sexta-feira, junho 14, 2013

Da responsabilidade

Na noite de Santo António, Lisboa regurgitava de pessoas, entre as quais muitos turistas estrangeiros. Entre a Baixa e o alto do Chiado, circulava imensa gente. Para quem vinha da praça do Comércio em direção à zona do Camões, com vontade de ainda dar uma saltada aos festejos no Bairro Alto ou na Bica, o atalho pela escadaria do Metro era a opção mais natural e rápida. Entra-se sob a FNAC, desce-se um pouco (a escada rolante estava parada, mas, a descer, todos os santos populares ajudam) e, depois de atravessar um largo corredor, surgem diante de nós três longos lanços de escadas rolantes, colina acima, que desembocam na zona da Brasileira. 

Assim devia ser, mas não era. As escadas rolantes em sentido descendente estavam a funcionar. As que subiam mantinham-se imóveis. Ao meu lado, forçados a grimpar penosamente 252 degraus de uma escadaria paralela muito pouco confortável, centenas de turistas estrangeiros pareciam interrogar-se sobre esta peculiaridade portuguesa. Era uma bela maneira de os receber! E era um gesto que "calava fundo", por parte de uma empresa pública que assim mostrava a sua simpatia e atenção para com os portugueses, em noite festiva.

Às vezes pergunto-me se a ocorrência deste tipo de coisas é apenas estupidez, só incompetência técnica e "deixa-andar", ou, no limite do absurdo, se é mesmo de propósito, por parte de alguém que se quer vingar da vida, estragando a dos outros. Sendo português, a única coisa que eu sei, de certeza segura, é que nada acontecerá à pessoa responsável por este estado de coisas, que configura um profundo desrespeito por nós e por quem nos visita. "Accountability" é uma palavra que nunca terá uma tradução adequada em português.

A propósito deste sentido nacional para a irresponsabilidade, vou contar duas histórias.

Aqui vai a primeira.

Todos assistimos, alguns de nós siderados, à vergonha que foi o hastear da bandeira nacional, virada de pernas-para-o-ar, pelo presidente da República, no dia 5 de outubro do ano passado, no mastro da varanda da Câmara municipal de Lisboa. Como português, senti-me ofendido com este imperdoável descaso, que deixou de sorriso amarelo as ilustres figuras em volta.

Há semanas, estive numa cerimónia no salão nobre do município lisboeta. Numa conversa conjunta com vários responsáveis pela casa, ousei perguntar: "Qual foi a punição atribuída ao funcionário responsável pelo erro da colocação da bandeira, no 5 de outubro? Foi demitido?". Notei, na generalidade dos presentes, algum embaraço provocado pela minha questão. Uma das pessoas do grupo, a medo, retorquiu: "Coitado do homem. Anda por aí, ficou humilhado..."

"Humilhado"? Humilhado foi o presidente da República que o dia comemorava, humilhado deve ter ficado o presidente da Câmara em cuja sede se praticou um ato de incompetência crassa que colocou o país a rir-se das suas instituições. Mas não! Aparentemente, "humilhado" ficou, afinal, o medíocre assalariado, tudo levando a crer que rapidamente terá ficado absolvido e isento de culpas por essa "humilhação". Ao menos, conviria que fosse divulgado o nome da personagem, para que possamos conferir se, um destes dias, não recebe por aí um medalha...

E aqui fica a segunda história, que tem de ser um pouco mais longa*.

Até 2010, Portugal não tinha nenhum embaixador acreditado no Mónaco. Por essa altura, e a exemplo do que muitos países fazem, foi decidido que o embaixador em França (que, por acaso, era eu) passasse, cumulativamente e como não-residente, a representar Portugal no Mónaco. O processo correu os trâmites habituais: foi "pedido o 'agrément' ", através do envio do currículo do embaixador, e, tempos mais tarde, chegou uma "nota verbal" (é mesmo assim) das autoridades monegascas, dirigida à nossa embaixada em Paris, informando do respetivo assentimento para que, em data a combinar, o embaixador designado entregasse as "cartas credenciais" ao soberano, única altura a partir da qual estaria qualificado para exercer as funções. (Para quem esteja menos familiarizado com estas coisas, as "cartas credenciais" são um documento, assinado pelo chefe de Estado, que qualifica um determinado embaixador junto de um seu homólogo estrangeiro, e que são pessoalmente entregues pelo diplomata, naquilo que se chama a sua "apresentação".). Informei de imediato Lisboa de que era preciso mandar publicar o decreto de nomeação e preparar as "cartas", pedindo, simultaneamente, às autoridades monegascas para indicarem uma data na qual o seu soberano pudesse receber-me. As "credenciais" (modo como no jargão diplomático nos referimos à "apresentação das cartas credenciais") ficaram marcadas para cerca de três meses depois.

Lisboa teve, assim, mais de três meses para publicar o decreto e preparar as "cartas", uma tarefa que, sem pressas, se pode fazer em pouco mais de duas semanas. Porque já sei "do que a casa gasta", fui fazendo lembretes informais a Lisboa, sempre acolhidos com "rassurantes" respostas. Na semana anterior ao ato, pagos que estavam já o meu bilhete de avião e um adiantamento da reserva do hotel, bem como combinados todos os procedimentos formais e pedidos os encontros técnicos de trabalho que, subsequentemente às "credenciais", eu teria no Mónaco, comecei a dar-me conta que alguma coisa parecia estar a correr mal em Lisboa. Constatei então uma azáfama que envolvia já a Presidência da República e o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros. Porque tudo se tinha atrasado, chegou mesmo a encarar-se a necessidade da publicação de um número especial do "Diário da República", apenas com o decreto da minha nomeação para o Mónaco. E também fui informado que as "cartas", que só podiam ser elaboradas depois da publicação do decreto, iriam ser-me enviadas por DHL, na véspera da apresentação das credenciais, no dia do meu voo a caminho do Mónaco. Tudo isto porquê? Porque um qualquer incompetente (cujo nome, acreditem!, não sei nem quero saber) havia deixado atrasar o assunto e todas as entidades envolvidas no processo tinham sido apanhadas desprevenidas.

Que fazer? Não se podiam correr riscos. A experiência ensina a não confiar, em absoluto, na eficácia da DHL. Não houve outra solução que não fosse pedir ao Mónaco para anular toda a cerimónia, para alterar a agenda prevista do príncipe e todos os restantes contactos, com o desagradável impacto que isso teria, para além de encontrar maneira de suportar todos os encargos financeiros já assumidos. Vários meses passaram antes que a cerimónia pudesse voltar a ser organizada.

Perguntei então a Lisboa: "Foi instaurado um inquérito ao responsável por esta gigantesca incompetência? Isto justifica um processo disciplinar!". A resposta foi portuguesmente elucidativa: "'Tás a brincar?! Isto aqui não funciona assim..."

Pois claro que não funciona! Por estas e por outras é que "isto aqui" está como está!

*Imagino que algumas pessoas, em alguns meios oficiais, possam entender menos conveniente trazer-se um episódio desta natureza para a praça pública. Porém, eu acho que só pode temer quem deve.

19 comentários:

patricio branco disse...

sia, a cultura da irresponsabilidade, do deixa lá, não tem importancia.
as escadas rolantes estão de facto desligadas, nota~se o esforço dos que utilizam a tradicional...

Anónimo disse...

A primeira história, a da bandeira, bem conhecida, afinal pode ser vista como o incidente que deu mais "ênfase" ao acontecimento daquele dia. Talvez também para protestar contra uma eventual decisão que pudesse vir a suprimer o feriado do 5 de outubro, ou até para protestar contra o muito que em Portugal se faz ao contrário para não dizer de "pernas p'ró ar"...
Quanto à segunda, as credenciais, é uma história que, escrita noutra lingua, onde a palavra "desenrascanso" não tem tradução, é impossivel dar-lhe uma "pitada" que seja de indicio de veracidade. Ou então recorrer às metáforas de La Fontaine.
Mas à luz deste "jemenfoutisme" compreende-se melhor aquele ânimo de fatalidade onde afinal muitos portugueses se refugiam no seu "vai-se-andando", "não se pode fazer nada"...
Compreendo, pessoalmente, o facto de as pessoas serem vigarizadas por gabinetes de engravatados, francamente vigarizadas, e depois terem "vergonha" de dizer que foram vigarizadas para os processar. Até a vergonha salta de campo!
Compreendo este emigrante que gastou t r i n t a anos! para tentar legalizar uma Moradia nas proximidades de Lisboa, depois passou o processo para os filhos continuarem e estes, mais de dois anos passados, ainda o não conseguiram e já pensam transmitir o processo para serem os netos a dar continuidade... Entretanto a casa que o velho construiu com todas as suas economias está ali a definhar, com renda de 50€ cujas receitas não equilibram sequer as despesas de seguro e impostos... Esta, outra história que, por mais imaginação que se possa "imaginar", nunca pode parecer verdadeira!
Que faire? Ainda bem que há ainda muita gente que sabe que nunca se deve dizer nunca!
José Barros

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Fez muito bem em publicar este texto Senhor Embaixador. Continue sempre a denunciar a incompetência

Defreitas disse...

Senhor Embaixador: Eu já tinha indicado no seu excelente tema precedente dos sonhos do dia 10 de Junho, a minha opinião sobre a importância da cidadania num pais onde se deviam ensinar os direitos e os deveres de cada um; a responsabilidade é um dos aspectos mais importantes da cidadania que se devia ensinar na escola.

Mas a responsabilidade é o reverso da detenção de poder, indissociável do direito de governar; o que quer dizer que a partir do momento em que se confia a alguém a execução duma acção, este é responsável da sua acção. Todo poder implica portanto uma responsabilidade de avaliação e de sancção da acção daquele que dirige.
O problema é que num pais como o nosso , a tendência é à irresponsabilidade daqueles que governam. Então que dizer daqueles que executam? Não todos, claro está, mas suficientemente para que as escadas rolantes não funcionem num dia de festa! Tudo está ligado. O declínio do sentido da responsabilidade tem a ver com o exemplo vindo de cima.

A associação entre a irresponsabilidade política e a instabilidade social, a falta de civismo e o respeito da coisa publica, o sentido do dever, o gosto do trabalho bem feito ou da acção bem executada, o respeito dos superiores e dos subalternos, o receio mesmo duma sancção eventual , tudo isso faz parte duma nação homogénea e em ordem.

A ultima frase do Sr.Embaixador : "Pois não funciona! Por estas e por outras é que "isto" está como está! " ,resume bem a situação: Para fazer uma pratica corrente da vida de todos os dias, seria preciso que aqueles que detêm a responsabilidade da governação e do exemplo sejam realmente responsáveis em tudo o que diz respeito à vida publica. Não creio que reduzir à simples destituição punitiva possa trazer os executantes à função primeira para a qual não foram formados nem motivados pelo exemplo.
A transformação da visão ligada à responsabilidade é um trabalho de "longue haleine" dos governantes. Mas então que dizer dos outros...

Janus disse...

Sem querer arranjar desculpas para ninguém, parece-me que há uma grande diferença nas duas situações relatadas. É que , se na segunda não vejo mesmo qualquer desculpa, e o tal processo disciplinar, até pelo tempo envolvido, estaria mais que justificado, na primeira,existe uma diferença fundamental: é que ambos os presidentes e/ou outra qualquer alta individualidade presente, poderia ter chamado a atenção para o erro. A bandeira seria recolhida e hasteada devidamente. Mas... dá pra entender... ninguém os teve no sítio para mandar rectificar a situação( por parte do 1º presidente,já nem dá para estranhar!). Foi muito mais cómodo fazer de conta que nada se tinha passado e depois, sendo necessário, empurrar toda a responsabilidade para um funcionáriozito...

Defreitas disse...

Sr. José Tomaz Mello Breyner:


O acto de ignorar reflete a incompetência em resolver os problemas. Se aqueles que têm uma visão global e a responsabilidade do sistema ignoram o estado de incompetência que lavra à sua volta, a culpa é deles.

Infelizmente, a democracia significa muitas vezes o poder nas mãos de uma maioria incompetente. A incompetência, já destruiu mais políticos que a desonestidade.

Quanto aos outros, os que se esforçam e vivem de pouco, a incompetência tira-lhes a fé e ganha o nome de azar. O testemunho do Sr. José Barros é edificante.

Tenho sempre presente o principio de L.J.Peter:
"Num sistema hierárquico, todo o funcionário tende a ser promovido até ao seu nível de incompetência".

Anónimo disse...

Realmente há que responsabilizar a incompetência! A que conclusão chegamos!...
Mas como o direito legal parece “não funcionar” no nosso País, porque não empregar os métodos primários ancestrais?
Não têm um pelourinho aí na Praça do Município? (daqui, de Vila Real não consigo vislumbrar). Se sim, então é fácil:
Como o humilde trabalhador colocou a bandeira de “cabeça para baixo”, depois de a ter içado e arreado várias vezes para desenferrujar o sarilho, apesar da ajuda de outro humilde trabalhador, pelo menos, e da inspeção de um superior hierárquico (continuo a pensar que tudo foi intencional, mas deve ser do meu mau intento), devem coloca-lo na mesma posição, no pelourinho, o mesmo tempo que a bandeira esteve nessa posição incómoda.
Quem desligou a escada rolante deveria carregar, no mesmo tempo, pessoas nesse trajeto.
O responsável pelo incidente diplomático deveria ser obrigado a acompanhar a Princesa do Mônaco Charlene, em todas as ausências do Príncipe, claro, a suas custas.
E assim por diante: Quem anda a METER A MÃO no dinheiro público seja por influência, lóbi, compadrio etc. , sabem o que poderia ser feito nesse pelourinho… e escusava-mos de ter umas peças lindíssimas só para turista ver…

Anónimo disse...

Agora, imagine-se a quantidade de jolas que foram vendidas à custa da sede causada pelo esforço de subir as escadas...

Há que ter visão!

Anónimo disse...

Incrivel ... a história das credenciais é absolutamente vergonhosa, não ter existido qualquer tipo de responsabilização a quem denegriu a imagem de Portugal e dos Portugueses perante um país estrangeiro é de brandar aos céus ....

N371111

Anónimo disse...

Agora percebo esta fome do Mónaco de ficar com os nossos jogadores. É a vingança!

Rubi disse...

Ia comentar dando outro exemplo, do péssimo funcionamento do Consulado de Portugal em Londres, que me está a empurrar para a nacionalidade britânica por já não aguentar a travessia do deserto que representa o resolver questões simples. Mas sinceramente nem tenho pachorra de escrever sobre isso. Reforço apenas a ideia do senhor embaixador, que não há tradução para 'accountability' e nem para 'to cope with'!

Anónimo disse...

fez muito bem sr embaixador

Anónimo disse...

Tem toda a razão, Francisco Seixas da Costa!
a) Rilvas

Anónimo disse...

Há vários anos foi-me contada uma história que se teria passado na Suécia: Então os suecos chamavam aos portugueses e também aos espanhois emigrantes, os "manhenas". Isso queria dizer que eles por norma, sempre deixavam algo para fazer, para o dia seguinte (amanhã)...

Anónimo disse...

Isto de se ser "estrangeirado" em Portugal tem os seus "quês" até porque não se pode compreender as razões válidas para o que se verifica. Às vezes o sofrimento é mesmo pungente. Mas como diria um avô meu, depois de uma estadia na América em 1914: Se isto [Portugal] fosse igual a Nova York não tinha graça nenhuma.

Portugalredecouvertes disse...

Sr. Embaixador
se calhar as pessoas responsáveis pela escada rolante estavam a preparar as festas da cidade!
o pessoal não é assim muito, e não poderá estar em vários sítios ao mesmo tempo.

Angela

EGR disse...

Senhor Embaixador : direi simplesmente que felizmente, ainda vai havendo quem, se indigne com tais episódios e os divulgue.
Pala minha parte agradeço-lhe.

Anónimo disse...

A escada não esteve avariada de propósito para as festas! Está há bem mais de oito dias e isso é uma situação muito recorrente. E a que se estraga é sempre a que sobe!
João Vieira

Anónimo disse...

Peço-lhe imensas desculpas, mas um processo disciplinar ao funcionário da bandeira é ir um bocadinho longe de mais. Veja lá a quantidade de processos disciplinares para omissões, imprecisões, erros de julgamento e outras, derivadas, muitas vezes, de idiossincrasias, não seriam aplicados, com mais razão, a pessoas com responsabilidades e de estatuto muito mais elevado.
Querer dar o exemplo a partir do senhor da bandeira parece-me, nos tempos que correm, mais do mesmo.

António Nunes

Maduro e a democracia

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