A decisão da justiça angolana de punir severamente os ativistas políticos vai, com toda a certeza, suscitar clamores internacionais.
No plano formal, irá ser argumentado que o processo terá tido irregularidades processuais, que pode haver uma desproporção da pena face à real gravidade dos atos que terão sido praticados, que o facto de se tratar de jovens sem cadastro anterior e com escassez de meios para a prática efetiva das ações que planeariam levar a cabo desqualifica a rigidez da resposta judicial.
Mas não nos enganemos: a grande questão que estará subjacente a essas reações prende-se, essencialmente, com um juízo de valor negativo quanto às garantias políticas e judiciais que as instituições angolanas providenciam aos seus cidadãos. Ora essa é uma questão política de fundo, que, desde logo, começa por dizer respeito aos angolanos, dentro ou fora do país, mas que também é passível de mobilizar a opinião de estrangeiros.
Portugal, onde vive uma importante comunidade angolana, é e continuará a ser um palco natural para tomadas de posição pública face ao regime de Angola. A essas atitudes associar-se-ão, com toda a certeza, figuras portuguesas, políticas ou não, que irão ecoar as muitas reticências que as instituições angolanas lhes merecem, em especial no plano da observância dos direitos fundamentais e das regras do Estado de direito. A liberdade de expressão de que felizmente por aqui somos titulares autoriza isso e só nos devemos orgulhar de viver num país em que tal é, e esperemos que continue a ser, sempre possível.
Outra coisa, porém, são as posições de Estado.
Pelas minhas contas, mais de 60% dos países com os quais Portugal tem relações diplomáticas têm regimes que estão longe de corresponder a modelos aceitáveis em matéria de funcionamento das respetivas instituições, no tocante à sua democraticidade e respeito pelos direitos básicos dos cidadãos, nomeadamente à observância de "mínimos" em matéria de funcionamento equilibrado e independente da justiça, liberdade da comunicação social, direitos das mulheres, etc. Em alguns desses países há comunidades portugueses, em outros há investimentos nacionais, outros ainda são destino das exportações com que hoje exultam as nossas estatísticas.
Se acaso Portugal decidisse ter relações político-diplomáticas apenas com países cujos regimes merecessem o seu louvor, em razão das suas prática institucionais, a nossa rede diplomática restringir-se-ia imenso e, por exemplo, os nossos emigrantes ficariam sem um mínimo de proteção consular em muitos locais. Se o nosso país comerciasse e investisse exclusivamente em Estados que dessem mostras de respeito pelos direitos humanos, a nossa balança comercial iria, de um dia para outro, "por águas de bacalhau". Quando, nas Nações Unidas ou noutras instâncias multilaterais, anunciamos gloriosamente ter sido eleitos para qualquer importante cargo, convém ter presente que a esmagadora maioria dos países que votaram em nós são ditaduras ou falsas democracias, muitas delas com regimes sinistros, presos políticos e práticas de que todos nos envergonharíamos, se alguém parasse um segundo para pensar.
Na sociedade internacional, o tratamento deste tipo de questões, quando não afetam diretamente os nossos interesses ou os interesses que nos compete proteger, não se processa nunca no plano bilateral. Portugal está presente em diversas instâncias internacionais onde estas temáticas são analisadas, onde a observância de práticas sãs pelos Estados é escrutinada, onde a coerência da nossa posição em matéria de promoção de princípios consensuais é testada. E, ao que a nossa história democrática demonstra, não nos temos saído mal desse teste.
Estou certo que as autoridades portuguesas têm isto presente quando são apeladas a pronunciar-se sobre o que hoje se passa em Angola.
(Em tempo: o comunicado que o MNE português distribuiu sobre este assunto é em tudo conforme àquilo que deixei expresso)
(Em tempo: o comunicado que o MNE português distribuiu sobre este assunto é em tudo conforme àquilo que deixei expresso)
17 comentários:
Folgo em ver uma voz com juízo nos comentadores das esquerdas. Quer-me parecer, porém, que cai em saco roto. O MNE já teve o mau gosto de comentar o assunto e, como se isso fosse pouco, teve a lembrança extemporânea de que um dos condenados tem nacionalidade Portuguesa. Isso estaria muito bem se ele estivesse num país que lhe fosse estrangeiro mas ao estar num país do qual é nacional o MNE claramente meteu água.
O regime angolano é uma criança de berço quando comparada com o inqualificável regime Saudita!
Com o qual também mantemos amistosas relações e nunca o criticámos. Todavia, Portugal, sempre subserviente e sem estratégia política, aceita o que lhes dizem e mandam fazer Bruxelas e Washington relativamente à Rússia de Putin. Os agricultores queixam-se por cá e com razão sobre o embargo à Rússia.
Senhor Zuricher:
O senhor, seguidista dos da sua tribo e cego às imensas ovelhas ranhosas da mesma, que moral tem para se arrogar criticar os outros e achar-se dono do bom juízo?
É preciso ter topete para destilar paternalismo mais ou menos tolerante sobre o autor do post.
"... os nossos emigrantes ficariam sem um mínimo de proteção consular em muitos locais."
eheheh... eu diria que os cônsules ficariam sem férias pagas no estrangeiro e os desconsulados emigrantes na mesma.
Caro Manuel Silva, saiba ouvir opiniões diferentes da sua.
Excelente post. O princípio a seguir pelo Estado português nas suas relações internacionais deve ser o da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados. Nomeadamente, não se deve arvorar em missionário da democracia. Deve defender os interesses do povo português, não os presumidos interesses das populações de outros países.
Zuricher
O MNE teve o mau gosto de comentar o assunto e, como se isso fosse pouco, teve a lembrança extemporânea de que um dos condenados tem nacionalidade Portuguesa. Isso estaria muito bem se ele estivesse num país que lhe fosse estrangeiro mas ao estar num país do qual é nacional o MNE claramente meteu água.
Muito bem dito, Concordo plenamente.
Anónimo
Portugal, sempre subserviente e sem estratégia política, aceita o que lhes dizem e mandam fazer Bruxelas e Washington relativamente à Rússia de Putin. Os agricultores queixam-se por cá e com razão sobre o embargo à Rússia.
Plenamente de acordo consigo.
Concordo plenamente com o Sr. Embaixador! E estou à vontade porque não é frequente. Acrescento só que este paternalismo de alguns fazedores de opinião e principalmente da imprensa é ainda mais medíocre do que a atitude colonialista. Pela capa do público até parecia que tinha havido um atentado terrorista... no Chiado...
Os chamados movimentos libertadores, ou seja o MPLA, Frelimo e PAIGC, partidos políticos que substituíram a Administração colonial "tuga", detestam as opiniões da esquerda aleijadinha e trôpega portuguesa.
Não sei explicar porquê, ou não me apetece explicar, mas é uma realidade tão evidente nestes 40 anos, que não se entende porque não se consegue dar a volta ao contexto.
Senhor Alberto Sampaio:
Porque não se revê no espelho quando aconselha ou outros?
Portanto, para si é normal o senhor Zuricher classificar todas as pessoas da esquerda como sem juízo, abrindo paternalisticamente uma excepçãozinha em relação ao Senhor Embaixador.
Eis a frase: «Folgo em ver uma voz com juízo nos comentadores das esquerdas»
Se isto não é sectarismo, só pode ser saber ouvir e, sobretudo, saber avaliar os outros.
Importa ter em consideração que entre os condenados - e condenado em termos processuais que atentam contra as mais basilares regras de um processo penal democrático (por exemplo, só para nomear um dos mais flagrantes, a mudança do conteúdo da acusação na 25.a hora) e contra direitos fundamentais de primeira geração, com a liberdade de expressão e de pensamento à cabeça - está um cidadão português. E sendo esse o caso, está o Estado português obrigado a tomar as iniciativas políticas e diplomáticas admissíveis para proteger esse seu cidadão. É isso que ordena o princípio do Estado de Direito que, de acordo com o artigo 2.o da Constituição, deve comandar a actuação do Estsdo português.
Caro Manuel Silva, se a carapuça lhe serve, mesmo sem o terem convidado a prova-la, sirva-se Vossa Excelência que, seguramente, não ficará mal servido. Lá pela minha terra havia um proverbio sobre albardas, burros, donos e vontades. Talvez se aplique aqui, quem sabe...
nbrandão,
O problema é que esse mesmo cidadão português tem dupla nacionalidade e tendo cometido o crime de que foi acusado e levado a julgamento – e posteriormente condenado, sido praticado em Angola e ele ali é automaticamente cidadão angolano no preciso momento em que pisa território de Angola, são as leis de Angola que prevalecem sobre ele e não as de cá. Quando muito, o Estado português pode manifestar preocupação sobre a condenação que pendeu sobre ele e diplomaticamente procurar em conjunto com as autoridades (políticas e não as judiciais, o que seria uma ingerência inaceitável) angolanas, amenizar a sua situação. Nada mais poderá fazer o Estado (Governo) português por esse seu cidadão – já que tem a dupla nacionalidade luso-angolana e foi julgado e condenado enquanto cidadão angolano. À parte estas considerações, poder-se-á questionar também sobre se as garantias de defesa de um arguido em Angola são menores do que as que aqui, em Portugal, são concedidas aos nossos arguidos. Mas, em termos gerais não haverá muitas diferenças. Porém, se um crime tem, como este, conotações políticas – embora a Justiça angolana o não admita – então essas garantias de defesa do réu, acabam por ser mais abaladas. Ninguém duvida disso. Mas, são as Leis de Angola e quem é seu cidadão e ali vive terá de conformar-se com elas, conviver com elas até um dia serem revogadas. Muita coragem tiveram os arguidos em contestarem politicamente o regime angolano. Mas, sabiam os riscos que corriam. Entre os quais enfrentarem aquela Justiça e não outra (como por exemplo a nossa por cá). Não me interprete mal, não estou a ser cínico, tão só objectivo, do ponto de vista jurídico e no que respeita às relações bilaterais entre Portugal e Angola.
David Lencastre,
Só por ironia se poderá sequer sugerir que o quadro de garantias do processo penal angolano é equivalente ao português. Por cá, a alteração da acusação como aquela que sucedeu é terminantemente proibida (chama-se alteração substancial dos factos e contende com as pedras basilares do que é um processo penal democrático: o direito de defesa do arguido; e o chamado princípio da acusação, que proscreve a concentração de funções de acusador e julgador numa mesma pessoa) e constitucionalmente insuportável. Por cá, a presunção de inocência vale até ao trânsito em julgado da condenação, e por isso, em regra, não há imposição da privação da liberdade em acto contínuo à condenação a prisão efectiva na primeira instância. Isto para não ir mais longe, porque é o que basta para fazer a diferença entre o que é um processo penal orientado pelo princípio do Estado de Direito e um que o não é.
No mais, quanto à margem de actuação política e diplomática do Estado português, mesmo estando em causa um cidadão que é angolano, mas também é português, não discuto, porque me faltam conhecimentos para o fazer.
Não me custa concordar consigo sobre o que aqui nos diz, mas, a verdade é que o que referi também não é posto em causa, genericamente falando. Já agora, você já alguma vez pleiteou em Angola?
O meu último comentário, naturalmente referia-se a "nbrandao".
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