No primeiro semestre de 2000, Portugal teve a seu cargo a presidência da União Europeia. Ao tempo secretário de Estado dos Assuntos europeus, coube-me ser, simultaneamente, o negociador português na Conferência Intergovernamental que durante todo esse ano faria a revisão do Tratado de Amesterdão e, durante esse semestre, conduzir os respetivos trabalhos negociais. Pierre Moscovici, pela França, faria o segundo semestre e concluiria o processo que redundaria no Tratado de Nice.
Pela função de "honest broker" que me competia, enquanto Presidência, fui forçado, nesse período, a mostrar uma relativa neutralidade nas discussões, embora o interesse português nos colocasse naturalmente do lado dos países de menor dimensão populacional, no duro debate pela repartição do poder (em especial, números de votos e de deputados europeus) que estava então no seu auge.
Acabada a presidência portuguesa no final de junho, decidimos propor um diálogo (discreto) apenas entre os dez países de menor dimensão demográfica, com vista a tentar encontrar posições comuns que reforçassem a nossa "luta" contra o cinco "grandes" - Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha. Tinha dúvidas que esta ideia viesse a ser aceite. Porém, ainda que com algumas reticências, o processo avançou.
A projeção de interesses dentro da União Europeia não se faz necessariamente segundo a linha divisória "grandes/pequenos", porquanto, atento o seu estádio de desenvolvimento, alguns Estados de menor dimensão (como, por exemplo, os países do Benelux - Bélgica, Holanda e Luxemburgo) têm interesses mais próximos dos da Alemanha ou da França do que dos de países mais pobres, como Portugal ou a Grécia. Porém, o facto da França ter tentado ostensivamente promover um "esmagamento" do poder de voto desses países, suscitava-lhes grandes dificuldades de "apresentação" junto dos seus parlamentos e opiniões públicas. Não sem algum custo político, Portugal denunciara desde o início da presidência francesa essa tentativa e colocara mesmo a questão (de início, apenas com a Grécia ao lado) na agenda mediática europeia.
Os "dez" mais pequenos foram assim sensíveis à sugestão portuguesa para nos reunirmos "em segredo" (um segredo de Polichinelo, como é quase tudo na União). Organizei então, nessa segunda metade de 2000, duas reuniões dos negociadores dos "dez" na nossa Representação Permanente em Bruxelas e uma terceira na embaixada portuguesa num pequeno país da União. Outras se seguiram. Mas é desta reunião que quero falar.
Pedi ao nosso embaixador naquela capital para organizar um almoço de trabalho. Modesto, o meu colega disse-me que eu podia ocupar a sala de jantar, sem que ele próprio estivesse presente. Recusei essa sugestão, porquanto me lembrava bem do choque que entre nós provocara um histriónico ministro das Finanças do "cavaquismo", quando, em Washington, por mais de uma vez, tinha "sugerido" ao embaixador para se "ausentar" de almoços que pretendia organizar na nossa embaixada (mas que era o embaixador quem pagava do próprio seu bolso, como acontece com todas as refeições oferecidas nas residências diplomáticas, coisa que a opinião pública desconhece).
O meu colega presidiu assim comigo a esse almoço de trabalho. Foram duas horas muito intensas. A temática era tecnicamente árida, cheia de expressões especializadas, muitas siglas e menções crípticas a debates anteriores (muitos de nós andávamos há vários anos naquelas lides) e documentos que não estavam na mesa. Não era fácil ao embaixador seguir os detalhes da discussão que estávamos a ter. Notei que homem, do meio da mesa, acompanhava o debate como um árbitro de ténis-de-mesa segue um jogo, olhando para um lado e para o outro, com evidente (e compreensível) dificuldade em entender por completo a discussão, em todos os seus pormenores.
Foi, por isso, com dupla gratidão que, no final do almoço, lhe expressei o meu sincero reconhecimento pela sua generosidade. O meu colega, homem cordial e com sentido de humor, disse que tinha tido o maior gosto em ter podido ser útil aos nossos interesses. E acrescentou: "Eu sempre tive curiosidade em perceber estes ambientes negociais multilaterais, de que na minha vida profissional nunca tive a menor experiência. Mas isto, meu caro, deve ser uma imensa chatice! Você diverte-se?"
Rimo-nos os dois. O meu colega não tinha razão. As questões europeias são fascinantes. Mas, de facto, podem parecer, às vezes, de um "outro mundo". E se para ele, diplomata, eram tão estranhas e bizarras, imagine-se o que não serão para o cidadão comum!