A apresentar mensagens correspondentes à consulta campaínha ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta campaínha ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

domingo, dezembro 11, 2022

À Alves Redol


Cá por casa, há uma secção de camisas chamada, desde há muito, “à Alves Redol”. Têm quadrados largos, cores diversas, algumas berrantes, a lembrar as camisas que o escritor vestia em fotografias, idênticas às dos pescadores e presumivelmente dos gaibéus, por mim compradas em momentos de completa insconsciência estética, deslize neo-realista ou, simplesmente, saldos a que não soube resistir. Nos dias de hoje, quase só as uso quando tenho a certeza de que não vou sair de casa, porque algumas são mesmo inapresentáveis. 

Há tempos, tocou à campaínha um amigo, antigo exilado em França, e, vendo-me com aqueles quadriculados largos sobre o corpo, exclamou: “É pá! A tua camisa faz-me lembrar Paris!” Paris? Porquê? Ele explicou: “Não te lembras da eterna montra da Casa de Portugal, na rue Scribe, no tempo do fascismo? Tinha sempre uma guitarra, um xaile de fadista, umas redes e um pescador com barrete e uma camisa como a tua. Isso ainda se vende?”. 

Embatuquei. Vou fazer a sugestão à Catarina Portas, para incluir as camisas de pescador - podia chamar-lhes “à Tenreiro” - no catálogo de “A Vida Portuguesa”.

sexta-feira, julho 30, 2021

Caixa forte


Fui hoje à Caixa. À agência do meu bairro. Aparentemente, estava fechada. A porta tem imensa papelada afixada. No meio, um horário. Pelos vistos, só se pode ir livremente de manhã. À tarde, e só até às três, apenas por marcação. Eram duas da tarde. Pelos vidros, não se via vivalma. Mas havia luzes. Toquei à campaínha. Uma senhora, lá de dentro, pelo telefone, repetiu-me as horas de expediente. E explicou-me que, à hora a que eu ia, “só por marcação”. Perguntou-me para quando eu queria marcar. Eu disse: “Marque para agora, por favor!…” Abriu-me a porta, simpática. Fui muito bem atendido. Aquilo que eu pretendia resolver só o poderia fazer presencialmente. Os bancos transformaram-se em entidades totalmente impessoais. Com simpatia “à la carte”. Não gosto. Deve ser da idade, admito.

terça-feira, março 24, 2020

DGS

Sei que isto não é apenas geracional, é também “de grupo”, mas a mim, quando estou distraído e oiço “segundo a DGS”, toca-me ainda uma certa “campaínha” histórica.

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Joaquim Pina Moura


Morreu-me um amigo. Morreu Joaquim Pina Moura. Tinha 67 anos e estava doente, há muito tempo.

Conheci-o em 1995, quando ambos trabalhámos com António Guterres. Criámos, de imediato, uma magnífica relação pessoal, sempre divertida, recheada de humor e de crescente cumplicidade. Posso dizer que foi das pessoas com quem acabei por ter uma maior empatia, dentro dos dois governos a que pertencemos. Com uma inteligência fulgurante, rápida e arguta, apanhava o essencial num instante, sabendo transformar logo uma ideia numa proposta realista e com sentido. Ia “a todas”, sabia de tudo. Era um “mouro” de trabalho, uma figura em quem Guterres tinha uma extrema e justificada confiança, nele delegando imensas tarefas. Lembro-me das suas chamadas telefónicas pela noite dentro, ainda como secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, quando alguns problemas europeus “apertavam”, sempre, mas sempre!, atuando com uma insuperável delicadeza para comigo.

Os obituários das próximas horas recolherão, com toda a certeza, o seu histórico afastamento do PCP, de que se tornou num dos mais famosos críticos, após aí ter sido uma “estrela”, em forte ascensão. Nesse percurso, a partir de certa altura, foi-se aproximando de António Guterres, tendo estado no centro da operação “Estados Gerais”, que catapultou o PS para o governo, entronizando Guterres como primeiro-ministro. Durante todo esse tempo, colaborou fortemente com o PS, mesmo sem ser ainda militante do partido. Atribui-se a Jaime Gama, com quem Pina Moura tinha uma excelente relação e uma visível admiração mútua, uma graça que ficou memorável nas hostes socialistas. Reza a “lenda” que, um dia, numa conversa nesse ano de 1995, com Pina Moura presente, Gama terá dito a Guterres que era importante ele entrar para o PS. E descreveu a forma como isso aconteceria: “Um dia, o Joaquim Pina Moura decide aderir ao PS. Vai ao largo do Rato, toca à campaínha e quem é que, do lado de dentro, lhe abre a porta? O Joaquim Pina Moura!”

Lembro-me agora do jantar que ele organizou, com o João Lima Pimentel, assessor diplomático do primeiro-ministro, e para o qual me convidou, no “Vela Latina”, para explorar a ideia, congeminada por ambos, da candidatura de António Guterres à presidência da Comissão Europeia. Pouco dado a ousadias, achei a iniciativa “louca” e sem pés para andar, mas, meses depois, verifiquei que era ele, e o João Lima Pimentel, quem afinal tinha razão - e eu não. O apoio a Guterres, por parte de vários líderes europeus, começou a ser esmagador e a discreta campanha de imprensa e de contactos que o Joaquim e o João tinham engendrado - o chamado “Plano Alfa “, como então foi ironicamente crismado, de que há mesmo um registo “gráfico” - foi de vento em popa. Guterres só não foi presidente da Comissão Europeia porque não quis. Foi ele próprio quem pôs fim à ideia, por razões que um dia serão devidamente explicadas, numa reunião a quatro, na Áustria, numa noite de 1999, com o Joaquim, o João e eu. Lembro-me de mim e do Joaquim Pina Moura, já então ministro da Economia, depois do jantar, a “digerir” a nossa frustração, passeando pelo Graben, na noite fria de Viena.

Tenho muitas recordações do Joaquim Pina Moura. Todas boas. A nossa última e longa conversa acabou por ser em Paris, há já quase uma década, num jantar muito simpático e, como sempre acontecia quando nos juntávamos, bem divertido. Depois do meu regresso a Portugal, a sua progressiva doença forçou o nosso afastamento, com grande pena minha. 

Deixo um grande abraço de pesar a toda a família, em especial à Herculana, uma “mulher-coragem”, de uma lealdade inquebrantável, em especial no sofrimento que para todos foram os últimos anos.

terça-feira, dezembro 31, 2019

A Maria



Não faço ideia da idade que ela possa ter. Mas já deve ter bastante. É uma mulher magra, de cara sofrida, desdentada, de cabelos ralos, que há muito vejo passar, curvada, num passo hesitante, em trajes de evidente pobreza, pelas ruas de Vila Real. Cola-se a algumas paredes, à espera de poder ter a sorte de um gesto franco de alguém. Anda, há anos, “a pedir”. Desconheço que tenha algo para fazer, talvez alguns recados. Não posso sequer imaginar onde vive. 

Habituei-me a ver a minha mãe, que desapareceu há quase duas décadas, a dar uma esmola à Maria, sempre que a encontrava. Nos Natais, ela ia mesmo lá a casa, tocava à campaínha e havia um sensível reforço daquilo que levava de volta. 

Desde então, quando cruzo a Maria pelas ruas da cidade, para honrar a atitude que era a da minha mãe, dou-lhe sempre “alguma coisa” - que já passou, há muito, de moedas para papel sonante. A Maria, mal me vê, aproxima-se logo, com a esperança segura e um esgar que passa por sorriso.

Por estes dias, ainda não vi a Maria. Alguém me disse que ela anda por aí, mas não a encontrei. Custar-me-ia muito regressar a Lisboa sem lhe dar “alguma coisa”, em especial pelo Natal. Não sinto estar a ser generoso, apenas obrigado a respeitar uma saudável generosidade que herdei.

quarta-feira, agosto 28, 2019

O senhor Moisolindo


Passei há dias por lá, por aquela casa, que tem aquela janela. É na rua da Torrinha, no Porto. No passado, foi ali o Lar Gomes Teixeira, pertença do Centro Universitário do Porto. Disponibilizava quartos a preços módicos e por lá me alojei, durante o ano letivo de 1966/67, como caloiro do curso de Engenharia Eletrotécnica.

O lar tinha um porteiro, o senhor Moisolindo (pergunto-me agora: será que se chamava Nozolino e eu sempre percebi mal?), que por lá dormia. Dormia quando podia, porque a agitação no lar era imensa, com noitadas frequentes, até ao dealbar.

Ao pobre do Moisolindo tudo acontecia: desde “bombas” de água em sacos de plástico, que explodiam no eco fácil do saguão fechado para o qual dava o janeluco do seu quarto, até ser chamado, de madrugada, pelo som estridente da campaínha da porta, e, no percurso, tropeçar em fios de pesca estrategicamente colocados, ao mesmo tempo que, pelo vão da escada, sobre ele caíam, cocoricando, galinhas raptadas de quintais vizinhos. Entre tantas outras “invenções”, porque a imaginação dos utentes do lar era infinita.

O Moisolindo era uma figura gorducha, com um ligeiro atraso psicológico e uma gaguez persistente. A nós, servia para abrir e fechar a porta da rua, receber uns recados e pouco mais. Coadjuvava a lavadeira e governanta, que nos servia os pequenos almoços. E imagino que também fizesse limpezas. Era filho do senhor Claudino, um homem simpático que preponderava na portaria do Centro Universitário, a umas centenas de metros.

A porta do lar permanecia aberta, com o Moisolindo por perto, até às 10 horas da noite. Depois, a cada hora, até à uma manhã, estava convencionado haver três aberturas da porta, a toque nosso da campaínha. E lá surgia o Moisolindo, estremunhado, de eterno pijama às riscas.

Num desses serões, às 11 da noite, à abertura da porta, entrei com um grupo de colegas e fiz questão de desejar boa-noite ao Moisolindo, de forma bem visível. E subi para o meu quarto, no topo do edifício.

Na “porta da meia-noite” um novo grupo entrou no lar. Nesse grupo ... eu também vinha! O Moisolindo, julgando estar a sonhar, mirou-me com gaguejante supresa: “O senhor Seixas na-na-não entrou já, há bocado?” Fazendo-me de novas, devo ter dito algo como “Eu? Está enganado, senhor Moisolindo. Boa noite!”, zarpando pela escada.

Uma da manhã. Um derradeiro grupo acede ao lar. Estava o Moisolindo prestes a fechar a porta quando surji eu, afogueado, vindo da rua: “Não feche, senhor Moisolindo, não feche! Falto eu!”. O homem esbugalhou os olhos, não querendo acreditar naquela “aparição”. Creio que já nem reagiu, ficando a olhar para mim, que, pela terceira vez, lhe dava as boas-noites, dirigindo-me rapidamente à escadaria interior.

Nos dias imediatos a esta cena, o Moisolindo, sentindo ter sido gozado por mim, embora ainda sem perceber como, fez-me cara feia. Depois, com o tempo, tudo passou. Acho que ele nunca entendeu a explicação simples para o mistério da multiplicação das minhas “aparições”: eu saía pela janela que se vê na imagem, pertencente a um dos dois quartos do rés-do-chão.

O funcionamento do Lar Gomes Teixeira veio a ser suspenso no final desse ano, por decisão da universidade. Queixas por reiterados atos de indisciplina tinham obrigado a Reitoria a uma intervenção de emergência. Em nome desta, o professor Daniel Serrão já havia chegado a reunir com os utentes do lar, para tentar impor alguma acalmia. Quando um dia, numa conversa no Porto, lhe revelei que, nesse ano “histórico”, tinha sido um dos utentes daquela casa, nem queria acreditar: “Não me diga que o meu amigo era um deles?! Nunca, na história da universidade do Porto, se viu tanta anarquia num lar!", disse-me.

Quero crer que o facto de, nesse ano, eu ter apenas conseguido concluir uma cadeira do curso, é capaz de ter tido alguma coisa a ver com o ambiente no local onde me hospedava. Foram bons tempos? Não estou tão certo disso...

sexta-feira, abril 27, 2018

O outro Paralelo 38




Nesta madrugada, ao ver Kim Jong Un e o seu homólogo sul-coreano cruzarem-se no Paralelo 38, que desde 1953 marca a divisão das duas Coreias, na minha memória gastronómica soou uma campaínha.

Existia, em Loulé, o restaurante Paralelo 38, uma casa simples com ótimo peixe, cujo dono, um simpático velhote (que agora me lembram que se chamava Abílio, “Abilinho”), nos anos 70, se gabava das visitas de Mário Soares e nos servia, no final, uma bela aguardente de medronho.

sábado, dezembro 02, 2017

O meu amigo reacionário

Tive e tenho vários amigos reacionários. Nem todos saudosos de Salazar, da sua ordem ou do império, alguns aceitando, mais ou menos a contragosto, que o direito de voto seja igual para um sábio ou um ignorante, outros ainda clamando pela ilegalização dos comunistas e por um país musculado, com pena de morte e tudo. Gente adepta de muitas outras coisas desse jaez, com uma agenda feita de nostalgia de um outro Portugal, que eu detesto. Ainda há pessoas dessas e, por muito que isso possa parecer surpreendente, tenho amigos desses. 

O Álvaro não era exatamente assim. Álvaro Magalhães dos Santos era um homem urbano, integrado na ordem democrática. Mas era um refinadíssimo reacionário, um direitolas “até dizer chega”. Ontem, durante um jantar geracional, falámos bastante dele.

Em Vila Real, onde nasceu, foi professor e dirigiu a casa da Mocidade Portuguesa, o que diz já alguma coisa. Licenciado em Germânicas, saltaria, anos mais tarde, do ensino para a área da publicidade. Andou pelo jornalismo, onde exerceu escrita humorística. Alguns se lembrarão do “Vicente Gil”, que enchia uma página da Capital. Escreveu no Diabo (“where else?”) e no Correio da Manhã, onde se especializou em imaginativos “balões” com graças políticas nas fotografias. Para grande pena minha, que não obstante a diferença de idades tinha com ele uma grande proximidade pessoal, o Álvaro desapareceu há cerca de uma década. Ainda hoje me faz falta como amigo.

Era um contador de histórias notável. O seu reportório parecia inesgotável, com memória rara para anedotas, que dizia com imensa graça. Passei horas a ouvi-lo, a ele que sabia iludir, como ninguém, o mundo que nos separava nas ideias políticas.

Um dia relatou-nos um episódio curiosíssimo, ocorrido em Londres. Ele, que fora professor de inglês, tinha um gosto especial pelo mundo anglo-saxónico. Londres era a “sua” cidade e, quando por lá vivi, “asilou” algumas vezes na minha casa, como já o havia feito na Noruega. (Um parêntesis para dizer que o Álvaro era, muito provavelmente, o mais elaborado forreta que alguma vez conheci). Mas o episódio tinha sido bem antes desse tempo.

O Álvaro comprara um dia para um filho, no Hamleys, uns brinquedos, nas vésperas de um Natal. À chegada ao hotel, deu-se conta de ter deixado o saco no táxi, como às vezes nos sucede. Não tendo referências do transporte, com o avião a partir horas depois, deu por perdida a compra, o que, conhecido o seu apego ao dinheiro, o deve ter deixado furibundo. Mas era a vida!

Uns anos mais tarde, também num táxi londrino, meteu conversa com um motorista e contou o episódio, que devia ser traumático para quem era tão cioso da sua bolsa. O homem perguntou-lhe se tinha recorrido ao serviço de “lost & found” dos táxis. O Álvaro retorquiu que não, porque partira quase de seguida para Portugal. O taxista disse da existência, algures em East London, de um grande armazém onde eram recolhidos objetos deixados no “black cabs”. Quem sabe se o saco perdido do seu cliente não estaria por lá...

O Álvaro foi a matutar naquilo para o hotel. A compra não havia sido muito cara, mas a possibilidade de a recuperar ficou a borbulhar na sua cabeça. Ir de taxi ao tal armazém era impensável: ficaria talvez mais caro do que o preço do brinquedo. Decidiu, finalmente, ir de metro, não obstante nevar sobre Londres por esses dias. A jornada ia fazer-lhe perder uma tarde na National Gallery (onde a entrada era gratuita...), mas paciência!

Da saída do metro até ao tal armazém ainda foi um bom bocado, sob a neve que caía e o encharcado desagradável pelos passeios. Mas ele estava determinado. O armazém tinha um ar exteriormente algo decrépito. Tocou uma campaínha, atendeu-o um rapaz com um ar de “punk” que lhe indicou um balcão, por detrás do qual havia uma quantidade impressionante de estantes, com caixas. Imaginou o mundo que por ali estaria. Esperou um bom bocado, até que lhe apareceu um tipo corcunda, de óculos muito graduados, com sotaque irlandês.

O Álvaro tinha-se munido da data em que, cerca de três anos antes, viajara no táxi no qual se esquecera da prenda para o filho. Com calma, mas com método, viu o homem procurar um de entre vários livros de registo, de formato longo, estendendo-o sobre o balcão. Notou que estava todo manuscrito, com várias indicações, do registo das viaturas à natureza dos objetos perdidos. À indicação de que tinha sido num táxi entre Regent Street e Bayswater, onde o Álvaro estivera num hotel baratucho, como era seu timbre, o funcionário do armazém perguntou: “A que horas foi?”. O Álvaro disse que tinha sido pouco depois das sete da tarde e viu o homem fazer um esperançoso sinal afirmativo com a cabeça, enquanto percorria com o dedo as linhas do livro. “Disse-me que era um saco do Hamleys? Tinha um tom avermelhado?” Não era possível! Tinha, de facto, um tom avermelhado! O homem, sempre sem expressão, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para um dos longos corredores com prateleiras. O Álvaro ainda teve a tentação de olhar o registo que, aparentemente, mobilizara o homem, mas este havia tido o cuidado de colocar o livro longe da sua vista.

Passou aquilo que pareceram ser uns longos minutos. No silêncio geral em que o armazém estava mergulhado, ouvia-se apenas o arrastar do que parecia ser uma escada de acesso às prateleiras, uns ruídos de afastamento de objetos. Finalmente, o homem surgiu, ao fundo. Trazia na mão uma caixa grande de cartão que pousou sobre o balcão. O Álvaro estava radiante! O homem conferiu de novo o livro de registo e, voltando-se para o meu amigo, disse, sempre sem expressão: “Não está cá nada!”. O Álvaro caiu das núvens. “Mas, então, e essa caixa?”. O homem, pela primeira vez, pareceu surpreendido. “Esta caixa? Ah! Não tem nada a ver consigo. Estava mal colocada e trouxe-a para corrigir o registo”. Tanto esforço para nada! Intrigado, o Álvaro teve uma derradeira reação: “Mas porque é que me tinha dito que o saco era em tons de vermelho? Pensei que isso significasse que tinha aí registado isso!”. Pela primeira vez o rosto seco do homem abriu-se um pouco, num esgar entre o sorriso e o que pareceu ser um tom de gozo: “Os sacos do Hamleys são sempre em tons de vermelho”.

O Álvaro levava um bom quarto-de-hora a contar este episódio, recheando-o de pormenores, de notas que nos faziam vivê-lo como se estivéssemos a participar da cena. Tenho pena de nunca mais o poder ouvir de novo. O que ele teria dado para estar ontem na “ceia” do “primeiro de dezembro”, nesta cidade sobre cuja rua onde nasceu ele escreveu um livro insubstituível, como ele próprio era!

domingo, outubro 29, 2017

Terrim!


Há minutos, ao ver no Twitter uma fotografia atual do belo Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo, onde há meses recebi a minha cidadania honorária da capital do Alto Minho, veio-me à memória uma história contada pelo meu pai (que daqui a dias faria 107 anos), passada naquela mesma sala, creio que nos anos 30 ou 40.

O Sá de Miranda era a única sala de teatro da cidade. Antes da criação do Cine Palácio, era também a sala onde se projetava cinema. Sala e “pátio”, diria eu, que ainda me recordo de ir ali ver, no Verões do meu contentamento adolescente, cinema ao ar livre, no espaço junto ao teatro.

Num desses dias da primeira metade do século que se foi, o filme era de “suspense”, como antigamente eram designados os “thrillers” (mas será que também esta palavra ainda se diz?). Aparentemente, a trama era muito bem conseguida, com o público preso aos desenrolar das cenas, que se encadeavam de forma empolgante. Contudo, no auge de um dos momentos mais emocionantes, o filme parou, a luz acendeu-se e o intervalo começou.

Por muito tempo, os intervalos nas sessões de cinema eram uma regra sem exceção. Os filmes projetados sem intervalo foi uma “modernice”, creio que dos anos 70. Nem se diga que era uma oportunidade para um cigarro, porque me recordo muito bem de se poder fumar livremente nos cinemas. Esses 10 minutos de pausa, porém, eram um momento de sociabilidade, para conversar ou tomar um café, nos mal fornecidos bares, que sempre recordo com prateleiras quase vazias.

Nessa noite, o facto do filme ter sido interrompido no meio de uma cena fundamental, em que os segundos seguintes à sequência projetada iam ser essenciais para entender o desfecho, fez com que ninguém se atrasasse no regresso aos lugares, nem sequer esperando pela estridente campainha que, tal como no início, iria anunciar o iminente fecho da luz. É que toda a gente estava ansiosa pelo retomar do filme. Nos lugares mais baratos, o pessoal pobre da cidade, os pescadores da Ribeira, agitavam-se nas cadeiras ditas de “sumopáu”, por contraste irónico com a cómoda sumaúma, com que se revestiam os lugares almofadados.

O filme, no entanto, por uma qualquer razão, teimava em não recomeçar. A campainha não soava e as hostes iam ficando cada vez mais nervosas. Algumas bocas, já muito para o “rasca”, começavam a ouvir-se. Foi então que, com aquele ondulado musical na pronúncia das sílabas, com as vogais bem abertas ao ouvido alheio, coisa impossível de descrever em escrita, mas sempre presente na linguagem popular da gente da Ribeira, saiu um berro bem sonoro, clamando pelo toque da campaínha que marcaria o regresso à aventura:

- “Terrim!”, carago!

A campainha lá soou, a luz apagou-se, o filme recomeçou, a cena ressurgiu, as emoções soltaram-se no olhar ávido dos espetadores e o “artista” (como então também se dizia) acabou a noite e a fita, com certeza, num final feliz. 

quinta-feira, junho 29, 2017

O amuleto

(O "Delito de Opinião" é um dos mais populares blogues portugueses. Pedro Correia, coordenador daquele blogue, fez-me um amável convite para nele colaborar com um texto, o que fiz com grande gosto. Visitem o excelente "Delito" - como é conhecido no mundo da blogosfera - e, até lá, leiam, também aqui, o meu texto)

Os fins de tarde, naquele bar, são por regra uma hora bem sossegada. Tirando encontros furtivos de casais episódicos ou alguma conversa de negócios ou da política, só alguns espontâneos em busca de uma última bebida, antes do jantar, ocasionalmente por ali surgem, quase sempre ficando-se pelo balcão, em conversa com o empregado.

Naquele dia dos anos 90, só por lá havia dois amigos, na "mesa dois", fazendo horas. Ouviu-se a campaínha, o Juvenal foi abrir a porta e um novo cliente dirigiu-se ao balcão. Os da mesa olharam-no e ele saudou-os.

"Aquela cara não me é estranha ", disse um para o outro. O nome surgiu logo, e era vagamente conhecido de ambos. "Pois é, é ele mesmo!" 

"O homem está ali sozinho. E se lhe disséssemos para vir sentar-se aqui?" Assim fizeram e o novo cliente, já com o copo na mão, trazido do balcão, sentou-se na "dois".

Por alguns minutos, a conversa animou-se, alargou-se a vários temas e pessoas. Foi então que o nome de uma certa personalidade feminina veio à baila. A imprensa de escândalos trouxera, por esses dias, relatos de um envolvimento amoroso dessa pessoa, num registo por alguma razão polémico.

"Nunca percebi o encanto dessa mulher! Para mim, é uma das mulheres mais feias do mundo, um verdadeiro amuleto contra a luxúria", brincou um dos ocupantes originais da mesa, com uma sonora gargalhada.

O amigo que o acompanhava não só concordou como juntou mesmo uma acha mais para a fogueira: "E, se vocês estiverem com atenção, verão que ela até cheira mal..." 

(Por esta altura, imagino que alguns leitores possam estar intimamente a reagir ao inaceitável tom machista da conversa. Aceito que podem ter razão, mas a realidade dos factos, que são verdadeiros, foi aquela e não outra, qualquer que seja os juízos que ela nos motive.)

O tom da conversa, como se observa, ia já muito longe, mas, aparentemente, não o suficiente para convocar a concordância do terceiro parceiro de mesa, que se mantinha silencioso, com um sorriso enigmático. "Você não acha?", perguntou um dos outros, testando a sua adesão ao juízo devastador que acabava de ser feito sobre a senhora.

Foi então que este, com serenidade e sem nunca perder o sorriso, reagiu : "Não estou de acordo! Pelo contrário, é uma mulher muito interessante. Tem mesmo um sorriso muito bonito. Essa foi também uma das razões que me levou a casar com ela..."

O peso do silêncio que deflagrou sobre a mesa, com o olhar encavacado dos dois ocupantes originais a cruzar-se, em busca de uma impossível tábua de salvação, pareceu calar a música "retro", que fazia de som ambiente. O recente parceiro de mesa, veio depois a saber-se, havia sido casado, já há uns bons anos, com a referida senhora e, por indeclinável dever, decidira "ir a jogo" para ajudar salvar a sua honra. 

A conversa, claro!, terminou ali, não havendo saída "honorable" para a gaffe, quando tudo fora já longe demais. "Ó Juvenal, traga uma nova rodada!", foi a reação possível. 

E esta ficou a ser uma das histórias mais famosas da "mesa dois" do Procópio. E é obra, porque ele há tantas...

quarta-feira, setembro 07, 2016

A síndrome do Mandarim

Ontem foi Joseph Stiglitz, a plagiar João Ferreira do Amaral, dizendo que Portugal não tem futuro dentro do euro. Meio país ecoou o Nobel e o outro descreu na profecia. 

Hoje é Tony Barber que, só tendo agora recebido a difícil tradução do discurso do Pontal, fala da "tempestade perfeita" que pode aguardar a economia portuguesa, num interessante editorial do "Financial Times" que vai fazer a glória das Cassandras do comentário nos próximos dias (o que já aí vai de euforia oposicionista pelas redes sociais!). Texto que, aliás, ganha em ser bem lido até ao fim, isto é, até ao ponto em que fala da inconveniência absoluta para a Europa dessa hipotética conjugação climática.

No Mandarim, Teodoro tocava a campaínha e o mandarim morria na China. Aqui são o Project Syndicate e o FT que "matam" à distância, uma espécie de "drones" mediáticos.

segunda-feira, abril 29, 2013

Casas mortas

Ontem decidimos fazer um desvio para tentar visitar, numa aldeia da Beira, um casal amigo, já bem idoso, que não víamos há quatro ou cinco anos. Ele era uma figura muito interessante, com atividade cívica no passado e um pensamento crítico sobre o presente. Com ela eu tinha uma longínqua ligação familiar. Costumava falar-lhes para lhes enviar um abraço pelo Natal. Há três anos, fui por ele informado do estado de doença da senhora. Nos dois Natais passados não havia conseguido contactá-los e, por razões que não vêm para o caso, não tinha outra maneira de saber deles.

Ontem, aproximámo-nos da aldeia, devo dizê-lo, com um mau pressentimento. O facto do portão de acesso à moradia estar aberto deu-nos um minuto de esperança. Mas os estores da casa estavam corridos, a campainha já não soava. O descaso das ervas que cobriam o pátio, bem como outros sinais evidentes, indiciavam que ninguém por ali vivia. Perguntou-se a um vizinho. Informou que o cavalheiro tinha morrido há dois anos, a esposa há já alguns meses. Atenta a respetiva idade, não era algo de surpreendente, mas não deixou de ser um choque forte sentir que, para sempre, deixaríamos de poder contar com o acolhimento, caloroso e amigo, de duas figuras a quem, durante muitos anos, visitávamos com grande prazer, quando passávamos nas imediações. Ontem, acabou a única razão que nos levava àquela aldeia serrana.

Esta experiência lembrou-me outra, com poucos meses.

Várias vezes durante a última década, em passagens por Portugal, teimávamos em tentar contactar um amigo que, por uma razão que nunca apurámos, havia deixado de aparecer, já mesmo nos últimos atarefados anos em que por aqui vivíamos. Era uma pessoa com um mundo muito próprio, alguém que se revelara um bom amigo em diversas ocasiões, e que era simultaneamente uma figura interessante, culta, com "mundo" e personalidade. Mas, de há muito, o seu telefone não atendia, as notas que deixávamos na sua caixa do correio, na casa que ocupava num bairro antigo, nunca tiveram a menor resposta. Por muito estranho que isso possa parecer, não tínhamos outros amigos comuns que nos pudessem dar nota do seu paradeiro, nem lhe conhecíamos uma ocupação que a ele nos pudesse conduzir.

Há uns tempos, ainda antes do nosso regresso definitivo a Portugal, passámos uma última vez pela casa desse amigo, mas o seu nome deixara de figurar na campaínha da porta. Meses mais tarde, surgiu-me a ideia de procurar no Facebook pessoas com o mesmo apelido, que não era muito vulgar. Escrevi a cerca de uma dezena, tentando saber "o que era feito" do nosso amigo. Obtive duas respostas. A de um brasileiro, dizendo não ter qualquer ligação familiar com o nosso amigo e a de um irmão, informando da sua morte, já ocorrida há mais de um ano. Sem mais pormenores. Dos restantes possíveis (e alguns bem prováveis, por várias razões) familiares, recebi apenas um estranho silêncio.

Decidi anotar aqui estes dois momentos tristes. Porventura é prova de alguma ingenuidade pensar que as pessoas ficam à nossa espera eternamente, que o tempo não passa para elas, da mesma forma que passa para nós, que os azares as poupam sempre. Mas nem por isso me choca menos confrontar-me com o silêncio destas casas que, para nós, apareceram de súbito mortas, sem que tivéssemos tido oportunidade de trocar uma última palavra com quantos as ocupavam e também faziam parte do nosso mundo.     

Um texto sobre a Rússia, já com 20 anos

Publiquei este texto, em agosto de 2004, há mais de 20 anos, em "O Mundo em Português", uma publicação do saudoso IEEI (Instituto ...