segunda-feira, dezembro 30, 2019

Uma gaffe de Metro


Leio que o Metropolitano de Lisboa faz hoje 60 anos. E não consigo deixar de recordar a frase genial que o publicitário e poeta Alexandre O’Neill inventou, à época, para a publicidade do novo meio de transporte: “Vá de Metro, Satanás!”. A administração do Metro terá achado a expressão ousada de mais (temendo que a homofonia com “Vade retro, Satanás” não fosse óbvia para muitos) e o slogan passou à história da publicidade em Portugal. 

Verdade seja que a criatividade de O’Neill era transbordante e, anos mais tarde, os eletrodomésticos Bosh também não aceitaram um seu outro slogan, ainda mais ousado...

A razão do título deste texto é uma historieta passada no “Beach Hotel”, em Tripoli, na Líbia, no longínquo ano de 1976. 

Eu estava por lá integrado numa missão exploratória das oportunidades de negócio em matéria de construção civil e obras públicas, enviada pelo Estado português. Chefiava-a o engenheiro Guimarães Lobato, que dirigia a Partex e era administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, além de membro do Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes. A delegação portuguesa era composta por gente oriunda de vários setores, públicos e privados. 

(Da banca iam dois credenciados gestores, Seruca Salgado e Mascarenhas de Almeida, de quem me tornei amigo e com quem, passadas que foram quatro décadas, ainda faço uns almoços, a que damos o nome de “Libyan connection”)

Os serões no Beach Hotel, nessa Líbia de Kadhafi, eram uma imensa “seca”. A absoluta ausência de álcool tornava as conversas no bar, à volta de sumos, que recordo sinistros, no único fator de animação possível. 

Uma noite, veio à baila o Metropolitano de Lisboa. Eu tinha lido, dias antes, o anúncio de que várias estações tinham de ser alargadas, para poderem comportar composições com mais carruagens. E achava isso um escândalo!: “O Metro tem pouco mais de 15 anos! Não houve estudos sobre o crescimento potencial do tráfego? Teria sido muito mais económico ter logo feito estações mais compridas, contando com essa futura realidade, em lugar de estar a executar agora obras, com imenso incómodo para os passageiros!”. E terminei a minha análise com uma frase, que se pretendia apenas retórica: “Gostava muito de saber quem terá sido o irresponsável por aquela falta de planeamento!”

“É fácil”, respondeu-me Guimarães Lobato, “fui eu”. Senti-me à procura de um buraco, nem que fosse um túnel de metro, por onde me escapulir daquela imensa gaffe! Os meus colegas da delegação olharam para o jovem diplomata que eu então era com um sorriso, entre o sádico e o piedoso, com a curiosidade de saber onde é que aquela discussão ia dar.

Enquanto eu me desfazia em desculpas, Guimarães Lobato, que era um grande “senhor”, com quem vim a dar-me bem e com quem voltaria à Líbia no ano seguinte, riu-se imenso e deu uma qualquer explicação para o facto das estações terem sido preparadas apenas para três carruagens e não para as cinco ou seis que então se pretendia passar a utilizar. Imagino que, na minha atrapalhação conjuntural, devo ter sido dos primeiros a achar ”mais do que natural” o tal défice de planeamento...

Ainda hoje me recordo daquele embaraçante momento. E também do facto de não haver, por aquele bar, um simples whisky duplo que me ajudasse a levantar o ânimo!

Gastronomia e simpatia


O reputado economista João Abel de Freitas, com quem me recordo de ter debatido a Europa num longínquo painel, escreve, no “Jornal Económico” sobre a importância da gastronomia. E, de passagem, faz-me umas referências simpáticas. Pode ler-se aqui.

Faz também um desafio: por que não falo mais do “Raposo”, um restaurante lisboeta que referi algures, mas que ele presume ter sido através de “informação que lhe chegara mais de amigos”? Ora aqui é que ”a porca torce o rabo”! Eu nunca - repito, nunca! - falo de um restaurante sem lá ter ido.

E, ao “Raposo”, uma magnífica mesa na Passos Manuel (é verdade, como diz, que não me fica muito à mão), lembro-me de ter ido, creio, umas cinco vezes: a primeira vez há já muitos anos (mais de vinte, parece-me) e a segunda há sete ou oito. Já voltei depois (até em 2019), gosto e recomendo. Para que se saiba!

Aqui deixo os votos um excelente ano de 2020 a João Abel de Freitas, esperando encontrá-lo um destes dias, de garfo e faca, no “Raposo” e, até lá, nas páginas do “Jornal Económico”, onde coincide ambos sermos dedicados colaboradores.

“Fotografias”


Ontem à noite, em Vila Real, deu-me para fotografar alguns pormenores da cidade. Com um iPhone, todos podemos ser “fotógrafos”, mas com aspas...

Ao longo da minha vida, tive várias máquinas fotográficas. Algumas de qualidade. Aqui ou ali conseguia ”agarrar” uma imagem razoável, mas a maioria das vezes as coisas não saíam muito bem. Ou melhor, tinha uma “produção” média sofrível. Ainda pensei fazer um curso, mas cedo cheguei à conclusão de que fotografar não é apenas uma técnica, é uma arte. E, para as artes, ou se tem vocação - e eu, manifestamente, não tenho - ou então o melhor é deixar de ter quaisquer ambições. Vivo, aliás, muito bem sem elas.

Nos dias de hoje, com o iPhone ou o iPad, produzo imensas imagens, mas faço muito poucas “fotografias”...

Anúncio


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Se a Pastelaria Gomes precisasse de propaganda, utilizaria este espaço”
































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Um grande espaço em branco seguia-se ao texto do anúncio que, por décadas, pelo Natal, acompanhava as Boas Festas dadas pela Pastelaria Gomes aos seus clientes na “A Voz de Trás-os-Montes”. Desde há uns anos, alguém teve a ideia de substituir “propaganda” por “publicidade”. Modernices...


domingo, dezembro 29, 2019

Vila Real











Década?


É nestes anos complexos que acabam em nove que, pela enésima vez, é suscitada a magna questão de saber se a década acaba já no dia 31 de dezembro ou se teremos de esperar um ano mais. E há uns fabianos que se entretêm com isto. À falta de melhor, com certeza.

sábado, dezembro 28, 2019

Ásia


Em Vila Real, existem hoje oito restaurantes de cozinha asiática. Quem diria?!

Mudaram muito os hábitos e as modas, aqui por Trás-os-Montes.

Posso estar enganado, mas não deve haver um único restaurante transmontano na Ásia...

Charada

Nobokov, Kubrick e James Mason, se não estivessem mortos, estariam hoje de luto.

Juízos


É muito fácil espalhar indignação pelo sentido de uma sentença judicial, sem se conhecerem os fundamentos detalhados dessa decisão, apenas porque ela vai contra aquilo de que nos convencemos, através de “leads” de notícias que podem ser enganadores. 

Alguns juízes erram, mas é uma palermice pensar-se que os juízes erram por sistema. Populismo é também isso.

Europa-América


Ao final de quase 75 anos, a editora “Europa-América” parece estar à beira da falência, de acordo com as notícias de hoje.

Trata-se de uma editora histórica, com mais de 51 milhões de livros publicados, criada por Francisco Lyon de Castro, um democrata que ali deu frequente acolhimento a perseguidos pela ditadura. 

Foi o caso de Fernando Piteira Santos. Só sob pseudónimo de “Arthur Taylor” ele aí pôde publicar o seu livro “As grandes doutrinas económicas”.

sexta-feira, dezembro 27, 2019

Um peso na consciência


A imagem está ali bem à minha frente, numa fotografia de grupo da família, comigo com um ar enfadado e um imenso penso na cabeça. Terei, no máximo, uns três anos. O penso cobria uma ferida proveniente de uma queda numa escada, episódio de que ainda tenho uma vaga recordação, tal deve ter sido o traumatismo.

Reza a crónica familiar que, comigo a verter sangue e, imagino!, num imenso berreiro, terei sido levado, ali da rua Avelino Patena, onde então morávamos, para a vizinha Farmácia Baptista (fechou, de vez, há semanas, dizem-me agora), na rua Direita, em Vila Real. Na botica, em cujo balcão fui observado, terão chegado à conclusão de que o ferimento tinha uma dignidade que obrigava a uma ida à Casa de Saúde da Boavista, a umas escassas centenas de metros de distância. Contaram-me que fui aí atendido pelo Dr. Durão que, apiedado de mim (ou para não me ouvir gritar ainda mais), não recorreu a pôr pontos no lanho, talvez a razão pela qual ainda hoje a cicatriz tem a visível dimensão que tem.

Regressado a casa, os meus pais terão então notado que eu mantinha, teimosamente, um dos punhos sempre fechado. Curiosos, forçaram-me a abri-lo. E lá estava ele, na minha mão: a mais pequena das unidades de um estojo de madeira com os pesos que se usavam nas balanças com dois braços. Pelos vistos, eu achara graça ao objeto e surripiara o pequeno peso do balcão da farmácia, enquanto era observado, levara-o para a clínica, por entre toda a berraria, e ainda o mantinha ciosamente comigo, no fim desse atribulado dia.

Na manhã seguinte ao evento, uma “criada” foi, à Farmácia Baptista, devolver o peso “que o menino, por distração, tinha levado na véspera”. Por muitos anos, sempre que olhava o senhor Barreira, uma conhecida pessoa da cidade que geria aquela farmácia, sentia um (pequeno) peso na consciência.

Bela surpresa!


Foi uma bela surpresa encontrar, numa exposição sobre o Sport Clube de Vila Real, no Grémio Literário de Vila Real, este cartão de associado “número um” dessa inesquecível figura da cidade que foi o Fernando Cardoso ”Choco”, ao lado do texto em que, há meses, o recordei, aqui no meu blogue.

O que deixámos para trás...


... não é bem assim, mas é assim que muitas vezes dele nos recordamos!

O pelourinho e a sé


quinta-feira, dezembro 26, 2019

Lâmpadas


“Há já muito tempo que só vendemos LED, não sabia?!”. Então acabaram com as lâmpadas normais e ninguém me avisou?

Bom ambiente

Tenho a maior simpatia pelo ministro do Ambiente. E é precisamente por isso que acho que ele tem de medir melhor o peso das palavras: falar na hipótese de deslocação física de localidades é um tema a cuja imensa delicadeza um político não pode deixar de ser sensível

Outdoors


Não há regras que impeçam a poluição visual com cartazes. “outdoors” gigantes que desfeiam as cidades portuguesas? 

Em períodos eleitorais, vá que não vá. Mas será que nunca mais poderemos voltar a ver o Marquês ou a Praça de Espanha ou o Saldanha sem cartazes? Não se vê isto noutras capitais.

The Crown

Acho excelente a série “The Crown”, que passa na Netflix. Mas tem um imenso defeito: “cola-se” de tal forma à realidade que acaba por induzir o observador desprevenido à ideia de que aquilo é História, nomeadamente no modo como faz interagir entre si as diferentes personalidades. Às vezes, somos tentados a esquecer que estamos perante uma mera obra de ficção, construída por forma a tentar criar uma narrativa que ligue alguns factos reais conhecidos.

A reserva islandesa


Podia haver pessos mais forretas do que o meu amigo Álvaro. A mim, porém, nunca ninguém me as apresentou! Fui amigo do Álvaro até à sua morte e pude constatar que, à infindável generosidade da sua amizade, correspondia um cuidado extremo em não gastar um tostão a mais que ele visse como dispensável. Ou, se possível, gastar ainda menos. Tinha, aliás, um extraordinário livro onde anotou, por décadas, as suas mais ínfimas despesas, gorjetas incluídas - um documento que hoje seria precioso, para se aferir da evolução dos preços nesse período.

O Álvaro sempre me considerou um incorrigível perdulário, ficava furibundo quando me via incorrer numa despesa que ele via como supérflua, achava que eu comprava livros a mais, que gastava muito em restaurantes e que não escolhia as formas mais económicas de viajar. Eu, confesso, às vezes fazia certas compras diante dele com uma certa displicência ou deixava uma gorgeta mais redonda, unicamente para ver-lhe no olhar chocado a sua íntima reprovação. Provocar um forreta nunca me pareceu configurar um “crime”...

Tenho um mar de histórias da forretice do Álvaro, mas há uma que, ontem, em conversa com um conhecimento comum, me veio à memória.

Estávamos na segunda metade dos anos 80. Era um tempo em que eu vivia em Lisboa e, um dia, o Álvaro telefonou-me a perguntar se eu conhecia alguém na Islândia. 

Porque ele tinha estado em minha casa uns dias, quando vivi em Oslo, dera conta que era a embaixada portuguesa na Noruega que “cobria” a Islândia, pelo que achou provável que eu tivesse mantido um conhecimento qualquer por lá, não obstante terem passado já alguns anos.

De facto, eu tinha tido contacto com o cônsul honorário português em Reykjavik e disse-lho. Ficou imensamente satisfeito e passou a relatar-me o que pretendia. Ia à Islândia numa viagem que lhe fora oferecida por um jornal com o qual colaborava, mas estava a ter dificuldade em fazer a reserva do alojamento que pretendia.

Para evitar incomodar o nosso cônsul honorário por um assunto tão fútil, disse-lhe que tinha um amigo numa agência de viagens, em Lisboa, que seguramente lhe trataria da reserva. O Álvaro reagiu: “Isso também eu tenho! Mas as agências não conseguem marcar aquilo que eu quero”. 

Que diabo de alojamento tão especial era impossível de marcar a partir de Lisboa, num mundo onde essas coisas já se faziam, à distância, com toda a facilidade? O Álvaro pareceu-me um pouco embaraçado, ao confessar: “Bom, é que eu soube que as instalações do “Exército de Salvação” têm lá umas camaratas coletivas muito boas, com um preço que me ficava muito em conta. Se o nosso cônsul pudesse fazer um telefonemazito a marcar uns dias para mim, tudo seria mais fácil”.

Eu nem queria acreditar! Ficar no “Exército de Salvação” era um recurso quase para indigentes, disse-lhe. Ele não tinha idade nem estatuto para isso. Mas ele não se importava: o preço da dormida era muito “jeitoso”. “Eh, pá! Não sejas chato! Pede lá isso ao homem, não te custa nada”.

Tenho a maior relutância em incomodar os outros, só o fazendo por razões muito ponderosas. E aquela, manifestamente, não era uma delas. Assim, recusei liminarmente fazer o pedido ao nosso cônsul honorário. Nunca cheguei a saber onde é que o Álvaro se aboletou em Reykjavik. (Na internet, descobri agora uma elucidativa imagem de camarata “Salvation Army Guesthouse” em Reykjavik. As coisas a que o Álvaro recorria, quando se tratava de poupar dinheiro!)

O Álvaro ficou um pouco abespinhado comigo. Mas nós nunca nos zangávamos, porque a nossa amizade era à prova de tudo, mesmo da sua incomensurável forretice. Só a sua morte, há já mais de uma década, acabou com essa coisa deliciosa que eram as nossas intermináveis discussões. Este Natal, tive saudades do Álvaro!

quarta-feira, dezembro 25, 2019

A desculpa da estação


A bica da Consoada


Tinha fama de comunista, o que, no tempo da “outra senhora”, prenunciava vida problemática e sugeria cautelas na aproximação pessoal. O Lima afivelava, por regra, uma cara zangada com o mundo, que exibia à porta do café de que era proprietário, o Imperial, no fundo da rua Direita de Vila Real.

Na sociologia empírica que me habituei a fazer de cada um dos cafés da minha cidade natal, nunca consegui definir uma tipologia dos frequentadores do Imperial. As mesas pareciam-me sempre vazias e rumorava-se que isso se devia ao facto do Lima ter erupções de feitio que o levavam, algumas vezes, a fáceis atritos com a clientela.

Em contraste com este perfil iracundo, o Lima era um refinado artista. Na memória da cidade ficou a sua direção de uma “marcha luminosa” histórica, no início dos anos 60. Mas, mais do que isso, ficou a sua arte no desenho das passadeiras de flores que, por muito tempo, ornamentavam, numa data religiosa do ano, a rua onde eu vivia. Recordo bem a reverência com que as senhoras encarregadas da coleta das flores recebiam as instruções detalhadas do Lima, no tocante à cor desejável das pétalas, a serem colocadas nos vincos deixados no serrim pelos moldes de madeira, cuja execução ele próprio acompanhava num carpinteiro na rampa de S. Pedro.

Mas a glória maior do Lima era a noite de Consoada. Por muitos anos, o Imperial foi o único local aberto, nessa noite, na cidade, onde se podia tomar uma bica ou comprar tabaco. Nessas horas, o café regurgitava de clientes - só homens, claro - oriundos de todos os bairros. Ainda estou a ver ali o Lima, de sobretudo cinzento, ao fundo da sala, apreciando o movimento confortável da máquina registadora. O Imperial não tinha aquecimento, aquilo era um mar de samarras, debaixo de uma fumarada imensa. O balcão não tinha mãos a medir, com os Macieira 5 estrelas a encherem (mas só até à linha vermelha) uns balões de vidro já foscos do uso. Ironicamente, essa era a noite da seca vingança do Lima.

Vingança que passava a um estádio superior de perfídia quando se constatava que o Lima fechava as portas do café meia hora antes da missa do galo, ali ao lado, em S. Pedro. E isso obrigava quantos usavam o Imperial para queimar tempo, a terem de ficar na rua, a bater as botas e os dentes de frio, a menos que quisessem ir fazer companhia às beatas que sempre chegavam cedo, para marcar lugar antes da homilia do padre Abel. O Lima não devia ser herege, talvez nem sequer fosse comunista. Ele era, apenas, de uma cidade diferente.

segunda-feira, dezembro 23, 2019

Significados

“Ó mãe! O que é aquela coisa preta no sinal?”

Milagres da Mesa Dois





Há pouco, nos arquivos fotográficos que a quadra natalícia tem tendência a fazer emergir, descobri uma imagem que, em si mesma, é reveladora da abrangência do grupo da tertúlia da Mesa Dois do bar Procópio, animado por Nuno Brederode Santos.

Desde 2004 até 2016, com escassas interrupções, tomei a iniciativa de organizar jantares anuais dos frequentadores da Mesa Dois, normalmente no mês de dezembro. Foram, ao todo, dez jantaradas, todas bem divertidas. As presenças nestes repastos anuais chegaram a oscilar entre 70 a 80 pessoas, com um quase sempre impecável equilíbrio de género. 

O conceito de “frequentador” foi sempre muito arbitrário, porquanto algumas pessoas eram bastante refratárias a “marcar o ponto” na mesa ao longo do ano. Posso hoje revelar que a primeira lista dos “convocados” foi acordada entre mim e o Nuno Brederode Santos, figura tutelar e central da tertúlia. Ao longo do tempo, fui incluindo, com a anuência discreta ou implícita do Nuno, quem entendia que tinha “credenciais” para ser chamado ao grupo. É assim, acho eu, que funciona uma democracia eficaz...

Esta fotografia é do jantar de 2008, no saudoso restaurante Vírgula, onde dois desses repastos tiveram lugar.

À esquerda (por ironia lateralizante), está o Caetano da Cunha Reis, fundador da Juventude Centrista, figura histórica desses primeiros tempos de um CDS onde se acolheu muita direita lusa - e o Caetano nunca deixou, honra lhe seja, de se reivindicar orgulhosamente dela. À direita (honni soit...), estão Carlos Antunes e Isabel do Carmo, conhecidos militantes revolucionários, das BR ao PRP. 

Eu já tinha feito a malandrice de colocar o Caetano e o Carlos lado a lado, num anterior jantar no Manel, no Parque Mayer - e deram-se lindamente! Aqui fica, pela primeira vez divulgada, a prova fotográfica deste pontual “bloco lateral”, unido excecionalmente pelo espírito congregador da tertúlia da Mesa Dois, que o Nuno tão bem simbolizou. 

Ao Caetano e ao Carlos aproveito para deixar os meus amigos votos de Festas Felizes, seja o que cada um possa disso entender.

domingo, dezembro 22, 2019

Eu, hipocondríaco, me confesso


Abro a janela do meu quarto, aqui por Vila Real, e, em letras garrafais, vejo escrito o meu nome, o nome da minha familia. É uma farmácia, aberta todos os dias, a uns escassos metros, que, desde há meses, passei a ter por vizinha. 

Hipocondríaco como sou, este é um sonho de vida finalmente realizado. Neste aspeto, sei que convoco aqui a inveja do nosso presidente da República, também ele sempre pronto a opinar sobre medicamentos. Tal como ele, sempre que necessário, “receito” medicamentos, com elevado critério, a quem se queixa de alguma coisa e tem o bom-senso de seguir os meus conselhos. 

(Um dia, recordo-me, cheguei mesmo a dar dicas farmacopédicas a um médico amigo, que olhou para mim com uma cara espantada. Em defesa, perguntei-lhe: “Nunca mandaste bitaites sobre política internacional? Tenho o mesmo direito...”). 

Tenho contudo uma vantagem sobre o mais alto magistrado da nação: Marcelo (da mesma forma que Filipe II, no poema de Gedeão, não tinha um fecho-éclair) não se pode gabar de ter uma farmácia tão “à mão de semear” como a que eu tenho por aqui. Essa é que é essa!

Mas nem tudo são alegrias. O cerceamento progressivo das liberdades privadas, que alguns confundem com modernidade, matou-me, neste domínio, pequenos prazeres dos quais, há décadas atrás, podia usufruir. Eram tempos em que vivia no estrangeiro e, passando por Vila Real, visitava aquilo que foi a outra encarnação geográfica deste mesmo estabelecimento. 

Vou fazer uma confissão, porque o eventual cúmulo de delitos já prescreveu, para os presumíveis réus envolvidos: eu aproveitava o que sabia serem as horas mortas de venda da farmácia e, com a cumplicidade de um empregado, amigo e complacente, permitia-me o discreto acesso às prateleiras “lá de dentro”. Mas, antes, tinha de ter a prévia certeza de que a “dona da casa” estava fora, porque nunca, com ela presente, eu teria a “lata” de usar daquela liberalidade.

Ultrapassando as dificuldades de aquisição que ia tendo na estranja, onde havia essa picuinhice permanente que era a necessidade de receitas médicas para certos produtos, atulhava-me então de “uma coisa que está a sair muito para o estómago” ou de “um antibioticozinho que dá para quase tudo” ou de “um xarope de que dizem maravilhas” e muitas outras novas e velhas mezinhas para as várias maleitas potenciais de que poderia vir a sofrer, nesses destinos para onde me tinham mandado para bem da pátria. Apenas “coisas para o sono ou desse género” me estavam vedadas, sendo essa a “red line” deontológica do meu cúmplice.

Era então um deleite poder passear por aquelas prateleiras, adquirindo as novidades e reforçando os “clássicos”. Não é impunemente, sem este rico saldo de experiências, que se acaba uma vida profissional nas delícias do retalho...

Tomava tudo aquilo que comprava? Nem pensar! Quantas dezenas de caixas de medicamentos, que me custaram bons milhares escudos (era esse tempo!), não acabaram por ir, intocadas, para o lixo - tanto mais que faço parte do grupo de ingénuos, como sabe quem me conhece, que é incapaz de tomar um medicamento nem um minuto que seja depois do final do mês em que ele expira o seu prazo indicativo de validade. 

Esta também é uma caraterística do hipocondríaco “profissional”, o qual, para ser verdadeiramente feliz, tem de ter uma doençazita de vez em quando, sem o que deslegitimaria a sua mania. E eu, para minha “felicidade”, lá vou tendo algumas.

Tenho agora, como disse, a nova farmácia aqui ao lado. É uma sensação confortável, podem crer. Mas, nos dias de hoje, ela passou a ter para mim zonas inexpugnáveis, travadas por um balcão por onde rodam umas jovens senhoras de sorriso simpático, que só vaga e progressivamente me vão reconhecendo, mas que, imagino, serão escassamente sensíveis a eu poder vir a tirar qualquer vantagem da circunstância do meu nome coincidir com o da casa onde trabalham. Não me estou a ver, nos dias que correm, a ser autorizado a abrir aqueles “tesouros” que são as gavetas brancas da botica (usam-se muito, vejo eu, guloso, à distância, umas inclinadas), podendo escolher “o que me der na veneta”, seduzido pela exaltante literatura das bulas. Foram grandes tempos!

A liberdade já não é o que era!

Grande Corgo!


Vejo-o assim da minha varanda. É nestes dias que o Corgo se enche de brios e mostra que, quando pode e quer, se transforma no grande rio que é. Nem sempre é assim? Pois não, mas a culpa é da nascente, lá para Vila Pouca, que lhe é avara quase o ano todo, somada depois aos litros que lhe tiram em Zimão ou Tourencinho. Por estas horas, até o afluente Cabril, que lhe alimenta quanto pode o ego aquático, deve andar impante! O Douro, onde o Corgo desagua por fim em todo o seu esplendor, que se acautele! Ah! E depois não nos venham a culpar pelas cheias na Régua ou em Miragaia! Um grande rio é assim mesmo, não pode fugir ao grandioso do seu destino...

sábado, dezembro 21, 2019

“Crónicas”


Intervenção que fiz na sessão de lançamento do livro “Crónicas”, de Nuno Brederode Santos, editado pela Cotovia e pela Imprensa Nacional, na Câmara Municipal de Lisboa. Pode ler aqui.

sexta-feira, dezembro 20, 2019

Nuno Brederode Santos

Hoje, é lançado o livro com as crónicas que Nuno Brederode Santos publicou no Expresso, de 1974 a 2001.

Leiam este seu auto-retrato delicioso:


quinta-feira, dezembro 19, 2019

Que tempo!


Por que será que, sob este vento e esta chuva, me lembro tanto desta obra de Edgar P. Jacobs?

Carlos Moedas


A entrada de Carlos Moedas no Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian é uma excelente noticia.

Moedas foi um ótimo comissário europeu e seguramente trará à instituição uma rica e interessante vivência internacional. A Gulbenkian continua assim a provar que tem um apurado critério nas escolhas para a sua Administração.

A Gulbenkian não é “nossa”, é uma instituição independente, sendo que é precisamente essa capacidade de se manter independente, escapando a ser “infetada” pelos ciclos políticos, que tem sido, ao longo das suas décadas de existência, precisamente a chave do seu sucesso. E esse seu sucesso é, como hoje parece mais do que óbvio, do interesse coletivo do país.

quarta-feira, dezembro 18, 2019

RTP


Comunicado do Conselho Geral Independente

O Conselho Geral Independente da RTP (CGI) manifesta a sua profunda preocupação pela situação recentemente criada na empresa, que levou a que Direção de Informação da televisão da RTP tenha posto o seu lugar à disposição do Conselho de Administração.

O CGI considera que o trabalho desenvolvido pela Direção de Informação correspondeu às linhas de orientação estratégicas que, a seu tempo, o CGI definiu para o serviço público de informação televisiva.

Ao longo de 2019, a informação da RTP distinguiu-se pela independência, equilíbrio e neutralidade informativa. A preocupação com estes valores assumida pela Direção de Informação foi manifesta na exemplar cobertura das campanhas eleitorais de 2019.

Não compete ao CGI, nos termos da Lei da Televisão, pronunciar-se sobre “matérias que envolvam autonomia e responsabilidade editorial pela informação”, competência que “pertence, direta e exclusivamente, ao diretor de informação”. Cabe-lhe, todavia, assegurar que a informação da RTP se adequa, com rigor, às linhas de orientação estratégica que definiu, numa das quais se defende uma informação “independente de todo o tipo de poderes” e “tendo como base critérios editoriais rigorosos e eticamente irrepreensíveis, sem concessões ao populismo mediático”.

O CGI espera que o Conselho de Administração possa propor, com celeridade e no interesse da empresa, uma nova Direção de Informação que mantenha, no essencial, a orientação que a anterior Direção vinha a seguir, a qual correspondeu ao modelo de serviço público definido pela Lei da Televisão.

O CGI considera desejável que a nova direção de informação a ser empossada estruture, da forma mais adequada à execução rigorosa do seu projeto informativo, os mecanismos internos que garantam unidade e coerência da estrutura de informação, e evitem situações fortemente lesivas da RTP, como as que recentemente tiveram lugar.

Antes que chova...



Fernando Lemos


Quando conheci Fernando Lemos, numa noite em casa do nosso cônsul geral em S. Paulo, Luis Barreira de Sousa, ele já tinha 80 anos. Eu era mais um dos, seguramente muitos, embaixadores portugueses que tinham passado pelo Brasil, desde que ele aí se instalara, em 1953. Alguns terá conhecido, outros não. Durante um jantar, falámos alguma coisa, de conhecimentos comuns, mas, para mim, soube-me a pouco a conversa com aquela que era uma figura mítica de um português no mundo das artes plásticas no Brasil. Em especial, para muita gente, na fotografia, onde ele era verdadeiramente genial. Fernando Lemos estava então já em cadeira de rodas, mas era uma figura vivíssima, com aquele humor ácido que os velhos sábios tendem a adquirir, depois de terem visto muita coisa e muita gente. Não vou fazer-lhe aqui o currículo, porque os jornais se encarregarão disso. Mas fica uma nota do seu desaparecimento, aos 93 anos de uma vida bem vivida, muito brasileira mas, também, bastante mais próxima de Portugal do que a maioria dos seus pares das artes que se fixam para sempre no estrangeiro.

O arbóreo do Natal



Disseram-me, há dias, que tinha morrido. O nome não vem ao caso. Mas logo me surgiu à memória a última conversa que tive com ele, há uns bons anos, numa rua de Vila Real, por esta altura do Natal. 

Eu vinha dos lados da Gomes, pastelaria que é o lugar geométrico da cidade de quantos ali são do meu tempo. Avistei-o e tive, já perceberão porquê, uma reação de imediata precaução. É que estava perante um conhecido praticante da chamada conversa "arbórea".

Tenho o assunto, de há muito, bem estudado. A conversa "arbórea" é um estilo de expressão oral que se carateriza por uma deriva temática obsessiva e recorrente, sem pausas, que segue como os ramos de uma árvore, de onde surgem novas ramificações, as quais, por sua vez, se subdividem, quase sem fim. Fala de um assunto, passa a outro e é como as cerejas...

Lembro-me de que o meu interlocutor não desiludiu:

- Então, disseram-me que já saiu de Paris? Deixou-se de embaixadas, não é? Era tempo! Bela cidade, Paris! Sabe que tenho lá uma prima, que trabalha num banco. Nunca a encontrou? É de Justes, está casada com o Meireles, você é capaz de conhecer, é um homem da Régua que esteve num gabinete num governo do Soares. Você é amigo do Soares, não é? Como é que ele está de saúde? Tenho grande admiração por esse homem. Desde os tempos da oposição ao Salazar. Isso é que foram anos difíceis! Na oposição, trabalhei muito com o doutor Otílio, um grande democrata cá de Vila Real. Conheceu-o, não? Dizem que o filho dele faz agora um vinho muito bom, numa quinta que tem lá para o Douro. Por falar em Douro: você, que anda lá por Lisboa, sabe o que é que se passa com a Casa do Douro? É que não se percebe nada daquelas confusões! É como na política! Você acha que o Passos Coelho se aguenta? Olhe! Ainda ontem estive com o pai dele, uma jóia de pessoa, não desfazendo...

Um "arbóreo" raramente fecha o discurso, As mais das vezes, prossegue na sua imparável viagem pelas palavras, sem limites nem contenção. Só raros "arbóreos", no delírio quase intravável do seu curso verbal, regressam ao princípio de conversa.

Naquela tarde, com o frio do Marão a apertar, na esquina entre o ourives e o Euclides (só um vilarrealense sabe o que é isto), em frente ao Santoalha e ao antigo Rafael (já houve por ali um sinaleiro!), apenas o surgimento oportuno de outro conhecido me salvou. E o "arbóreo" lá desandou, em direção ao que, noutros tempos, foram o Zeca Martins e o Teixeira Pelado... 

Mas isto já parece conversa de “arbóreo”! Boas Festas para todos!

terça-feira, dezembro 17, 2019

As horas

Hoje, tive um dia infernal de trabalho. Amanhã, a coisa vai pelo mesmo caminho, se bem que quinta- feira vá ser bem pior. Quando me reformar, já prometi que vou ter tempo para tudo e mais alguma coisa. Nessa altura, tenho de arranjar alguma coisa para fazer, para me entreter. É que (dizem!) é muito mau parar!

segunda-feira, dezembro 16, 2019

Pedro Canavarro


Gosto de biografias. E bastante das que são assinadas na primeira pessoa, de autobiografias. Já me aconteceu, aliás, ler algumas biografias que mais não eram do que “autobiografias” envergonhadas, a que terceiros haviam dado o nome e a pena (agora, a tecla), para fingir “distância”.

Há dias, deparei, numa livraria, com uma autobiografia de Pedro Canavarro. Trata-se de um livro bem escrito, com notas muito pessoais, de alguém que resolveu “pôr as cartas na mesa”, com rara franqueza. Um retrato de vida corajoso, de uma figura pública que, passados os 80 anos, decidiu não deixar nada do que considerava importante por dizer. Fá-lo com aquilo que foi sempre a elegância pessoal que, ao longo dos anos, lhe colamos à imagem, aqueles que com ele nos cruzámos, em diversas circunstâncias. No meu caso, apenas circunstancialmente.

Este livro acaba por ser um retrato, interessante e culto, de um certo Portugal. Nele surgem muitas pessoas que conhecemos, onde está plasmada uma certa época, em especial de Lisboa, que muitos de nós vivemos, de perto ou de longe. E, mais do que isso: estão presentes as ideias e perceções dessa época, que tendemos a esquecer.

Confesso que já não me recordava de que Pedro Canavarro havia sido presidente do PRD (Partido Renovador Democrático), mas lembrava-me bem de o ver como parlamentar europeu e, antes disso, como comissário da “XVII”, a interessante exposição sobre os Descobrimentos que, nos anos 80, constituiu um importante marco em Portugal.

Em Bornes de Aguiar, perto das Pedras Salgadas, terra do meu avô materno, existe um Solar dos Canavarros, edifício de que, por coincidência, vim a encontrar um dia uma aguarela, na residência da nossa embaixada em Londres. Terá alguma ligação à família nortenha de que Pedro Canavarro nos fala no seu livro?

Nele também se contam histórias e impressões de algum mundo onde a vida o levou, com o Japão a ocupar um lugar muito especial, por aí ter tido uma experiência universitária, que veio a criar-lhe uma permanente relação afetiva com o país. Tudo escrito, como referi, sempre com elegância e equilíbrio, por vezes até com alguma candura, para o país onde vivemos. É este tipo de livros, com visões pessoais mas muito informadas e cultas, que, no tempo de um quotidiano apressado e de notas instantâneas e perecíveis, no rolo compressor dos factos e das sombras que eles deixam, nos pode ajudar a fixar um pouco melhor a história recente deste país. 

Confesso que li, com gosto, a autobiografia de Pedro Canavarro.

“The Irishman”



Foi há dias. A reunião de trabalho estava a acabar, já em cima da hora de jantar. Todos os presentes, exceto eu, já tinham visto o “The Irishman”. Adiantei, sem grande convicção: “Se calhar, vou ver o filme hoje à noite!”. Alguém alertou: “Mas olhe que tem três horas e vinte!”. Quando me fui deitar, deliciado, o relógio já passava das quatro da matina. Bendita Netflix!

domingo, dezembro 15, 2019

Dave Allen


Dave Allen foi um humorista irlandês. Fez “stand-up comedy” (o “up” é um pouco forçado, porque quase sempre estava sentado numa cadeira, com um whisky ao lado, às vezes a fumar) e “sketches” televisivos em que a religião era um seu tema regular e favorito, sempre tratado de uma forma que o tornaria muito polémico.

Tinha sido na televisão norueguesa (ou seria sueca?, porque, nos meus tempos de Oslo, só havia esses dois canais) que eu tinha visto, pela primeira vez, programas de Allen. Fiquei, para sempre, um seu imenso fã.

Uma década depois, quando vivia em Londres, dei conta de que ele fazia um espetáculo num teatro e, claro, não o perdi. Diverti-me imenso, mas bastante menos do que aconteceu ontem, quando a sorte da vida me fez encontrar e poder rever no YouTube precisamente esse “show” londrino de 1993. É que, sendo Allen irlandês, com um inglês cerrado, eu não tinha então “apanhado”, com o barulho da sala e os aplausos, muitos dos seus magníficos trocadilhos. Agora, no ecrã, foi tudo muito mais fácil - e bem mais divertido. Depois, foi como as cerejas: descobri na net mais alguns episódios de Allen fui “por ali adiante”, até de madrugada. Há muito que não ria com tanto gosto em frente a um ecrã. Dave Allen morreu em 2005.

Vejam aqui o fabuloso primeiro “contacto” de Allen com deus, nestes seis minutos: aqui.

Anna Karina


Toda a vida achei que Godard a não tinha merecido, mas a inveja cega-nos. Morreu ontem, em Paris.

Maldade natalícia


Para minha surpresa, acabo de saber que o azevinho é, tempos de hoje, uma espécie fortemente protegida, que é em absoluto proibido cortar esses arbustos e, por essa razão, o hábito antigo de haver ramos dessa planta verde, com pequenas bagas vermelhas (encarnadas, em algumas casas), a decorar as mesas de Natal, já terá quase desaparecido. Confesso que, nos últimos anos, tinha andado distraído, porque não tinha notado o fim dessa bela tradição decorativa.

Na minha infância, o azevinho não faltava nunca nos Natais. E o seu uso, que me recorde, pelo menos uma vez, excedeu a mera ornamentação das mesas.

Foi em Viana do Castelo, em casa da minha avó paterna. Eu teria uns seis ou sete anos. Numa Consoada, com todos os tios e primos, e por uma circunstância que não vem ao caso, estava também por lá uma miúda, basicamente da nossa idade, com quem tínhamos uma relação que não era familiar. Por uma qualquer razão, mas que posso assegurar que nada tinha a ver com a ausência do parentesco, eu e os meus primos, que basicamente andávamos pela mesma faixa etária dela, tínhamos criado uma forte embirração com o feitio da rapariga. Por muito que os adultos tentassem que a juntássemos às nossas diversões dessa noite - creio que tudo se resumia ao jogo do rapa e ao loto, com pinhões à mistura - a miúda foi mantida afastada do nosso convívio.

A certa altura da noite, contudo, tudo parecia ir mudar: um de nós chamou por ela. A voz vinha do fundo de uma escada que ligava dois dos andares da casa. A luz por ali visível, por essa altura, era estranhamente escassa. A miúda, decerto encantada por ter sido convocada, finalmente, ao convívio do grupo da sua idade, que se juntava no andar de baixo da casa, desceu confiante os degraus, imagino que quase a correr.

A certo passo, contudo, tropeçou numa sediela (aquele fio quase incolor que serve para a pesca) estrategicamente estendida na escada e, desculpem-me agora a expressão popular, “esbardalhou-se”, sem apelo nem agravo, no patamar no fundo dos degraus.

A maldade, de que hoje assumo a minha quota-parte, com um remorso que regressa a mais de seis décadas atrás, não se ficou, contudo, por aqui. É que esse patamar tinha sido “almofadado” por nós com um “tapete” de azevinho, o tal arbusto hoje tão protegido e na altura tão vulgar. E, como sabe bem quem conhece a planta, esta é caraterizada por ter uns extremos afiados cujo impacto na pele está longe de ser a coisa mais simpática que pode acontecer a alguém. Ainda hoje me soa nos ouvidos o berreiro da miúda, queixando-se de nós, aliás com toda a razão. Estou certo que, pelo menos alguns de nós, levámos o devido castigo, talvez atenuado pela santidade da noite.

Não conheço os cânones temporais dos pecados, mas acho que tudo já prescreveu...

... e logo se vai ver!

Ver aqui .