sexta-feira, abril 17, 2015

Emergências


Na espuma dos dias, não nos damos por vezes conta de como somos subliminarmente condicionados a construir raciocínios com base em circunstancialismos que vêm a revelar-se com alguma precariedade.

Vem a isto a propósito dos "países emergentes". Por alguns anos já, assistimos à criação, no imaginário mundial, de uma espécie de deslocação inexorável do poder do velho e decadente mundo ocidental para os novos "tigres" económicos, cujas taxas de crescimento e crescente afirmação em determinadas áreas produtivas prenunciavam uma definitiva reversão dos equilíbrios de poder à escala global.

Tendo a China a servir de farol, uma “nova ordem” mundial foi anunciada, sob a pressão de níveis impressionantes de crescimento, do aproveitamento das rotas da globalização, de modelos de projeção estratégica de poder tidos por imparáveis.

Com a crise, e com o colapso das economias ocidentais, prenunciador de uma fragilidade dita irreversível, foi mesmo passada uma "certidão de óbito" ao velho G8, com o G20 (que hoje acolhe quase o dobro de países) a surgir como o modelo institucional alternativo, quase já só em busca de uma consagração institucional na ordem multilateral. Por detrás dele, os BRICS e outras “estrelas” despontavam como o eixo desse mesmo poder. Várias outras economias surgiam nesse horizonte, tido já como o do futuro, de que a Turquia ou mesmo Angola foram também heróis do dia.

A realidade, porém, tem muito mais imaginação do que os homens e, às vezes, troca-lhes as voltas.

O Brasil vive a crise que todos conhecem. A economia angolana passa por um sufoco, com a queda do petróleo. Fruto conjugado deste e de outros fatores adversos, a Rússia está em sérias dificuldades. China e Turquia, sem terem problemas de igual dimensão, e cada um à sua maneira, passam por uma redução sensível das perspetivas de crescimento e acumulam tensões políticas. E vários outros “emergentes” revelam debilidades estruturais que provam que a sustentação no tempo do seu êxito ainda não está garantida.

E o mundo ocidental? Os Estados Unidos estão a sair da crise com a economia saneada dos pecadilhos financeiros e com níveis invejáveis de crescimento e emprego. A economia europeia, não tendo a mesma pujança, mostra já uma tendência de retoma, tendo atrás de si modelos de bem-estar global e de estabilidade social que nenhum dos “emergentes” poderá, por muitos anos, vir a disputar.

Quero com isto dizer que, apesar das suas crises e limitações de competitividade, a economia euro-americana bem pode dizer, como Mark Twain, que as notícias sobre a sua morte são muito exageradas.  

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Rodrigo Rato


O antigo ministro espanhol e diretor-geral do FMI, Rodrigo Rato, foi há poucas horas detido em Madrid, por acusações de improbidade.

Neste momento dramático para aquele que já foi nº 2 de José Maria Aznar, apetece-me lembrar um episódio com ele ocorrido, em 1999.

Era o dia 27 de maio. Eu estava em Paris, chegado de Londres nessa manhã, para o reunião ministerial da OCDE onde, na ausência do ministro das Finanças, Sousa Franco, chefiava a delegação portuguesa. Na véspera, na capital britânica, falando com o meu contraparte inglês, Keith Vaz, havia-me dado conta de que anteriores objeções para a nomeação de Javier Solana para Alto Representante para a Política Externa e Segurança Comum, que se sabia existirem por parte do Reino Unido (ao que se dizia, por pressão americana), tinham aparentemente "caído". Nessa manhã fora ver ao Eliseu o assessor diplomático de Jacques Chirac, Jean-David Levitte, e notara que a opção por Solana era forte. Ao almoçar, nesse mesmo dia, com o meu colega francês, Pierre Moscovici, notei que essa era também a posição do governo (vivia-se em "coabitação"...). Isto parecia tornar a nomeação de Solana irreversível.

Porém, como havia rumores de que o meu colega alemão, Gunther Verheugen, era candidato ao posto, telefonei-lhe. Apanhei-o na Bulgária. À minha questão sobre se era candidato ao cargo, deu uma gargalhada nervosa e respondeu: "Terias de perguntar isso ao Gehrard (Schroeder). Já não sei se ele ainda apoia minha candidatura. E não vou insistir...". A Alemanha estava na presidência da UE e os equilíbrios no seio da coligação SPD/Verdes eram muito complicados, com Verheugen (que viria a ser comissário europeu) a ter grandes dificuldades de relacionamento com o seu ministro, Joshka Fischer, como um dia me confessou e foi tornado público. E o apoio total do primeiro-ministro Schroeder ao seu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, embora fossem ambos do mesmo partido, nunca foi muito evidente. Concluí que Verheugen estava, definitivamente, "out".

Fechado no quarto do hotel, somei dois mais dois e telefonei a António Gueterres. Se os espanhóis viessem a obter o lugar de Alto Representante, seriam obrigados a abandonar a candidatura de Pedro Solbes ao cargo de presidente do Banco Europeu de Investimentos. Nos equilíbrios europeus, uma coisa não era compatível com a outra. Por isso, estava aberta uma oportunidade para nós. Guterres concordou, falei em três nomes (Guterres discordou de um deles), mas pediu-me para falar com Sousa Franco sobre os outros dois. Não queria avançar com nenhum dos nomes sem ouvir previamente o seu ministro das Finanças. Na conversa comigo, Sousa Franco concordou que era uma excelente oportunidade e disse-me que Vitor Constâncio era, dos dois sugeridos, o nome mais adequado como nosso candidato. "Espero é que ele se decida a tempo", gracejou. Ficou de falar com Constâncio. Dois dias depois, este viria a aceitar ser o candidato português.

Ainda antes de jantar, o que é um milagre no "decision-making process" português, consegui ter "luz verde" para preparar a candidatura, não sem antes ter sido informado Jaime Gama (porque, nisto de hierarquias, nunca "brinquei em serviço"). Mas, naturalmente, não poderíamos avançar antes de consultarmos os espanhóis. Ainda por cima, sem ter um nome garantido. Ora eu ia jantar nas instalações da OCDE com o ministro das Finanças espanhol, Rodrigo Rato, que chefiava a sua delegação.

Recordo bem a conversa. Rato é um homem muito agradável e mostrara-se sempre cordial comigo, não obstante nos separarem muitos furos nos nossos respetivos "rankings" governamentais. Expliquei-lhe a crescente consolidação da hipótese Solana e, nesse caso, a impossibilidade da Espanha poder vir a ter os dois lugares. Rato esteve, naturalmente, de acordo. Disse-lhe então que, nesse caso, teríamos, com certeza, um nome a apresentar, mas que não podia confirmá-lo, em absoluto, pelo facto de não sabermos se a pessoa escolhida aceitaria ou não.

Guardo a resposta de Rato na minha memória: "Se a Espanha não tem candidato e se Portugal tem, posso garantir-te, desde já, o nosso apoio. A 100%!". Ainda argumentei que António Guterres falaria, no dia seguinte, com Aznar, mas Rato voltou a ser perentório: "Não preciso de consultar Aznar. Dou-te desde já o nosso apoio. Portugal pode avançar".

"To make a long story short", Constâncio acabaria por não ser escolhido, numa noite negocial complexa, num jantar a anteceder um Conselho Europeu, num palácio nos arredores de Colónia, em 3 de junho, ocasião em que Solana foi entronizado como "Sr. PESC". Mas a Espanha, nessa reunião, pela voz de Aznar foi, até ao fim, o Estado que mais defendeu o candidato português.

Nesta que é uma noite triste para Rodrigo Rato, recordo, aqui de Varsóvia, este seu gesto simpático para connosco. Que eu não esqueci.

quinta-feira, abril 16, 2015

Memorabilia diplomatica (XXVI) - A pá


Naquela Luanda dos anos 80, o Grill do Hotel Trópico era "o" local para almoçar ou jantar em Luanda. Com poucos lugares, as disputadas reservas eram difíceis e a comida pretendia-se ligeiramente sofisticada. Uns andares acima, no restaurante normal do hotel, a realidade era um pouco diferente: dias havia em que, ao almoço, era Arroz com peixe frito e, para variar, ao jantar, era Peixe frito com arroz. Claro que podia ir-se ao Hotel Presidente, mas era muito pior e muitíssimo mais caro. No Hotel Panorama, a oferta era ainda mais triste e errática. Com conhecimentos, podia reservar-se uma mesa para almoço na Escola Hoteleira ou, nos fins-de-semana, no "Pezinhos na Água", onde desisti de ir depois de uma carne de porco a saber a peixe - os porcos da Ilha de Luanda era alimentados com os restos da pesca... Às vezes, sabe-lá por que sortes, surgia um local para comer aberto em sítios improváveis, quase sempre de existência episódica, por mor da incontrolável instabilidade dos fornecimentos. Estava longe de ser fácil a vida da escassíssima restauração luandense, nesses dias de guerra civil, recolher obrigatório e fortes privações para a generalidade da população.

Como disse, o Grill do Trópico era o lugar "trendy" da cidade. Como hóspede do hotel (onde vivi mais de quatro meses), eu tivera a sorte de conseguir por lá uma "reserva permanente", circunstância invejada por meia Luanda. Verdade seja que repetir, cada dois dias, o "émincé de vitela", regado a "Corredoura", seguido inevitavelmente pelo "Bolo Trópico", não configurava o melhor dos cenários culinários. Mas, sendo as opções o que eram, não podia queixar-me.

Pelo Grill passava o "tout Luanda", embora fosse evidente que a classe político-militar dominante não era muito dada a misturar-se com a "fauna" do Trópico, feita de empresários de passagem, dos escassos diplomatas ocidentais em posto, dos tripulantes da TAP (que, pouco depois, mudaram de pouso) e alguns privilegiados com boas "cunhas" junto da Angotel, a estrutura estatal hoteleira dirigida pelo Zé Mário, um simpático jovem quadro angolano, casado com a louríssima "Boneca" (que será feito deles?). Olhando retrospetivamente, só posso agradecer a simpatia de quem, por esse Grill do Trópico - a começar pelo chefe Smith e a acabar no magnífico Sambo - nos ajudou a atravessar esses tempos complicados de uma cidade em penúria de recursos e em guerra.

Um dia, cruzei-me entre as mesas do Grill com uma figura que nos entrava em casa todas as noites, um locutor da única estação de televisão, a TPA - Televisão Popular de Angola. Era um homem novo, mulato, uma daquelas vozes da rádio que mantinham os tiques de uma certa locução "à antiga", que em Portugal tinha praticamente desaparecido com o 25 de abril. Sem sotaque local, tinha uma pronúncia magnífica e até posso imaginar que, num ambiente marcado por uma certa "angolanização", a sua vida não devesse ser fácil. Através de um amigo comum, tínhamos criado uma relação superficial mas simpática, que renovávamos sempre que nos encontrávamos, quase sempre em jantares em casa de amigos.

Naquele dia, à sua entrada e à passagem pela mesa do Grill em que eu almoçava, deixou cair um "Temos de falar!". Quase tinha esquecido a frase quando, ao final da nossa refeição, o vi levantar-se para vir ter comigo. Em voz baixa, por razões óbvias, numa Luanda de grandes carências, ouvi-o dizer: "Tenho lá em casa uma excelente pá de vitela! Quando é que lhe dá jeito?"

Várias vezes tínhamos combinado almoçar ou jantar, mas tal nunca se tinha proporcionado. Os dias de Luanda, para quem, como eu, estava "solteiro" na cidade, eram feitos de um permanente saltitar entre jantaradas e sessões de petiscos, nessa vida diplomática nos trópicos que me fez "dar o fígado pela pátria". Por isso, mentalmente, libertei uma data ou duas na minha agenda e disse-lhas, como alternativas para o ágape. Por isso, estranhei muito a reação: "Prefere de manhã ou de tarde?"

"De manhã ou de tarde?" Que raio de coisa! A minha cara deve ter traduzido essa perplexidade, mas a vedeta televisiva não deve ter notado, pelo que acrescentou: "Como é para si, faço-lhe um preço muito bom: duas garrafas de whisky. Novo, claro".

Como dizem os brasileiros, nesse instante "caí na real". O homem não me estava a convidar para jantar em sua casa, estava a oferecer-se para me vender uma peça de carne, numa Luanda onde, à época, era praticamente impossível, por meios legais, conseguir tal produto. Como não tinha ainda a minha casa montada, e para grande desilusão do homem, não aceitei o "deal". Que tal seria a carne?

quarta-feira, abril 15, 2015

O exílio

Fui ontem ao lançamento do novo livro de Manuel Pedroso Marques, "Os Exilados - não esquecem nada mas falam pouco". Com a sala a abarrotar, a fila para a aquisição do livro era tão grande que desisti de o comprar na ocasião (fá-lo-ei mais tarde). Mas dei um abraço ao autor, pessoa que estimo e considero. E dei por bem empregue o tempo, porque a evocação feita por Manuel Vilaverde Cabral e pelo autor deram-me alguns motivos para pensar.

O exílio foi sempre algo que me fascinou. A ideia de que alguém, por perseguição política do governo do seu país, é obrigado a abandoná-lo e a reconstituir vida noutro país é algo que, de há muito cativou a minha imaginação. A literatura sobre a matéria (aliás, pouco abundante no caso português) ajudou ao resto. 

Na apresentação que fez do livro, Vilaverde Cabral distinguiu os exilados de outros "E" - os emigrados e os expatriados - elaborando um pouco sobre o modo como essas categorias, de diferente tipologia, se cruzaram no Portugal fora de Portugal, ao tempo da ditadura. Deu alguns exemplos e pistas para reflexão.

Na minha vida diplomática, cruzei diversos portugueses que haviam saído do país para fugir à perseguição política. Encontrei alguns a quem o 25 de abril não estimulou o regresso a Portugal. Parte deles tinha, entretanto, organizado a sua vida pessoal e profissional no estrangeiro, as oportunidades que o novo Portugal lhes oferecia eram, provavelmente, muito menos apelativas do que aquelas que os países de acolhimento lhes proporcionavam. E foi sempre muito interessante para mim, que sempre fui um "voyeur" curioso da luta exterior contra a ditadura, ouvir essas pessoas sobre esses tempos de chumbo, sobre quem então haviam conhecido, os grupos com que haviam colaborado, as ações em que haviam estado envolvidos. Falei com alguns deles no Brasil e em França, mas também no Reino Unido e nos Estados Unidos. E com vários outros já em Portugal. E aprendi bastante.

Desde logo, aprendi a complexidade e o peso psicológico da condição de exilado. Fiquei ciente de que as culturas de exílio, com o secretismo e a desconfiança que lhes são inerentes, são pasto fácil para a conflitualidade, para a intriga, para algumas traições e para o "vir ao de cima" daquilo que de mesquinho pode existir em qualquer de nós. Mas também ouvi casos de despojamento, de solidariedade, de ajuda desinteressada, criadores de amizades duradouras, de cumplicidades para o resto da vida. Porém, o facto da política - e a política de um emigrado tem, com naturalidade, algum radicalismo associado - sobredeterminar todo o contexto em que a existência no exílio se processa acaba, com alguma naturalidade, por marcar fortemente esses núcleos, onde também se disputam ambições e projetos pessoais e coletivos contrastantes. Ouvir falar sobre o exílio português no Brasil nos anos 50 ou 60, sobre as tensões em Argel nos anos 60 ou 70, bem como sobre esse microcosmo que foi Paris na década que antecedeu o 25 de abril, ensinou-me muito sobre o exílio. E, em definitivo, esclareceu-se sobre quão violenta a ditadura foi para essas pessoas, a quem destruiu a estabilidade, as carreiras e, muitas vezes, a própria esperança. 

Por tudo isso, logo que puder, vou ler o livro de Manuel Pedroso Marques. 

terça-feira, abril 14, 2015

Quatro anos


Expliquei ao “Les Echos” que a embaixada não fazia qualquer declaração. Não obstante a insistência da “BFM-TV”, reforçada com uma “cunha” de um jornalista português, disse estar indisponível para entrar em direto na sua edição da noite, como fizera, por duas vezes, em semanas anteriores. Repeti o mesmo à “France 24”, que me queria na sua emissão em inglês. Não sabia (ainda) o que dizer. Era o dia seguinte ao pedido de ajuda de Portugal. Foi há quatro anos.

É talvez cedo para se saber como os vários embaixadores portugueses, nas principais capitais europeias, viveram esses meses. Cada um falará por si. No meu caso, em Paris, acompanhava, dia após dia, as diligências que as nossas autoridades desenvolviam para tentar escapar ao pedido de ajuda externa e as mensagens que, nesse âmbito, eram por nós passadas às congéneres francesas, com o objetivo de garantir um apoio europeu (e, essencialmente, alemão) para a nossa posição oficial. Parte substancial dos contactos passava-se entre os gabinetes dos chefes de governo. A nós, cabia-nos explicar a racionalidade das nossas posições e enquadrar, sob a matriz da (real) normalidade democrática nacional, a fortíssima tensão política que se vivia em Lisboa, do PEC IV aos dissídios partidários em crescendo.

Com o passar dos dias, sentia, cada vez mais, que as coisas se aceleravam. (Tenho pena de não ter guardado quaisquer notas). Era o tempo das movimentações das agências de notação, o crescente “downgrading” português, o disparar do “spread” dos nossos “bonds” a 10 anos, que eu acompanhava, todas as manhãs, ao abrir o “Financial Times”. Passei então a ser chamado a falar nas rádios e, um pouco menos, em televisões. Nunca antes, como embaixador em Paris, me fora dada tanta “atenção”. Só que não era pelas melhores razões. Sem a menor dificuldade, publiquei alguns artigos na imprensa. A minha “narrativa” era quase sempre a mesma: defesa dos índices favoráveis conhecidos, denúncia do exagero das agências de “rating”, afirmação de que era possível dispensar a ajuda externa. Como dizem os americanos, “my country, right or wrong”. 
  
A partir de certa altura, Lisboa, como fonte de instruções, foi desaparecendo. Falava com colegas portugueses noutros postos, mas todos comungavam do mesmo desconhecimento. Para além das declarações públicas, nada mais transpirava. Os escassos responsáveis políticos portugueses com quem consegui contactar também já não ajudavam. Por aqueles dias do fim, senti uma inédita solidão e, essencialmente, a angústia de não saber o que fazer (ou se devia fazer algo) como representante de Portugal junto de um dos mais importantes países do mundo. Recordarei para sempre uma conversa telefónica com um alto responsável do Eliseu, que teve a sensibilidade de não me inquirir para além daquilo que ele sabia que eu podia dizer (e saber) e que me deixou palavras de discreto conforto, sem, contudo, as fazer soar de forma paternalista.

Depois, a toalha caiu no ring. O discurso mudou. A vida de um diplomata é assim.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, abril 13, 2015

François Maspero


Morreu Gunther Grass. Porém, na data de hoje, prefiro lembrar François Maspero, que também desapareceu. A sua "Joie de Lire", na Saint-Séverin, a dois passos do boulevard Saint-Michel, foi a "meca" para muitos de nós, nesses pesados anos 60 e 70, que só a nossa juventude e os nossos sonhos iam tornando mais leves.
Como aqui lembrei um dia, François Maspero tinha como orientação não entregar à polícia - à "polícia da burguesia" - quem fosse apanhado a roubar livros, o que criou, em muita gente, uma espécie de impunidade que, ao que se dizia, terá acabado por levar a livraria à ruína económica. Fui testemunha presencial de uma frutuosa e furtuosa "romagem" à Maspero de um amigo português, ao tempo estudante em Paris, convenientemente dotado de um avantajado capote alentejano, que dava espaço para um eficaz "arquivar" de volumes. Ainda o estou a ouvir: "Ora cá está ele! Faltava-me o volume 8 das obras do Bataille!". E lá desapareceu o avantajado volume da Gallimard no bojo do capote...

Memorabilia diplomatica (XXV) - Ártico


Dormir num saco-cama, assente numa placa de esferovite diretamente pousada sobre o gelo, numa tenda militar, bem a norte do Círculo Polar Ártico, com uma temperatura exterior de cerca de 25º negativos, é uma experiência para a qual se exige uma certa coragem. A verdade é que a tenda tinha no centro uma espécie de aquecedor, com uma chaminé que saía pelo tecto. E, no seu interior, valha a verdade, a temperatura estava bem acima dos números de fora. Mesmo assim...

Estávamos num campo de treino da NATO, organizado pelas tropas norueguesas, em 1980. O dia fora longo e eu partilhava o espaço com dois colegas, um belga e um turco. Chegados à nossa tenda, enfiei-me logo no meu saco-cama, saquei de uma lanterna de bolso, que prudentemente levara comigo, e pus-me a ler o "Herald Tribune", nesse dia trazido de Oslo. Acompanhava-me uma pequena garrafa metálica com um belo whisky de malte, em cuja tampa, com esmero, coloquei algum gelo que raspei do chão. As recomendações NATO tinham sido estritas - nada de alcool! -, mas achei que uma pequena excepção podia ser admissível para o civil inverterado que eu era. E nem a proximidade do Pólo Norte tinha o condão de me afastar de alguns comezinhos prazeres mais cosmopolitas...

Notei que o meu amigo belga adormeceu logo e estranhei ver o turco a tentar fazê-lo fora do saco-cama. Disse-me que estava com calor e que ficaria bem assim...

Acabadas a minha dose de whisky e a leitura, adormeci também. Acordei, creio que cerca de uma hora depois, alertado pelo belga. O nosso colega turco, imprudente, ao ter-se deixado dormir fora do saco-cama, estava agora enregelado, sentia-se mal e não conseguia aquecer, nem sequer aproximando-se do aquecedor.

Que se podia fazer? Sair da tenda, à procura de ajuda, na gélida e ventosa noite ártica, era quase suicida. Adiantei uma ideia: porque não bebia o nosso amigo turco um bom trago do meu whisky? Seguramente que isso poderia ter um efeito-choque, ajudando à sua recuperação. O belga concordou que era uma boa sugestão. E é aí que o turco nos surpreende: "não posso beber álcool. Sou muçulmano". E continuava a tremer de frio.

Com diplomacia e poder argumentatório - estávamos entre diplomatas - tentámos convencê-lo de que os ditames religiosos, com toda a certeza, eram passíveis de uma pontual derrogação quando estava em causa a salvação de uma vida. O whisky podia assim ser considerado, no caso vertente, como um mero medicamento - "embora bem mais saboroso do que é habitual", lembro-me de ter pensado.
 
O turco, já um pouco em pânico, acabou por concordar em seguir a opção que lhe era oferecida: bebeu uma boa dose do meu velho malte e até repetiu... E lá aqueceu, como previsto, conseguindo dormir.

Pergunto-me, até hoje, se a minha leitura das regras religiosas muçulmanas esteve ou não correta. E será que me posso considerar culpado se acaso o meu amigo turco, por via da minha sugestão, mudou de hábitos de vida?
 
(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

domingo, abril 12, 2015

Os submarinos voadores


Aquela minha amiga, figura pública do espetáculo bem conhecida, charlava com o taxista sobre a política caseira. Rapidamente percebeu que o discurso do motorista era "avançado" (para quem não saiba, é a expressão que, durante a ditadura, se utilizava para designar gente "bem à esquerda"). Depois de primeiramente zurzir, como é de óbvia regra, o inquilino cessante de Belém, vieram à baila as próximas eleições, E aí, ao nosso homem, virando-se para a passageira e com gesto largo de mãos, saiu-lhe esta:

- Ó minha senhora. O que eu gostava mesmo, para dar a volta a isto, é que os comunistas ganhassem. Aí sim, até os submarinos voavam! 

Saia uma Cuba Libre!

 

Fulgêncio Baptista ter-se-á revolvido na tumba? Imaginem então Che Guevara!

sábado, abril 11, 2015

Memorabilia diplomatica (XXIV) - Os comunistas


A decisão ontem anunciada pelas autoridades de Kiev de proibir os símbolos comunistas no país (presumo que com a exceção prática das províncias do Leste) é, com toda a certeza, o primeiro passo para a interdição do próprio Partido Comunista do país. Não me parece que isso seja um bom sinal para a Ucrânia.

Nada, aliás, que seja estranho na antiga União Soviética. Vai para mais de uma década, visitei um determinado país da Ásia Central, integrado numa delegação de cinco embaixadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), idos de Viena. Entre os diversos encontros que nos foram proporcionados na capital do país figurava uma mesa-redonda com representantes dos partidos políticos locais.

Na sua quase generalidade, a classe política desses novos Estados era oriunda das anteriores estruturas comunistas locais, isto é, comunistas reconvertidos em novos e "rápidos" democratas. Com o fim da URSS e a independência dessas antigas repúblicas soviéticas (em alguns caso, a independência foi assumida de forma algo relutante), foram instituídos regimes cuja democraticidade era mais do que duvidosa. As novas formações políticas criadas tinham, na esmagadora maioria dos casos, um caráter pouco genuíno e eram, por assim dizer, atores de um "teatro" que pretendia convencer o mundo exterior de que as novas instituições respeitavam as normas e "standards", em matéria de observância das regras do Estado de direito, respeito pelas liberdades fundamentais e pelos direitos de cidadania. A verdadeira oposição a esses regimes autoritários fazia-se fora dos partidos autorizados, através de ONG fortemente reprimidas e de ativistas políticos e defensores de Direitos humanos, isolados ou em pequenos grupos, que mantinham uma admirável resistência e tentavam, com muita dificuldade, fazer chegar sua voz de revolta ao exterior. As missões locais OSCE porfiavam, muitas vezes sem sucesso, em manter uma ligação a essas figuras fora do sistema, como forma de as proteger.

Mas voltemos à nossa reunião. À volta da mesa, estavam representados aí uns seis ou sete partidos. Cada um deles apresentou-se e definiu o respetivo perfil, ficando claro que estávamos perante um imenso "trompe l'oeil", como o delegado da OSCE já nos tinha alertado. Todas essas formações estavam representadas no parlamento, mas nenhuma delas fez a menor observação crítica ao governo em funções, relativamente ao qual não tinham qualquer objeção visível. Deixámo-los fazer o seu "número" e foram-lhes depois colocadas algumas perguntas por cada um dos visitantes, todos oriundos de democracia ocidentais. Quando chegou a minha vez, não hesitei:

- O representante do Partido Comunista não pôde vir?

Os locais olharam perplexos entre si. Então aquela República tinha-se "libertado" do comunismo e os embaixadores ocidentais, todos de países NATO, onde o comunismo estava bem longe do poder, perguntavam pelos comunistas locais? Imagino se não se perguntavam por que diabo queriam ali comunistas quando o sentido da Guerra Fria fora precisamente derrotá-los.

O "controleiro" da delegação, representante do governo que dirigia a "peça", quebrou o embaraço coletivo e, fixando-me, respondeu com evidente surpresa e não menor firmeza:

- O comunismo acabou neste país. O Partido Comunista foi proibido.
  
O artificialismo da cena era reforçado pelo facto de nós sabermos, de fonte segura, que muitos daqueles "figurantes" haviam sido membros do Partido Comunista local, ao tempo da União Soviética, não muitos anos antes.

- Peço desculpa, mas tem-nos vindo a ser dito que este país vive hoje em democracia. Como é que podem afirmar isso se não autorizam que uma corrente de opinião como os comunistas se pode organizar e afirmar no vosso sistema constitucional? Os comunistas desapareceram aqui de um dia para o outro? Onde estão? A democracia faz-se precisamente para que todos possam ter o direito à representação política, por muito que não concordemos com eles. Pela minha parte - mas não posso falar pelos meus colegas, naturalmente - tenho de concluir que o vosso regime tem uma falha democrática grave. Tomo nota disso e não deixarei de ter isso em conta no meu regresso a Viena.

Os restantes embaixadores ocidentais que integravam o meu grupo não me pareceram ter ficado muito agradados com a frontalidade da minha tomada de posição. Mas o incómodo foi bem maior entre as figuras locais. No resto da nossa estada nessa "democracia" da Ásia Central fui olhado sempre de soslaio pelos nossos anfitriões. E, regressado a Viena, notei que o respetivo embaixador junto da OSCE tinha esfriado as suas relações comigo.

No plano económico, o único que poderia suscitar da minha parte alguma contenção em sede de cinismo de "realpolitik", Portugal não tinha o menor interesse nesse distante Estado. E, como costumo dizer, a grande vantagem de um país como o nosso é que, quando não tem grandes interesses pode dar-se ao luxo de ter grandes princípios....

A placa


Uma certa organização internacional, onde as línguas de trabalho são o francês e o inglês, decidiu colocar nas portas dos gabinetes que, na sua sede, atribui às delegações de cada Estado que dela faz parte, uma placa com a designação do país.

Guardei esta deliciosa foto da nossa placa. Felizmente que o alemão, o português e o espanhol não são línguas oficiais da dita organização, caso contrário a placa seria ainda mais interessante...

sexta-feira, abril 10, 2015

Marcello Duarte Mathias


Desde ontem, estou a deliciar-me com mais um diário, recém-publicado, de um escritor que também é diplomata. Trata-se do "Diário da Abuxarda" (2007-2014), do meu colega e amigo Marcello Duarte Mathias, um dos grandes prosadores portugueses. Os seus diários, sob a epígrafe "No devagar depressa dos tempos", levam-nos pelos pretextos para reflexão que encontrou nas suas errâncias profissionais, de Nova Iorque a Paris, da Índia a Buenos Aires e a Brasília, com Bruxelas e muita Lisboa (e Abuxarda) pelo meio.

Uma visão do mundo por vezes desencantada - e frequentemente diferente da minha -, às vezes a roçar um nostálgico elegante (sei que ele não deve gostar disto), sempre imbuída de um saudável patriotismo, de quem girou mundo com o ideal de Portugal na bagagem. Um livro que, mais do que tributário da experiência de um homem culto, respira a erudição de quem adora a vida e aprecia as coisas boas que ela nos traz - os amigos, as artes e os momentos - coisa que sempre entendemos melhor quando alguma vez tivemos de ultrapassar certos sobressaltos. Um livro que se saboreia como uma bebida requintada, que nos convida a pequenos goles, neste caso podendo sempre recuar nas páginas e na memória dos sabores.

Há anos, o Marcello publicou um pequeno volume, que intitulou de "Brevíssimo Inventário". É uma obra difícil de classificar, mas se se disser que é uma recolha de magníficos aforismos talvez fique mais próximo da verdade. Foi minha prenda de Natal para muita gente e ainda hoje o ofereço a amigos e conhecidos que aprecio e que o podem apreciar.

Termino com duas citações deste Diário que me dizem bastante. Uma de Carlos Lacerda, que Marcello cita: "Viver não deixa muito tempo disponível". A segunda é do próprio Marcello Duarte Mathias: "Hoje é fácil ser-se inconformista: basta andar de gravata". 

E a Europa?


O espetáculo diário do governo grego na sua luta, cada vez mais inglória, com as instituições europeias nada tem de dignificante para a própria Europa. A humilhação de um poder político, que tem atrás de si um mandato de desespero, por mais irracional que ele possa ser, é uma imensa bofetada na democracia e um insulto à própria ideia de União Europeia.

Fruto de imensos erros próprios, somados à irracionalidade da política austeritária imposta pelos credores, a Grécia gerou uma situação que colocou no poder um governo portador da mirífica agenda de pôr termo à tutela estrangeira e recuperar, de um dia para o outro, o poder decisório nacional.

Muitos foram os que olharam com simpatia essa revolta, que prometia uma apetecida luta de um David contra o Golias da “troika”. E não foram poucos os que acreditaram que a atitude grega trazia um saudável abanão no “pensamento único” dominante.

Olhando em perspetiva, somos forçados a concluir que o modo radical como a Grécia carreou para o debate a questão do combate à austeridade acabou por enfraquecer fortemente uma linha menos confrontacional, que estava a começar a fazer o seu caminho, nomeadamente no Parlamento europeu, em algumas forças políticas no governo ou na oposição, bem como no próprio discurso da Comissão e do BCE. O sucesso dessa estratégia reformista estava longe de garantido, mas o facto do combate à austeridade ser hoje bastante identificado, até na comunicação social, com o suicidário “tudo ou nada” grego não facilita as coisas.

Ninguém faz ideia de como este braço de ferro entre a Grécia e as instituições europeias irá terminar. Mas ninguém já espera que Atenas vá cantar vitória ao fim do dia. Para uns, isso significará apenas a prevalência do bom senso. Para outros, traduzirá a humilhação de uma nação, sujeita a um diktat externo.

Vou por outra leitura. Até há uns anos, a União Europeia era a imagem da solidariedade, uma ealiança para o desenvolvimento, o bem-estar e a paz. Com o caso grego a reforçar bem essa nota, a Europa tende, cada vez mais, a ser olhada como um “big brother” disciplinador, zelador de uma matriz comportamental, regida pela lógica obsessiva do mercado, numa hierarquização interna de poderes que relega para as calendas (que, aliás, são  gregas) a ideia da “igualdade dos Estados”, que ainda surge na letra dos tratados. Confesso que tenho cada vez mais dúvidas de que, a prazo, seja possível compatibilizar este modelo de Europa com a salvaguarda das ordens constitucionais nacionais.  

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 09, 2015

Memorabilia diplomatica (XXIII) - O detalhe


Ontem, ficou claro que entre Marine Le Pen, líder do Front National, o partido de extrema-direita francesa, e o seu pai, o "histórico" fundador daquela formação política, está instalada uma guerra aberta. De há muito que se sabia que a chefe do partido discordava dos "infamous" comentários do seu pai sobre as atrocidades nazis. O facto de Jean-Marie Le Pen continuar a insistir nesses e outros comentários públicos de raiz xenófoba e racista terá feito transbordar o copo.

Hoje vou recordar uma história que já aqui referi, mas que vem a propósito da polémica aberta em França.

Aquele meu conhecido, um homem encantador que vive numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vive rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que na ocasião também estivesse o seu "ami Jean-Marie". À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, antigo candidato à presidência da República francesa, à época ainda presidente do Front National. Tratava-se de uma personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição conexas, faz claramente parte das figuras "non fréquentables" para um grande número de franceses.

Le Pen é assim, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual, como já aqui um dia recordei, eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, em 2000. E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, decidi aceitar o convite para jantar.

Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão.

Foi cordial para com o embaixador de um país que conhece bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que ainda hoje é uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que há uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.

À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios. Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente estava longe de ser desfavorável a Le Pen.  
Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a personagem. "Entre la poire et le fromage", como se diz na linguagem social francesa, decidi intervir. Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das preocupações, em matéria de segurança, que uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas que acabava por radicalizar a postura do "Front Nationale" e dele afastar potenciais simpatizantes?

Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'? ". Estava. Como disse, ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam a esses campos alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que nunca ouvira isto!).

Tudo isto deu, por completo, e em escassos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou de forma um tanto apressada. À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França".

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quarta-feira, abril 08, 2015

Inocencio Arias


Inocencio Arias é um conhecido embaixador de Espanha. Coincidimos em Nova Iorque, onde reforçámos uma amizade que já vinha de uns anos antes. Figura agitada, de um humor magnífico, é sempre um prazer conviver com ele. Fez cinema, fala de tudo, sabe de tudo e até ousa expressar-se em russo, nacionalidade de ascendência da sua mulher Ludmila. Com uma larga capa, um "papillon" e um "borsalino" que o tornaram famoso, "Chencho", como é conhecido entre os amigos, foi diretor-geral do Real Madrid, secretário de Estado, tem livros publicados, escreve na imprensa e surge com frequência na televisão, mantendo o blogue "Crónicas de um diplomático jubilado". A sua palavra franca e verdadeira conduziu à sua saída de embaixador junto da ONU. Acontece!

Há dias, numa livraria de Valladolid, deparei com um seu livro já antigo (e que vai na 3ª edição) que fala da ação internacional de cinco primeiros ministros com que serviu ao longo da sua carreira (no meu caso, teria que falar de 15!). Dele retiro, deixando-a em espanhol, esta "pérola" sobre as chefias na carreira diplomática;

"Y de los jefes ya se sabe que uno es buena persona y competente, otro es incompetente y te pone nervioso, otro es competente pero va estrictamente a lo suyo, todo vale para trepar, y el cuarto, competente o incompetente, és un auténtico hijo de su madre. Habría que hacer un estudio para ver qué categoría es la más numerosa."

Grande escola, a carreira!

terça-feira, abril 07, 2015

Tolentino da Nóbrega

Na Madeira, ao longo das últimas décadas, não houve uma ditadura. Porém, só quem é cego, sectário ou de má fé é que poderá afirmar que o modelo político prevalecente na ilha garantia a plenitude dos direitos democráticos à generalidade dos cidadãos e às forças políticas de oposição. O regime que vigorou naquela região autónoma revestiu-se sempre - repito, sempre - de um registo autoritário que, assuma-se ou não, tinha algo de intimidante para quem o afrontasse. Todos os governos continentais viveram no embaraço de ter de lidar com esse modelo muito "sul-americano", que se instaurou à sombra do bananal madeirense, frequentemente fugindo ao confronto com ele, por pura cobardia, numa espécie de "realpolitik" de trazer por casa. Não integra as mais gloriosas páginas da nossa República a história do comportamento de quase todos os executivos lisboetas face à Quinta Vigia.

Nunca conheci Tolentino da Nóbrega, o correpondente do "Público" na Madeira, que agora faleceu. Mas acho que a liberdade da sua voz, a sua frontal e desempoeirada denúncia dos abusos que o poder regional foi cometendo ao longo destes anos, acabou por ser, muitas vezes, bem mais eficaz do que a pífia oposição política dos adversários do presidente cessante daquela região autónoma. Tenho para mim que, antes de levar a cabo algumas das suas recorrentes arbitrariedades, o poder regional deve ter pensado sempre muito mais naquilo que Tolentino da Nóbrega poderia vir a denunciar nas colunas do "Público" do que na efervescência, sem reais consequências, dos seus paroquiais adversários políticos. E esse é talvez o melhor elogio que é possível fazer na hora do seu desaparecimento.

"Boa Cama / Boa Mesa"


O "Expresso" publica anualmente o seu guia "Boa Cama/Boa Mesa", com uma listagem por distrito (é interessante como se utiliza ainda a divisão distrital, mesmo depois dela ter acabado na ordem administrativa portuguesa) dos locais selecionados para dormir e para comer, um pouco por todo o país.

Falemos apenas destes últimos. Como todas as seleções, trata-se de uma lista discutível. O que sempre achei mais criticável nas notas que acompanham as referências é um tom genericamente elogioso que por vezes não nos ajuda a destrinçar o que é, de facto, excelente do que é, frequentemente, menos bom. Dito isto, que fique claro que não passo sem o "Boa Cama/Boa Mesa" que é um "livro de cabeceira" que não abandona o meu carro.

O guia atribui galardões: um "Garfo de Platina" e vários "Garfos de Ouro".

O primeiro, como já é quase de regra, vai para um restaurante algarvio. Desta vez, é o "São Gabriel". No Algarve, à base de uma cozinha internacional que não raramente pouco tem a ver com a tradição culinária portuguesa, é viável manter, graças ao turismo estrangeiro, diversas unidades de restauração sofisticada, as quais, sejamos justos, tanto podiam estar lá como noutro lugar do mundo. Mas é lá que estão, têm muito boa qualidade e é bom que sejam reconhecidas e, nalguns casos, atraiam "estrelas" Michelin, o que se torna num chamariz interessante para o turismo. Que muitas floresçam!

Os 25 "Garfos de Ouro" ousam, por vezes, sair desse modelo internacional de culinária. Estão nesse caso quatro magníficos restaurantes: o "Cozinha da Terra", perto de Paredes, o "São Gião", em Moreira de Cónegos" e, pela primeira e merecida vez, o "Restaurante G", na pousada de Bragança (um abraço de parabéns ao Óscar e ao António Gonçalves, bem como aos seus pais, responsáveis pelo "Geadas"), e o "Vallecula", em Valhelhas, perto de Belmonte (um abraço à Fernanda e ao Luis Castro, cujo trabalho sigo há muitos anos). Entra também neste "ranking", pela primeira vez, o "Boa Nova", na antiga "casa de chá" desenhada por Siza Vieira, em Leça, um restaurante de maior ambição gastronómica, e preço a condizer!, do meu amigo Rui Paula, um excelente chefe nortenho.

Com o IVA da restauração a 23%, nunca é demais contribuir para a divulgação o trabalho das dedicadas pessoas que asseguram a indústria da restauração neste país.

segunda-feira, abril 06, 2015

Memorabilia diplomatica (XXII) - A planta


Era um aeroporto de um país tropical. A sala VIP era desconfortável, arejada por ruidosos aparelhos à espera eterna de revisão, que quase abafavam as conversas. A delegação portuguesa espojava-se por horrorosos sofás de napa, no final de cinco dias de uma viagem oficial quase tão intensa quanto inútil. 

O dignitário português que chefiava a comitiva, enfarpelado como a ocasião ainda recomendava, encaixara-se num canto, acompanhado por um qualquer ministro local, trocando banalidades.

Sem uma contraparte natural para a ocasião da despedida, já ansiosa pela "executiva" do avião que tardava, a esposa do chefe da delegação portuguesa errava pela sala, comentando as peças de artesanato que algumas senhoras da comitiva tinham ido adquirir, à última da hora, ao comércio do aeroporto, como forma de se verem livres do resto da moeda local.

A certa altura, nota-se que a senhora avança em direcção a um arbusto que fazia paisagem no fundo da sala. A embaixatriz de Portugal, mais por tropismo protocolar do que por uma qualquer evidente necessidade de apoio, segue-a, um tanto intrigada com aquele súbito interesse. E quando a vê, bem decidida, agarrar um dos ramos do arbusto, puxando-o com força, ousa perguntar-lhe, um tanto assarapantada: "O que está a fazer?". A resposta elucidou-a: "Estou a tirar um raminho para plantar lá no jardim. Não acha gira esta planta?". A embaixatriz, de facto, achava, mas duvidava muito que o plástico viesse a frutificar no jardim da esposa do nosso político.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

Invejoso, me declaro

Alimentava a ideia de que era, em absoluto, imune à inveja. Até há pouco, ao ler este texto de José Ferreira Fernandes. É insuportável pensar que há pessoas que escrevem assim e nós não. 

Ó Zé, assim não vale!

Sampaio da Nóvoa


Para além de afloramentos críticos na mesma área política, que não vêm aqui para o caso e têm uma génese diferente, foi muito curioso verificar as reações de certa direita trauliteira - na imprensa, nos blogues e, em especial, no "site" jornalístico montado e financiado para o ano eleitoral - , ao comentar o surgimento da hipótese de candidatura presidencial de António Sampaio da Nóvoa. 

Essa mesma direita, que tão "simpática" se revelara, dias antes, quando veio a terreiro Henrique Neto - antegozando a hipótese dela dividir a esquerda -, deu agora ares de ter recebido um golpe certeiro, ao ser confrontada com o nome do antigo reitor da Universidade de Lisboa, como possível representante da esquerda na corrida presidencial. Leiam-se os "tweets" de graça acanalhada, os "posts" depreciativos no bem identificado aparelho blogueiro de 2011, que já (re)aquece os motores da intriga, bem como o coro dos comentadores televisivos oficiosos, para se identificar bem esse nervosismo que apossou a área conservadora - sentimento que, significativamente, pretendem que se transfira para dentro do PS. Nem sequer à "novidade" dos trocadilhos patetas com o apelido do putativo candidato o país foi poupado, como já era de esperar.

A apressada "desconstrução" já começou, com a microscópica análise do currículo político de Sampaio da Nóvoa (nele tentando descobrir quaisquer passos "vermelhuscos", que possam vir a inquietar o eleitorado do centro), logo seguida pela esperada exegese irónica do seu discurso, especialidade de que duas ou três figuras calistas fazem hoje modo garantido de vida. Daqui a dias, a ação prosseguirá com a desqualificação individualizada dos apoiantes que começarem a emergir, se bem se conhece a lógica sequencial deste tipo de operações. 

Desconheço qual será o destino da possível candidatura de Sampaio da Nóvoa. Uma coisa é certa: se ela preocupa assim a direita, já tem "meio caminho andado".

domingo, abril 05, 2015

Memorabilia diplomatica (XXI) - Circuitos


Num fim-de-semana, durante uma reunião que teve lugar em Genebra, nos anos 80, um grupo de delegados alugou um carro para um passeio fora da cidade.

Íamos no caminho entre Genebra e Nyon, à borda do lago, quando a conversa derivou para o trajecto sinuoso da estrada em que rodávamos, através de localidades. Alguém referiu que certas partes do percurso eram mesmo bastante perigosas.

Aí, um dos membros do grupo comentou: "E pensarmos nós que se faz aqui uma prova automobilística de tão grande importância...".

Nenhum dos comparsas de viagem fazia a menor ideia de que havia uma prova automobilística que passava por ali, pelo que pensámos que o nosso interlocutor se estaria a referir a algum rally. E, claro, pretendemos ser esclarecidos sobre o evento a que se referia.

O nosso homem - porque era um homem... - assumiu então um tom de connaisseur e, com ar de quem nos ia esmagar com a humilhante exposição do nosso tão óbvio desconhecimento, avançou: "Então vocês não sabem que passam por aqui as '24 horas de Le Mans'"?

Um ou dois segundos, para "digestão" mental da revelação, mediaram entre a frase e o coro de gargalhadas dos restantes viajantes. O lago à volta do qual passeávamos era o lago Léman, e o nosso interlocutor estava plenamente convencido que era nas estradas à volta desse lago que se disputavam as "24 horas de Le Mans". Ora Le Mans é uma localidade francesa a sudoeste de Paris...

Até ao final da viagem o nosso homem embatucou...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sábado, abril 04, 2015

A esquerda e as eleições presidenciais

  • Quando todos pensavam que as eleições presidenciais iam ser um problema para a direita, é a esquerda que parece um pouco atrapalhada nas suas soluções.
  • As figuras de esquerda que, teoricamente, poderiam ganhar mais facilmente as eleições presidenciais parece não quererem arriscar a hipótese de terem de acrescentar aos seus belos currículos uma linha sobre uma candidatura falhada.
  • Para ganhar as eleições presidenciais, a esquerda não precisa de um candidato com forte imagem de esquerda: precisa de um candidato que, defendendo os seus valores essenciais, abra espaços nos eleitores do centro. 
  • Qualquer candidato oriundo da esquerda que chegue à segunda volta contará sempre com os votos de (quase) toda a esquerda, por muito pouco "progressista" que a sua imagem possa ser.
  • Pela primeira vez, a questão da aceitação de soluções governativas com inclusão de forças à esquerda do PS pode vir a ser um tema no caminho para as eleições presidenciais. O que o PS vier entretanto a dizer sobre isso vai condicionar o debate presidencial.
  • A esquerda ir-se-á sempre "balcanizar" em candidaturas, na primeira volta. Está na sua irreprimível natureza.
  • Se o PS tiver uma derrota (ou uma não vitória clara) nas eleições legislativas, a direita aproveitará o "boost" para promover o seu candidato. A contrario, se o PS conseguir um bom resultado nessas eleições, as hipóteses do candidato que lhe estiver mais próximo ganhar serão muito maiores. O eleitorado há muito que deixou o tempo "do cesto e dos ovos".

sexta-feira, abril 03, 2015

José Silva Lopes


José Silva Lopes, o economista que agora desapareceu, não era um homem tranquilo. Profundo conhecedor da realidade económica portuguesa, pouco dado a edulcorar os factos, notava-se que vivia inquieto com as fragilidades estruturais endémicas do país e que isso o angustiava. Se havia alguém no mundo económico cuja palavra eu gostasse de ouvir, mesmo que dele pontualmente discordasse, essa pessoa era Silva Lopes. E, em Portugal, se a independência tinha uma cara, essa cara era a sua. 

Sendo uma figura pública marcante nos anos da Revolução, só vim a conhecer melhor José Silva Lopes ao tempo em que ambos coincidimos em Londres, nos anos 90, quando ele era representante português junto do BERD. Ouvi-o então com grande proveito, por várias vezes, na serena e fundamentada análise que sempre fazia das questões económicas.

Já em Portugal, tivemos mais contacto ao tempo em que ele chefiava o Conselho Económico e Social. Nesse domínio, desenvolveu um trabalho muito profundo sobre a integração europeia de Portugal, tendo eu tido o ensejo de nele colaborar, a seu convite, como membro do governo do setor. Era um privilégio escutar a sua perceção informada sobre o processo de adesão, tanto mais que Silva Lopes fizera parte dos precursores desse movimento. 

Começa a ser um lugar-comum dizer das pessoas desaparecidas que fazem falta. Mas, sendo bem verdade, como o é para José Silva Lopes, trata-se apenas de uma constatação óbvia. 

Nós por lá


Vai para meio século, o jornalista Silva Costa escreveu um livro que me alertou para uma realidade que, de tão próxima, eu não tinha visto em perspetiva. O título era "Portugal ­ país macrocéfalo". 

Nesse tempo, ainda sob Salazar, não havia muitas obras que refletissem criticamente sobre os desequilíbrios económico­-sociais do país. A interessante recolha de Silva Costa, apoiada em dados incontestáveis, revelou-­me então o abafante centralismo lisboeta, em todo o seu esplendor. 

Veio entretanto o 25 de Abril, o país mudou, o municipalismo reforçou­-se, a Europa alterou-­nos a paisagem e deu um abanão nas mentalidades. Porém, o essencial da mensagem de Silva Costa permanece hoje válido. E isso continua a ser dramático para Portugal. 

Há dois países neste país. Por muito que se disfarce, há duas realidade que não se complementam, mesmo que o discurso político se obstine em criar essa ilusão. Façam uma viagem pelo interior, olhem para as zonas deprimidas, despovoadas, para o Portugal envelhecido que por ali se agrava, dia após dia. Não se deixem iludir pelas rotundas, pelos pavilhões multiusos ou pela rede viária, pelas muitas piscinas sem água, que o "ouro" ocasional de Bruxelas nos trouxe. Atente­-se nas estatísticas demográficas, da educação ou da saúde. 

Não vou ao ponto de considerar que há uma "conspiração" do litoral contra o interior, mas não tenho a menor dúvida de que, na racionalidade desenvolvimentista dominante, prevalece a perspetiva de que o país deve tender a estruturar uma grande "metrópole" litoral. Assumida ou não, essa ideia acarreta uma filosofia de verdadeira exclusão territorial, que dá por adquirido um destino apenas sofrível para as regiões do interior. E isso nem de longe será invertido pelas escassas majorações voluntaristas, em matéria de incentivos, que o futuro quadro comunitário prevê. 

Na ausência de um poder político de expressão regional ­ - por via da regionalização ou de uma descentralização com capacidade operativa -­, parece-me evidente que o mais importante foco mobilizador em que o interior se poderá apoiar são hoje as suas instituições de Ensino Superior. Discriminar positivamente essa rede é um passo essencial para o reforço da coesão territorial do país. Haverá real consciência política disto? 

Há dias, numa reunião no Nordeste transmontano, alguém agradecia o esforço de quantos se haviam deslocado de Lisboa. Para logo acrescentar: "em Lisboa, acham sempre que é mais curto irmos nós lá". A macrocefalia é também um estado de espírito. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 02, 2015

Manuel de Oliveira


Um grande cineasta põe fim ao seu mais longo "travelling": a vida

A saída de António Costa

Este post não é sobre quem estão a pensar! 

Quero deixar aqui uma palavra de forte simpatia ao diretor cessante do "Diário Económico", António Costa, que hoje abandona as funções que ocupava no jornal económico "cor-de-rosa". 

Escrevo no DE, a seu convite pessoal, desde novembro de 2013. Devo-lhe essa atenção, mas devo-lhe, essencialmente, a plena liberdade que me deu de nele opinar, muitas vezes a contraciclo da sua própria opinião, como ele sabia no momento em que me convidou.

A vida tem ciclos, o tempo profissional de António Costa vai agora ser outro. Desejo-lhe o maior sucesso pessoal. Vamo-nos encontrando por aí. Lisboa é apenas uma grande aldeia! 

Memorabilia diplomatica (XX) - Nomes

Era um encontro a quatro. O embaixador tinha-me encarregado de passar pelo hotel e trazer, para jantarem na sua residência, dois funcionários de umdepartamento do Estado português que tinham ido àquele país negociar um instrumento jurídico bilateral e que, dois dias decorridos e com a missão cumprida, se aprestavam para regressar a Portugal, no dia seguinte. À chegada, como era de bom tom, tinham passado pela embaixada a cumprimentar o embaixador e este retribuía agora a gentileza no termo da missão, convidando-os para uma refeição, que era também uma oportunidade para os "debriefrar" sobre o seu trabalho.

O chefe dessa pequena delegação era um funcionário já de uma certa idade (na minha memória, mas provavelmente era mais novo do que sou hoje), com forte experiência na matéria que tinha ido tratar, o que se revelava no modo competente e profundo como a abordava. O jantar correu animado, com o embaixador e o seu principal convidado a tomarem conta da conversa.

A certo passo, um de nós inquiriu sobre quanto tempo demoraria a entrar em vigor aquilo que ficara acordado. Notei que o homem foi apossado de um súbita irritação, que não nos era dirigida, mas que relevava, como logo viemos a constatar, da morosidade dos trâmites que, tradicionalmente, aquele tipo de assuntos sofria, nos corredores oficiais de Lisboa. Ouvimos então dele uma litania sobre a "via sacra" de pareceres e vistos, a expressão triste do país de burocratas que Portugal era.

"O senhor embaixador não imagina as más vontades que, por vezes, temos de defrontar", disse o técnico. E, para ser mais enfático e preciso, citou um determinado ministério, arriscando mesmo uma confidência: "Por exemplo, só ali, há um cretino, que tem lá um lugar importante, que há anos que me boicota tudo". E disse o nome do burocrata sabotador.

Olhei para o embaixador. Estava sereno. E, no entanto, o nome referido pelo homem vindo de Lisboa era precisamente o seu, nome aliás muito pouco comum, o que reduzia quase a zero a possibilidade de não haver uma relação de patentesco com a pessoa indicada. Mas o embaixador mantinha-se impassível, continuando a participar na conversa como se nada de estranho se tivesse passado.

O jantar terminou, sempre em excelente ambiente. Conduzi os dois visitantes ao hotel e, no caminho, perguntei ao líder da missão se acaso sabia o nome do embaixador.

"Ainda bem que me pergunta isso! É que não sei mesmo! Ia até pedir-lhe o nome dele para, logo que cheguemos a Lisboa, eu lhe enviar uma carta a agradecer toda a gentileza que teve para conisco. É uma simpatia, este seu embaixador!"

No segundo seguinte, quando lhe referi o apelido do embaixador, que coincidia com o do tal burocrata que ele tratara por "cretino", julguei que ia dar "uma coisa" ao nosso homem! Percebeu, logo aí, a imensidão da "gaffe" que cometera e que, na prática, seria difícil de retificar.

A situação - confesso, sem pudor - estava a dar-me algum gozo, mas não queria fazer transparecer esse meu divertimento, porque isso seria quase ofensivo, face à atrapalhação do homem, cuja noite presumi que já não iria ser muito sossegada. Que iria ele fazer? Pedir desculpa por carta? Telefonar ao embaixador? A dizer o quê? Até chegarmos ao hotel, entrou num embaraçado mutismo.

No dia seguinte, na embaixada, a vida correu normalmente. A certa altura, o embaixador entrou no meu gabinete, o que costumava fazer a meio de todas as manhãs. Comentou o jantar do dia anterior, sem denotar ter sido tocado pelo incidente. Pelo contrário, elogiou o chefe da delegação: "É um homem muito inteligente e competente".

Eu estava "em pulgas" para ver a sua reação à "gaffe", pelo que adiantei, um pouco a medo: "Foi um pouco desagradável aquela referência que o homem fez... Seria por acaso alguém da família do  senhor embaixador?"

Notei um ligeiro sorriso na cara do meu chefe. "Ele referia-se ao meu irmão, mas nem devia saber o meu nome, caso contrário, estou certo que não teria feito o comentário". Confirmei-lhe isso mesmo, referi-lhe a atrapalhação do homem no carro, quando percebera a dimensão da "argolada". Sem perder o sorriso, o embaixador retorquiu: "O meu irmão é um grande chato. O homem até deve ter razão na crítica que lhe faz". E, sem perder o sorriso, regressou ao seu gabinete.

quarta-feira, abril 01, 2015

Evasões


A convite do "Diário de Notícias", vou escrever - uma vez por mês - para a sua nova revista "Evasões", que tem uma edição semanal distribuída com o DN e o JN, uma crónica em torno de um restaurante, mas não só. Logo verão! 

Memorabilia diplomatica (XIX) - Das mentiras

O rapaz espreitou pela porta e o chefe de repartição lançou-lhe, do fundo da sala, num tom um tanto impaciente: "Entre! Entre! Ó Torquato!".

Voltando-se para o embaixador português na Mauritânia, sentado no sofá a seu lado, esclareceu: "O Torquato está cá há uns meses, é do último concurso de adidos". E olhou o adido: "O Torquato conhece o senhor embaixador Gameiro, que está em Nouakchott, não conhece?", com o Torquato a rumorar que sim.

O Torquato, embora simpático, era do género displicente e algo descuidado, gravata permanentemente descaída, um ar de quem anda ali por favor, a quem tanto se dá estar na carreira diplomática como viver à custa dos vastos rendimentos da família, cujo "social" lhe espreitava no nome e lhe permitia alguma subliminar cobertura de membros da hierarquia da casa. Entrara para a carreira quase por acaso, num bambúrrio do concurso. Era useiro e vezeiro em chegar tarde e a más horas ao serviço, passava o dia agarrado ao cigarro, a ler o jornal esticado num sofá, sendo de uma lentidão exasperante na execução das escassas tarefas de que era encarregado.

"Ó Torquato, você chegou a falar com o ministério dos Assuntos Sociais, sobre a questão do acordo sobre segurança social com a Mauritânia? Aqui o senhor embaixador Gameiro precisa de saber em que ponto o assunto está."

O adido, com um ar um tanto ausente, explicou que tinha telefonado duas vezes, que não tinha obtido qualquer informação sobre o estado do projeto de acordo, mas que ia ligar de novo.

"E com quem falou você lá?", inquiriu o chefe, já em tom levemente inquisitivo.

O Torquato embrulhou-se numas explicações menos convincentes, tão pouco plausíveis que delas quase se deduzia que, na realidade, não tinha mesmo tratado do assunto.

"Está bem, está bem! Vá lá ver isso já e diga-me alguma coisa à tarde. Sem falta!", com o rapaz a desaparecer, aliviado, pela porta.

O chefe explodiu: "Desculpa lá, pá! Este tipo é um mentiroso! Já não é a primeira vez que o apanho nestas patranhas", comentou, desalentado, o chefe. "Mandaram-mo aqui para a Repartição e agora não me consigo livrar dele."

O embaixador visitante tentou moderar a irritação do amigo: "Ó homem! Deixa lá! Também não tens a certeza se o rapaz mentiu. Até pode ter tentado telefonar..."

"Estás muito enganado! Este tipo é tão mentiroso que nem sequer se pode acreditar no contrário daquilo que ele diz..."

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

terça-feira, março 31, 2015

UK


Começou a campanha eleitoral no Reino Unido. Daqui a pouco mais de um mês, no dia 7 de maio, quinta-feira, dia normal de semana, os britânicos irão a votos. No dia seguinte, dia 8 de maio, sexta-feira, antes da sessão parlamentar, que começará impreterivelmente às 14 horas, o primeiro-ministro, nomeado pela raínha nessa manhã, estará na Câmara dos Comuns a apresentar, com todo o seu governo, o programa do novo executivo.

Em Portugal as coisas não são assim. Somos um país "rico" que se dá ao luxo de perder meses em campanhas eleitorais caríssimas, com tempos de antena que nos trarão, entre outros, o POUS e outros alienígenas de cujo nome logo nos esqueceremos, até ao próximo sufrágio.

Durante todos estes anos, à boca pequena, ouvimos muitos queixarem-se dos prazos eleitorais. O que suscita uma pergunta: o que é que, no decurso de uma década, fez o senhor presidente da República, tão vocal a pedir consensos, para convencer os partidos a aligeirar os calendários eleitorais? E que iniciativas tiveram levaram a cabo PSD e PS - os outros partidos são meros usufrutuários da visibilidade televisiva - para racionalizarem estes nossos atos eleitorais de extensão terceiro-mundista? Isto tem pouca importância? A indecisão que suspende o país por alguns meses tem mais efeitos deletérios na economia do país do que os feriados que tanto excitaram o governo e os seus mandantes da troika. 

É tão fácil!


De há uns meses para cá, tenho dado por mim a pensar que, em toda esta azáfama que por aí anda, a propósito das eleições presidenciais, há uma estranha confusão: nunca foi tão fácil escolher um presidente!

Os últimos dez anos terão instruído os portugueses quanto ao perfil para o futuro inquilino de Belém. Depois desta última década, a maioria dos votantes poderá ter já definido o “retrato robot” de um futuro chefe de Estado. Os leitores, maliciosos, perguntarão: pela negativa? Talvez, mas aprende-se às vezes mais com os erros do que com alguns exemplos.

Pertenço a um tempo que, em democracia, elegeu Ramalho Eanes com o encargo de vestir “à paisana” a chefia do Estado, depois de 50 anos de variadas fardas. E o país deve-lhe isso. Só votei no general “by default”, nunca lhe perdoei o PRD, mas reconheço o perfil ético que projeta.

Mário Soares, de quem comecei por não ser entusiasta, acabou por ser a minha alegria na política. Presidente com governos adversos, soube gerir magistralmente as tensões e proteger o regime, prestigiou o nome de Portugal, identificando-se pelo mundo como o verdadeiro presidente de abril. Olhando para os que hoje o detestam, fico ainda mais satisfeito em tê-lo ajudado a eleger.

Sou bastante suspeito em relação a Jorge Sampaio. Não sendo da sua geração etária, sinto-me da sua geração política, revejo-me nele como raramente me aconteceu com uma qualquer outra figura da nossa vida cívica, felicito-me por pertencer a um país que teve a sabedoria de lhe entregar os destinos da presidência por uma década.

Depois de Sampaio, transcorreram já dez anos. Anos que acabam por ser úteis, porque, em democracia, desde que saibamos aprender, todas as lições têm a sua importância, não obstante o seu preço.

O que queremos num futuro presidente, homem ou mulher?

Desde logo, queremos ver nele atitude e sentido democráticos, independência, respeito pelos partidos, uma observância inteligente da Constituição da República, não como um manual de instruções de um eletrodoméstico, mas como um permanente referencial cívico, uma agenda de valores, a moldura maior de um projeto de esperança. O presidente, respaldado na legitimidade unipessoal única do voto direto, tem de ser visto como uma espécie de “provedor” do povo. Como se dizia noutro tempo e noutro contexto, os portugueses merecem ter em Belém “um amigo”.

Um futuro presidente tem de ser alguém que nos orgulhemos de ter como imagem do país, pela sua cultura, pela estatura que nos eleva “lá fora”, pelo respeito que atrai para o nome de Portugal.

Quer-se também um presidente que, em todas as situações, seja a imagem da transparência, da lisura de processos, a ética feita pessoa – e assim reconhecida pelos outros. Alguém que não somatize ódios e frustrações, que não “jogue” para as escassas linhas que deixará na História, que não viva para “ter razão” mas que consiga efetivamente ser útil ao país e aos portugueses.

Um nome para reunir essas qualidades? Isso é um detalhe. O importante é consensualizar o perfil. Portugal não se pode dar ao luxo institucional de voltar a ter uma década como aquela que passou.       

(texto de um artigo que hoje publico no "Diário Económico")           

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...