terça-feira, dezembro 13, 2016

E agora, António?


António Guterres foi ontem entronizado como novo secretário-geral das Nações Unidas, cargo em que assumirá funções no primeiro dia de 2017. É o cume da carreira extraordinária deste engenheiro eletrotécnico que, sem nunca ter sido secretário de Estado ou ministro, chegou um dia à chefia do governo em Portugal, onde ficou por mais de seis anos. 

Oriundo de famílias de meios limitados, estudante sem mácula, profissional de excelência no Gabinete da Área de Sines, Guterres é talvez a prova de que a meritocracia funciona, em Portugal, mais vezes do que se pensa. Militante católico fervoroso, humanista por vocação, dialogante por convicção, procurou transmitir na sua governação um choque de modernidade à sociedade portuguesa, conduzindo habilmente o país no plano europeu e internacional. Um dia, sob o cansaço do impasse político, cumulado por questões familiares, pôs fim definitivo à experiência política nacional, a que se dedicara por décadas. 

Remeteu-se a partir de então à dignidade de um quase inquebrantável silêncio e, com o empenhamento total que está nos seus genes, enveredou por uma desafiante experiência internacional, numa área que casava bem com as suas preocupações sociais. Teve sucesso, ganhou prestígio e, aproveitando muito bem uma conjuntura que acabou por sorrir-lhe, viu as suas raras qualidades reconhecidas, na escolha para o lugar mais relevante na maquinaria internacional para a defesa da paz e da segurança.

Guterres chega à ONU num momento muito complexo. A potência que um dia estimulou o desenho da ordem internacional que tem as Nações Unidas no seu centro acaba de eleger, para a chefiar, a pessoa menos propensa a aceitar uma ordem global equilibrada e solidária. Ao "America first" somam-se uma Rússia em pleno curso de recuperação estratégica da humilhação da Guerra Fria, uma China que vive um tempo de afirmação política para sustentar o seu crescente peso económico, um projeto europeu declinante, dividido e sem entusiasmo, que vive um dia-a-dia de mera sobrevivência, com o risco de crise ao virar da esquina. O Médio Oriente está inflamado como nunca nas suas tensões, com efeitos colaterais que desestabilizam largos espaços geopolíticos. A pobreza e a desigualdade continuam a marcar várias regiões do mundo e a liberalização comercial global está em claro refluxo, com o nacionalismo protecionista a ganhar um novo ciclo de popularidade. O mundo está perigoso.

A fé move montanhas, diz-se. Não será por falta dela que esta nova montanha em frente de António Guterres se não moverá.

6 comentários:

Anónimo disse...

um interessante artigo de Pacheco Pereira, nem de proposito

https://www.publico.pt/2016/12/10/politica/noticia/porque-estamos-a-andar-para-tras-1754270

cumprimentos

Joaquim de Freitas disse...

O Dr. António Guterres é, de qualquer maneira, um homem corajoso, ao aceitar este job,que, como dizia um dos seus predecessores, Trygve Lie, é « o mais impossível job no mundo »…

Mas sendo inteligente, sabe que só fará o que as grandes potências o autorizarem. Tem de certeza na memória o que outro predecessor, Kofi Annan, foi obrigado ingerir, que não pôde impedir a guerra americana no Iraque. “ Se os Estados Unidos e outros países se afastam do Conselho de Segurança e dirigem uma acção unilateral, não estarão em conformidade com a Carta”… Nunca vi discurso mais insípido que este! Mas quem manda na ONU, não é o secretário geral.


Luís Lavoura disse...

a meritocracia funciona, em Portugal

Funcionava, Francisco, funcionava. Hoje já não.

Hoje em dia o ensino (na escola pública) é totalmente anti-meritocrático. Com a abundância de trabalhos de casa e outros trabalhos para fazer, esse ensino destina-se apenas a quem tem pais cultos e/ou explicadores que possam fazer os trabalhos de casa pelo aluno (isto é, para explicar mais concretamente: o aluno, não faz nada, os pais fazem os trabalhos por ele). Um aluno que não tenha pais e/ou explicadores que o apoiem, não tem hoje em dia quaisquer hipóteses.

Esta é a escola (pública) de hoje em dia. Totalmente dedicada à reprodução das assimetrias sócio-culturais previamente existentes.

Rui C. Marques disse...

E agora,António,vamos contar com a força das convicções,a lucidez de análise,a capacidade de intervenção e o peso dos afectos.

Anónimo disse...

Guterres - que não deixou saudades como PM -, já tem, portanto uma desculpa caso as coisas lhe corram mal: a culpa é dos americanos.

Crimeia, Crimeia... ah sim, foram os americanos

Anónimo disse...

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