O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil, que é, em parte, uma secção do Supremo Tribunal Federal (STF) do país, tem em análise uma queixa contra o candidato favorito à eleição presidencial, Jair Bolsonaro, relativa à descoberta do uso abusivo do Whatsapp, financiado com fundos privados, para espalhar notícias falsas sobre o seu rival Fernando Haddad. Em teoria, a ser provado que a sua eleição na primeira volta beneficiou de apoios indevidos que pudessem ter influenciado fortemente o sentimento dos eleitores, Bolsonaro poderia ser afastado da corrida presidencial.
Na segunda metade de Outubro de 2006, viviam-se as três intermináveis semanas que, no Brasil, separam os dois turnos das eleições. Era mais do que evidente que Lula ia ser reeleito, face a Geraldo Alckmin, mas a margem dessa vitória era muito importante. Uma vitória tangencial dar-lhe-ia uma legitimidade reduzida.
Por esse tempo, o escândalo do “Mensalão” - pagamento a deputados para apoiarem o governo, com recurso a fundos ilícitos - tinha-se aproximado muito da figura do presidente. Várias peças do aparelho político à sua volta tinham já sido atingidas e Lula tivera de se separar de alguns dos seus apoios mais importantes. A cada dia, surgiam dados envolvendo mais pessoas e que tornavam implausível que o presidente nada soubesse desse mecanismo de financiamento, que falseara fortemente a vida democrática do país. Contudo, Lula parecia imune, no julgamento popular, a todas essas imputações. Era como se o Brasil “fizesse de conta” de que acreditava na inocência de Lula. A economia ia bem, a sua popularidade era grande, o mundo testemunhava-lhe respeito. Por essa razão, a reeleição continuava garantida.
Num almoço de despedida a um embaixador estrangeiro, em Brasília, em casa de amigos comuns, aproveitei o facto de ser um “buffet” para procurar um lugar junto de um importante juíz do STF. Como embaixador de Portugal, eu conhecia pessoalmente todos os onze integrantes do STF e, com esse que estava presente ao almoço, tinha criado, de há muito, uma relação agradável. Aproveitei para inquirir se ele achava que, não obstante a sua provável reeleição, Lula corria ainda riscos sérios de ser afastado por “impeachment”. O juíz, baixando a voz, disse-me com firmeza: “O que há contra Lula continua a ser muito sério! Muito sério mesmo, embaixador! Mesmo com a reeleição, o “impeachment” tem muitas hipóteses, pode crer. Ninguém fala disto, mas é assim mesmo”.
Ainda deve andar pelos arquivos do MNE o telegrama no qual, no dia seguinte, eu terei informado Lisboa desta conversa - que ia um pouco a contraciclo do ambiente de otimismo que rodeava a possível recandidatura de Lula. Enviar informações contra o pensamento dominante é algo que os embaixadores não gostam de fazer. Mas que devem fazer. E eu sempre assim fiz.
Passaram umas semanas. Lula acabou por ser reeleito com mais de 60% dos votos. Mesmo na imprensa mais hostil, a hipótese de um “impeachment” ao presidente reeleito deixara por completo de ser mencionada. O PSDB, o partido do derrotado Alckmin, parecia ter deixado cair a ideia, que alimentara conjuntamente com o mais conservador PFL (que só mudaria de nome para DEM, meses depois). A informação que eu passara a Lisboa, no meu telegrama “a contraciclo”, não parecia ter já o menor sentido.
O juíz de que atrás falei foi um dia à nossa residência, já não recordo se para um cocktail ou um jantar. Achei curioso testar aquela ideia da plausibilidade do “impeachment”, de que ele me tinha falado, semanas antes. E, muito diretamente, perguntei-lhe se o processo de que me falara ainda tinha “pernas para andar”. A resposta foi exemplar: “Com uma vitória com mais de 60%, Lula garantiu a benção de todas as ‘mães-de-santo’ do Brasil, caro embaixador. Agora, ninguém lhe toca, até ao fim do mandato. A justiça, neste país, só consegue exercer-se se estiver no sentido do vento do sentimento popular”.
Lembrei-me disto hoje, ao ler sobre o processo contra Bolsonaro. A estátua da Justiça, na praça do Três Poderes, lá em Brasília, pode estar vendada, mas sente o vento que sopra. E o sentido do vento popular já colocou Bolsonaro no Planalto. A Justiça, no Brasil, não vai “contra o vento”. Aposto.