segunda-feira, abril 22, 2013

O mistério do nó de Francos

- Sabes onde é o nó de Francos?

A pergunta não me apanhou totalmente de surpresa, porque tinha sido antecedida de um comentário do tipo: "Então lá vi, no teu blogue, que és muito "entendido" no Porto!"

Devo dizer, contudo, que estranhei o facto daquela amiga, empedernida lisboeta e que eu achava distante das peculiaridades da "Invicta", me estar a colocar tal questão. Mas lá lhe respondi que sim, que sabia onde era o "nó de Francos".

- Olha! Ele sabe onde é o nó de Francos! disse com um ar de espanto, voltando-se para o marido.

Senti-me o "Vasquinho" no exame de Anatomia, na "Canção de Lisboa", quando revelou conhecer o "esternocleidomastoideo".

- E Bessa Leite, conheces?

Que diabo! Que raio de interrogatório portuense era aquele? É que logo se seguiu uma questão sobre a avenida AEP.

A explicação veio logo:

- Conhecemos muito mal o Porto, mas fartamo-nos de ouvir, todos os dias, aqueles nomes, nas notícias sobre o trânsito. Já nos são familiares. Um dia vamos ao Porto contigo, para nos mostrares esses sítios. Andamos com uma imensa curiosidade...

Se acaso eu vier a levar esses meus amigos para conhecer o Porto, acho que há sítios bem mais interessantes do que pô-los a passear pela avenida AEP...

Esta historieta, passada há dias, lembrou-me uma conversa com um amigo timorense, há muitos anos, em Nova Iorque. Falávamos de Lisboa, cidade que ele só tinha visitado por escassas horas De repente, inquiriu: "Você sabe onde é a segunda ponte do Feijó?" Disse-lhe que sabia que era na margem sul do Tejo, mas não tinha a certeza que localidades ligava. Mas qual era a curiosidade? Riu-se e disse-me que, na rádio portuguesa que chegava a Timor pela onda curta, relativa à manhã lisboeta, ouvia frequentemente que "as filas de trânsito começam na segunda ponte do Feijó"...

Afinal, as notícias do trânsito podem ser bem instrutivas.

domingo, abril 21, 2013

Giorgio Napolitano

          

Ontem, Giorgio Napolitano, com os seus 87 anos, aceitou, bastante contra a sua vontade e apenas para ajudar a resolver a grave crise política que atravessa o seu país, reassumir a chefia do Estado. 

Em 1953, Napolitano foi deputado pela primeira vez, pelo Partido Comunista Italiano. Muitos anos depois, já como membro dos Democratas de Esquerda, foi presidente da Câmara dos Deputados, ministro do Interior, senador vitalício e presidente da República italiana, neste caso por nove anos.

Foi através de Piero Fassino, que foi presidente da Câmara de Turim e ministro da Justiça (grande amigo do antigo secretário de Estado português, Victor Neto, ao tempo do exílio deste em Itália), que conheci Napolitano.

Eu havia criado com Fassino uma forte relação, que se mantem até hoje, desde o tempo em que tivemos responsabilidades similares nos nossos respetivos governos. Napolitano e Fassino, ambos oriundos do Partido Comunista Italiano, tinham colaborado no "aggiornamento" de Berlinguer e faziam parte de quantos, mais tarde, com d'Alema, haviam trazido o velho PCI de Togliatti (e de "Peppone", claro) para o "mainstream" da política italiana, também muito graças ao "compromisso histórico" que pode ter custado a vida a Aldo Moro.

Em inícios de 1997, Fassino telefonou-me para Lisboa, perguntando se eu estaria disponível para ter uma conversa com Giorgio Napolitano, à época ministro do Interior, durante uma deslocação que, na semana seguinte, eu iria fazer a Roma, já não recordo bem para quê. Acedi de imediato.

Em Portugal, por esse tempo, cabia ao secretário de Estado dos Assuntos Europeus a gestão do dossiê do Acordo de Schengen, o que era um expediente para superar a rivalidade entre os ministérios da Administração Interna e da Justiça no tratamento do tema. Assim, no ano de 1997, iria competir-me a titularidade da presidência daquele acordo, que Portugal ia assumir por regra rotativa.

A Itália tinha subscrito o acordo em 1991 (Portugal apenas em 1992), mas só veio a aplicá-lo em fins de 1997 (com Portugal a pô-lo em vigor em inícios de 1995). As principais razões do atraso da Itália prendiam-se com a falta de confiança dos parceiros na sua capacidade de controlo das fronteiras externas.

Napolitano recebeu-me no seu soberbo gabinete do ministério do Interior, em Roma. Tinha 71 anos e já parecia ter muitos mais. Os seus movimentos eram lentos, as palavras também, mas o seu raciocínio era muito ágil. Recordo sempre o comentário do meu então chefe de gabinete, Miguel de Almeida e Sousa, no final da reunião: "O velho é muito vivo!"

A nossa conversa começou em torno dos melhores chás pretos, que ambos apreciávamos e tínhamos pedido, com ele a tomar nota, com um lápis, num pequeno pedaço de papel, de uma marca inglesa que então lhe recomendei. O tempo, naquele ambiente antigo, parecia suspenso. Pelas caras de quem ia comigo, a começar pelo nosso embaixador em Roma, percebi que o ritmo da audiência poderia vir a contaminar outros encontros e reuniões que eu ainda teria nesse dia. Não tenho ideia se isso veio a acontecer.

Napolitano, numa voz cava e pausada, que mantinha num registo baixo, foi direito ao assunto: a Itália precisava de garantir, na reunião ministerial a que eu presidiria, em Lisboa, meses depois, o seu lugar de pleno direito em Schengen. Um país fundador das comunidades europeias não podia ficar fora do sistema.

Eu trazia a lição estudada. Lembrei as medidas técnicas que a Itália se comprometera a aceitar, em matéria de portos e aeroportos - que outros parceiros consideravam ainda muito incompletas, num processo de decisão que funcionava a unanimidade. Ao contrário de Fassino, que fazia esgares e se mexia na cadeira, ao ouvir, com alguma contratiedade, aquilo que eu ia dizendo, Napolitano mantinha uma atitude impassível, mesmo ao explicitar o seu contra-argumentário.

Com toda a simpatia, que era real, pela posição italiana, disse-lhe que faria o meu melhor na ministerial de Lisboa. Mas não prometi nada, a não ser a melhor boa vontade.

A reunião de Lisboa foi muito difícil, e não apenas por causa da Itália. Só consegui fazer vingar um compromisso final... pela fome! Prolonguei a reunião por horas, com sucessivos "drafts", até conseguir o resultado pretendido. O almoço oferecido aos delegados, no CCB, só começou quase às quatro horas da tarde, com alguns a perderem aviões.

Conseguimos, no final, depois de muitas horas em que isso pareceu impossível, que fosse aceite um compromisso que, segundo recordo, consagrava a plena e automática aplicação de Schengen à Itália, desde que esse país fosse ultrapassando, com sucesso, nos meses seguintes, uma lista calendarizada de exigências técnicas ainda em falta. Se assim acontecesse, mas sem necessitar de uma nova e penosa ratificação política pelos governos, o país teria o seu lugar de pleno direito no acordo. Assim sucederia, meses mais tarde. Napolitano pôde então anunciar que os ministros de Schengen tinham dado o seu acordo político para a aplicação do sistema à Itália, que apenas teria de colmatar alguns pontos técnicos residuais.

Nessa tarde no CCB, com todos nós esgotados pela longa jornada, que tivera início num jantar na véspera nas Necessidades, Giorgio Napolitano ficou tão contente com a fórmula que havíamos conseguido, que, no termo da reunião, me pregou dois repenicados beijos na cara.

Passaram, entretanto, mais de dois anos.

Em janeiro de 2000, Portugal defrontava-se com dificuldade em obter o "avis conforme" do Parlamento Europeu para poder arrancar com a Conferência Intergovernamental que iria rever o Tratado de Amesterdão. Tratava-se de superar uma exigência, suscitada por alguns e rejeitada por outros Estados, de incluir na agenda negocial um determinado ponto. Napolitano era o presidente da poderosa Comissão Institucional, por onde tudo teria de passar. Portugal tinha uma fórmula a propor, mas necessitava de ajuda para garantir que ela seria aceite.

Fui ver Giogio Napolitano ao seu gabinete em Estrasburgo. Mal eu tinha acabado de lhe expor as dificuldades com que nos confrontávamos, sempre com aquele seu fácies só aparentemente impassível, retorquiu-me: "Francisco. Nunca esqueci a ajuda preciosa que me deste em Lisboa. Agora, farei tudo o que puder para te ajudar." E fê-lo, com grande empenhamento, auxiliando-nos num momento particularmente delicado. Eu também não esqueci isso.

sábado, abril 20, 2013

Aeronáutica lusófona

Era uma sexta-feira, tal como ontem. Eu saíra de Brasília de manhã, em direção a Salvador. Tive um almoço de trabalho com um grupo de empresários portugueses com quem, a meio da tarde, fui recebido, a meu pedido, pelo governador da Bahia, Jacques Wagner. Tratava-se de desbloquear uma questão pendente há vários meses, por um misto de má vontade de alguém e de atavismo burocrático de outros. Wagner era um homem prático, quis resolver o problema que eu lhe colocara e convocou toda a gente relevante para uma reunião. Uma hora depois, percebi que o assunto já estava encaminhado favoravelmente, Pedi então escusa ao governador, dado que a minha presença passava a não ser essencial, e, porque se aproximava a hora do avião de regresso a Brasília, deixei o João Sabido Costa, cônsul-geral, a representar-me, junto dos já radiantes empresários.

À saída da sede do governo estadual, o Zé Carlos, simpático motorista do consulado, deu-me uma má nova: não ia dar tempo para apanhar o avião! Eu saíra imprudentemente tarde da reunião e o acesso rodoviário para fora de Salvador estava congestionado, nesse início de fim-de-semana. Nem mesmo com a ajuda do Paulo, o disponibilíssimo funcionário da "sala de autoridades" do aeroporto, que já tinha feito o "check-in" e emitido o meu cartão de embarque, havia possibilidade de embarcar.

(Um ano antes, o PT tinha ganho o governo da Bahia. Poucos dias depois dessa vitória, fui a Salvador para uma visita de cumprimentos ao novo governador, Jacques Wagner. Porque a política não apaga a obrigação da gratidão, recordo-me que havia ousado oferecer, nessa mesma noite, um jantar ao grande derrotado desses dias, uma das mais relevantes figuras da política brasileira, o histórico "coronel" da Bahia, António Carlos de Magalhães. ACM, como era conhecido por todo o Brasil, era uma personalidade marcante da direita brasileira, ligado à ditadura militar mas decisivo na democracia, antigo ministro, presidente do parlamento e governador do estado. António Carlos de Magalhães havia sido sempre um grande amigo de Portugal e, nessa hora difícil da sua estrondosa derrota, eu havia entendido dever fazer-lhe um gesto público de apreço. À chegada à "sala de autoridades" do aeroporto de Salvador, notei que o responsável pela mesma, que eu conhecia apenas pelo nome de Paulo, estava um pouco cabisbaixo. Logo me explicou porquê: com a mudança de governo no estado, ia haver uma razia total em muito pessoal dos serviços oficiais, com uma onda de substituições. Ele, que os novos poderes ligavam ao tempo do "outro lado", sabia que estava nessa lista e, muito provavelmente, era aquela a última vez que me recebia, com a sua habitual simpatia e boa vontade. Na política brasileira as coisas são assim mesmo, mas devo dizer que fiquei um pouco chocado. Uma hora depois, na conversa com o recém-empossado governador Jacques Wagner, não pude deixar de dizer-lhe que sentia muita pena que o jovem que tão atencioso era para todos os embaixadores, no aeroporto da cidade, aquando das nossas visitas à Bahia, viesse a ser afastado. Wagner não fazia a mais pequena ideia de quem se tratava mas, logo ali na minha frente, deu instruções para que o Paulo se mantivesse no lugar. E, um ano depois, ele por lá continuava.)

Voltemos ao meu atribulado regresso a Brasília. Constatada a impossibilidade de poder chegar a horas ao aeroporto, pela estrada normal de acesso, vi com surpresa que o motorista, depois de umas crípticas chamadas por "celular", começou a seguir trilhos de terra batida, bem fora do asfalto. Pensei que era a tentativa desesperada de encontrar um qualquer atalho. Minutos depois, percebi finalmente o mistério. Chegámos junto de uma imensa cerca metálica, que tinha um portão. Estávamos do outro lado da pista do aeroporto. Ao fundo, bem ao longe, vislumbrava-se a aerogare. Olhei para o relógio e imaginei que o avião, da TAM ou da GOL, devia ter fechado o embarque para Brasília, já há uns bons minutos. Mas, sendo assim, que diabo fazíamos naquele lugar recôndito, até perigoso, na penumbra da noite que caía rápida? Em princípio, tinha de voltar para a cidade, "arrumar" um hotel e preparar a ida para Brasília na manhã seguinte. Foi então que, dentro do perímetro do aeroporto, numa carrinha que se aproximava velozmente do portão, vi o vulto do Paulo, ao lado do motorista. Com uma chave, abriu o gradeamento e disse-me: "Baixadô! O sinhô tem di corrê! Parei o avião p'ró sinhô embarcá!" E, minutos depois, perante a perplexidade incomodada dos restantes passageiros e a nunca explicada cumplicidade sorridente da tripulação, lá entrei eu no avião, com a ajuda ímpar do imprescindível Paulo, através de uma escada de serviço, sem qualquer revista de segurança, conseguindo regressar, nessa mesma noite, a Brasília.

Porque conto isto hoje? Porque há umas horas, no aeroporto de Orly, chegado atrasado a Paris num voo da Air France proveniente de Estrasburgo, passei ao lado do avião da TAP, cuja ligação para Lisboa perdi, por escassíssimos minutos. Lembrei-me muito do meu amigo Paulo, de Salvador. Com ele, eu não perderia esse avião. Sem ele, estou aboletado pela Air France num sinistro Ibis, ao lado do aeroporto, para só amanhã regressar à pátria. Decididamente, gosto cada vez mais de aeroportos lusófonos.

Boa noite!

quinta-feira, abril 18, 2013

Eduardo Nunes de Carvalho

escaliers du pont sur l'Ourthe, Chênée, bridge stairs, © photo dominique houcmantFolheava o "Público", num avião, quando fui surpreendido com a notícia da morte de um colega mais velho de quem não era íntimo, mas que estimava bastante, Eduardo Nunes de Carvalho. Para além de conversas muito agradáveis em Lisboa, encontrei-o algumas vezes pelo mundo, em Maputo, em Nova Iorque, em Harare ou no Cairo. Ao longo dos anos, estabeleci com ele uma relação de amizade e respeito que muito prezava.

Nunes de Carvalho, conhecido na carreira e entre os amigos pelo "petit nom" de "Iá", era um homem elegante, educado e sereno, corretíssimo com os outros, com um sorriso permanente e um trato impecável. Gostava de ter colaboradores inteligentes, nos quais apreciava o contraditório sólido, como é próprio das pessoas seguras de si mesmas. Era, além disso, um diplomata muito culto (num período em que muito se fala da cultura exigida aos aspirantes à profissão), que refletia de forma elaborada sobre os interesses portugueses, projetando-os numa leitura histórica do país. Era sempre um gosto encontrá-lo, o que me acontecia em espaços tão insólitos como o salão do nosso comum barbeiro, Joaquim Pinto, um bom amigo que sei que vai sentir a sua falta.

Como todos os que o conheceram sabem bem, o "Iá" tinha uma relação muito peculiar com o ritmo do tempo. Era um homem que vivia, pelo menos aparentemente, sem sentir a pressão, não apenas do relógio, mas mesmo do próprio calendário. Já aqui referi um episódio curioso passado com ele. Ficaram históricas as suas idas noturnas ao serviço de Cifra do MNE, antecedidas por telefonemas, com vista a procurar corrigir telegramas que mandara horas antes, num esforço de perfecionismo que tinha muito a ver com o imenso cuidado que dedicava à escrita. Num determinado posto, foi tão detalhado nas obras na residência oficial, introduzindo alterações sucessivas muito ao seu ritmo, que praticamente viveu todo o tempo no hotel. Fazem também parte dos anais das Necessidades os adiamentos, às vezes por dias sucessivos, de viagens que devia fazer a partir dos postos onde estava colocado. O que, curiosamente, nunca afetou a eficácia do essencial do seu trabalho.

Um dia dos anos 80, cheguei ao Zimbabué integrado numa delegação que acompanhava um membro do nosso governo. No aeroporto de Harare, esperava-nos Eduardo Nunes de Carvalho, embaixador naquele país. À saída, notei que ele levava na mão uma pesada mala (esse era um tempo em que ninguém se tinha ainda lembrado de colocar rodas nas malas). Presumindo que se tratava de bagagem de alguém da delegação, lembro-me de ter feito o gesto de o tentar ajudar, porque me parecia menos curial que coubesse ao chefe da missão diplomática, que caminhava lado-a-lado com o governante, ocupar-se dessa tarefa. Para minha estranheza, o "Iá" disse-me: "Deixe estar, não se preocupe. Esta mala é minha". No caminho para o hotel, comentei o episódio com alguém: o "Iá" estava com uma mala dele? Fui então esclarecido, por um colega mais perspicaz ou melhor informado: ele tinha chegado a Harare apenas escassos minutos antes da nossa delegação, num voo com outra origem. Fora atrasando, durante dias, a sua viagem e, por pouco, não perdia a nossa chegada. Mas, no fim de contas, lá estava, no momento certo, no seu posto! Como sempre.

quarta-feira, abril 17, 2013

Zaventem

Passei por lá há poucas horas, coisa que não fazia há uma dúzia de anos. Está muito diferente o aeroporto de Bruxelas. Confesso que não reconheci o espaço.

Ao contrário do que comigo quase sempre sucede, senti alguma nostalgia da antiga aerogare de Zaventem, construída para a exposição universal de 1958 e que, com o tempo, chegou a atingir momentos de lamentável decrepitude, com os pássaros a voar pelos corredores, com redes para travá-los, e os grandes vidros de outro tempo cinzentos de sujidade. Assisti ao nascer do "satélite", no fundo do antigo grande corredor. Vi depois construir, do outro lado, a nova ala, que tornou o aeroporto igual a todos os outros, como hoje acontece com a Portela. E descobri espaços novos, naquilo que já se aparenta mais com um grande centro comercial. Já não me reconheço neste Zaventem. Mas o aeroporto é bem mais agradável.

Por ali passei  os meus primeiros banhos de "cosmopolitismo", na segunda metade dos anos 70, como portador da "mala diplomática", na descoberta do "glamour" das viagens aéreas, quando esse "glamour" ainda existia. À porta, esperáva-nos então, rezingão, o senhor Rézo, um motorista francês, "exilado" na nossa delegação junto da NATO, que nos arranjava uns hotéis manhosos onde tinha comissão.

Mais tarde, depois de 1986, o aeroporto de Bruxelas passou a ser um meu destino habitual, pela TAP ou pela desaparecida Sabena, nas deslocações regulares a "grupos de trabalho" da então CEE - o nome por que era conhecida a atual União Europeia. Um comboio triste levava-nos, pela noite, para o centro da cidade, com os diplomatas e técnicos portugueses a saírem nas estações do Midi ou do Nord, para daí rumarem aos hotéis, como o Métropole e outros bem piores destinos da "moda" que cabia nas nossas ajudas de custo. Hoje recordei esses tempos com uma amiga, que viajou a meu lado desde Lisboa, a qual, por muitos anos, partilhou idênticos tempos e experiências.

Finalmente, o aeroporto ficou-me, na memória eterna, ligado a tempos que acabaram por ser de um imenso cansaço - os anos de governo, a partir de 1995 e até 2001. Chegava a Bruxelas esgotado de dias incessantes em Lisboa ou noutras capitais, ajoujado de papelada, ensonado e esfalfado. No cenário no fim da manga, tentava descortinar a figura amiga do senhor Barreiros, o simpático funcionário da Representação Permanente (Reper, para os iniciados), que me aliviava o peso e me conduzia, por corredores que sempre presumi VIP, até ao parque de estacionamento, onde me aguardava o fiel Wilhelm, um motorista flamengo, tão calado como discreto.

Por aquele aeroporto passei dezenas de horas de atrasos, de conversas, de esperas, de compras. Por lá me deixei adormecer de fadiga, num banco, num final de tarde, perdendo um voo para o Luxemburgo, o que me obrigou a dormir num hotel próximo. Por lá adquiri coisas que ainda hoje estão na memória familiar, num tempo em que, em Portugal, a oferta das lojas era muito diferente das da "estranja". Por lá festejei "vitórias" arrancadas nas lides europeias e me atulhei de livros que comprava para entreter os minutos que antecediam os aviões - minutos que, no meu caso, são sempre mais, porque faço parte dos que, por regra e para desespero dos atrasados crónicos, chegam a tempo e horas.

Lembrei-me disso, ao final da tarde de hoje, na minha breve passagem por Zaventem. Com alguma nostalgia, assumo. Serão saudades doutros tempos ou saudades de mim nesses tempos?  

O governo e a Europa

Tenho por aí ouvido, com crescente frequência, que o atual governo português não tem uma política para a Europa. Não faço ideia se assim é, dado que, por razões seguramente ponderosas, o discurso europeu do executivo tem sido parcimonioso e, na prática, quase que se tem limitado às questões financeiras e, também nesse contexto, tem-se subsumido na gestão nominativa dos efeitos do processo de ajustamento. A entrada para o governo de Miguel Poiares Maduro, uma figura com uma sólida formação em matéria de assuntos europeus, abre assim uma expectativa de que possamos vir futuramente a beneficiar de uma iluminação nessa decisiva dimensão programática da nossa política externa.

Provavelmente por deformação de quem passou mais de cinco anos a coordenar a política europeia do país, devo dizer que sinto falta de ouvir uma explicação cabal sobre a filosofia subjacente àquela que terá sido a posição nacional na recente negociação do quadro financeiro pluri-anual da UE (2014-2020), porque, pelo menos para mim, ela esteve longe de ser explícita. Por exemplo, gostaria de ter percebido um pouco melhor o grau de envolvimento de Portugal na luta pela preservação da política de coesão, de cujo resultado vai depender a grande fatia do investimento público disponível para os próximos sete anos. Também me não foi totalmente percetível a lógica da gestão feita, nessa negociação, quanto ao equilíbrio entre os dois "pilares" da Política Agrícola Comum, nomeadamente tendo em atenção o muito diferenciado interesse que o nosso país tem nessas duas áreas, embora com lóbis internos inversamente proporcionais à dimensão desses interesses. O debate que sobre todos estes assuntos foi feito na sede parlamentar especializada pareceu-me marcado, aliás, por um espantosa superficialidade, com o executivo a não necessitar de desenvolver uma linha argumentativa para além do nível de exigência que a oposição foi capaz de sustentar.

Uma outra grande temática que é urgente abordar publicamente diz respeito às propostas de aprofundamento das políticas económicas e de governação europeias - para uns de natureza para-federal, para outros de mero reforço centralista -, que têm vindo a ser aventadas pelo principal protagonista do teatro continental, até agora perante o considerável silêncio de muitos dos restantes atores, em especial os secundários e os figurantes. Onde está Portugal neste debate? O que pensam os responsáveis políticos, da maioria ou das oposições, sobre o que tais propostas implicam para a capacidade de autodeterminação do país? Tenho uma imensa curiosidade em saber.

A política europeia de um país como Portugal, que nesta fase está refém do ambiente de ajuda externa, deve ser objeto de uma discussão alargada. É que, como nunca no passado, a política europeia é hoje altamente condicionante, não apenas de grande parte da nossa política externa, mas também de muitas das opções de natureza interna, dado que ela sobredetermina um conjunto alargado de políticas públicas. Além disso, se se confirmar que novas partilhas ou cedências de soberania virão a ter lugar, o país necessita de saber, a tempo e horas, o que os responsáveis políticos, de ambos os lados do espetro, nomeadamente os nossos deputados, bem como a chefia do Estado, sobre isso pensam. E é importante que esse debate incorpore uma explicitação muito concreta sobre a margem de manobra que o país passará a ter, nomeadamente em matéria da sua influência no processo decisório, se essas alterações entrarem em vigor. Essa será uma interessante oportunidade, aliás, para revistar as "vantagens" do chamado tratado de Lisboa.

Imagino que este post possa ser algo "árido" para alguns leitores. Lamento se assim foi. Mas tenho alguma dificuldade em ser menos hermético em questões desta natureza. Do que escrevi, resulta a conclusão de que não são hoje para mim muito evidentes aspetos fundamentais da política deste governo para a Europa. Ao invés, conheço bem melhor a política da Europa face a este governo.

terça-feira, abril 16, 2013

Sindicalismo diplomático

Nem sempre os funcionários diplomáticos portugueses foram sindicalizados. Quando entrei para a profissão, em 1975, não havia nenhuma estrutura sindical representativa dos diplomatas. Um dia, creio que dois ou três anos mais tarde, foi criada uma Associação dos Diplomatas Portugueses. Por algum radicalismo que à época partilhava, decidi não entrar como associado dessa estrutura, por não ver a palavra "sindical" incluída no respetivo nome, condição de representatividade que achava indispensável. Cheguei mesmo ao ponto de mobilizar um grupo de jovens colegas como forma de tentar obstruir essa iniciativa, que considerava "recuada" e pouco ousada.

Mais tarde, nos anos 80, as coisas mudaram e foi, finalmente, criada a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses. Dela cheguei a ser vice-presidente, nos anos 90. Alguns colegas mais antigos não apreciaram a mudança registada e reagiram fortemente à dimensão sindical da nova Associação.

Porque o tema dos diplomatas terem um sindicato era verdadeiramente novo e o "Expresso", por discreta sugestão de alguns de nós, tinha trazido uma notícia sobre o assunto, tive a ideia de escrever uma carta ao respetivo diretor, em nome do "ministro plenipotenciário Pedro Leite de Noronha", na falsa qualidade de um dos contestatários do novo sindicato. Nessa carta, escrita num tom snobe, expressava o "desgosto" por ver os diplomatas do MNE "banalizarem-se" e enveredarem "tristemente" pela via sindical, trazendo a público questões que, no passado, eram sempre resolvidas "entre os claustros e a tapada" das Necessidades. O "Pedro Leite de Noronha" ia mais longe e considerava que o facto dos diplomatas andarem a colocar "nas bocas públicas do mundo" as peculiaridades da sua vida profissional refletia, muito simplesmente, "o facto do nível social do seu recrutamento ter baixado", fruto dos "lamentáveis ventos de abril", de terem "deixado, na sua maioria, de possuir fortuna própria", o que os tornava "permeáveis às pulsões materiais da vida".

Nos dias subsequentes à publicação da carta, os comentários sobre a mesma motivaram muitas conversas "entre os claustros e a tapada", muito embora ninguém alimentasse a menor dúvida sobre a autenticidade do texto, tanto mais que não havia, nos quadros do ministério, nenhum "Pedro Leite de Noronha". Deve reconhecer-se que o nome tinha um toque onomástico suficientemente "bem" para poder abrir caminho à sua credibilização em áreas para fora da casa. E todos perceberam que o absurdo do argumentário da carta mais não era de que uma forma de ridicularizar o reacionarismo primário de quantos se opunham à nova associação sindical.

Só tempos depois vim a saber que, por essa altura, numa embaixada portuguesa numa importante capital europeia, por onde curiosamente eu viria a passar alguns anos mais tarde, o embaixador comentara o assunto com uma colega (hoje também já embaixadora) com uma observação do género: "É evidente que este nome é falso: não temos nenhum colega que se chame assim. Mas que ele tem bastante razão, lá isso tem!"

segunda-feira, abril 15, 2013

Pedagogia (pelos vistos) necessária

Não me considero um maníaco da exatidão, nem sequer tenho competência para dar grandes lições em matéria de línguas estrangeiras, mas devo dizer que começo a cansar-me de ver mal escritas, entre nós, com intensa regularidade, algumas palavras inglesas. 

É esse o caso de "welcome", em que muitos insistem em colocar dois "ll" (aparece com frequência em tabuletas à entrada de algumas localidades): Mas é também o da expressão "wishful thinking", cuja primeira palavra surge muito, e erradamente, com dois "ll". Neste domínio, também já tenho encontrado cultores de "helpfull", de "colorfull", de "usefull" e até de "beautifull". De uma vez por todas!: estas palavras não se escrevem com dois "ll".

Por outro lado, valerá a pena lembrar, nomeadamente a alguns autores de legendas de filmes televisivos, que a palavra "eventually"* (no fim) não significa "eventualmente", do mesmo modo que "actually" (de facto ou na realidade) não quer dizer "atualmente". Nesta escola de erros, já tenho encontrado os que acham que "constipation" (prisão de ventre) quer dizer "constipação". Para já não falar dos que entendem que "disgrace" (vergonha) significa "desgraça", dos que traduzem "spectacles" (óculos) por "espetáculos", "anthem" (hino) por "antena" ou, no limite, dos que ainda estão convencidos que "library" (biblioteca) é "livraria".

Tudo isto pode parecer um preciosismo, talvez mesmo um pretensiosismo, mas, já que o inglês se está a transformar no novo esperanto, ao menos forcemo-nos tratá-lo de um modo aceitável.

*curiosamente, saibam que é isso mesmo que o tradutor da Google indica!!!

domingo, abril 14, 2013

Azul, senhor Branco!

Alguns amigos são de opinião que este blogue tem publicado histórias em demasia sobre Vila Real, cidade que poucos leitores conhecem e para cujas idiossincrasias a curiosidade do mundo estará escassamente mobilizada. Talvez assim seja. Eu, porém, tenho a sensação, porventura errada, de que muito desse pequeno universo de província pode acabar por ser uma espécie de amostragem de todo um país que, com mais ou menos nuances, também se revia, um pouco por toda a parte, em muitas figuras e historietas simples, mais ou menos caricaturais, que eram o retrato quase ingénuo de um outro tempo. E que, também por isso, tem graça fixar por escrito.

Recordo-me do senhor Branco já como uma figura idosa, à porta da centenária livraria e papelaria que leva o seu nome e que constitui um dos marcos da vida comercial de Vila Real, na sua rua Direita. A seu respeito, toda a cidade do meu tempo contava um episódio, que se crê verdadeiro, e que deu origem a uma expressão que passou para a posteridade local.

Ao que se sabe, o senhor Branco teria um fraco especial por uma "criada" (era assim que se dizia, claro) lá de casa. O namorado da rapariga era por esta acolhido discretamente, com regularidade, no vão da íngreme escada que dava acesso do primeiro andar para a rua. Numa dessas ocasiões, ao dar-se conta que o senhor Branco vinha a entrar, a rapariga foi ter com ele aproveitou para pedir-lhe, quiçá como legítima compensação pela sua complacência face aos seus avanços, se ele lhe poderia comprar uma gabardina que o "seu irmão" muito necessitava - na realidade, correspondia apenas a um desejo do namorado, o qual, pelos vistos, tinha bastante bom "feitio" e não se importava por aí além de partilhar os favores da rapariga.

O senhor Branco, enlevado como andava pela jovem, terá dado mostras de poder aceder ao pedido e, passando à parte prática do assunto, perguntou que cor de gabardina quereria "o irmão". A criada hesitou por um instante. Foi então que, do vão da escada, talvez inquieto pela possibilidade da opção escolhida poder vir a não ser do seu agrado, se ouviu, a medo, a voz do rapaz:

- Azul! Azul, senhor Branco!

A história pode não ter sido bem assim. Mas pouco importa. Julgo que, na minha geração, nenhum vilarealense deixava de conhecer este episódio e esta frase, que aqui recordo, com um abraço amigo ao Alfredo, neto do senhor Branco.

sábado, abril 13, 2013

A democratização da Economia

A crise e a abundância das "narrativas" sobre ela converteram todos os portugueses em economistas de trazer por casa, num espécie de instantâneas "novas oportunidades" tiradas na "tele-escola". Há um ano, um taxista falava-me, com desembaraço, dos "spreads". Depois, o país acordou na rua a berrar contra uma TSU de que até à véspera desconhecia a existência. Ontem, num café do Porto, o rapaz do balcão perguntava-me se eu achava bem "os gajos só nos darem sete anos nas maturidades".

Isto vai bonito para o pessoal da Economia, vai! A verdade é que, dada a sua brilhante "performance" nestes últimos anos, eles legitimam que cada um possa "mandar bitaites" à vontade sobre a sua "ciência". É bem feito! Estavam mesmo a pedi-las...

... e o Porto aqui tão perto

Fui ontem ao Porto, para uma reunião de trabalho.

Após o liceu, vivi dois anos no Porto, como estudante. Desde então, volto lá, com um renovado prazer, sempre que posso. Sinto-me em casa, no Porto. É uma cidade que me induz um imenso bem-estar. Por lá tenho familiares e muito bons amigos - porque a amizade, no Porto, é uma coisa séria. Conheço o Porto bem melhor do que muitos portuenses, desde as lojas aos cafés, passando (que surpresa!) pelos restaurantes e pelas livrarias. Em tempos, cheguei a pensar ir viver a minha aposentação para lá. (Como ela é hoje um pouco "atípica", pensarei nisso mais tarde.)

Às vezes, dou-me conta de que me movo no Porto, de carro ou a pé, quase melhor do que em Lisboa. Na viagem de ontem, ia com um colega de trabalho, lisboeta de gema. À saída do aeroporto, porque antes da reunião tínhamos almoços em locais diferentes, expliquei-lhe onde nos deveríamos encontrar, em função do restaurante onde ele ia: "É fácil. Você sai dos Poveiros por S. Lázaro, segue a Rodrigues de Freitas e, logo depois do Prado do Repouso, entra no Heroísmo - lembra-se onde era a PIDE? - corta na primeira rua à direita, um pouco antes da "Cozinha do Manel". É logo ali". O meu colega olhou para mim, com o ar de quem estava a ouvir falar da toponímia de Ulan Bator, e retorquiu: "Você desculpe, mas eu do Porto quase só conheço a Boavista e a avenida dos Aliados. No resto, perco-me".

Nem ele sabe o que perde. O Sérgio Godinho, que é do Porto, sabe.

sexta-feira, abril 12, 2013

Palavras de ontem

A palavra pública tem um preço: fica eternamente em letra de forma e pode ser revisitada, como juízo da coerência de quantos se mobilizam no apoio a protagonistas de orientações que foram alvo das suas críticas.

quinta-feira, abril 11, 2013

Amesendação


Na intervenção que há pouco fiz, na apresentação do excelente livro "Os mistérios do Abade de Priscos e outras histórias curiosas e deliciosas da gastronomia", da autoria de Fortunato da Câmara, para o qual tinha escrito um prefácio, decidi prestar uma singela homenagem a dois grandes críticos gastronómicos portugueses: o desaparecido David Lopes Ramos e José Quitério, que esteve presente no lançamento. 

No que disse, deixei claro que, na crítica na imprensa portuguesa, há um tempo antes e um tempo depois da entrada em cena de José Quitério, que há décadas mantém, ininterruptamente, uma coluna no "Expresso", onde publica o que qualifiquei de "crónicas sábias, escritas num português culto, recheado de História, de bom gosto, de humor e de um sentido magnífico de aproveitamento dos prazeres da vida".

No que me toca, José Quitério foi responsável por muitas e boas experiências de "amesendação" - um neologismo que ele próprio criou - por esse Portugal fora. Reconhecê-lo e agradecê-lo era o mínimo que entendi dever fazer.   

quarta-feira, abril 10, 2013

Cutelarias

Era um homem bastante calado aquele ministro. O jovem diplomata, que o acompanhava no carro, no caminho noturno entre o aeroporto de Barajas e a nossa embaixada em Madrid, quase não conseguia arrancar uma palavra ao governante, que teimava em olhar insistentemente pelo vidro da viatura, naqueles subúrbios da capital espanhola, nesses anos 60 em que o caminho se fazia por uma estrada ladeada de casas comerciais.

O mutismo do ministro suspendeu-se, porém, a certo ponto, ao inquirir o diplomata: "você tem alguma noção da importância da cutelaria na produção industrial da Espanha?".

O rapaz caiu das nuvens. Cutelaria? Que raio de pergunta! Fazia lá ele ideia da produção de cutelaria em Espanha! E ainda muito menos do valor relativo dessa atividade na indústria! Que chatice! Se calhar, o ministro ia ficar com má impressão dele. Mas a verdade é que aquele era um assunto que desconhecia, por completo. E, embora algo constrangido, decidiu assumir essa sua falha: "Devo confessar, senhor ministro, que não tenho presente o peso da indústria da cutelaria no cômputo geral da economia espanhola".

O ministro não pareceu surpreendido, nem mesmo especialmente preocupado. Apenas comentou: "Não tem importância. Apenas tenho vindo a notar a quantidade de anúncios a talheres, que se veem por todo o lado. Olhe! por exemplo, ali!" E apontou para um reclame luminoso onde se lia "Taller".

No banco da frente, o motorista, português, deu uma gargalhada surda. Nessa mesma manhã, tinha ido a um "taller", a oficina onde sempre ia mudar o óleo.

Entrevista à revista “Sábado”



Há muito que Francisco Seixas da Costa tinha o dia 28 de Janeiro assinalado no calendário. Nessa data atingia os 65 anos e ficaria impedido de exercer funções no estrangeiro. No final do ano passado, quando soube que o embaixador Morais Cabral o iria substituir como representante de Portugal em Paris liguei-lhe a pedir uma entrevista de vida. Simpaticamente, pediu para esperar pelo seu regresso a Lisboa mas garantiu-me que a daria. Confesso que, na altura, desconfiei. Não seria a primeira vez que um “empurrão para a frente” serviria como desculpa para uma recusa encapotada. Ainda assim, no início de Fevereiro voltei a ligar-lhe. Já em Lisboa, andava ocupado com a mudança e com o novo cargo no Centro Norte-Sul para o Conselho da Europa. Mas agarrou na agenda e marcou um dia: 22 de Fevereiro, às 15h.

Na data marcada recebeu-me e ao Rafael G. Antunes no seu gabinete no palacete da Rua de São Caetano. Disponibilizou-se para as fotografias e durante mais de duas horas respondeu a todas as perguntas. O resultado dessa conversa foi publicado a 4 de Abril na Sábado. No entanto, as limitações de espaço impostas por uma revista em papel fizeram com que muitas partes interessantes da entrevista ficassem de fora. Para quem tiver paciência, fica aqui uma versão mais alargada.

Dois dias antes de completar os 65 anos e ficar impedido de exercer funções no estrangeiro, Francisco Seixas da Costa meteu-se no carro com a mulher e deixou Paris rumo a Portugal. Parou duas vezes antes de chegar a Vila Real: em França e na Cantábria, em Espanha. 

A capital francesa foi o último posto de uma carreira diplomática que começou em 1975 e que foi apenas interrompida pela passagem pelos governos de António Guterres. Em Lisboa, guia um Smart e, após 12 anos no estrangeiro, já se perdeu várias vezes nas artérias da capital portuguesa. 

Recebeu a SÁBADO no seu gabinete na Lapa, sede do Centro Norte-Sul para o Conselho da Europa, onde é director não remunerado. Foi recentemente nomeado administrador não executivo da Jerónimo Martins, e entrou para os conselhos consultivos da Mota Engil e da Fundação Calouste Gulbenkian.

- Depois de uma vida como funcionário público entrou no mundo dos negócios. Porquê?

- A certa altura ainda pensei em dar aulas na universidade porque tive convites. O problema é que eram de universidades públicas e há uma lei que impede a acumulação de reformas com um salário no sector público. Depois, no dia 12 de Dezembro de 2012 [12/12/12], recebi três convites: para a Jerónimo Martins (JM), para a Monta Engil e para a Fundação Gulbenkian. Sou administrador não executivo da JM e posso contribuir em determinadas áreas devido à minha experiência e leitura da situação internacional. É vulgar ver diplomatas assumirem funções empresariais quando se desligam do Estado.

- Vai finalmente ganhar dinheiro a sério?

- O poder complementar a minha reforma – que não é das mais brilhantes – é um factor importante. E achei interessante ter uma segunda vida no plano profissional. Surgiram outras oportunidades, também na área empresarial, a que disse não. Estas achei compatíveis comigo e nunca me cruzei com elas ao longo da vida. Ainda por cima são duas das grandes empresas nacionais.

- Durante anos foi o único embaixador português a manter um blogue pessoal onde, além de memórias, dava a sua opinião sobre a actualidade. Porque decidiu fazê-lo?

- Quando estava em Viena, entre 2002 e 2004, os blogues começaram a explodir em Portugal. Na época achei que era um método interessante de partilhar ideias com meia dúzia de amigos. Eu e vários diplomatas fizemos experiencias, com pseudónimos. Era quase clandestino porque trocávamos opiniões e fazíamos comentários sobre a vida política. Quando fui para o Brasil suspendi isso e criei um para a embaixada que chegou a imensa gente. Ao preparar a ida para Paris pensei que seria uma forma interessante de comunicar com a segunda geração portuguesa em França.

- Funcionou?

- Foi um fracasso. Acho que cheguei a umas dezenas dessas pessoas. Mas percebi que o blogue podia ser uma revisitação da memória e actualidade cultural. Acaba por ser um exercício em que nos expomos e colocamos perante as pessoas para nos conhecerem melhor. Tem um defeito: as nossas opiniões e posições nem sempre obedecem a um padrão uniforme. E há pessoas que gostam de nós porque dizemos uma coisa e ficam surpreendidas quando dizemos outra. O blogue é um retrato mais ou menos curioso do que sou. Tenho levado para lá histórias inócuas da vida diplomática e algumas experiências das que se podem contar em termos de memória diplomática, politica e militar.

- Contém-se muito?

- Contenho. Há uma regra fundamental: não quebrar a lealdade em relação ao que soubemos em virtude das funções que ocupámos. Há coisas que nunca podemos contar. Em Paris continha-me muito. Hoje menos.

- Nasceu em Vila Real. O que faziam os seus pais?

- O meu pai era gerente da Caixa Geral de Depósitos. Casou com a minha mãe que era filha de um jurista da cidade. Foi gerente da Caixa durante 27 anos. Foi com ele que ganhei o sentido de serviço publico. Fiz a escola primária e o liceu em Vila Real e em 1966 fui estudar para o Porto.

- Como foi a transição para uma grande cidade?

- Era filho único e fiquei completamente perdido no Porto – que para mim era Nova Iorque. Fui estudar engenharia electrotécnica e viver num lar universitário. Fiz duas cadeiras em dois anos. Se tivesse mantido o ritmo estaria agora a acabar o curso. Andei em festas; dirigi um programa de rádio chamado Momento de Teatro, no Rádio Clube Português; escrevia crónicas de desporto para o Jornal de Notícias aos domingos, sobre jogos entre equipas como o Lordelo do Ouro-Campanhã; fiz teatro no Teatro Universitário do Porto…

- Que peças fez?

- Era a peça do ano que era a Ana Kleiber, de Alfonso Sastre em que a Manuela Melo era a nossa vedeta. Eu fazia de jornalista. Entrevistava o escritor no início e no fim da peça. Durante o resto do tempo era sonoplasta devido à experiência na rádio.

- Praticava desporto?

- Sim, era corredor de velocidade. Estraguei o meu menisco nessa altura. Corria 100, 200 e 4×100 metros.

- Quanto fazia?

- Éramos péssimos. Entrávamos nos 11 segundos à vontade. No Centro Desportivo Universitário do Porto fundei a secção de filatelia, a de xadrez era árbitro de ping-pong, joguei futebol pela universidade onde fui um péssimo lateral direito. Os pontas passavam todos por mim. Fazia tudo menos estudar. Foi um período magnífico da minha vida que me fez ter uma adoração pelo Porto. Em 1968 vim para Lisboa para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Meti-me logo na primeira lista associativa desse ano que foi suspensa pelo ministro Hermano Saraiva.

- Meteu-se em movimentos políticos?

- Não. Trabalhei na CDE de 1969, em Vila Real. Nunca fiz parte de grupos políticos, nunca ingressei em grupos da extrema esquerda embora à época estivesse muito próximo deles.

- Em que sentido?

- Ideológico. Tinha uma atitude de esquerda radical mas nunca me senti próximo dos movimentos maoístas. Também nunca tive grande apetência para ser membro do Partido Comunista, que era a grande referência. Talvez porque tenho grande dificuldade em manter a disciplina. Gosto de pensar pela minha cabeça.

- Já escrevia?

- A partir de 1968 publiquei vários artigos na Voz de Trás-os-Montes sobre política interna e internacional. Fui proibido pela censura quando tentei publicar uns artigos cheios de ambiguidades com aquela linguagem críptica da época. Num, questionava: “será que o futuro da Rodésia é negro?” O censor deixou passar e a censura em Lisboa chamou-lhe a atenção. Depois publiquei um sobre um filósofo russo chamado Vladimir Ilyitch Uliánov que o censor não sabia que era o nome do Lenine e deixou passar. Foi chamado a atenção e a partir daí comecei a ter uma barreira.

- É verdade foi à boleia para França?

- Várias vezes. Fui em 1967, em 1969 e 1970. Uma vez fui da Rotunda do Relógio até à fronteira com a Noruega, sozinho, de mochila às costas. Era uma coisa que se fazia com facilidade e sem muito dinheiro.

- Onde ficava?

- Nas pousadas de juventude. No outro dia estava a confrontar experiências com o Luis Amado [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros] que me contou que ficou em Paris a dormir debaixo de uma ponte, magnificamente, provavelmente com uma amiga [risos]. Eu era muito cuidadoso na organização das coisas.

- Como se sustentava?

- Com o dinheiro que levava. Era possível viver com pouco. As pousadas eram muito baratas e comia-se com parcimónia. Fiz uma viagem dessas de 35 dias e gastei três contos e quinhentos. Hoje são uns 17 euros mas na época era muito dinheiro. Juntei durante o ano para isso. Tive algumas aventuras agradáveis, nada que se possa contar [risos].

- Em Lisboa tornou-se melhor aluno?

- Tornei. Aluno de 14. Excepto no final do curso, que era de Ciências Sociais e Política Ultramarina, em que tive uns problemas a uma cadeira. Nessa altura, como não tinha acabado o curso por causa dessa cadeira, pedi para ir para o serviço militar. Entretanto, empreguei-me na CGD. Fiz concurso público e entrei. Um dia telefonei ao meu pai e disse-lhe “sou seu colega”. Fiquei lá de 18 de Novembro de 1971 até ir para a tropa, em 1973. Seria esse o meu destino de regresso normal. Entretanto acabei o curso, fui para a tropa e tive um percurso militar atribulado porque foi o 25 de Abril.

- Porque pediu para apressar o ingresso no serviço militar? Não tinha receio de ir para a guerra?

- Todos pensávamos que íamos fazer a guerra. Portanto, estávamos a perder tempo em relação à nossa vida profissional. É preciso ter a perspectiva da época: nós olhávamos para o regime e para a guerra colonial como um dado adquirido para o futuro. Não pensávamos que acabaria dois anos depois. Tive a sorte de ter uma especialidade militar rara, que é a da Acção Psicológica, e ficar em Portugal. Éramos um grupo pequeno. Dos 900 de Mafra só nove eram escolhidos. Fiz bons amigos nesse grupo que ultrapassam dimensões políticas. Um deles é o Jaime Nogueira Pinto.

- Quando soube do golpe do 25 de Abril?

- Na véspera, por volta do meio-dia. Estava na Escola Prática de Administração Militar. O António Reis, que fazia a ligação aos militares do quadro, veio à biblioteca e informou um grupo de milicianos sobre o golpe. Não se fazia ideia do que ia acontecer. Só que era naquela noite.

- O que fez?

- De manhã fiquei na unidade. A certa altura recebemos o comandante e tivemos que o deter. É uma cena patética. Os militares do quadro que tinham a unidade na mão sentiam-se intimidados porque era subverter a hierarquia. E éramos nós, milicianos, a estimulá-los: “é preciso prender o comandante” [risos]. Hoje tem graça. Na época havia alguma taquicardia. Depois fiz parte do grupo que fez uma espécie de guarda de honra à Junta de Salvação Nacional que foi à RTP. Tenho ideia de estar atrás das câmaras a ver o discurso do Spínola.

- Teve a noção do que estava a viver?

- Relativa. Se tivesse levava uma máquina fotográfica. Não temos a noção da importância das coisas. Tive isso presente na famosa Assembleia do 11 de Março, que foi histórica e não estava planeada.

- Esteve na sua origem?

- Estive. Depois do golpe spinolista do 11 de Março um conjunto de pessoas que diziam “é preciso tirar consequências disto” começou a reunir-se no que é hoje o Instituto de Defesa Nacional. Visto hoje, toda esta operação foi comandada pelo PC. Nós éramos inocentes úteis nessa manobra de tentar dar a volta ao 11 de Março. Fomos dali até Belém em vários carros e entrámos quase à força. O Conselho dos 20 suspendeu a reunião para nos ouvir. Exigimos que as pessoas fossem para o IDN onde se fez a assembleia que acabou às 6h. Foi onde se definiu uma linha mais radical que consagrou as nacionalizações da banca, seguros, etc

- Porque deixou a Escola Prática de Administração Militar?

- Fui expulso por esquerdismo. Não quis votar um castigo a um soldado cadete. Fui para a comissão de extinção da PIDE/DGS e depois tornei-me adjunto do General Galvão de Melo, na Junta de Salvação Nacional.

- Como se tornou diplomata?

- Um dia fui a um café e encontrei um colega que era diplomata. Ele disse-me que havia um concurso e eu meti os papeis. Foi quase um desafio intelectual porque nem tinha muito tempo. O serviço militar começava às 13h e acabava às 19h. De manhã trabalhava na Ciesa- NCK, uma agência de publicidade, onde fazia uma análise ao modo como a imprensa tratava os temas da semana com algumas pessoas que mais tarde fundaram O Jornal: o José Silva Pinto, Manuel Beça Múrias, Cáceres Monteiro. Isto era vendido a empresas estrangeiras e embaixadas que queriam perceber a situação portuguesa. Fiz esse boletim até muito tarde – mesmo depois de entrar para o Ministério (risos).

- No MNE alguém sabia disso?

- Isto começou antes de ir para lá e era um auxílio importante para a minha vida. Fazia-o aos fins-de-semana. Mas julgo que o eventual crime já prescreveu [risos].

- O seu exame de ingresso na carreira foi feito por Cavaco Silva?

- Foi. Fez-me a prova de Economia Política. Correu-me mal. Baixei da escrita para a oral mas acho que ele foi extremamente justo e rigoroso. O tema não me era muito familiar: a integração europeia. Mal sabia que mais tarde chegaria a secretário de Estado dos Assuntos Europeus [risos]. Mas não fiquei bem classificado no meu concurso, fiquei em 13º. Quando comecei as provas pensei que não entrava. Mesmo depois de receber a carta a dizer que tinha sido admitido hesitei entre regressar à CGD ou ir para o MNE.

- O que o fez optar?

- A graça do MNE, não o salário. Na CGD ganhava bastante mais. O MNE era mais apelativo. Isto parece estúpido, mas na época tinha a esperança de que era possível ser diplomata sem ir para o estrangeiro. Havia a ideia de que se iam criar uns postos de especialistas em política externa em Lisboa. No início não me apetecia ir viver para o estrangeiro. De tal maneira que durante anos não concorri. Primeiro porque o salário que me pagavam na Ciesa NCK era bastante bom. Conseguia somá-lo ao do ministério. Depois por causa da profissão da minha mulher.

- Ela acompanhou-o sempre?

- Sim. Ela era assistente social e perdeu a carreira dela. Também está aposentada e sofreu em matéria de promoções e lugares de chefia por me acompanhar.

- Quanto se casaram?

- Em finais de 1973. Conhecemo-nos quase desde a escola primária. Fizemos o liceu juntos, começámos a namorar em 1965. Estivemos juntos no Porto e depois em Lisboa. Ela só não me acompanhava nas viagens à boleia porque a família não deixava [risos]. Os tempos eram outros.

- Como foi para Oslo?

- Um dia telefonaram-me e disseram-me “estás colocado em Oslo”. Andava à tanto tempo a atrasar a saída do país que um dia meteram-me lá.

- Depois foi para Angola.

- Era um período muito complexo, de guerra civil. Luanda estava sitiada. Não saíamos mais de 30km a norte, 15 km a leste, 60, 70 km a sul, até ao cabo Ledo. Havia recolher obrigatório, não havia comércio, tínhamos de mandar vir tudo de Lisboa. A mala diplomática era feita num merceeiro da Av. Infante Santo. Até batatas e ovos recebíamos de Lisboa.

- Furavam muitas vezes o recolher obrigatório?

- Às vezes distraíamo-nos e passava da meia-noite. De repente tínhamos uma metralhadora à frente. Havia uns cartões com autorizações que nem sempre funcionavam. O ambiente e os nervos de militares, de madrugada, às vezes estimulados de forma alcoólica, não ajudavam muito a criar uma sensação de segurança. Lembro-me de uma cena patética. Tinha mandado vir um Golf novo. Um dia sou parado por um polícia que me diz com toda a delicadeza: “camarada, posso ver se os piscas funcionam? Posso ver se os stop funcionam?” Isto num carro impecável. Ao lado passavam automóveis sem portas. A certa altura ele pergunta-me: “e o triângulo?” Fui ver e não tinha. Aí ele diz: “sabe que é obrigatório?” Lá disse que sabia e saiu-me esta: “e onde é que se compra?” O tipo fez um sorriso magnifico e disse, “pode ir, camarada”.

- Mais ou menos 10 anos depois foi convidado para o governo de António Guterres.

- Em 1994 vim de Londres. Fui para sub-director-geral das Comunidades Europeias. Um dia fui convidado para trocar impressões com o engenheiro Guterres, que não conhecia. Queria discutir comigo a Europa. Disse-me uma coisa interessante: “você é diplomata e eu quero falar consigo, quero as suas ideias, não quero os seus papéis. Não quero nada do MNE.” Tivemos umas horas de discussão e passado um mês e tal fui convidado.

- Como surgiu?

- Estava numa reunião da Associação Sindical dos Diplomatas quando o telefone da sala tocou. Eu não tinha telemóvel. Era o Jaime Gama, que ia ser ministro, a convidar-me. Aceitei. Já tinha rumores de que isso podia acontecer e já tinha falado com a minha mulher sobre essa hipótese. Contra a vontade dela, aceitei.

- Porquê?

- Porque ela achava que eu não devia ter deixado a carreira. Nunca gostou da vida política. Se outras aventuras eu não tive, se calhar felizmente, foi graças à profunda rejeição da minha mulher pela vida política.

- Os colegas começaram a dar-lhe graxa?

- Não. Acho que as pessoas perceberam que tinha alguma especialidade técnica. Nos cinco anos em que fui secretário de Estado tivemos o Tratado de Amstrerdão, a presidência de Schengen, a Agenda 2000, a presidência portuguesa e o tratado de Nice. Aliás, acho que estive tempo demais no governo. Para quem não é político com assento na Assembleia da República, uma passagem pelo governo deve ser no máximo de quatro anos.

- Porquê?

- Há um momento a partir do qual já não conseguimos ser criativos. Já fomos novidade, já demos as nossas ideias, já fomos úteis. Claro que a experiência é importante. Mas há um momento terrível na política: quando temos a ideia de que fazemos as coisas com demasiada facilidade. Vamos a uma reunião e já não precisamos de ler nenhum papel. É o momento em que as pessoas começam a pôr os dossiers de lado. Já têm uma dose de confiança que se torna perigosa. É a altura de sair.

- Quando chegou, sentiu-se olhado de lado, como um intruso com ideias novas?

- No início não. No governo Guterres muitos dos ministros e secretários de Estado eram independentes. Mas à medida que vamos sobrevivendo no governo e nos vamos prestigiando fora dele tornamo-nos incómodos. Os partidos, que precisam dos independentes para chegar ao poder, se puderem ver-se livres deles, fazem-no. É a recuperação da máquina. É o upgrade de chefes de gabinete que passam a secretários de Estado e destes a ministros. A qualidade média começa a baixar em função de um uso excessivo de pessoal político sem dimensão técnica.

- Do que mais se recorda desses anos?

- Da importância das pessoas na afirmação dos países. O papel de António Guterres numa certa fase do processo europeu, ao nível da mesa do Conselho Europeu, era absolutamente desproporcionado em relação ao peso do país. Ele tinha uma influência e capacidade de mediação e de propor medidas tão grande… e Portugal estava muito abaixo disso.

- Dê-me um exemplo.

- Lembro-me de um Conselho Europeu em que houve um conflito entre o Jacques Chirac e o Helmut Kohl. Guterres tomou a palavra, fez uma proposta entre os dois, juntou a isso uma ideia do Wim Kok, da Holanda, e aquilo passou. Eu fiquei aturdido. Primeiro porque parecia uma presunção estar a intervir num processo tão elevado. E aquilo passou, com prestígio. Os países conseguem pela capacidade das pessoas uma dimensão que não têm. O Guterres teve isso.

- É verdade que Guterres teve hipótese de ser presidente da Comissão Europeia e recusou?

- Completamente. Só não aconteceu porque ele não quis. Surgiu uma janela de oportunidade e foi montada uma operação, da mesma forma que julgo que mais tarde se fez com Durão Barroso. Estava a criar-se um consenso naqueles que tinham uma palavra a dizer em relação a isso que tornavam o processo irreversível. O porquê da não ida terá de ser ele a contar.

- Internamente, pelo contrário, nos últimos tempos do guterrismo houve situações complicadas.

- Já não assisti à fase final. Saí em Março de 2001. Mas há sempre um problema na parte final dos governos que é a manutenção de confidencialidade. Vemos isto em todos.

- Como era o ambiente nos conselhos de secretários de Estado?

- Eles têm um carácter bastante burocrático. Trata-se de preparar os diplomas. Não há discussões de fundo. O de ministros é mais complicado. Com os tempos a grande camaradagem dá lugar a uma certa tensão. Porque há conflitos, porque o primeiro-ministro não gosta de um ministro…

- Viveu alguns?

- Vivi mas não posso contar porque é uma regra de ouro: nunca contar o que se passa num conselho de ministros.

- Sentia-se um diplomata na política ou um político a tempo inteiro?

- Na política só fazia política. Desliguei-me completamente do funcionamento do MNE. Afastei-me das promoções, colocações, tudo isso. Ao contrário é o mesmo: quando estava em funções diplomáticas não houve quem me apanhasse com um pé na politica. Em 2001 regressei à carreira diplomática e fui para Nova Iorque.

- Um ano e meio depois de chegar às Nações Unidas foi afastado. Foi uma retaliação política por ter sido secretário de Estado de um governo socialista?

- Quem tomou a decisão é que tem de o dizer.

- Não lhe comunicaram porquê?

Disseram-me que queriam mudar o embaixador nas Nações Unidas e deram-me algumas opções. O compromisso era a ida para a OSCE – que me pareceu a mais interessante – com a passagem posterior para outro posto, mas o governo não honrou esse compromisso.

- Sentiu a sua competência posta em causa?

- Creio que não. A presidência da OSCE foi um sucesso reconhecido pelo ministro de então. Haverá outros factores.

- As suas relações com o ministro António Martins da Cruz não eram as melhores…

- Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na minha carreira. Desafio qualquer um é a testar a minha lealdade. O ministro Martins da Cruz não encontrou da minha parte qualquer tipo de deslealdade funcional.

- Pensou abandonar a carreira?

- Mais do que uma vez tive tentado a outras opções profissionais. Curiosamente, nessa conjuntura, decidi continuar. Convidaram-me para ser representante especial da União Europeia para o Médio Oriente e não aceitei.

- Qual desses 21 ministros destacaria?

- É difícil. Mas o tempo que trabalhei com Jaime Gama marcou-me. Ele tem uma visão do país e da política externa extremamente completa e sólida. É talvez a pessoa mais bem preparada da minha geração para os mais altos cargos do estado.

- Foi embaixador em Nova Iorque, Rio de Janeiro e Paris, foi vice-presidente da Assembleia Geral da ONU e secretário de Estado. Depois da experiência nos negócios só lhe falta ser ministro?

- Já faltou. Acho que já não falta. Não tenho qualquer ambição política. Posso dizer que, em anos recentes, tive convites para ingressar em cargos ministeriais e não aceitei.

- Muito recentes?

- Recentes [risos]. Não aceitei por opção de vida. Hoje a vida política faz-se com outra idade, na casa dos 40 ou 50. Há uma grande exigência e é preciso estar fisicamente disponível para isso. Há um tempo para tudo.

- Os diplomatas são vistos como uns tipos que passam a vida em festas. Enquadra-se nesse estereótipo?

- Os cocktails e jantares fazem parte de um processo logístico Não sou avesso mas os cocktails são das coisas que mais me irrita. Os jantares podem ser simpáticos ou inúteis. Mas a vida diplomática é feita da relação entre colegas. Em Paris eram ocasiões interessantes para perceber como os parisienses que nos convidavam olhavam para o Sarkozy ou para os socialistas. O encontro com diplomatas era importante para cruzar informação. Há colegas bem e mal informados. Considerava-me bastante bem informado. A prova é que, nos dois meses que antecederam a chegada dos socialistas ao poder, eu e um pequeno grupo de colegas tivemos pequenos almoços, almoços e jantares de trabalho com personalidades, algumas desconhecidas, que viriam a entrar neste governo. 

- Há ideia de privilégio sobre os diplomatas. Um estudo recente concluiu que são os funcionários públicos mais bem pagos.

- Mas só se incluir os abonos que recebemos no estrangeiro e sobre os quais não nos deixam fazer descontos. Esquecem-se que há pessoas com filhos na escola, que muitas vezes têm de manter uma casa em Lisboa e outra fora. Esquecem também que há uma dupla exclusividade, como aconteceu comigo, em que um dos membros do casal perde a sua profissão. A minha mulher manteve o direito à aposentação porque descontou, mesmo sem salário, com base no último rendimento antes de ir para o estrangeiro. A reforma de um embaixador, apesar de razoável, surpreendia muita gente. O que os diplomatas ganham a mais tem a ver com a compensação do custo de vida que é diferente de Lisboa. Mas não descontam sobre isso. Já percebi que é impossível vender a ideia que o diplomata não é um privilegiado. 

- Como analisa a situação política portuguesa?

- Acho que o governo segue uma receita que não está a provar. Os sinais, a falta de resultados relativamente à aplicação da receita ainda não induziu o governo a mudar a receita. Não sei quanto tempo vai ser possível manter esta aproximação à realidade sem que a realidade lhe caia em cima.

- Qual o caminho alternativo?

- São muito escassos. Os discursos de retórica sobre crescimento são simpáticos e agradáveis. Parece-me que o acordo que foi feito pelo governo português, demitido, com o apoio dos maiores partidos da oposição, resulta da circunstância de esse governo estar fragilizado. Pergunto-me: se o acordo tivesse sido feito por um governo em funções teria sido outro? Dito isto, com a evolução da conjuntura e com a leitura da aplicação prática destas medidas, já há muito que devia ter sido feita uma correcção no plano europeu e internacional sobre isto.

- De quem é a culpa?

- Não sei. Se percebemos que os resultados que se esperam não chegam, se os sinais são contraditórios, tem de haver uma correcção de percurso. O mundo está a olhar para nós como uma espécie de cobaia de modelo. O eventual sucesso dessa experiência ser-nos-ia creditado mais tarde. Resta saber se o país aguenta o peso destas medidas sem uma forte ruptura do tecido económico e social. Internacionalmente tinha que haver uma atitude diferente. Quer o caso grego quer o português são baratos face ao que seria a crise global do euro. A prova é que a Grécia tem vindo a ter sucessivos perdões de dívida e alargamento de prazos. Se calhar devíamos jogar com isso, independentemente de devermos fazer os esforços para corrigir a situação interna.

- Isso deve partir de quem?

- Como é uma questão nacional, não pode deixar de envolver as oposições, particularmente o PS.

- Como viu o regresso de José Sócrates?

- É um factor de animação que não deixará de ter consequências no PS e na política portuguesa. Não estava à espera. Estou muito curioso para perceber o registo, o impacto que terá no país e como ele se vai colocar no panorama político.

- Seria possível, em França, um ex-primeiro-ministro ou ex-presidente ocupar um espaço de comentador político num canal público?

- Oh, meu amigo!!! Não conheço nenhum país em que haja utilização de figuras ligadas aos partidos na crítica televisiva. O que diz muito da capacidade dos jornalistas e dos comentadores de outra natureza se afirmarem. As televisões estão tomadas por um conjunto de políticos que fazem dos comentários tempo de antena. Às vezes de natureza partidária, outras pessoal. Mesmo nos jornais: não há mais países onde políticos no activo tenham colunas regulares. Podem publicar um artigo ou serem entrevistados. Os embaixadores estrangeiros ficam muito surpreendidos com isto. Também somos o único país do mundo onde há os “tudólogos”, pessoas que falam de tudo. Em mais lado nenhum a mesma pessoa fala de hospitais, remodelação, memorando da troika e esquadras de polícia. Conheço alguém que um dia falou com uma dessas pessoas e disse-lhe: “normalmente estou de acordo consigo, excepto quando conheço os assuntos”. São grandes momentos de “achismo”.

(Entrevista a Nuno Tiago Pinto)

terça-feira, abril 09, 2013

Gulbenkian

Por curiosa coincidência, o avião da TAP em que, há minutos, cheguei de Paris chamava-se "Calouste Gulbenkian". E foi a Fundação Calouste Gulbenkian a razão pela qual dei "uma saltada" de 24 horas à capital francesa, para participar na primeira reunião do Conselho Consultivo, agora criado, que tem como função orientar o trabalho da Delegação da Fundação em Paris, composto por seis personalidades portuguesas e francesas e que é presidido pelo professor André Gonçalves Pereira.

A representação da Gulbenkian em Paris, que funcionou até 2011 na antiga casa de Calouste Gulbenkian e que agora está instalada no boulevard La Tour Maubourg, desenvolve, há quase cinco décadas, uma interessantíssima obra cultural, que muito tem prestigiado o nosso país e que, simultaneamente, tem contribuído para honrar a memória de alguém a quem Portugal muito deve. Os tempos mudaram, a presença portuguesa tem hoje uma dinâmica nova na sociedade francesa, as representações em França das culturas que se expressam em português têm de encontrar formas de potenciar a língua comum e, por essa razão, à representação da Gulbenkian apresentam-se hoje novos desafios. 

Dispus-me assim, e com gosto, a colaborar, a partir de agora, na reflexão sobre o futuro da Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris. E, podendo ser coincidência, gostei que esta primeira reunião do Conselho Consultivo tivesse tido lugar no dia 9 de abril, data da batalha de La Lys, em que, em 1918, os portugueses ajudaram à defesa da França e da liberdade na Europa.

segunda-feira, abril 08, 2013

Margaret Thatcher (1925-2013)

Chegado há pouco a Paris, capital de um país sobre o qual Margareth Thatcher tinha sentimentos muito pouco simpáticos, acabo de saber da morte daquela que, por quase 12 anos, chefiou o governo britânico. Eu vivia em Londres ao tempo do seu afastamento do poder. Por uma quase coincidência, tive o privilégio de assistir, na Câmara dos Comuns, ao seu último e histórico discurso parlamentar, como já contei aqui.

Goste-se ou não das ideias de Thatcher, ninguém pode deixar de reconhecer que ela foi uma estadista que, como poucos, marcou o seu país e o tempo internacional: na sua visão e influência sobre a relação transatlântica, no modo como formatou a singular posição britânica face à Europa, no seu sentido premonitório do papel de Mikail Gorbachev no futuro da URSS, na sua teimosia patriótica face às Falkland/Malvinas e em tantos e tantos outros dossiês. E, naturalmente, com tudo o que isso ainda significa para o mundo de hoje, com a sua promoção de uma agenda liberal radical.

Uma das expressões que ficaram ligadas à imagem de Thatcher é a palavra "tina" - "there is no alternative" -, lema que, pelos vistos, continua a ter ardentes seguidores noutras paragens. 

Milhão

Não sei se estas coisas se comemoram. Devo dizer, contudo, que não posso deixar de sentir um certo orgulho pelo facto do número de visitas deste blogue ter, há algumas horas, ultrapassado o milhão. Um milhão?! Caramba!

Em tempo: para comemorar, e também para descansar de todos os "sermões" de domingo, hoje não escreverei mais nada. Amanhã, espero que o meu "spread" psicológico face a todos eles não seja muito grande.

domingo, abril 07, 2013

A realidade

No último número da revista "Sábado", no âmbito de uma entrevista*, surjo a dizer o seguinte: "O governo segue uma receita e a falta de resultados ainda não o levou a mudá-la. Não sei por quanto tempo vai ser possível manter esta aproximação à realidade sem que a realidade lhe caia em cima".

Hoje, apetece-me repetir aqui o que disse.

* Uma versão mais completa da entrevista foi publicada aqui.

O futuro da democracia

Em democracia, há sempre soluções. Esta é uma frase-chavão que todos teimamos em utilizar, à saciedade, porque nos sossega e deixa alguma margem de esperança. É claro que é bom que as pessoas pensem assim, porque essa é a garantia de que, enquanto acreditarem nisso, continuarão a privilegiar a via democrática para a resolução dos problemas do país.

Há dias, ao ouvir um daqueles programas em que os espetadores telefonam a dar a sua opinião sobre tudo e alguma coisa, dei comigo a refletir na incoerência e na irracionalidade de alguns desses comentários, construídos em torno de preconceitos, de uma crescente acidez com o mundo e de um muito alargado desprezo pela classe política. Embora só concordando marginalmente com alguma coisa que ouvia, fui levado a concluir que essas pessoas, na simplicidade dessas opiniões, apenas refletem, com uma inegável legitimidade, o desespero e a falta de esperança que os atravessa - cumulados de impostos, de familiares sem emprego, de projetos de vida arruinados. E vi-me obrigado a ter de aceitar a legitimidade dessa expressão irada do seu imenso desconforto.

Aquilo que eu me pergunto é se as lideranças políticas que temos têm a verdadeira consciência de que, ao conduzirem essas pessoas para evidentes limiares de desespero ou, do outro lado do espetro, ao não lhes fornecerem soluções credíveis de esperança, não estarão elas próprias a ajudar à progressiva deslocação de muita dessa gente para áreas que, de um dia para o outro, podem vir a situar-se fora do contexto democrático. Como entendo que não é plausível que isso possa acontecer no contexto de uma reorganização partidária, temo sinceramente que a próxima eleição presidencial possa vir a ser o terreno ideal onde sejam adubados alguns projetos populistas. E a História alheia já nos mostrou que não é evidente que todos quantos são eleitos por via democrática sejam, necessariamente, os melhores defensores futuros do sistema que os escolheu.  

sábado, abril 06, 2013

Os telefones e a crise

Um dia, no decurso de um Conselho de ministros em que se discutia um assunto sensível, um membro do governo saiu da sala e fez um telefonema através de um telefone fixo. De seguida, desconfiada, uma outra pessoa decidiu usar o mesmo telefone e, primindo a tecla de repetição, encontrou no outro lado da linha uma figura que dirigia um jornal. Jornal onde, no dia seguinte, o debate tido no Conselho de ministros apareceu descrito em pormenor.

Há minutos, dois jornalistas televisivos, sem qualquer pejo, estranhavam não estarem a receber SMS's que indiciassem o modo como as coisas estavam a correr no seio do Conselho de ministros, potencialmente decisivo para a crise política em curso. A certo passo, um deles disse que acabava de ser informado, seguramente "de dentro", de que "as coisas correram bem".

O tempo passa, mas os vícios são os mesmos. Ou, como dizem os ingleses, "old habits die hard".

Notícias da Noruega

Há já algumas décadas, vivi alguns anos na Noruega. E por lá aprendi algumas coisas. 

Nos termos da constituição do país, o parlamento da Noruega não pode ser dissolvido. Em nenhuma circunstância, por maiores que sejam as crises (aprovação de um voto de censura ao governo, rejeição de um voto de confiança, "implosão" do governo, etc). Se uma crise se verificar, compete curiosamente ao chefe do executivo cessante, segundo a prática local, sugerir o nome de um seu possível sucessor, oriundo de outro partido, que possa encarregar-se de formar nova equipa governativa. Isto passa-se sempre assim, qualquer que seja o equilíbrio político resultante das eleições legislativas, e nunca a Noruega ficou sem governo. Assim, por lá, as eleiçöes têm invariavelmente têm lugar de quatro em quatro anos, realizadas até ao final do mês de setembro, sempre numa segunda-feira. Os partidos políticos noruegueses são forçados a um exercício de responsabilidade e, por isso, são sempre obrigados a encontrar soluções de governabilidade para o país. Se tal não acontecesse, a opinião pública - isto é, os seus eleitores futuros - puniria seguramente os partidos que inviabilizassem a formação de compromissos. Várias vezes, ao longo de mais de século, a ideia da introdução da figura da dissolução do parlamento foi discutida, mas as propostas (que necessitariam de uma maioria dois terços para serem aprovadas) foram sempre afastadas, porque os noruegueses consideraram que isso reduziria o ambiente para a cooperação entre os partidos, para soluções de interesse nacional.

Inspirados em "A Ceia dos Cardeais", agora que Júlio Dantas surge como clássico de cultura geral no concurso de acesso à carreira diplomática, bem poderíamos dizer: como é diferente a política em Portugal!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...