Às vezes, pergunto-me como terei iniciado a minha colaboração em "A Voz de Trás-os-Montes", no final dos anos 60 (creio que em 1967). Lembro-me de ter começado por escrevinhar por lá uns textos sobre desporto, antes de ensaiar algumas coisas ridiculamente rebuscadas sobre política interna, para, finalmente, me fixar, nas questões internacionais.
Vila Real, por essa época, tinha três jornais. "A Voz de Trás-os-Montes" era o mais popular, com forte presença na comunidade expatriada, em especial no Brasil. Havia também "O Vilarealense", uma folha sem imagens, com uma "mancha" a lembrar os jornais do início do século, numa linguagem adjetivada e algo gongórica, onde se anunciava que o senhor fulano de tal "acompanhado da sua excelentíssima família, partiu para as praias do Minho no gozo de merecida vilegiatura anual". E, finalmente, a "Ordem Nova", propriedade do partido único, a União Nacional, jornal cujo nome denunciava a orientação oficiosa mas que, por algum tempo, teve a esperteza de criar uma página cultural que alargou simbolicamente a sua audiência. "O Vilarealense" e a "Ordem Nova" já desapareceram e a VTM está hoje num novo ciclo.
Foi o padre Henrique Maria dos Santos, diretor de "A Voz de Trás-os-Montes", quem suscitou ou aceitou a minha colaboração (não me lembro se a sugestão foi dele ou se fui eu que o procurei, mas esta última hipótese é bem mais plausível). De quando em vez, e a partir de certa altura com forte regularidade, eu enviava textos sobre temas internacionais (embora não tivesse então o menor interesse pela diplomacia) que, com grande gosto, via depois surgir impressos no periódico. Cheguei mesmo a ter uma "caixa" própria, em jeito de colunista "a sério".
Vivia por essa altura em Lisboa. Numa ocasião, de passagem por Vila Real, o padre Henrique comentou, embora sem grande dramatismo, que alguns dos meus artigos eram "um pouco avançados", expressão com que, à época, se designavam as derivas esquerdistas. De facto, eu notava que certos textos "não saíam", mas isso não me impedia de insistir, tentando publicar o que me apetecia.
Um dia, o meu pai passava pela "Rua Direita", a artéria central da Vila Real, quando foi abordado pelo capitão Medeiros, o censor da imprensa da cidade.
"Temos um problema com o seu filho!"
O meu pai, por um instante, temeu que fosse alguma coisa "política", sendo o militar um dos "braços" do regime na cidade. E, de facto, era, embora de escassa gravidade, felizmente.
"O seu rapaz anda a escrever umas coisas no jornal que já me causaram problemas. Eu tinha avisado o padre Henrique, mas agora vou ter de cortar todos os artigos que ele vier a escrever."
O censor - ou melhor, o examinador, porque a "Comissão de Censura" tinha passado a ser designada "Exame prévio", na onomástica suavizante do marcelismo - disse ter sido "chamado à pedra" pelo facto de ter deixado passar, num texto, uma referência ao "filósofo da Europa oriental, Vladimir Ilyich Ulianov". Ora o bom do Medeiros "já não se lembrava" (sic) que esse era o verdadeiro nome de Lenine e "Lisboa" tinha-o repreendido por isso. Mas "o pior foi na semana passada"...
O meu pai estava divertido. E o Medeiros continuou a explicar:
"O malandro do seu filho escreveu um artigo sobre a Rodésia. No fim, escreveu que, no seu entender, "a Rodésia vai ter um futuro negro". Eu deixei publicar aquilo, convencido que ele se estava a referir aos problemas do Ian Smith e ao provável agravamento da situação por lá. Até nem me pareceu mal visto! Só que o pessoal "lá de baixo", de Lisboa, que é "fino como um alho", percebeu que o que ele queria dizer é que a Rodésia vai acabar na mão dos pretos. Ora eu não posso continuar a ter problemas destes e já disse ao padre Henrique que, a partir de agora, os artigos do seu rapaz "não passam". O senhor compreende, não é?"
O meu pai sorriu e disse ao capitão Medeiros que o assunto, nem para ele nem com certeza para mim, tinha a menor importância. E o militar na reserva, feito censor no ativo, lá continuou o seu caminho. Só o 25 de abril lhe iria retirar a avença.