domingo, setembro 10, 2017

A Europa "chata"


No primeiro semestre de 2000, Portugal teve a seu cargo a presidência da União Europeia. Ao tempo secretário de Estado dos Assuntos europeus, coube-me ser, simultaneamente, o negociador português na Conferência Intergovernamental que durante todo esse ano faria a revisão do Tratado de Amesterdão e, durante esse semestre, conduzir os respetivos trabalhos negociais. Pierre Moscovici, pela França, faria o segundo semestre e concluiria o processo que redundaria no Tratado de Nice.

Pela função de "honest broker" que me competia, enquanto Presidência, fui forçado, nesse período, a mostrar uma relativa neutralidade nas discussões, embora o interesse português nos colocasse naturalmente do lado dos países de menor dimensão populacional, no duro debate pela repartição do poder (em especial, números de votos e de deputados europeus) que estava então no seu auge.

Acabada a presidência portuguesa no final de junho, decidimos propor um diálogo (discreto) apenas entre os dez países de menor dimensão demográfica, com vista a tentar encontrar posições comuns que reforçassem a nossa "luta" contra o cinco "grandes" - Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha. Tinha dúvidas que esta ideia viesse a ser aceite. Porém, ainda que com algumas reticências, o processo avançou. 

A projeção de interesses dentro da União Europeia não se faz necessariamente segundo a linha divisória "grandes/pequenos", porquanto, atento o seu estádio de desenvolvimento, alguns Estados de menor dimensão (como, por exemplo, os países do Benelux - Bélgica, Holanda e Luxemburgo) têm interesses mais próximos dos da Alemanha ou da França do que dos de países mais pobres, como Portugal ou a Grécia. Porém, o facto da França ter tentado ostensivamente promover um "esmagamento" do poder de voto desses países, suscitava-lhes grandes dificuldades de "apresentação" junto dos seus parlamentos e opiniões públicas. Não sem algum custo político, Portugal denunciara desde o início da presidência francesa essa tentativa e colocara mesmo a questão (de início, apenas com a Grécia ao lado) na agenda mediática europeia.

Os "dez" mais pequenos foram assim sensíveis à sugestão portuguesa para nos reunirmos "em segredo" (um segredo de Polichinelo, como é quase tudo na União). Organizei então, nessa segunda metade de 2000, duas reuniões dos negociadores dos "dez" na nossa Representação Permanente em Bruxelas e uma terceira na embaixada portuguesa num pequeno país da União. Outras se seguiram. Mas é desta reunião que quero falar.

Pedi ao nosso embaixador naquela capital para organizar um almoço de trabalho. Modesto, o meu colega disse-me que eu podia ocupar a sala de jantar, sem que ele próprio estivesse presente. Recusei essa sugestão, porquanto me lembrava bem do choque que entre nós provocara um histriónico ministro das Finanças do "cavaquismo", quando, em Washington, por mais de uma vez, tinha "sugerido" ao embaixador para se "ausentar" de almoços que pretendia organizar na nossa embaixada (mas que era o embaixador quem pagava do próprio seu bolso, como acontece com todas as refeições oferecidas nas residências diplomáticas, coisa que a opinião pública desconhece).

O meu colega presidiu assim comigo a esse almoço de trabalho. Foram duas horas muito intensas. A temática era tecnicamente árida, cheia de expressões especializadas, muitas siglas e menções crípticas a debates anteriores (muitos de nós andávamos há vários anos naquelas lides) e documentos que não estavam na mesa. Não era fácil ao embaixador seguir os detalhes da discussão que estávamos a ter. Notei que homem, do meio da mesa, acompanhava o debate como um árbitro de ténis-de-mesa segue um jogo, olhando para um lado e para o outro, com evidente (e compreensível) dificuldade em entender por completo a discussão, em todos os seus pormenores.

Foi, por isso, com dupla gratidão que, no final do almoço, lhe expressei o meu sincero reconhecimento pela sua generosidade. O meu colega, homem cordial e com sentido de humor, disse que tinha tido o maior gosto em ter podido ser útil aos nossos interesses. E acrescentou: "Eu sempre tive curiosidade em perceber estes ambientes negociais multilaterais, de que na minha vida profissional nunca tive a menor experiência. Mas isto, meu caro, deve ser uma imensa chatice! Você diverte-se?"

Rimo-nos os dois. O meu colega não tinha razão. As questões europeias são fascinantes. Mas, de facto, podem parecer, às vezes, de um "outro mundo". E se para ele, diplomata, eram tão estranhas e bizarras, imagine-se o que não serão para o cidadão comum!

sábado, setembro 09, 2017

Hóquei (escrevo assim)


Há dias, numa conversa em noite quente, em Ponta Delgada, eu e um amigo que me acompanhava demo-nos conta de que, sem então nos conhecermos, havíamos estado juntos no "galinheiro" do Palácio de Cristal, no Porto, na noite de 4 de maio de 1968, a vibrar com a vitória de Portugal sobre a Espanha, em hóquei em patins, numa final do campeonato do mundo. 

Ele foi um conceituado praticante da modalidade, eu era apenas um aficionado de bancada e de leitura de imprensa desportiva, além de seguidor e sofredor radiofónico regular durante os relatos vivos que Artur Agostinho nos fazia desse mítico pavilhão desportivo de Montreux (onde um dia me senti na obrigação de ir, numa romagem de nostalgia).

Portugal venceu então, nesse outro maio de 1968(!), "a nossa vizinha Espanha" (expressão do jornalismo sem imaginação) por 2-0. 

O que fará com que, nos dias de hoje, o meu entusiasmo com estas finais seja bem menor? 

À hora de almoço de hoje, quando, aos penalties, "nuestros hermanos" (outra banalidade ritual na imprensa) nos derrotaram em mais uma final mundial, desta vez na China, tive pena (claro!), mas isso não afetou o apetite com que continuei a comer o belo bacalhau que o meu amigo João apresenta na sua "Imperial de Campo de Ourique".

Naquele outro tempo, eu conhecia de cor até a composição da equipa espanhola (como tinha sabido outras, no passado). Hoje, não sei o nome de nenhum jogador português. Como diria, com a sua preverbial expressividade, Donald Trump: "sad!"

O bacalhau do "Progresso"


Diz a "Time Out" que o "Progresso", o café portuense entre a praça Carlos Alberto e o largo do Moínho de Vento, sofreu uma nova remodelação, estando agora centrado na área dos comes-e-bebes. De uma das últimas vezes que por lá passei, a especialidade da casa eram panquecas.

O "Progresso" é um marco da riquíssima geografia cultural dos cafés no Porto. Ao tempo em que me passeei pelas engenharias da Universidade do Porto, aquele café não fazia parte dos nossos roteiros de pouso, porquanto na sua frequência se contavam muitos mais professores "graves" do que aqueles que escolhiam o vizinho "Piolho".

O "Progresso" foi, ao que julgo, dos últimos lugares a ceder à invasão do "cimbalino", mantendo um café de saco que se tornou lendário. A razão por que falo de bacalhau no título deste post é porque subsistiu, por décadas, o mito (ou a realidade?) de que o segredo da qualidade do café de saco do "Progresso" advinha dos rabos de bacalhau que eram colocados no interior na bela máquina que ornamentava a sala.

O apelo de Lisboa


Durante várias semanas, no seu imperdível "folhetim" de verão, em que recupera uma tradição vetusta do "Diário de Notícias", Ferreira Fernandes ficcionou a possibilidade da sede das Nações Unidas ser transferida para Lisboa. A trama baseava-se no interesse imobiliário de Trump pelo terreno nova-iorquino da "Turtle Bay", somado à vontade de Macron de dar à ONU uma centralidade europeia. 

Hoje, na sua conta de Twitter, um dos mais conhecidos jornalistas das coisas europeias, Jean Quatremer, "lança" a ideia de transferir as instituições europeias para Portugal, para um "país normal (belo, de clima são, limpo)". Sabemos o "sucesso" que a ideia vai ter, mas não deixa de ter graça ver um "furioso" europeísta - ainda por cima, francês - propagar a excelência da capital portuguesa.

Factor de primeira


Há dias, entrei numa estação de caminho de ferro de uma cidade de província, daquelas onde o comboio passa "quando o rei faz anos". Não se via vivalma. Fui andando pela plataforma até encontrar uma porta aberta. Estava um tipo lá dentro, de t-shirt e jeans, a quem perguntei: "Sabe dizer-me onde posso encontrar o chefe da estação?". (Por razão que não vem ao caso, eu tinha necessidade de falar com o chefe da estação). O homem respondeu-me: "Sou eu". 

Ele deve ter percebido que eu estava à espera de "outra coisa". Claro que já não aguardava um cavalheiro de fato escuro, gola vermelha, com um pau de bandeira enrolado na mão (e apito pendurado do bolso). Mas esperava que fosse alguém vestido de forma identificável para aquele lugar. Mas, se calhar, as coisas hoje são mesmo assim.

O formalismo dos caminhos de ferro é lendário. Um chefe de estação, no passado, era uma figura com algum destaque nas localidades. E a hierarquia da carreira ferroviária era algo de relevante à escala nacional.

O meu pai costumava contar uma história da sua infância, passada em 1918 ou 1919 Perto da casa da minha avó, em Viana do Castelo, vivia um casal. O cavalheiro era funcionário dos caminhos de ferro. Tratava-se de um homem "grave", de fortes bigodaças, que se passeava com a esposa aos finais de tarde, em passo pausado, pelas ruas da cidade. O meu pai ouvira dizer que o homem o homem era "Factor de primeira", um lugar da hierarquia ferroviária. E a designação do cargo impressionava-o. 

Um dia, numa conversa lá por casa, veio à baila uma figura importante da cidade, o governador civil. O seu poder terá sido mencionado, em contraste com o de outro cargo qualquer. O miúdo de oito ou nove anos que era o meu pai, colocou então à minha avó uma questão que, para sempre, ficou para o anedotário sentimental da família: "Um Governador civil manda mais ou menos que um Factor de primeira?"

sexta-feira, setembro 08, 2017

A vizinhança coreana


Em 2003, fui a Seul, a convite da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), co-presidir e intervir numa conferência sobre a possibilidade das chamadas “medidas geradoras de confiança e segurança”, um conceito muito em voga desde a “détente”, virem a ser aplicadas às tensões político-militares que, desde os anos 50, afetam a península coreana.

Logo no primeiro dia, fui convidado para almoçar por um amigo que era assessor diplomático do presidente da Coreia do Sul. Tínhamo-nos conhecido em Nova Iorque, quando ele era chefe de gabinete do presidente da Assembleia Geral da ONU e eu dirigia a respetiva Comissão de Economia e Finanças. Chama-se Ban Ki Moon e foi depois o secretário-geral da ONU que antecedeu António Guterres.

Eu estava longe de ser um especialista naquela área geopolítica, pelo que a interessante conversa com Ban Ki Moon, além de muitas outras coisas, teve a virtualidade de me alertar para a importância de uma realidade que nem sempre é tida em devida conta no conflito coreano: as posições da República da Coreia e dos Estados Unidos não devem ser dadas necessariamente como homólogas. Há fortes divergências táticas e o facto de Seul contar com os EUA como “escudo protetor” face a Pyongyang não garante uma atitude comum nos passos a dar face ao Norte.

Vivia-se, por essa época, o tempo, para alguns esperançoso, dos chamados “Six-Party talks”, um processo de diálogo político envolvendo as duas Coreias, os EUA, a China, a Rússia e o Japão. O futuro viria a revelar que o processo não iria ter qualquer sucesso. 

Ao observar a pressão que a América exerce hoje sobre a China, não pude deixar de lembrar-me também daquilo que um dia, numa outra conferência, dessa vez em Tóquio, ouvi ao presidente de um poderoso “think tank” chinês. Dizia-me ele que o Ocidente era “demasiado simpático” ao considerar que Pequim tinha um forte poder de influência sobre a Coreia do Norte: “A nossa capacidade de influência acaba onde o orgulho dos nossos vizinhos pode ficar ferido. A partir daí é ingerência e isso tem um preço”. É claro que esta não é toda a verdade: a China detestaria ver a peninsula sob um regime hostil e na esfera americana.

Para tornar tudo mais complexo, há também que contar que o Japão não tem as posições americanas face à Coreia do Norte como sacrossantas. Tóquio sabe, da História, que é trágico ficar preso a uma estratégia alheia na relação com a sua periferia. É a única certeza é que os vizinhos estarão sempre nos caminhos do seu futuro.

A Coreia do Norte sabe tudo isto. E sabe bem o que quer: ser um poder nuclear, ter essa arma que equipara, pelo terror que infunde, quem a possui. Não quer ter o destino do Irão, que, por ora, ficou na soleira do poder nuclear. Quer passar a ter acesso a esse “patamar” estratégico (onde estão Israel, a Índia ou o Paquistão), por forma obter um argumento negocial definitivo.

quinta-feira, setembro 07, 2017

O dedalzinho


Bateram à porta do meu quarto, no "Beach Hotel", de Tripoli, naquele ano de 1976. Pensei que fosse um dos meus companheiros de viagem. "Sim?!", perguntei. "Podia abrir, por favor?". A voz não era conhecida.

Eu era o representante do MNE num grupo técnico interministerial que o governo português decidira enviar à Líbia, para explorar a possibilidade das nossas empresas de construção civil e obras públicas virem a operar naquele país. A ideia tinha sido suscitada por uma delegação líbia a um congresso do PS português, nesse tempo em que Kadhafi tinha ainda uma imagem aceitável na comunidade internacional, poucos anos decorridos depois do derrube do regime do rei Idriss.

Mas de quem seria a voz? Um português na Líbia? Não era Cartaxo e Trindade, um jornalista que era então o "homem de mão" dos líbios em Lisboa, responsável pela edição portuguesa do Livro Verde de Kadhafi, que já tínhamos cruzado na véspera naquele hotel que, num passado recente, era exclusivamente ocupado pelos americanos, a quem a Líbia tinha dado ordem de partida da base militar próxima.

Abri a porta e vi um homem na casa dos trinta e tal anos, que se me apresentou. Disse-me estar a trabalhar desde há quatro meses na Líbia, numa empresa canadiana, já não recordo o setor. O quarto era pequeno, não o mandei entrar, ficando nós a conversar, em voz baixa, no corredor. Disse-me ter encontrado no hall um dos meus colegas de missão. 

Eu continuava sem perceber a razão pela qual o homem cuidara em saber o número do meu quarto, onde me fora procurar, já bem depois do jantar. A conversa andava "às voltas", quando eu arranjei coragem para dizer algo como isto: "Mas precisa de alguma coisa da minha parte?". Vi que o homem hesitava, olhava em volta, e que baixava ainda mais a voz: "Um dos seus colegas disse-me uma coisa: que o meu amigo trouxe algum alcool".

Fiquei furibundo! Era estritamente proibido levar alcool para a Líbia mas eu, num gesto um tanto inconsciente, tinha decidido levar comigo um pequeno frasco metálico com algum whisky. Era uma quantidade muito pequena e, com alguma reserva, já "cedera" uns "golos" a colegas da delegação. Mas era completamente incrível que um deles tivesse dito isso a um estranho! Percebi logo quem tinha revelado o facto e, inclusivamente, dito ao homem o número do meu quarto. Mas a minha fúria começou a desvanecer-se quando o homem me disse: "Quando mencionei ao seu colega que o alcool era o que mais me faltava aqui, ele disse-me que o meu amigo talvez me pudesse "desenrascar", para "matar saudades". Se me pudesse dar um dedalzinho de alcool, ficava-lhe muito agradecido..."

Mandei entrar o homem para o quarto, dei-lhe duas medidas de whisky, fiquei com a sensação de que uma lágrima lhe correu pelo rosto, mas deve ter sido impressão minha...

quarta-feira, setembro 06, 2017

Terceira


Quanta História convoca a ilha Terceira! Por aqui se escreveram páginas gloriosas na luta liberal contra o obscurantismo do "antigo regime". Aqui foram detidos, durante a ditadura, muitos republicanos e anti-salazaristas, alguns envolvidos em bravas tentativas revolucionárias pela liberdade. Aqui estavam, no 25 de abril, por decisão disciplinar, Melo Antunes e Vasco Lourenço, que vieram a ser pilares da Revolução. E por esta ilha ficam também as Lajes, eixo da relação estratégica luso-americana, uma base que também foi palco do triste momento foi a "cimeira" que, em 2003, antecedeu a criminosa invasão do Iraque.

terça-feira, setembro 05, 2017

A Mornaça


Há dias, aqui nos Açores, perguntei uma simpática guia se ela tinha ouvido falar da "Mornaça".

O tempo estava pesado, quente e húmido, qual "Noite de Iguana", embora sem as amenidades do filme. O conceito de "mornaça" é tipicamente açoriano e refere-se a esse ambiente "misty". Com naturalidade, ela julgou que era a isso que eu me estava a referir. Conhecia, claro, a expressão açoreana, mas nunca tinha ouvido falar de um livro de Ferro Alves com esse nome. E era essa a minha questão.

Ferro Alves foi um revolucionário republicano que, enquanto desterrado nos Açores, interveio, em 1931, naquela que pretendia ser uma revolta nacional contra a ditadura, mas que, em termos práticos. acabou por ficar confinada à famosa e frustrada Revolta da Madeira. O livro é de 1935, tem a bela capa da imagem e é hoje uma raridade bibliográfica (tenho um exemplar algures). No fundo, é uma espécie de relato de uma revolução fracassada, tendo como curiosidade principal os telegramas eufóricos, relatando êxitos que não tiveram lugar, com que Ferro Alves debalde procurou "animar as tropas" dos infelizes revoltosos.

segunda-feira, setembro 04, 2017

Marcello Mathias


Leiam, sem preconceitos, esta excelente entrevista do meu colega embaixador Marcello Duarte Mathias, dada a essa ótima jornalista que é Isabel Lucas.

(Aqui, no meio do Atlântico, só hoje dei pela publicação deste texto, no "Público")

Escrevi "sem preconceitos" porque sei que alguns poderão discordar de algumas das posições deste magnífico escritor e brilhante intelectual. Mas o leitor só ganha em ultrapassar essa limitação.

Marcello Mathias é, na minha opinião, uma das pessoas que atualmente melhor escreve em língua portuguesa. Pensa o país ao seu modo muito pessoal, assume-se como um impenitente pessimista, talvez porque lhe fugiu do futuro sonhado um certo Portugal em que investiu emocionalmente a sua vida, desacreditando hoje também desta Europa que por aí anda. Ambos comungamos de uma certa visão de serviço ao país, bem como da preservação do interesse nacional. É talvez por isso que nos damos bem.

Bela entrevista, caro Marcello!

Açoreana


Ontem, numa vilória dos Açores, senti qualquer coisa de íntimo ao olhar esta placa de companhia de seguros. É que a "Açoreana" diz alguma coisa à minha juventude.

Em Viana do Castelo, no início dos anos 60 do século passado, tinha um tio que era correspondente da "Açoreana". No seu escritório de solicitador encartado, entre outras atividades, fazia-se, nos primeiros dias do mês, a coleta dos pagamentos desses seguros. 

Havia para tal um funcionário que, atrás de um balcão, recolhia o dinheiro e emitia os recibos. Era o "Pêssego", nome posto pelo meu tio e por que ficou conhecido na intimidade jocosa da família, dado que era oriundo da localidade de Pessegueiro, na margem esquerda da Ribeira Lima.

O "Pêssego" era, ao que me lembro, um "senhorito" aperaltado, com uma "gravitas" um tanto irritante, para os seus 18 ou 19 anos. Nunca engraçámos muito um com o outro, mas imagino que algumas culpas possam ter cabido à minha atitude pouco respeitadora do seu esforço para se mostrar precocemente "grave". É que o "Pêssego" falava de forma pausada, afetada mesmo. Mas era muito bem tratado: ao final da sua função diária, ao bater das cinco e meia, subia para a casa da nossa família e tomava um valente lanche preparado pela nossa tia Zé. Sobre se o "Pêssego" mantinha ou não uma paixão secreta pela minha bela prima, filha do seu patrão, a doutrina da memória familiar continua a dividir-se.

Um dia, soube-se que o "Pêssego" adoeceu. Foi coisa sem gravidade e por pouco tempo. Eu estava ali por Viana no meu mês de férias, tinha 13 ou 14 anos, e ao ver o impasse criado pela súbita ausência do empregado, disse da minha disponibilidade para o substituir durante as tardes, nessa "magna" tarefa. Recordo-me da leve hesitação do meu tio em atribuir-me o encargo. Mas, para minha surpresa, talvez para testar o meu sentido juvenil de responsabilidade, lá me foi passada a tarefa de recolher o dinheiro da "Açoreana" e entregar os recibos recebidos da companhia. Ainda hoje lembro o "peso" com que aceitei a tarefa - porque implicava dinheiro vivo e isso era coisa séria - e o zelo com que, por esses escassos dias, me dediquei à função, no escritório do meu tio. Nunca soube se o "Pêssego" apreciou a valorosa substituição.

Há pouco, ao olhar a placa na imagem, senti que a "Açoreana" ainda hoje pode dizer de mim a clássica expressão da senhora Thatcher quando designava um amigo político mais fiel: "He is one of us"! 

domingo, setembro 03, 2017

O amor à açoreana


Margarida Vitória Borges de Sousa Jácome Correia (1919-1996) é um nome de uma curiosíssima figura açoreana que publicou um livro de memórias ("confissões") com o título bizarro de "Amores da cadela 'pura' ", assinado sob o nome de Margarida Victória.

Mulher muito bonita e dotada de um temperamento altamente fogoso ("to say the least"), teve uma vida hiper-aventurosa e de luxo, que a levou por diversos lugares mundo e por braços de variados amantes. O escritor Vitorino Nemésio, no final da sua vida, haveria de se render por completo aos encantos da senhora, com a qual se envolveu romanticamente. Foi ela quem inspirou o período erótico da sua escrita na obra "Cadernos da caligraphia", na qual a dama amada surge sob vários e sugestivos nomes.

Ontem, em Ponta Delgada, debalde procurei o livro de Margarida Victória, que tencionava oferecer. "Está esgotado", ouvi em toda a parte. É pena! Os Açores atuais mereciam conhecer esta história de vida.

sábado, setembro 02, 2017

Pistoleiro


Há uma figura pitoresca, de poupa armada e ar grave, que tem uma fixação recorrente pela minha pessoa. Talvez porque um dia considerei risíveis as suas pretensões políticas, feitas de uma patusca agenda justicialista - criador de suspeições nunca provadas, assentes em ridículas teorias conspirativas -, o fulano criou-me um ódio persistente que, de quando em vez, renasce nas várias plataformas em que esforçadamente se desdobra, para gáudio dos seus prosélitos, recrutados entre os furibundos comentadores de caixas de comentários. 

Ontem, depois do anúncio da minha indigitação para um cargo "pro bono" na RTP, comentei, já divertido, com um amigo: "Quantas horas demorará o tipo a reagir?" Foram 12 horas! Coitado, está a perder a mão! Como pistoleiro, devia ser mais rápido... 

sexta-feira, setembro 01, 2017

RTP


Foi com grande gosto que aceitei o convite do governo para integrar o Conselho Geral Independente que tem por missão supervisionar o serviço público de televisão e de radiodifusão.

Se a minha indigitação for aprovada pela Assembleia da República, exercerei essa função sem o menor encargo financeiro para o Estado.

Abade de Priscos com tripas?


Ontem, no aeroporto de Lisboa, numa loja com livros (livraria é outra coisa), ouvia-se, bem alto, Toni de Matos. Não sei o que pensavam os estrangeiros daquele estranho « musak » com palavras, por certo o levam à conta de toada melancólica mediterrânica, pelo típico gemido vocálico. Logo a seguir, no altifalante da loja, num « medley » improvável, surgiu Keith Jarret. Como entretanto saí, não esperei para ver se se seguia Quim Barreiros – mas já ninguém se surpreenderia. É que, em matéria de oferta turística, hoje já vale tudo ! 

Somos, de há muito, um país turístico. O Algarve (com a Madeira noutro registo) foi a primeira montra do sol & mar para « camones » e míticas suecas. Por anos, fado, Lisboa e uma vida simplória (« so typical ! »), eram o seu complemento. Com a procura global de cenários alternativos, olhou-se o Douro para além do vinho do Porto. Os saldos da Ryanair revelaram a graça única da capital do Norte. Entretanto, a Costa Vicentina passou também a ser « bem », com os Açores a assumirem-se como a última “descoberta da pólvora”. E há, claro, as novas rotas judaicas, transformadas em maná comercial pela diáspora israelita, com que nos absolvemos das judiarias que lhes fizemos.

O tempo transformou o Algarve num espaço para ressacas de pifos nórdicos e retiro de idosos à cata de sol e impostos baixos. A Europa passou a dar mais atenção a outras zonas de um país de gente acolhedora, com uma invejável rede viária, alimentação excelente e às vezes barata (mas já aprendemos, como o restaurador gatuno da Baixa lisboeta provou!), ruas onde a insegurança não passa em regra do vigaristote de mão-baixa. Não fora a cupidez do patobravismo autarquicamente protegido e a costa portuguesa poderia ser hoje um paraíso quase sem paralelo na Europa.

O turismo é uma imensa riqueza que temos e faz jus à hospitalidade que está no nosso DNA. É muito importante economicamente, abre-nos ao mundo e apenas há que saber regulá-lo com bom senso e bom-gosto, para que, pelo excesso da sua pressão no ambiente urbano, não venha a gerar uma “turismofobia”, como noutros lugares já ocorreu.

E volto ao Toni de Matos (cuja voz muito aprecio, aliás). Sabemos que a oferta ao turista daquilo que é português não pode dispensar o “kitsch"– da guitarra plástica ao azulejo “a fingir”, talvez já “made in China”. Mas, mesmo no “business-friendly” que hoje liberalmente impera, há que tentar evitar o gato-por-lebre que por aí anda. Deixar sem denúncia oficial que nada há de típico no pastel-de-bacalhau com queijo da serra é a porta aberta a que, um destes dias, possa surgir um fabiano pelo Norte a vender que bom, bom é o pudim abade de Priscos lardeado com tripas à moda do Porto...

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 31, 2017

Turismo

Ouvir Toni de Matos na FNAC do aeroporto de Lisboa é uma nova e curiosa sensação, neste Portugal 2017. Confesso que se fosse Quim Barreiros ou Toni Carreira, a seguir a Keith Jarrett ou Madonna, era a exatamente a mesma coisa. Já nada nos espanta e tudo espanta o estrangeiro visitante, que nos olha como o seu novo objeto etno-antropológico. O bandido do restaurante gatuno da Baixa vem já incluído no pacote de viagem de quem se prepara psicologicamente, antes de cá chegar, para ser assaltado no 28 dos Prazeres ou que é alvo preferido da "pancada" no bolso dada pelo taxista vígaro do aeroporto. Depois, com um azulejo e uma guitarra de plástico, vendem-lhe como típico o pastel de bacalhau com queijo da serra. E se alguém, no Porto, tiver a ideia de lançar um pudim abade de Priscos lardeado com tripas, aposto que também "marcha". É que, por estes dias, já vale tudo, nesta máquina registadora chamada Portugal. Dias felizes, não é, Mário Centeno?

quarta-feira, agosto 30, 2017

Mais valia...


Há quantos anos não vou à Festa do Avante! No seu início, esta "feira popular" dos comunistas portugueses, que copiava o modelo italiano do L'Unità e francês do L'Humanité, convocou a curiosidade de muita gente, muito para além dos comunistas. Havia livros e discos com desconto, arte a preços convidativos e uma oferta de gastronomia regional que, somada aos espetáculos, atraía (e julgo que ainda atrai) pessoas de várias orientações políticas.

Nos primeiros anos a seguir ao 25 de abril a novidade levou-me por lá, a uma meia dúzia de edições. Numa delas fui com o meu amigo Alfredo Magalhães Coelho, um homem cordial, divertido e com imenso sentido de humor. A certo ponto do percurso pelas tasquinhas, pedimos dois copos de vinho, talvez para "olear" duas sandwiches de panado. O "camarada" que nos serviu foi parco na quantidade do líquido, deixando uma boa parte por encher. O Alfredo indignou-se logo:

- Ó camarada. Então aqui também há exploração do homem pelo homem? Então não se enchem os copos? Sabe como se chama a diferença entre o vinho que colocou e o copo cheio?

O homem, coitado, não sabia e ficou atrapalhado. O Alfredo, forte do seu conhecimento de economia marxista, esclareceu:

- É a mais-valia, camarada. Já o grande Marx ensinava. Ora ateste aí a mais-valiazinha que está a faltar!

E lá bebemos nós o copo bem cheio, de um vinho que, afinal, era uma zurrapa. Afinal, mais valia o Alfredo não ter protestado.

Enganos felizes


O erro foi fatal: saí de Ginzo de Limia (os galegos dizem Xinzo) pela estrada errada. Pretendia, na tarde de sábado, ir para Montalegre... e perdi-me! 

Antes, tinha almoçado (muito bem!) no "Costa do Sol", em Vila Pouca de Aguiar, e, à saída, deu-me um "vaipe" de passar por Orense. A cidade, contudo, nessa tarde, estava mais "cerrada" do que o Alcázar de Toledo (não pude, assim, visitar a Tanco, a sua melhor livraria). 

Optei por ir lanchar, ao final da "siesta" espanhola, numa esplanada dessa pérola galega que é Allariz. Em seguida, fui recordar como era a estrada velha para Ginzo, que tantas vezes fiz. E foi então que meti pela direção errada. Fui dar a Bande e aí o "Portugal" que se me oferecia nas placas era já o Lindoso (!) ou a Portela do Homem... Ó diabo! Eu estava já quase no Minho!

Não empaniquei porque tinha gasolina e tempo. Optei por ir pela Portela (ainda encontrei um desvio para Pitões das Júnias, mas o meu espírito David Crockett baixa rapidamente com o sol a pôr-se).

Subi a densa encosta para a Portela do Homem, depois do vale espanhol que se vê na imagem, descendo para o Gerez ainda com luz, com uma paisagem deslumbrante. Fui ainda bem a tempo de jantar na bela varanda do "Hotel Águas do Gerês" - um serviço simples, mas "de primeira", e uma carne tão soberba como a do bife à Marrare que o "Café de S. Bento", aqui em Lisboa, me "deu" na noite de 2ª feira.

Acabado o repasto no Gerês, subi às Cerdeirinhas mas não ousei a estrada de Chaves, nem o percurso pelo Basto, que o GPS recomendava: fui de Braga pelo "défice" (perdão, pelas auto-estradas) até Vila Real, onde cheguei antes da meia-noite. 

Se, à uma e meia da tarde daquele dia, à hora da minha saída de Vila Real, alguém me tivesse sugerido o percurso que acabara de fazer, nem sei o que lhe chamaria... E, no entanto, não saberia o que iria perder.

terça-feira, agosto 29, 2017

De Angola à contracosta política


O antigo primeiro-ministro angolano, Marcolino Moco, não gostou de declarações que proferi sobre Angola e disse-o numa entrevista a "O Sol", em que cita o que eu referi à Lusa, à TSF e ao Jornal de Notícias.

Eu havia notado, à Lusa e TSF, que não me parece correto procurar comparar Angola com modelos políticos europeus ou latino-americanos, dado que o país deve ser avaliado à luz do resto de África. Repetindo o argumento ao JN, fui de opinião que o regime angolano não deve ser posto em paralelo crítico com sólidas democracias existentes noutras geografias, como a Noruega ou a Suíça, mas que, posto lado-a-lado com outros regimes africanos, como a Guiné-Equatorial ou a República Centro-Africana, é uma evidência que a Angola atual compara positivamente.

Marcelino Moco entende que o que eu escrevi me coloca "a falar sempre a favor do regime angolano" e que isso são "bitolas para baixo", tratando os angolanos como "seres inferiores" que "têm de se contentar com qualquer coisa".

Estamos aqui perante perspetivas diferentes. 

Desde logo, eu discordo de Marcolino Moco quando ele fala de "seres inferiores" a propósito de comparar Angola com outros Estados africanos. Há aqui, parece-me, alguma sobranceria assumida face a vizinhos, que não são "qualquer coisa", atitude que não fica bem a alguém que já teve fortes responsabilidades em Angola.

Além disso, eu entendo, errado ou certo, que o regime angolano, saído há 15 anos de uma sangrenta guerra civil, que se sucedeu a uma das mais traumáticas transições coloniais de toda a África, fez uma evolução importante, desde o regime de partido único de inspiração marxista-leninista para um modelo democrático, seguramente ainda muito imperfeito, mas que representa, em si mesmo, um indiscutível avanço. 

Sem ironias, esse foi um "salto" similar ao que o próprio Marcelino Moco efetuou, desde os tempos em que foi primeiro-ministro dessa República Popular de Angola. Recordo-me de como defendia então um regime assumidamente totalitário, tendo evoluído até às posições democráticas em que hoje se revê, que legitimamente assume e que o coloca em oposição aos seus antigos camaradas de ideologia. E os Estados, como Marcolino Moco deve reconhecer, são como as pessoas.

Angola é, goste-se ou não, um regime politicamente em transição, como há muitos pelo mundo - um regime que partiu do totalitarismo para uma abertura democrática. A única questão é saber se essa abertura se fez ou está a fazer de modo correto e a um ritmo razoável, ou se há uma excessiva lentidão e deficiências graves nesse processo. 

Podemos discutir isso, mas, repito, é insensato tentar aplicar a Angola uma matriz de exigência como a que se aplicaria a sólidas democracias, com muitas décadas de cultura democrática. Mais: nem só é insensato pedir isso, como é uma óbvia realidade que Angola está, infelizmente, ainda longe desses países com essa solidez democrática.

Esta minha constatação não absolve ninguém em Angola, ao contrário do que Marcelino Moco e alguns "futungólugos" lusitanos parecem julgar. É que, gostem eles ou não, ainda há em Portugal vozes independentes a olhar para a situação política angolana, que não são nem seguidistas do regime nem estão conquistados pela bondade das oposições.

segunda-feira, agosto 28, 2017

Dez anos depois

Passam hoje dez anos sobre a data do falecimento do meu pai. Quis estar em Vila Real neste dia. Sinto uma imensa serenidade ao lembrar a morte, aos 97 anos, de um homem que teve um casamento muito feliz, de mais de meio século, uma carreira profissional plenamente realizada, uma vida quase sem maleitas, em que fez grandes amigos sem criar um único inimigo, em que viajou por quase todos os lugares que quis conhecer, sem grande fortuna mas também sem problemas financeiros. Quantos me leem, pela presença frequente do meu pai em histórias que por aqui conto, já devem ter percebido a importância que ele teve na minha vida, uma vida em que tantas vezes discutimos sem nos zangarmos, em que confrontámos temperamentos que eram muito diferentes. Às vezes, ao citá-lo tanto, temo estar a cometer uma grande injustiça para com a memória da minha mãe, que desapareceu uns anos antes dele, a quem devo muito do que sou como pessoa, nos valores e até na atitude perante a vida, que muito mais se aproximava da minha. Este não é, contudo, um post nostálgico: não tenho ilusões, tenho plena consciência de que os meus pais não poderiam estar hoje comigo, em condições de eu os poder fruir. Pode parecer estranho, mas é uma grande alegria o sentimento que hoje sinto por ter tido o privilégio, como seu filho único que fui, de os ter tido como pais e de poder recordá-los assim, de uma forma serena e feliz. Para sempre.

domingo, agosto 27, 2017

Vila Real - um outro Verão quente


Corria o Verão Quente de 1975. Ao final de um desses dias, uma manifestação católica, creio que em favor da liberdade religiosa, organizada por grupos de cidadãos, mas com apoio aberto de partidos como o CDS e o PPD, iria ter lugar nas ruas de Vila Real. Noutras cidades nortenhas, este tipo de iniciativas, que se sabia estarem infiltradas pelo ELP e pelo MDLP, tinham acabado por dar origem à destruição das sedes do PCP e do MDP-CDE, nalguns casos provocando feridos e até mortos. A cidade estava, assim, sob alguma tensão.

Passei pela livraria "Setentrião" e Otílio de Figueiredo, médico prestigiado e figura grada da antiga oposição democrática à ditadura, agora próximo do MDP-CDE, revelou-me a sua preocupação: "O meu amigo, que é militar, é que poderia tentar alguma coisa junto do Regimento de Infantaria 13". Eu estava de férias em Vila Real, prestes a ser desmobilizado e a entrar para o MNE, em cujo concurso de admissão tinha sido aprovado. Na "tropa", trabalhava então ainda no SDCI, uma estrutura "esquerdista" que tratava da "intelligence" do Conselho da Revolução. A minha legitimidade institucional para intervir era nula, mas a irresponsabilidade foi superior à prudência.

Comecei por visitar os três partidos da esquerda. No PS, encontrei uma grande serenidade. Estando na linha da frente do combate anti-comunista, os socialistas, embora não formalmente envolvidos na manifestação, nada temiam do seu desenrolar. O MDP-CDE, que ocupava a casa que fora da União Nacional, perto da avenida central da cidade, era uma estrutura muito vulnerável. Detetei essa fragilidade na conversa com seus responsáveis. Fria serenidade dominava o ambiente no "centro de trabalho" do PCP, na estreita rua da Misericórdia. As pessoas com quem por lá falei, caras novas para mim, revelavam determinação e vontade de resistir a qualquer assalto. À saída, numa confissão cúmplice ou de bravata, um deles disse-me: "Temos por aí umas caçadeiras de canos cortados, para o que der e vier!"

À tarde, desloquei-me ao quartel. Falei com o tenente-coronel Barros Adão, creio que então segundo-comandante, mas que chefiava a unidade. Conhecia-o da cidade, tinha uma boa relação com os meus pais, mas foi um pouco relutante em conceder-me o encontro. De facto, eu não me "enxergava": ali estava eu, apenas alferes, a querer ser interlocutor de um oficial superior e a tentar "forçar-lhe a mão". Mas eu devia pensar que, para grandes males, grandes remédios. 

Adão não participara no 25 de abril, mas tinha sido "cooptado", pertencendo agora à ala militar conservadora. Era um homem de bem, com uma missão complicada. Fiz-lhe ver, dizendo ter sobre isso informações "seguras" de Lisboa (o que era falso!), que a probabilidade de virmos a ter atos de violência nessa noite era muito elevada, pelo que se justificava, na minha opinião, que fossem colocadas algumas forças militares nas ruas, pelo menos para proteger as sedes do PCP e do MDP-CDS. Não foi nada aberto à minha ideia, dizendo que era à PSP que competia essa segurança e que, não tendo recebido instruções superiores, nada faria no sentido daquilo que eu propunha. Sugeri-lhe então, em alternativa, que, à hora da manifestação, reforçasse os piquetes da Polícia Militar que, regularmente, se passeavam pela cidade, o que sempre funcionaria como um subliminar fator de dissuasão. Sem entusiasmo, disse que ia pensar nisso. A certo ponto, para seu visível desagrado, conclui dizendo-lhe que, depois daquela minha diligência, se acaso viessem a ocorrer incidentes graves, que uma presença militar nas ruas seguramente evitaria, ele seria, de certo modo, co-responsabilizado pelo que eventualmente viesse a acontecer.  E, num ambiente gélido, despedi-me dele e de um capitão que, silencioso, o acompanhava. Chegado a casa  dos meus pais, telefonei a um quadro superior do MFA, em Lisboa, recomendando um telefonema imediato ao tenente-coronel Adão. Nunca soube se foi feito.

Para o que importa, a manifestação realizou-se sem incidentes (lembro-me da figura de Jorge Sá Borges, e talvez Vasco Graça Moura, nas primeiras linhas), a Polícia Militar foi visível pela cidade, as sedes dos partidos não foram atacadas e as tais caçadeiras do PCP, a existirem de facto, permaneceram guardadas. Quando os manifestantes entraram na avenida Carvalho Araújo, eu estava encostado à parede do antigo Hotel Tocaio e ouvi de alguns acusações de "seu comuna!" e outras "meiguices" assim. Eu não era "comuna", mas hoje percebo melhor o sentimento de quem me dirigia o epíteto. Tudo acabou em bem.

Bela pancada!

Francisco Vale, que dirige e editora Relógio de Água, e Guilherme Valente, que orienta a Gradiva, envolveram-se numa polémica nas páginas do "Diário de Notícias". Faço um "disclaimer" pessoal: sou amigo de Vale e tive, há duas décadas, um contencioso com Valente. Mas, além do respeito que ambos me merecem, não quero opinar nesta questão.

Quero apenas dizer que fico muito satisfeito pelo facto de ver as polémicas regressarem às páginas dos jornais. Somos um país em que há uma forte tradição desses duelos em letra de forma, em especial na área da cultura, e sinto imensa falta delas. 

Ainda há dias, com uns amigos, recordava a virulência de um confronto, nos anos 70, nas páginas do "Diário de Lisboa", entre o jornalista e crítico Mário Castrim e o jornalista e escritor Artur Portela Filho. Já não sei a razão da polémica, mas recordo-me de um texto "assassino" (no "bom" sentido...) de Portela ao crítico, que envolvia as escadas do Teatro Vilaret e a tradicional bengala do crítico. E, claro, a inolvidável resposta deste último, num artigo que tinha o título, para mim até hoje insuperado em genialidade: "Ó Artur! Ó Portela! Ó Filho!"

Regressem as polémicas na imprensa! Precisamos de "bela pancada"! Isto está sem graça nenhuma!

A pasta "vermelha"


Na realidade, a pasta não era vermelha. Era preta, de couro fraco. Mas, no fundo, era "vermelha". Eu já explico.

Há escassas horas, ao sair de um jantar no Gerês, passei em frente ao edifício da GNR e veio-me à memória um episódio por ali ocorrido, há cerca de três décadas.

Estava de férias na região. Numa manhã, fazia o percurso de carro do Gerês para Vilar da Veiga quando, à minha frente, na estrada, vi caída uma pasta. Ainda pensei tratar-se de um "truque" qualquer, mas não era nada disso. A pasta devia ter saltado de uma moto ou motorizada. Eu estava cheio de pressa, não me era possível retornar ao Gerês, onde sabia que havia um posto da GNR, mas achei que tinha obrigação de guardar a pasta. Logo que pude, telefonei à GNR do Gerês, disse estar de posse da pasta e informei que, daí a umas quatro ou cinco horas, depositaria por lá o objeto.

O guarda com quem falei perguntou-me se a pasta tinha alguma coisa, se havia nela algum nome que pudesse ser referenciado. Foi então que, pela primeira vez, a abri. Devo confessar que fiquei surpreendido. Eram documentos do Partido Comunista Português, com listas de nomes por localidade e alguns textos e documentos. Decididamente, eu devia ter encontrado a pasta de algum "controleiro" couminista da região. Não referi isso ao guarda, limitando-me a indicar o nome de uma pessoa que, num documento, me pareceu ser o do dono da pasta. E fui à minha vida.

Essa vida não se processou como eu esperava e fez com que, em lugar de quatro ou cinco horas, eu tivesse demorado quase o dobro do tempo que havia previsto para entregar a pasta no posto da GNR. Só o fiz já depois do jantar.

O que eu não esperava era o ambiente hostil que me aguardava. Quando compareci com a pasta, o guarda que me atendeu quase que me insultou: "Então o senhor não tem vergonha de só agora devolver a pasta! Esteve aí um homem horas à sua espera! A pasta tem documentação da mais alta importância! Isto não fica assim! Vou chamar o meu chefe e vá-se preparando para mostrar os seus documentos!" E, sem me dar tempo para reagir, saiu, disparado, para dentro, à cata do seu graduado. 

Que estranho! Que diabo de cumplicidade teriam os GNR com o "pc" descuidado? Eu, que estava convencido de que, qual escuteiro, estava a praticar "a minha boa ação do dia", que tinha perdido o meu tempo e andado quilómetros para entregar a pasta encontrada, ia agora passar a "réu" pelo meu atraso? Era o que mais faltava! 

Pensei meio segundo. Mal o guarda virou as costas, deixei a pasta sobre o balcão e zarpei para fora do edifício. Entrei no meu carro, onde tinha ficado, à minha espera um diplomata espanhol amigo. Disse: "Vamos embora já! Temos de nos apressar!" Olhei para trás e, à porta da GNR, afloravam já duas figuras fardadas, claramente no meu encalço. Quando, com o carro em aceleração rápida, sintetizei ao amigo espanhol o que me ocorrera no posto da GNR, e tendo ele já sabido vagamente do conteúdo da pasta, deu uma gargalhada e concluiu: "Hombre! La derecha portuguesa está vengada! Ahora vas a saber lo que es ser perseguido por los rojos!"

sábado, agosto 26, 2017

Dom Pedro


Há dias, ao passar pelo Mindelo, marco da luta liberal-absolutista no século XIX, recordei-me que, precisamente na véspera, falara com amigos brasileiros sobre a mútua imagem de dom Pedro - o dom Pedro I do Brasil e o dom Pedro IV de Portugal. E na nossa diferença de perspetivas sobre a figura.

Bastou-me viver uns anos no Brasil para perceber que o modo como o autor do "grito do Ipiranga" é por lá visto contrasta, em muito, com a imagem que ele iria deixar na memória portuguesa. 

Por cá, talvez influenciados pelo dramatismo da guerra civil e pela seriedade dos retratos pintados, dom Pedro surge-nos como uma figura serena, mobilizada por ética liberal, disposto a tudo para consagrar a prevalência de uma nova ordem constitucional sobre o "antigo regime", representado este pela boçalidade política do seu irmão. 

Para o Brasil, dom Pedro é, pelo contrário, uma personalidade frenética, inconstante, furioso na sua devassidão romântica, politicamente ciclotímico, um quase agitador. Há excelente bibliografia sobre o primeiro imperador brasileiro que, sem exceção (creio), sublinha esse seu caráter.

Esta dualidade foi, para mim, algo surpreendente e muito curiosa nos seus pormenores. De certo modo, ela mostra que as figuras marcantes deixam perceções que radicam sempre no papel diferenciado desempenhado, face ao destino particular dos povos, pelos condutores de turno do comboio da História de cada um. 

Não tive coragem de contar aos meus amigos brasileiros, que tinha levado a ver as festas da Senhora da Agonia, a anedota que correu em Portugal, nos meios que se empenhavam em caçoar sobre Américo Tomás, ao tempo em que o presidente português fez uma celebrada viagem oficial ao Brasil, em 1972, para oferecer aos brasileiros os restos mortais de dom Pedro. A acidez crítica da "vox populi" atribuía a Tomás, como é sabido, uma baixa qualidade intelectual, muito por via da imagem que o velho almirante projetava no inenarrável património de discursos públicos que nos deixou. Nesta cruel apreciação, ficou então famoso o imaginário diálogo entre Gertrudes Tomás e o marido: "Américo, por que razão nós, em Portugal, dizemos dom Pedro IV e os brasileiros chamam dom Pedro I?". O almirante, a quem a lenda pública atribuía (um tanto injustamente, ao que se sabe) a tal simplicidade mental, teria respondido: "Ó mulher, é fácil. São os fusos horários diferentes..."

sexta-feira, agosto 25, 2017

Agora, Angola


A propósito de um artigo no “The New York Times”, que há dias sublinhava o facto de capitais angolanos serem hoje muito relevantes na economia portuguesa, vi por aí algumas indignações, de sentidos opostos: dos que entendiam ser tão legítimo como qualquer outro esse investimento, independentemente da origem do capital, e de quantos se escandalizavam com a condicionalidade e a dependência que esses influxos financeiros estariam a provocar na livre vontade de Portugal. 

De há muito que o tema Angola faz parte da política interna portuguesa. De um lado, estão os hagiógrafos lusos do regime angolano, os defensores da exemplaridade absoluta do modelo politico dominante nas últimas quatro décadas, os que, no final, jurarão que estas eleições em Angola, foram, como diria o outro, “tão livres como na livre Inglaterra”. Do outro, estão os tremendistas, os viúvos de Savimbi (esse conhecido “farol” da democracia), os acusadores dos desmandos da corrupção, do patrimonialismo, os que, ainda as urnas não tinham aberto, já denunciavam a falsidade do sufrágio que aí vinha.

Somos um país que, por virtude da sua constante fragilidade económica e consequente dependência externa, tem sempre uma parte importante de si e dos seus presa ao exterior. Isso faz com que Angola, com a naturalidade de comportamento de qualquer poder financeiro, tenha encontrado por cá ajudantes à representação dos respetivos interesses. No outro lado do espetro, se já não temos “pieds noirs”, temos no entanto por aí uma massa residual de enraivecidos da descolonização, com um tropismo anti-angolano que lhes embota a racionalidade. E, claro, também temos alguns neo-colonialistas de esquerda, sempre prontos a dar lições. 

Angola é um país com uma democracia mais do que imperfeita, se comparada com a Suíça ou a Noruega, mas é um “benchmark” político, se pensarmos na Guiné-Equatorial ou na República Centro-Africana. Por lá, os “maus” estão no poder e os “bons” na oposição? Essa visão maniqueísta pode sossegar consciências mas não ajuda a resolver os problemas, tanto mais que embate na realidade dos equilíbrios politicos de facto. Estar sempre a tentar colocar o Rossio no seio da Mutamba, a levantar o dedo para “ensinar” política, é um gesto revelador, à esquerda e à direita, de que Portugal ainda tem de fazer um longo caminho para se “descolonizar”.

Esperemos que, depois destas eleições, possamos vir a encontrar um novo, mais sereno e mais maduro terreno para um diálogo político entre Angola e Portugal, que respeite as instituições e salvaguarde os interesses legítimos, de parte a parte, tentando colocar as acrimónias do passado recente entre parêntesis. Já se perdeu demasiado tempo nas relações entre Portugal e Angola.

(Artigo publicado hoje no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 24, 2017

O primeiro dia da paz em Angola


Passaram mais de 15 anos sobre esse dia de fevereiro de 2002. Recordo-me que estava fora da Missão portuguesa junto da ONU, que então chefiava, quando recebi uma chamada telefónica do adido de imprensa da Missão portuguesa junto da ONU, Sebastião Coelho, a dar-me conta do anúncio da morte de Jonas Savimbi, lider da Unita. 

Savimbi, com um pequeno grupo de fiéis, andava refugiado, nos últimos meses, cada vez mais isolado, na selva profunda angolana, perseguido pelas FAPLA, as forças armadas angolanas. Caíra, por fim, numa emboscada.

Convém lembrar que, por esses tempos, a UNITA era alvo de um forte processo de isolamento no seio da comunidade internacional, por ser considerada a principal responsável pelo rompimento da ordem constitucional, por ter optado pelo recurso à rebelião armada, abandonando unilateralmente a via política. 

No âmbito das Nações Unidas, uma "troika" de observadores do "processo de paz" - constituída pelos Estados Unidos, pela Rússia e por Portugal - seguia com atenção a aplicação de sanções àquele movimento político. 

Portugal detinha, por essa época, a presidência rotativa da "troika". Semanas antes, como presidente em exercício da "troika", eu reunira num almoço de trabalho na nossa residência o embaixador americano na ONU, John Negroponte (que viria a ser "administrador" do Iraque, depois da invasão americana) e o embaixador russo, Sergey Lavrov (atual MNE russo), a que também esteve presente o representante especial do Secretário-geral, o nigeriano Ibrahimi Gambari, que dirigia o escritório especial para a fiscalizar as sanções à UNITA. Uma vez mais, fizéramos o ponto da situação sobre a evolução da situação político-militar no terreno, tendo concluído pela crescente fragilidade da UNITA. Porém, era óbvio que a "bandeira" da organização manter-se-ia levantada enquanto Sabimbi a sustentasse.

Washington, sob administração George W. Bush, não colocara em causa o empenhamento americano nas sanções à UNITA, votadas na ONU e herdadas do tempo de Bill Clinton, embora não tivesse prescindido da manutenção de contactos com o movimento, nomeadamente através de Jardo Muekalia, "delegado" da Unita residente na capital americana. 

Muekalia havia-me contactado, pelo telefone, uns tempos antes. Pretendia encontrar-se comigo para discutir o tratamento do tema UNITA na ONU. Recusei esse encontro, que, a ser conhecido, poderia afetar a nossa imagem de neutralidade e de apego à legalidade multilateralmente aceite, perante o processo interno angolano. É que o nosso país tinha algumas entidades privadas acusadas de não cumprirem as sanções decretadas contra a UNITA e já me estava a ser difícil conciliar as nossas obrigações na "troika" com a ocorrência desses episódios. 

Ainda nessa noite, falei a Gambari. Estava um pouco "no ar", porque a morte de Savimbi mudava tudo. Perguntou-me se pensava convocar a "troika" e consultar sobre isso Kofi Annan. Disse-lhe que me parecia prudente deixar "assentar o pó", mas que falaria entretanto com Annan. Pareceu-me perpassar-lhe na voz a preocupação de que, perante a iminente desaparição da UNITA, enquanto força armada, a sua função como coordenador das sanções iria rapidamente desaparecer. 

Na manhã seguinte, Ismael Martins, embaixador angolano, também me perguntou o que eu pensava fazer a seguir. Ele não tinha ainda instruções de Luanda. Eu também não as tinha de Lisboa, mas disse-lhe que dispunha de autonomia para agir da forma que melhor entendesse quanto à mobilização da "troika". Lavrov, com quem falei nessa tarde, foi de opinião de que seria melhor "aguardar para ver". Também tinha sido contactado pelo colega angolano, que ambos sentimos compreensivelmente eufórico. Perguntei-lhe se falara com Negroponte. Irónico, comentou que alguns americanos em Washington precisavam de tempo para "fazer o luto"...

Aquele foi o primeiro dia depois de Savimbi, de certo modo o primeiro dia da paz em Angola, o início do fim da guerra civil no país.

terça-feira, agosto 22, 2017

A onça e os seus amigos


Ontem, segundo uma imagem que circula pela net, uma onça entrou nas instalações do Palácio do Itamaraty, o ministério das Relações Exteriores do Brasil. 

Conhecendo o humor e a ironia dos meus amigos brasileiros, posso imaginar as graças que o acontecimento não irá provocar na sede da diplomacia daquele país, em torno do termo "amigo da onça".

Quase toda a gente sabe o que é um "amigo da onça". É o sinónimo de falso amigo.

O que menos gente sabe é que o conceito foi popularizado por "cartoons" na revista "O Cruzeiro", assinado pelo humorista Péricles, representando uma figura de cavalheiro, de cabelo tão untuoso como o seu caráter, de bigodinho (muito Brasil anos 50), impecavelmente vestido, que se dedicava a provocar embaraços aos "amigos".

Usei o termo por muitos anos, antes de lhe conhecer a origem. E nunca ninguém mo tinha explicado, até que, um dia, José Alencar, vice-presidente do Brasil, um querido amigo que já se foi, me contou a história. Ei-la.

Dois amigos conversavam. Um deles perguntou: "O que é que tu fazias se um dia te aparecesse uma onça à frente?". O outro respondeu: "Dava-lhe um tiro, claro!". "Mas imagina que, nesse momento, estavas sem espingarda?". A resposta foi: "Agarrava uma cadeira, para me defender!. O outro não desarmava: "E se não tivesses uma cadeira?". O outro tentou o possível: "Sei lá! Subia a uma árvore ou a um telhado...". "Pois! Mas se não houvesse árvore ou casa para subir?". Irritado, o amigo redarguiu: "Ó homem! Olha lá! Mas tu és meu amigo ou amigo da onça?!". 

Dignidade


Segurança

Às vezes, pergunto-me se as pessoas têm um mínimo de sentido de responsabilidade sobre os riscos do mundo em que vivem.

O que se está a passar em torno das medidas de segurança que estão a ser prudentemente tomadas, como preventivas para possíveis atos terroristas, é de uma estupidez que raia a inconsciência criminosa.

O mínimo de bom-senso recomendaria uma total discrição sobre este tema, que se prende com a segurança do país e dos seus cidadãos, o que em todo o mundo civilizado é um sempre tratado como um "não-assunto".

Mas cá não: um bando de inconscientes publica, na comunicação e nas redes sociais, abundantes fotografias dos obstáculos montados, compraz-se em gozar com as suas presumíveis fragilidades, utiliza mesmo o assunto como arma de arremesso político. 

Só posso desejar que, se e quando uma dessas tragédias eventualmente, nos vier bater à porta, familiares ou amigos desses "brincalhões" não venham a andar por perto.

Insuspeitos

Um dos métodos de atuação mais curiosos no debate político consiste em citar algo que foi dito por alguém com quem, por regra, se não concorda, que é "do outro lado", mas que, por uma vez, disse algo que "dá jeito" ao argumentário de quem opina. 

Atribui-se então a essa pessoa o epíteto de "insuspeito" - "até o insuspeito Fulano de Tal disse...". Porém, o "insuspeito" perde de imediato esse estatuto quando o que diz deixa de agradar.

O mundo é bizarro.

segunda-feira, agosto 21, 2017

As mulheres de Viana

Foto de Antero de Alda

Ontem, ao passar por algumas quelhas de Viana do Castelo, fugindo ao calor, vi frases feministas sujando o branco das paredes, com aquela "coragem" com que o anonimato impune permite a alguns (neste caso, devem ser algumas) estragar a limpeza da propriedade dos outros. E achei estranho. Por ser em Viana.

É que estávamos nas Festas da Senhora da Agonia. E as Festas são da mulher. A romaria é feita em torno da mulher, dos seus trajes, da sua música - as vozes femininas predominam em absoluto, nos cantos folclóricos vianeses ou vianenses (com alguma "doutrina" a dividir-se no uso do adjetivo).

A etnografia em torno dos trajes dedica muito pouco espaço e atenção aos homens, como ficou bem patente na Festa do Traje e no Cortejo - ambos agora renovados na linguagem, no ritmo e nas prioridades reveladas. É que, tirando o colorido de algumas faixas, o homem de Viana que acompanha as lavradeiras "distingue-se" apenas imensa simplicidade da roupa que veste (a exceção é o bordado das camisas típicas - este ano ganhei uma, belíssima, que ostentei com grande orgulho num dos dias).

Por isso, repito, a festa é das mulheres, elas é que são as donas da romaria. Para quê encher as paredes de Viana de sisudos apelos feministas?

domingo, agosto 20, 2017

As botas do bombeiro


Foi um ritual de anos. O meu pai tinha descoberto que, na praça principal de Caminha, havia um sapateiro excecional. Não fixei o nome do artesão, mas constava que, em todo o Alto Minho, ninguém fazia botas como ele. 

Assim, desde que entrei para a escola primária e até meados do tempo de liceu, aí de dois em dois anos, nas férias de verão em Viana, dava-se uma saltada a Caminha para encomendar para mim umas botas "de pneu de avião", que haveriam de me ajudar a atravessar os frígidos invernos transmontanos. Éramos conduzidos à loja, invariavelmente, pelo senhor Valença, um senhor franzino e baixo, de chapéu, amigo caminhense do meu pai, que lhe ficara dos tempos em que chefiara a agência da Caixa Geral de Depósitos na vila. Feita a encomenda, as botas chegariam pelo correio a tempo do início das aulas (nesse tempo sem surpresas, as aulas iniciavam-se invariavelmente no dia útil mais próximo de 1 de outubro). Era, aliás, de regra as boras serem ensebadas antes de usadas, creio que para tornar a pele mais flexível e para impedir a infiltração de humidade.

Na minha primeira visita à loja, aí com seis anos, fiquei impressionado com um reluzente capacete de bombeiro, colocado no topo de uma estante no fundo da loja. Era uma peça dourada, imponente. O dono da casa era, com toda a certeza, um "soldado da paz", como os bombeirps eram então designados na linguagem simpática da imprensa.

Ora os bombeiros, lá por Vila Real, onde eu vivia, faziam parte da nossa mitologia. A cidade estava dividida entre duas corporações de bombeiros voluntários: os da "Cruz Verde", chamados os "bombeiros de cima", e os da "Cruz Branca", os "bombeiros de baixo". Escrevi "dividida" porque, nesse tempo, cada vilarealense tinha uma ligação afetiva a uma das duas corporações. Eu era dos "de cima"!

Na minha cabeça de criança, esse maniqueísmo bombeiral estava bem enraizado. Não me devia passar pela cabeça que o modelo dual de Vila Real se não reproduzisse em toda a parte. Por isso, depois de tomadas as medidas do meu pé e escolhidas as necessárias especificações para as primeiras botas, à saída, perguntei ao meu pai: "Aquele senhor, cá em Caminha, é dos bombeiros de cima ou dos de baixo?"

sábado, agosto 19, 2017

O caminho para França

O meu pai, por um "vício" de educação cuja origem nunca percebi bem, era um "maníaco" da língua francesa. Desde a sua infância, em Viana do Castelo, dedicou-se ao culto e estudo aprofundado do francês. 

Tinha uma bela coleção de gramáticas, dicionários e manuais, que herdei, era um "colecionador" de expressões idiomáticas e, desde a minha entrada para o liceu, foi de uma extrema exigência comigo em matéria de correção da pronúncia e ortografia - o que me valeu ter sempre boas notas a francês no liceu, embora ele próprio qualificasse o meu conhecimento da língua apenas com um "pas mal" (no que estava, confesso, bem certo). 

Durante mais de vinte anos, sem com isso ganhar um tostão, em Vila Real, o meu pai dedicou-se a dar explicações a filhos de familiares e amigos - creio que sempre com imenso prazer. Era um francófilo como poucos, num país que, infelizmente, deixou de os ter.

Divertido, ele repetia às vezes a história de um seu amigo vianense, menos dotado para a língua de Molière e Macron, mas que, não obstante, sempre se empenhava em ajudar os turistas franceses que, nos tempos de férias, atravessavam a cidade.

Com orgulho, esse amigo contava: "Ali, ao pé do Hotel Aliança, quando eles querem ir para Espanha, em direção a França, eu indico-lhes: "sempr'en frent" e eles nunca se enganam na estrada para a fronteira".

sexta-feira, agosto 18, 2017

O onomástica vianense


Cheguei há pouco a Viana do Castelo, para a "romaria das romarias", as Festas da Senhora da Agonia.

Quando era miúdo, intrigava-me muito uma placa de um consultório médico na Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, lá por Viana.

O nome era Dr. Abeldizindo Pinto da Cunha. Abeldizindo? 

"E queres saber o resto do nome desse senhor?", perguntou-me o meu pai. Era Abeldizindo António Filrozeno Osvalindo Ferreira Pinto da Cunha. Achei o nome fantástico! 

Mas o meu pai tinha mais novidades. O Dr. Abeldizindo era apenas um dos oito filhos de um sargento do Exército, Albino Cândido, cujos nomes seguiam um perfil onomástico idêntico.

Um dos irmãos, também médico, chamava-se Albidalino Almerindo Dulcínio Artur FPC. Outro, oficial do Exército, era Aldorindo Alexis Filinto Ilídio FPC. Havia também um engenheiro civil, Albicindo Aldino Olgarindo FPC. Finalmente, no campo masculino, teria havido também um Alcídio Adalberto FPC. As irmãs, com exceção de Eudília Deolentina FPC, tinham nomes mais "serenos", como Maria Zita Ernestina ou Clotilde.

O mistério permanece: o que teria levado os pais destes filhos a optarem por nomes tão curiosos? Alguém de Viana saberá?

(*) Durante as Festas de 2016, contei por aqui sete histórias de Viana. Nos dias das Festas de 2017, aqui deixarei mais algumas

O provedor


Não vale a pena iludirmo-nos: a questão dos incêndios florestais é muito séria. Tanto pelos imensos danos materiais provocados como pelo descrédito induzido na imagem do Estado.

Por muito que alguns, na esfera política, possam não querer aceitar, é uma evidência que está criada, na sociedade portuguesa, a ideia de que a administração do Estado é hoje impotente para gerir, com aceitável eficácia, esta situação, limitando-se a reagir, perante os factos com que se vê confrontada, numa penosa e quase patética navegação à vista. 

O executivo faz o que pode: tenta utilizar da melhor forma os meios ao seu dispor, mas já terá percebido que, a repetirem-se, no futuro, conjugações climatéricas negativas, o que não parece improvável, a tragédia vai reeditar-se. No meio de tudo isto, a fé na eficácia tempestiva das alterações legislativas acaba por ser uma atitude quase ridícula. Não que o "pacote florestal" não seja necessário, mas é mais do que óbvio que a sua completa implementação vai demorar um imenso tempo que o país não tem. E, até lá, é preciso agir com medidas urgentes e excecionais, a montante de uma nova crise, com as autarquias e com o governo central na primeira linha da prevenção, aproveitando o que a declaração de calamidade pública agora facilita.

A mais miserável dimensão desta história é a sua exploração político-partidária. Será que alguém, minimamente honesto, acredita que, se acaso a direita estivesse no poder, a Proteção Civil teria sido mais eficaz, o Siresp teria funcionado melhor, outro modelo de responsabilização funcional e pessoal teria levado a resultados diferentes? 

Sejamos claros: PS ou PSD/CDS (PCP ou BE quase não contam aqui) são as duas faces da mesma moeda - onde se misturam o aparelhismo e o compadrio político, a instrumentalização partidária dos bombeiros, uma maior ou menor complacência face às negociatas em torno do material de combate aos incêndios. Ter a esquerda ou a direita no poder, nesta questão dos incêndios é, como dizem os franceses, "bonnet blanc/blanc bonnet". É absolutamente indiferente. Toda a gente sabe isto, de António Costa a Passos Coelho, embora todos façam de conta que não.

Contudo, os incêndios deste ano não foram iguais aos outros. Na dimensão, nas tragédias, no trauma coletivo que provocaram. O Estado, e a confiança no Estado, não saem intocados disto. É aqui que, inevitavelmente, entra o papel do chefe desse Estado, pelo crédito afetivo que hoje o responsabiliza perante o país. No tradicional Inverno do nosso esquecimento que aí vem, compete-lhe ser o provedor do sentimento nacional de urgência e desespero e não permitir que a espuma dos dias seguintes abafe a necessidade de atuar. Já. 

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 17, 2017

Eça


Há 117 anos, passados ontem, José Maria Eça de Queiroz, escritor (e também diplomata), morria em Neuilly.

Recordemo-lo, em "A correspondência de Fradique Mendes", a falar do calor. Como o que aí anda..

"Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezas paralelas, em calão teimoso: "é de rachar!", "está de ananazes!", "derrete os untos!"... "

... e logo se vai ver!

Ver aqui .