necessariamente ter padrões morais e cívicos recomendáveis, na hora de votar. O que, felizmente, não aconteceu em Gondomar. E em Loures provou-se que não vale tudo e que, se os candidatos não têm escrúpulos, os eleitores ainda parecem tê-los. Este Portugal dos candidatos marginais tem de ser estudado e prevenido. Como? Com uma forte exigência de decência.

quarta-feira, agosto 27, 2014

Concurso de misses?

Olhando para as redes sociais - acho graça ao conceito: aqui há uns anos, "ter redes sociais" significava ter bons contactos no eixo Lapa-Linha ou Gomes da Costa-Foz - dou-me conta do desprezo que muitos votam ao debate de ideias concretas na contenda pela liderança do PS. 

(Quando falo de ideias concretas não me refiro a platitudes, como "ser contra esta austeridade que falhou ", "ser favorável a estímulos ao crescimento da economia", ter "políticas amigas do emprego",  "relançar políticas públicas sustentáveis", "afirmar uma voz ativa na Europa" e outras coisas deste estilo piedoso. Ideias é mostrar, no concreto, como é que os candidatos do PS a primeiro-ministro querem construir um orçamento alternativo para 2016. É isso que se lhes pede.)

De ambos os lados do cenário, perpassa cada vez mais a mensagem de que o importante é a personalidade dos competidores, a sua resiliência (o termo entrou no léxico político recente e já fede) perante as dificuldades, a imagem de competência e/ou firmeza e/ou determinação e/ou simpatia que projetam. Ah! e a confiança, que é assim a modos como uma fezada com prazo de validade indeterminado, isto é, até ao dia em que, confessando ou não, os políticos deixam de fazer aquilo que prometeram.

Conduzido o debate para este terreno fulanizado, os próceres e os próprios candidatos foram levados a pisá-lo, mesmo com algum despudor. António José Seguro foi o primeiro a fazê-lo, com acusações personalizadas que pareceram às vezes tocar questões de caráter. Não foi bonito de ser ver. António Costa resistiu mais, mas, nos últimos tempos, começou já a emitir alguns juízos sobre a figura do seu adversário, contestando a sua consistência política. Apesar de tudo tem sido mais contido. Quanto às "cortes" respetivas, então bem uma para a outra. Dizer que tudo isto era inevitável, numa campanha deste tipo, é apenas uma forma "self-deprecating" de insultar o PS. O PS, que foi e é um grande partido da História contemporânea portuguesa, é muito melhor que este "concurso de misses" que parece estar em curso. E convém lembrar que Costa e Seguro, como sói dizer-se no povo, "são do melhorzinho que por lá há", pelo que têm obrigação de estar à altura do desafio.

Os debates que aí vêm são assim uma oportunidade soberana para os candidatos à liderança do PS fazerem uma "desmontagem" criativa da ação do governo e, em cada passo, dizerem concretamente como tencionam corrigir o que foi mal feito. Isso nem parece muito difícil, perante os tão catastróficos resultados da ação governativa. Explicar que, no "novo oásis", as taxas de juro relevam exclusivamente da Europa (como os outros "ajustamentos" mostram à saciedade) e que os números do défice (ainda assim, muito maus) têm obrigatoriamente de ser comparados com a dívida mostruosa que este governo criou para as gerações futuras, não se afigura tarefa impossível. Ah! E há o desemprego! De facto, depois de o ter feito disparar a cifras imemoriais, ele tem vindo a ser reduzido, ajudado pela emigração maciça. Ainda bem! Por este andar, um destes dias, vão mesmo conseguir aproximá-lo dos níveis herdados do governo Sócrates...

quarta-feira, agosto 07, 2019

A Assembleia do 11 de março


A RTP passou, nos últimos dois dias, outros tantos programas sobre a Assembleia do MFA (Movimento das Forças Armadas) que ocorreu na noite de 11 para 12 de março de 1975. Há uns meses, aquando da passagem dos 44 anos daquela data, já havia sido difundida uma versão mais sintética. 

Para uma certa História, esta reunião ficou conhecida como a “assembleia selvagem”, em especial por ter sido convocada em moldes que não obedeceram às regras tradicionais daquele “parlamento” militar da Revolução e por nela terem participado pessoas que não haviam integrado as anteriores Assembleias.

Fiz parte dos militares que participaram nessa reunião, tendo mesmo tomado nela a palavra. Curiosamente, constato que terei sido, com grande probabilidade, dos poucos oficiais milicianos a intervir nas dez Assembleias do MFA que foram realizadas, tendo estado presente em três delas. 

Ao princípio da noite de 11 de março de 1975, integrei um grupo de oficiais que irrompeu pelo Palácio de Belém, obrigando a uma interrupção da uma reunião do “Conselho dos Vinte” (somatório da Comissão Coordenadora do MFA com os membros em funções da Junta de Salvação Nacional, os ministros militares, os chefes dos EM dos ramos e o comandante do COPCON). Esse grupo “exigiu” ao presidente da República, general Costa Gomes, que se deslocasse ao (atual) Instituto de Defesa Nacional para aí presidir a uma Assembleia extraordinária do MFA.

Esta Assembleia teve lugar ao final de um dia muito complexo. Na madrugada de 10 para 11 de março, o general António de Spínola - que havia renunciado à presidência da República, na sequência do “28 de setembro” de 1974 -, à frente de um grupo de oficiais, ocupou, com cumplicidades internas, as duas unidades militares existentes em Tancos, mandou bombardear o Regimento de Artilharia Ligeira nº 1 (RAL 1), em Lisboa, do que resultou um morto e vários feridos, ordenando a ocupação (que viria a ser frustrada) dessa mesma unidade por paraquedistas. 

Spínola viria a desistir do golpe ao final de algumas horas, por não ter conseguido congregar a prevista adesão de outras unidades. Uma das justificações para a ação “spinolista”, para além da reversão do curso político da Revolução, foi a existência de uma lista de 500 personalidades a abater - a “matança da Páscoa” -, ação que iria ser levada a cabo por grupos revolucionários de extrema-esquerda. É hoje claro que a “lista”, que aliás nunca ninguém viu, foi uma completa invenção de quantos queriam convencer Spínola a liderar o golpe de Estado. Ele e alguns dos seus sequazes fugiriam depois para Espanha, sendo detidos alguns dos outros revoltosos. 

Alguns setores mais radicais do MFA, com os quais, à época, eu me sentia basicamente solidário, entenderam não dever desaproveitar o ensejo para “acelerar” a Revolução. A realização de uma Assembleia extraordinária do MFA foi o instrumento encontrado. Dela saiu a institucionalização do Conselho da Revolução (no dia seguinte, acabei por também participar também numa reunião de setores do Exército em que se discutiram os nomes do ramo para esse Conselho) e um apoio de princípio às nacionalizações e à Reforma Agrária que, dias depois, seriam decretadas.

Há meses, descobriu-se a gravação dessa Assembleia do MFA e foi decidido publicar em livro as intervenções das cerca de sete horas e meia de debate. A convite do “proprietário” da gravação, comandante Almada Contreiras, do presidente da Associação 25 de abril, coronel Vasco Lourenço, e do professor universitário e jornalista da RTP, Jacinto Godinho (que realizou os programas agora editados), fiz a apresentação do livro, em duas ocasiões públicas.

A transcrição completa da reunião, permite acabar, definitivamente, com alguns mitos.

Desde logo, fica desfeita a ideia do alegado caráter tumultuoso da reunião: esta passa-se em perfeita ordem, com elevado sentido de disciplina hierárquica, embora com alguma (natural) emoção à mistura. Alías, com escassas exceções, os intervenientes nessa noite foram exclusivamente os membros das Assembleias regulares do MFA.

Depois, fica claro que a propalada questão do “fuzilamentos”, pedidos então por algumas vozes para os conspiradores envolvidos no golpe, foi um ponto que mereceu uma esmagadora rejeição da Assembleia. Em especial, a gravação mostra que o coronel Varela Gomes, contrariamente a uma versão que sobreviveu décadas, nada teve a ver com essa insana ideia.

Finalmente, fica claro que as vozes (que também as houve) que pretenderam então aproveitar para adiar as primeiras eleições livres (previstas para o dia 25 de abril seguinte) foram muito escassas e também logo suplantadas pela vontade coletiva da reunião. Creio que surpreenderá alguns verificar que o almirante Rosa Coutinho, neste como em outros momentos mais tensos da reunião, foi das figuras que impôs serenidade e assumiu posturas mais moderadas.

A Assembleia do 11 de março, analisada agora com distância e serenidade, mostra ter sido o último momento de algum aparente consenso (mas já sob inescapável tensão) entre a chamada “Esquerda Militar” (linha que tinha muitos pontos de contacto com o PCP e que tem por expoente o general Vasco Gonçalves) e o grupo mais moderado, “teorizado” por Melo Antunes, que irá publicar, meses mais tarde, o chamado “Documento dos Nove”. A tentativa de golpe de Spínola força, nesse dia, uma aliança tática conjuntural entre as duas tendências, embora reforçando mais, no imediato, a primeira, a qual, a partir de então, procurará radicalizar o processo, sendo a constituição do V Governo Provisório, em agosto de 1975, o ponto máximo desse processo vanguardista, a que o “25 de novembro” virá pôr termo. 

Foi há 44 anos, mas, às vezes, parece que foi ontem.

Teresa de Sousa

Desde há décadas, mantenho com a minha amiga Teresa de Sousa, que há muito considero ser a mais qualificada jornalista portuguesa em temas i...