quarta-feira, abril 11, 2018

Cunha Rego



É hoje apresentada uma antologia de textos de Victor Cunha Rego.

Cunha Rego é uma figura que me habituei a detestar politicamente. Por razões assumidamente ideológicas. Sempre o vi a representar quase tudo aquilo com que eu não concordava. Não o conheci pessoalmente e tenho a firme convicção de que nos teríamos dado mal, se acaso isso tivesse acontecido. Mas li muito do que escreveu e disse publicamente e julgo que conheço bem, por testemunhos vários, os diversos tempos do seu percurso. Reconheço-o como um patriota, um homem muito inteligente, uma figura culta, com uma escrita límpida. 

Nasceu politicamente de uma esquerda com toques maoístas, sempre anti-soviética, passando depois para o socialismo reformista, deste para uma postura progressivamente liberal, acabando num conservadorismo radical, com nuances quase místicas. Foi um cético e também, à sua maneira, um snobe, sobranceiro nas ideias, porque tinha em alta valia as suas próprias convicções. Creditam-se-lhe os amores, melhor, as paixões, os arrebatamentos, femininos e políticos. Foi fiel apenas a si próprio, ao seu ego e à sua coerência íntima. Não é coisa pouca, convenhamos, mas não chega para o fazer entrar numa História em que teve um papel entre portas, de conselheiro discreto, muitas vezes frustrado, do poder do ciclo.

Esteve com o “reviralho” português no Brasil, ao tempo de Delgado e Galvão. Veio a juntar-se ao PS de Soares, sempre “pela direita”. Alinhou com a conspiração de Spínola, no 11 de março de 1975, figura por quem tinha uma manifesta atração. Depois de ter sido embaixador de Soares em Madrid, foi seduzido por Sá Carneiro, andou pela AD, “assaltou” ao seu serviço a RTP, apoiou Soares Carneiro contra Eanes, afastou-se deste. 

Enquistou-se depois no Portugal conservador, ao lado dos estrangeirados ácidos e dos “vencidos da vida” a quem o país não deu o palco que achavam merecer. O Estado era o seu inimigo permanente, quem o combatesse tinha o seu crédito garantido. Teve presença relevante na imprensa, até quase ao final dos seus dias. Morreu sem “éclat” público, mas é reverado ainda hoje pelos seus amigos.

Não creio entrar em nenhuma contradição se disser que estamos perante uma personalidade muito interessante, quase de exceção, uma figura intelectual de grande qualidade. E uma bela pena, o que me diz muito. Porém, a sua ideia do país, do seu futuro e das opções para lá chegar - e, em especial, com quem contar para isso - está muito longe de ser a minha. 

Comprei, já há semanas, o “pavé” de quase 900 páginas onde, sob um título magnífico - “Na prática a teoria é outra” - são coletados textos seus desde o histórico “Diário Ilustrado” até tempos mais recentes, com muitos inéditos. Está lá muito do que nos permite fazer hoje o retrato do autor. Devem faltar algumas coisas dos tempos mais idos - e é pena. Seria importante termos uma visão mais representativa deste virtuoso da escrita, deste “Maquiavel” da democracia que temos, que também foi construída graças a gente como ele mas, igualmente, apesar deles.

terça-feira, abril 10, 2018

Universidade Nova de Lisboa

Encerrou-se ontem o meu mandato de quatro anos como membro externo do Conselho de Faculdade, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa. 

Foi para mim uma experiência muito interessante e enriquecedora, que veio a somar-se à que já tinha tido, por período idêntico, como presidente do Conselho Geral da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Desejo aos novos órgãos eleitos para o Conselho de Faculdade os maiores sucessos, na condução da magnífica estrutura universitária que é a FCSH, sob a muito competente direção do professor Francisco Caramelo. Na sua pessoa, quero testemunhar o gosto que tive em poder ser útil à instituição, de que sou admirador e onde só deixei novos e velhos amigos.

O desastre e o presidente

Ontem, ao ver os três telejornais das 20 horas (por “truque”, uns começam mais cedo) interroguei-me sobre a informação a que, nos dias de hoje, temos direito.

Os três canais hesitaram entre dar destaque de abertura à patética novela mexicana em que se transformou a presidência do Sporting ou à tragédia que envolveu uns inconscientes que foram andar de parapente para o Meco. Escuso de referir as prioridades editoriais da CMTV.

Ontem, dia 9 de abril, celebrava-se o centenário daquela que foi uma das batalhas mais trágicas da história das forças armadas portuguesas. Num gesto raríssimo, o chefe de Estado francês, acompanhado do seu homólogo português e do chefe do governo, deslocaram-se ao cemitério da Flandres em estão os que se sacrificaram pela pátria. A comunidade portuguesa em França, a mais significativa em número em todo o mundo, ficou extremamente prestigiada pelo gesto do presidente francês.

Mas as nossas televisões remeteram as suas peças sobre o evento em Richebourg para o meio da “tabela” dos seus telejornais. Para a informação dos três canais, o ”desastre” não foi La Lys, foi o Meco, e o “presidente” que mereceu destaque foi BdC, não Marcelo ou Macron.

O papel da imprensa





À sede da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, tinham chegado repetidas informações segundo as quais, no Quirguistão, um país da Ásia Central, a oposição se via impedida de publicar a sua própria imprensa. O embaixador desse país junto da OSCE negava a existência dessas dificuldades e a missão local da organização transmitia-nos versões contraditórias.

Por essa razão, o grupo de cinco embaixadores, que eu integrava, e que nesse ano de 2004 se deslocou a toda região, numa “fact-finding mission”, levou o assunto na sua agenda.

Os cinco Estados da Ásia Central (Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usebequistão), resultantes de antigas Repúblicas da União Soviética, tendo embora diferenças entre si, são todos regidos por regimes de contornos ditatoriais, com as liberdades públicas mais ou menos postas em causa, nalguns casos de forma muito grave. Mas todos pretendem ter credenciais democráticas e defendem-se de quem os acuse do contrário. Porém, os direitos das oposições, bem como das instituições independentes da sociedade civil, são fortemente limitados. Em nenhum deles, por exemplo, as vozes adversas ao poder são admitidas nas televisões, sob vários pretextos, com a lisura nos processos eleitorais a ser também geralmente contestada. Por isso, a plausibilidade da acusação era muito elevada.

À nossa chegada a Bishkek, capital do país, fomos recebidos pelo respetivo ministro dos Negócios Estrangeiros e colocámos abertamente a questão. A reação foi perentória, quase indignada: não havia a menor limitação à publicação de jornais da oposição. Ora essa! E citou legislação que, na sua perspetiva, fundamentava a posição do governo.

No dia seguinte, tivemos um encontro com os líderes da oposição quirguiz. Nem todos, porque alguns estavam na prisão... Confrontámo-los com as afirmações do ministro. Um deles, com um sorriso triste, disse-nos: “De facto, a lei não nos impede de publicar um jornal e até já tínhamos conseguido garantir uma tipografia disposta a imprimi-lo. Mas surgiu um problema impossível de resolver”. Ficámos suspensos do resto da narrativa do homem. “Não há papel!”.

“Não há papel, como?!”. A explicação era muito simples: o governo controlava administrativamente as importações, nesse país onde não existiam fábricas de papel. A lista dos importadores autorizados era baseada no “histórico” de aquisição pelos jornals existentes, que esgotavam a 100% as quotas de papel autorizadas. Argumentando com a balança de pagamentos, o governo não deixava importar mais papel. Por isso, eram “perfeitamente” autorizados os jornais, só que não havia “matéria” onde fazê-lo.

É talvez por isso que se diz que o “papel” da imprensa é “difícil”.

segunda-feira, abril 09, 2018

Richebourg


Um excelente momento para a comunidade portuguesa em França

O “9 de abril”


Na minha adolescência, todos os anos, pela primavera, no dia 9 de abril, uma cerimónia tinha lugar em frente a minha casa, em Vila Real. Com alguma tropa, pompa e autoridades, o monumento a Carvalho Araújo, um valente marinheiro vilarrealense, que havia sido morto por um bombardeamento da Marinha alemã, em 1918, quando o seu navio protegia um barco de passageiros em pleno Atlântico, era coberto de coroas de flores. Era assim que Vila Real honrava a memória de muitos transmontanos que, nessa que era a data da batalha de La Lys, tinham morrido pela pátria.

Nas vésperas, a Liga dos Combatentes da Grande Guerra andava pelas casas e cafés a pedir alguma ajuda financeira, dando em troca uns pequenos capacetes verde-e-preto, com um alfinete, para colocar na lapela. A Legião Portuguesa, a partir de certa altura, passou a intervir nessa ação. (Lembro-me bem da indignação do meu pai: “Estes tipos da Situação querem ficar com a História para eles”).

No seio das figuras que faziam parte regular desta celebração anual, lembro-me bem de um velhote que se evidenciava pelo elevado número de medalhas que trazia ao peito. Havia também por ali alguns outros soldados da guerra 14/18, mas o mais medalhado destava-se. Era Aníbal Augusto Milhais, dito o “soldado Milhões”, de Murça, que se distinguira como ninguém pelo seu heroísmo naquela terrível batalha na Flandres francesa. Era o único que possuia a Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito, a mais alta condecoração nacional. Morreu em 1970.

Hoje, 100 anos depois da batalha de Lys, é justo recordá-lo.

domingo, abril 08, 2018

Paris - Roubaix



Não me perdoarei o suficiente por nunca me ter mobilizado, quando vivi em França, para acompanhar a prova ciclística Paris-Roubaix, grande parte da qual feita em terreno empedrado ou do género que a imagem mostra. Cheguei a ter um convite do “maire” de Roubaix para o evento e não o aproveitei. E até com esse grande fã e conhecedor do ciclismo que é Eduardo Marçal Grilo apalavrei uma jornada para ver a prova.

No dia de hoje, dia do evento, não perco a cobertura televisiva deste espetáculo de um ciclismo já pouco comum e que nos remete para a “pré-história” da modalidade.

A idade e as ideias

A idade das pessoas que Rui Rio convidou para o seu Conselho Estratégico está a ser objeto de comentários negativos, em setores de imprensa claramente ligados à defunta direção de Passos Coelho. Isso fez-me lembrar uma curiosa história.

Creio estar ainda na memória de muitos uma questão, trazida a público por Bagão Felix, há já alguns anos. Num determinado momento, alguém deu conta que, da forma como uma determinada legislação elaborada durante a governação de Passos Coelho estava redigida, tornava-se impossível a um aposentado da função pública exercer qualquer outro cargo dependente de nomeação do Estado. 

Uma lei anterior, já do tempo do governo de José Sócrates, impedia que quem usufruísse de uma pensão de aposentação pudesse ter uma ocupação remunerada no Estado. Algumas exceções havia, mas essa era a regra. O princípio era, em si mesmo, eticamente justificável: abria-se a possibilidade de dar emprego a novas pessoas. Nada a objetar, portanto.

Porém, a tal legislação posterior, publicada pela direita então no poder, ia mais longe. Na letra dessa lei, mesmo lugares não remunerados passavam a estar abrangidos, pelo que tarefas de natureza consultiva - repito, “pro bono” - passavam a ser proibidas. A questão colocou-se a muitas pessoas que se haviam disponibilizado a colaborar benevolamente com várias entidade públicas, nomeadamente nos Conselhos Gerais de universidades. É que, nos termos dessa legislação, poderia ser-lhes suspendida a sua pensão de aposentação, por estarem a exercer outra função pública ... embora gratuitamente! 

Bagão Felix suscitou publicamente a questão, que foi controvertida na imprensa por uns dias, e o executivo de Passos Coelho lá recuou, já não sei por que forma de aclaração da legislação. Foi dito tratar-se de um “erro”. E tudo voltou à estaca zero: apenas ficaram abrangidas as funções remuneradas.

Tempos mais tarde, comentei casualmente o assunto com alguém, jovem, ligado ao governo de Passos Coelho. E obtive uma revelação interessante: não tinha sido “erro” nenhum, tinha sido uma decisão maturada e tomada em plena consciência. Com dois objetivos.

O primeiro objetivo era reservar para os “mais novos” esses lugares, mesmo que não pagos. Porquê? Porque ao ingressarem nessas funções, ainda que sem remuneração, essas pessoas iam ganhando linhas formais de “experiência”, o que lhes permitiria darem progressiva substância aos seus “curricula vitae” e, nessa lógica, iam criando “lastro” para ascensão a futuros lugares remunerados. 

Notei ao meu interlocutor que, dessa forma, ficava em absoluto posto de lado o interesse em usufruir da experiência de quem tinha tido carreiras ricas e se mostrava disponível para partilhar as “lessons learned”, sem quaisquer encargos. 

E foi então que tive uma surpresa ainda maior. É que esse era, precisamente, um segundo objetivo da medida “jeuniste”: pretendia-se evitar que quem vinha do “passado” pudesse “poluir” as instituições com as suas ideias “retrógradas”, dando assim “lugar ao novos”, como se o novo fosse, sempre e necessariamente, só por ser novo, melhor que o antigo.

Tem graça lembrar isto, agora que o PDS, para a definição das suas políticas, está a chamar gente mais experiente. Este será, pelos vistos, mais um contraste nas filosofias que se defrontam dentro do PSD.

Sábado

Acaba-se o sábado sem um post. Era só o que faltava.

sábado, abril 07, 2018

Ainda é sábado



Acaba-se o sábado sem um post? Era só o que faltava! Ouçam e vejam aqui o que, com Bernardo Pires de Lima, disse há pouco na RTP sobre o Brasil e a prisão de Lula.

sexta-feira, abril 06, 2018

A tia Zé e a Senhora da Agonia


A tia Zé era a irmã mais velha do meu pai. Vivia com a minha avó, em Viana do Castelo, e, após a morte desta, passou os seus últimos anos na casa de irmãos. Era uma pessoa frágil, com uma evidente debilidade psicológica, o que fazia com que, desde sempre, tivesse sido confinada às tarefas domésticas mais simples: a “gestão” do pão e os cafés eram os seus dois indiscutíveis “pelouros”.

Era uma mulher pequena, que o tempo enfeiara, o que era agravado por um persistente buço que ninguém tinha a coragem de lhe pedir para tirar. Tinha um feitio muito irritadiço e, não raramente, vocalizava estados de alma com grande e expressiva facilidade. A deselegância de um “raisteparta!”, que às vezes lhe saía e direção a um sobrinho mais atrevido (e eu fui-o, várias vezes), era nela perdoada pelo estatuto que o seu infortúnio lhe criara.

A tia Zé nunca terá tido um namorado, não tinha amigos ou amigas que não fossem os visitantes da casa da minha avó e, depois, dos meus tios. E, desde os tempos de Ponte de Lima, de onde a família saiu em 1912 e se dizia que convivia com uma filha dos donos da vizinha pensão Clara Penha, nunca saía de casa. 

Havia, contudo, uma exceção. Uma vez por ano, nas vésperas dos dias de Festas da Senhora da Agonia, a tia Zé tirava-se dos seus cuidados e saía da velha casa do largo Vasco da Gama, subia pela rua de Altamira, atravessava o jardim dom Fernando e ia depositar uma esmola à capela da Senhora. A “operação” não demorava muito tempo, mas todos nós sabíamos fazer parte de uma rotina piedosa anual. 

No seu regresso, o meu pai e os irmãos não deixavam de inquirir, curiosos, as impressões da “Maria Zé”, como era tratada, sobre como correra a “expedição” à capela. E queriam saber pormenores, se ela vira a nova montra da loja do Julião, o que achara do arranjo do largo de São Domingos e coisas assim, como que a testarem a atenção que ela prestava a um quotidiano urbano de que era rara visitante. Mas a tia Zé pouco adiantava, recordo-me.

Numa dessas vezes, a Tia Zé contou ter tido dificuldade, dentro da igreja, em encontrar a caixa das esmolas. Tímida e metida em si como era, não inquiriu por algum tempo do paradeiro do recetáculo dos óbulos. Mas a sua hesitação não passou despercebida. Um cavalheiro, “de respeito e muito bem parecido” (palavras dela), aproximou-se e perguntou-lhe se necessitava de alguma ajuda. A tia Zé, à época já bastante idosa, explicou o seu embaraço para poder fazer a oferta anual à santa. O interlocutor revelou-lhe então que o pároco da Senhora da Agonia o tinha “encarregado” de estar por ali a recolher as oferendas. E, “simpático e prestável” (sic), prontificou-se a receber o montante que a tia Zé tinha naquele ano destinado para esse fim, dizendo-lhe que podia “ir descansada”...

E a tia Zé lá regressou a casa, “descansada” e desembolsada, com a certeza absoluta de que o cavalheiro seria um fiel depositário da sua esmola. 

Qualquer que tenha sido o destino do dinheiro, um juízo de razoabilidade, mesmo para quem não é “dessa freguesia”, levará facilmente a concluir que a Senhora da Agonia terá, com toda a certeza, registado o óbulo a desconto dos poucos pecados que a tia Zé devia ter a débito na sua conta-corrente de deveres celestiais. 

Uma coisa ficou claro: a tia Zé nunca colocou em causa a honorabilidade do cavalheiro “de respeito e muito bem parecido”, que tão tocantemente a auxiliara. E ficou famosa a fúria com que recebeu as graçolas dos irmãos, que cruelmente a gozaram pela sua ingenuidade.

(Mal a tia Zé sabia que, muitos anos mais tarde, este seu ímpio sobrinho iria ter o orgulho vianense - em Viana, diz-se “chieira” - de ser presidente da Comissão de Honra das Festas da Senhora de que era tão devota. Como eu gostaria que ela soubesse!)

Lembrei-me há pouco da tia Zé, ao ler no JN que as caixas de esmolas da capela da Senhora da Agonia, lá por Viana, foram assaltadas na noite de ontem. Terá sido obra de parentes do cavalheiro que ajudou a tia Zé? No fundo, bem parecidos ou não, os gatunos são feitos da mesma massa...

(Dedico este texto ao meu primo António, a quem a tia Zé devotava o maior amor dentre os sobrinhos, neste que, por razões que não vêm à conta, não foi para ele um dia fácil.)

Diplomacia democrática


Há dois dias, adquiri no aeroporto de Madrid um livro de memórias de Jorge Dezcallar, um credenciado diplomata espanhol. Ao lê-lo, pude recordar como é diferente a cultura política que se instalou no nosso país, no tocante à gestão da carreira diplomática. No nosso vizinho peninsular, as mudanças drásticas de governo têm muitas vezes consequências dramáticas nas escolhas de chefias internas e na titularidade das representações diplomáticas, num registo que induz fortes tensões e a perspetiva de repetição simétrica no futuro.

Graças a Mário Soares, no pós-25 de abril, a estrutura essencial da nossa máquina diplomática foi preservada, com o novo poder político a ter rápida consciência de que teria ao seu dispor, em geral, um corpo qualificado de funcionários, devotado a servir lealmente o Estado e os interesses nele projetados por quem, a partir daí com total legitimidade, o passava a dirigir. Houve exceções, claro, mas essas baixezas morais acabaram-se por se autoqualificar, na memória deontológica das Necessidades.

Portugal vive hoje tempos de uma diplomacia democrática: os governos mudam, os embaixadores não mudam necessariamente com eles. A rotação destes processa-se, em regra, nos ritmos normais, sem sujeição necessária aos ciclos políticos. 

Mas, para sermos francos, há que dizer que os riscos não desapareceram, por completo. Uma cultura democrática demora muito tempo a impor-se. Vemos que ainda ressurge, a espaços, a tentação, nos fins de ciclo, de colocar à pressa alguns peões, por parte dos executivos que estão de saída. Este, aliás, não é um pecadilho com particular coloração ideológica, persistindo em todos os partidos que passam pelo poder.

Suscito este tema, motivado pelas tais memórias, que têm por título “O antiquário de Teerão”, porque me parece importante que esta questão, tal como recentemente o foi a defesa do exercício exclusivo de cargos de chefia diplomática pelos profissionais que fizeram uma carreira especializada para tal, venha a ser assumida como axial na ação das estruturas sindicais que representam o pessoal diplomático. 

Por isso, porque a independência política da diplomacia é um bem a garantir no nosso serviço público, é imperioso preservar a carreira diplomática profissional da instrumentalização política. Um diplomata não é um eunuco político, pode e deve ter uma ideologia. Mas deve interiorizar que o seu único dever de obediência é perante o interesse do Estado, de que o governo de turno é apenas um ocupante episódico. Convém que se lembre sempre disso e que o recorde aos governos com os quais se cruzar.

quinta-feira, abril 05, 2018

Lula e o Sporting


Eu tinha chegado ao Brasil há poucos dias, nesse mês de janeiro de 2005. A apresentação das minhas cartas credenciais ao presidente Lula estava muito atrasada, devendo aguardar ainda meses. Havia muitos embaixadores na “fila”...

Um dia, para minha surpresa, o "Cerimonial" (o nome brasileiro para Protocolo) convidou-me a estar presente no almoço oficial que o presidente Lula oferecia ao presidente do governo espanhol, José Luiz Zapatero. Era um gesto de inusitada simpatia para com o representante diplomático português, porque um embaixador não "existe" oficialmente, perante um chefe de Estado, antes de apresentar as suas "cartas credenciais". Mas as relações luso-brasileiras têm destas simpáticas sublitezas.

No final do almoço, o chefe do Cerimonial, Ruy Casaes, quis ter a acrescida amabilidade de me apresentar ao presidente e ao seu convidado. 

Lula da Silva deu-me as boas-vindas, de forma bastante calorosa e logo inquiriu:

- “Baixadô”! Qual é seu "time", em Portugal?

- Sou de um clube essencialmente católico, presidente. 

Deixei passar uns segundos e, perante a perplexidade dos presentes, expliquei que era do Sporting, "um clube que só ganha quando Deus quiser".

Lula deu uma gargalhada e disse que conhecia melhor o Benfica e o Porto. Eu acrescentei: “O meu Sporting é como o seu Corinthians, presidente!”. Outra gargalhada de Lula.

Nesse ponto da conversa, Zapatero - que não me pareceu muito conhecedor de futebol - puxou o assunto para Pélé, afirmando a grande admiração que tinha pelo jogador, que tinha visto jogar em seleções brasileiras.

Lula comentou então:

- O presidente Zapatero sabe que Pélé não fazia parte daquele que é, ainda hoje, considerado como o melhor "time" que o Brasil alguma vez teve?

Aí, não dando espaço ao incarismático líder espanhol, eu intervim:

- Está a referir-se ao "time" do Chile, em 1962, presidente?

Lula fez uma cara de espanto, de quem estranhava bastante que eu soubesse esse preciosismo e retorquiu:

- O embaixador lembra-se do "time" do Chile?!

- Muito bem, presidente. E, por acaso, o presidente recorda-se dos jogadores que compunham esse "time"'?

Lula deve ter achado algo impertinente a minha observação, mas lá adiantou:

- Tinha o Zózimo, o Amarildo, o Garrinha...

Agarrei a oportunidade e "arrasei":

- Presidente, talvez valha a pena começar pelo princípio: Gilmar; Djalma Santos, Mauro e Nilton Santos; Zito e Zózimo; Garrincha, Didi, Vává, Amarildo e Zagalo.

Zapatero estava sem perceber nada. Lula exibia um sorriso espantado e, por um instante, deve ter pensado que Portugal teria decidido mandar para o Brasil um técnico de futebol, em lugar de um embaixador.

- Mas como sabe isso, embaixador? Por que conhece todo esse "time" brasileiro?

Expliquei então a Lula uma coisa que ele provavelmente desconhecia, mas que, estou seguro, não esqueceu mais:

- Sabe, presidente, para a minha geração, em Portugal, quando a seleção nacional portuguesa não estava numa "copa" do Mundo, o Brasil era a "nossa" seleção. E, por isso, eu conhecia muito bem todo o vosso "time", porque o "time" do Brasil era o meu "time".

(Não disse a Lula que esse "time" do Chile era, por mero acaso, o único que eu sabia totalmente de cor...).

A partir daí, e nos quatro anos seguintes, foram muitas as vezes que conversei com o presidente Lula sobre futebol, a maioria delas sobre a errática sorte do seu Corinthians. Mas, infelizmente, nunca encontrei uma boa razão para lhe voltar a falar no meu Sporting...

Hoje, podia falar-lhe da triste jornada madrilena do meu clube. Mas Lula, nas embrulhadas em que se envolveu e que outros cuidaram em potenciar, nesse mundo perigoso de emoções que agora atravessa o Brasil, tem outros “futebóis” com que se preocupar.

Débil

Na passada segunda-feira, em Madrid, do aeroporto para o hotel, ouvi no rádio do carro um divertidíssimo debate entre três comentadores desportivos que antecipavam a jornada europeia das equipas espanholas destes dias. (Nem eles adivinhavam a surpresa que o pontapé de bicicleta de Ronaldo iria provocar no mundo...)

Nessa conversa, comecei a estranhar a ausência de referências ao Atlético de Madrid. Mas ela apareceria, no final, por sugestão do moderador, dando origem a um simples comentário: “Os colchoneros não têm desculpa, o adversário português é muito débil”.

Recostei-me de desconforto no banco do carro e pensei que, no fundo, o homem tinha razão. O (meu) Sporting era uma equipa débil.

Não sou um “expert” de futebol, que, no entanto, é a modalidade desportiva que mais prazer me dá assistir. Sou sportinguista, adorava que o Sporting ganhasse mais vezes, mas não perco um segundo de sono quando, como muitas vezes acontece, o meu clube perde. 

O futebol para mim é apenas um jogo, o meu clube não é uma religião, é apenas uma opção afetiva irracional que me acompanha desde criança, por influência do meu pai, mas confesso que nunca consegui sentir (devo dizer que nem nas vitórias!), um arrebatamento emocional absoluto pelo trabalho de onze artistas de pé-de-obra, contratados a peso de ouro (alguns deles tanto podem estar no Sporting como noutro clube qualquer, dependendo do que se lhes pague), em que raros são os que sentem algo de especial no emblema que trazem ao peito. 

Hoje, uma vez mais, o Sporting foi débil. Como, aliás, o tem sido no campeonato português. Nunca deu a impressão de poder vencer este jogo, que começou a perder demasiado cedo, com erros de palmatória. Teve ocasiões para marcar? Teve, mas não as aproveitou e dos “quase” estou farto. E muitos sportinguistas comigo.

quarta-feira, abril 04, 2018

As Pedras


O prazer que a minha mãe teria ao ver servir, na cafetaria de um museu madrileno, uma garrafa de água das suas Pedras! 

As Pedras Salgadas, as recordações da sua infância, as tias por lá, o chá no terraço, os hóspedes do Colonial, os picnics de família com retrato a preto-e-branco, a vinha pequena que o meu avô lhe ofereceu pelos anos, o pontapé inaugural do primeiro campo de futebol, o parque, os jantares no Avelames, as tardes na Casa de Chá, os bailes no Chalet e no Casino, os cavalos nas Romanas, as horas do acontecimento que era a chegada do comboio da linha do Corgo, a fumegar as janelas e a trazer os parentes e os amigos, o deslumbre do Verão, com a loja de rendas do Flores, as “artes” da exposição sazonal no Botelho, lá na Pensão do Parque, os nomes de toda a gente que conhecia pelas ruas, casa a casa, como se dali não tivesse já saído há muitas décadas, as compras no Frutuoso, o café no Rogério, o Franco dos Correios (tinha uma bela filha, lembro-me bem!). 

E, claro, o conforto do caminho eterno para Bornes! E, também, a igreja de São Martinho, o padre Domingos, os casamentos, os batizados e, ao lado, o cemitério, com muitos já por lá, as tristezas sem as quais as alegrias da vida, se calhar, não se apreciavam.

E, sempre, as águas, as fontes, a ”Companhia”, que empregava meia aldeia, as garrafas que dela se recebiam, em caixas grandes de madeira, testemunho do gosto imenso de fazer parte daquela terra única, daquele mundo simples e magnífico.

E, aqui em Madrid, aqui estão elas, as águas das Pedras, agora já sem o orgulho, no rótulo, de serem “radioativas”...

As Pedras, sempre!

And now...


Lavar os olhos


Há muito que não estou com o meu amigo André Gonçalves Pereira. Lembrei-me dele, aqui em Madrid, ao passar junto ao Hotel Ritz (que agora está em obras), local onde ambos nos hospedámos, em 1994, numa viagem de trabalho, para uma conversa com o então secretário de Estado dos Assuntos Europeus espanhol, Carlos Westendorp.

André Gonçalves Pereira, um grande advogado e reputado professor de Direito Internacional, que havia sido ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha sido nomeado pelo governo de Cavaco Silva como representante português no “Grupo de Reflexão”, chefiado por Westendorp, que a União Europeia criara para rever o Tratado de Maastricht. E convidara-me para ser “representante alternante”. 

Eu era, à época, subdiretor-geral dos Assuntos Comunitários. Ao informar o governo do substituto que escolhera, recebeu de volta a informação de que o meu nome não colhia a simpatia do governo. Porque era, e é, um homem independente e de caráter, Gonçalves Pereira informou então o seu interlocutor governamental de que ou era eu “ou não era ninguém”, porque, nesse caso, ele próprio “bateria com a porta” e recusaria o convite que lhe tinha sido feito, aliás já público em toda a imprensa. Perante isto, a objeção a meu respeito teve de “cair”...

Logo no dia da nossa chegada, no hall do hotel, André Gonçalves Pereira perguntou-me - e nunca mais esqueci: “Quer vir lavar os olhos, Francisco?”. Não percebi o que ele queria dizer com aquilo. Era simples. Quando que vinha a Madrid, Gonçalves Pereira hospedava-se sempre no Ritz (claro!). atravessava a rua e entrava no Museu do Prado, para, durante uns minutos, apreciar “As Meninas”, de Velasquez. Era a sua maneira de “lavar os olhos”, apreciar essa obra-prima do século XVII.

Esta 4ª feira, vou passar por aqui o dia a “lavar os olhos”, do Prado à Tyssen, com livrarias pelo meio e um prometedor almoço no Hortensio. É (também) o que se leva desta vida...

terça-feira, abril 03, 2018

Russos e soviéticos

Hoje, no seu artigo regular no “Público”, o deputado europeu Paulo Rangel, atropela com alguma ligeireza a História para uma chicana política. A propósito da atitude do governo de não seguir alguns parceiros na expulsão de diplomatas russos, por virtude do atentado no Reino Unido contra um espião, Paulo Rangel traz à baila a decisão tomada pelo primeiro-ministro Sá Carneiro de expulsar diplomatas soviéticos, acusados de atos de espionagem no nosso país. E vai mais longe: diz também que foi Cavaco Silva quem não reconheceu a invasão soviética dos Estados bálticos, uns meses depois. 

Quanto a este último caso, se Paulo Rangel quer dar o crédito exato a alguém (eu poderia ser maldoso e acrescentar “da sua área política”, mas não o farei) por essa decisão terá de o fazer ao dr. António de Oliveira Salazar, que décadas antes havia decidido esse não reconhecimento. Cavaco, alertado pelo MNE para este facto, terá apenas impedido uma delegação de deputados portugueses de se deslocar a um país báltico, o que provocou um sururu político no nosso âmbito pátrio. (O “culpado” por esse alerta foi um leitor habitual deste espaço, que poderá, se assim o entender, esclarecer melhor a história).

Mas a confusão propositada - é que, se o não fosse, seria bem pior ainda - entre a União Soviética desses tempos e a Rússia de hoje é apenas um truque fácil - como se o facto da capital de ambos os países ser Moscovo legitimasse a similitude dos atos. 

Recordo que a URSS, quando implodiu, deu origem a 15 países, um dos quais é hohe a Federação Russa. Trazer à colação uma decisão unilateral, tomada no tempo da Guerra Fria, por virtude de uma atitude culposa com impactos bilaterais, como fez Sá Carneiro, durante o período de menos de um ano em que chefiou o governo da AD, é um entorse grave à História. Custa-me ver Paulo Rangel colocar-se ao nível de uma esperteza qualificável como “dos arredores de Lisboa”.

Paraguas

Em espanhol, ”paraguas” significa guarda-chuva. 

“El Paraguas” é também o nome de um magnífico restaurante madrileno onde ontem jantei - e que vivamente recomendo, mas só a quem estiver disposto a deixar por ali umas boas “notas”.

Durante a refeição, não pude deixar de lembrar-me da deliciosa história de um político português, muito “versado” em línguas, que um dia foi ao México, país onde não deixou os seus créditos por mãos alheias em matéria de “abundante” conhecimento do castelhano.

O nosso homem, à saída de um hotel, deu-se conta de que chovia copiosamente e que ninguém havia providenciado um guarda-chuva para o trajeto até ao carro. 

Irritado com a falta de assistência, deu um berro para um porteiro: “Necessitamos de un guarda-lluvias”... 

O homem percebeu e lá veio o “paráguas”, até porque a “lluvia” teimava em não abrandar

segunda-feira, abril 02, 2018

Madrid


Vou contar uma história dos anos 90. Um dia, no governo, desloquei-me à capital espanhola, para um encontro bilateral sobre assuntos da União Europeia. Era então meu contraparte Ramón de Miguel, também secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Ao longo da minha carreira, nas conversas informais com os meus amigos e interlocutores espanhóis, habituei-me a usar sempre o meu “portuñol”, porque entendo sempre muito bem o castelhano deles.

A reunião de Madrid, que tinha um caráter formal, começou com uma proposta de Ramón de que eu, tal como os colaboradores que me acompanhavam, falássemos em português, com os espanhóis a usarem sua própria língua. O meu interlocutor percebia muito bem o português, porque fora diplomata em Lisboa. Mostrava-se convencido de que tudo correria bem, dessa forma. Eu, confesso, não estava, mas aceitei o desafio.

A conversa até começou bem. Porém, a certo passo, comecei a dar-me conta de que os integrantes da delegação espanhola, com exceção de Ramón de Miguel, davam claras mostras de não estarem a conseguir seguir aquilo que eu dizia, muito embora eu me esforçasse para falar lentamente e com frases simples (o que, aliás, me dava um trabalho acrescido). E, embora em menor escala, verifiquei que, do nosso lado, a compreensão da língua de Cervantes e dos nossos interlocutores estava também longe de ser total. A situação ameaçava, assim, tornar-se embaraçosa.

Não sei se foi Ramón de Miguel se fui eu quem, num determinado momento, interrompeu a reunião, propondo mudarmos ambos de língua, para que toda a gente entendesse tudo bem. Julgo que teremos passado para o francês. De um momento para o outro, o ambiente mudou, para melhor, com a angústia de alguns visivelmente a atenuar-se, de ambos os lados da mesa. 

Para quem, como todos nós naquela sala, andava pelos corredores comunitários de Bruxelas, onde então o francês e o inglês se equiparavam no uso, e até se misturavam algumas vezes (o chamado “franglais”), foi de grande comodidade recuperar o léxico do “europês”, que fazia parte do nosso dia-a-dia. Mas não deixava de ser estranho que delegações de dois países com línguas muito similares se vissem forçadas a usar um terceiro idioma para se fazerem compreender plenamente.

Hoje, daqui a umas horas, vou estar em Madrid, para reuniões de trabalho. Como acontece, muitas vezes, em todas as empresas multinacionais com as quais trabalho, essas reuniões vão passar-se exclusivamente em inglês, única língua veicular comum a todas as pessoas que vão estar presentes na sala (ou intervenientes por video ou audioconferência). 

Mas há que reconhecer que esta “ditadura” do inglês é terrível! Nos últimos anos, no âmbito de reuniões dessas empresas, já tem sucedido ficarmos, por algum tempo, apenas portugueses na sala de uma reunião. E é bizarro verificar que, em regra, mesmo nessa circunstância, continuamos a falar inglês, porque toda a documentação em que nos apoiamos está exclusivamente escrita nessa língua, pelo que é muito mais fácil continuar a operar com base em conceitos cuja tradução portuguesa seria difícil - e, pior do que isso, completamente desnecessária para a finalidade do nosso trabalho.

Os britânicos estão prestes a sair da União Europeia. Mas, na língua, já nos “colonizaram” para sempre.

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...