Marcelo Rebelo de Sousa referiu ontem, numa entrevista ao "Expresso", que, ao tempo em que era líder do PSD (1996-1999), tinha criado, com o então primeiro-ministro António Guterres, uma "miniestrutura de relação permanente", constituída por Isabel Mota e por mim, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo". É um episódio da "pequena História" que, porque revelado, vale a pena recordar.
Desde o início do seu governo, em 1995, António Guterres considerou importante ter o PSD "a bordo" para as grandes questões europeias. Embora com algumas "nuances", as posições dos dois partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer).
Recordo-me de uma reunião entre António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, no gabinete do primeiro, em S. Bento, algures em 1996, comigo e com Isabel Mota presentes, em que ficou estabelecido que ambos dialogaríamos com regularidade sobre as posições em temas europeus que pudessem ter implicações importantes para o país. O PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com o PSD, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas.
Isabel Mota, hoje administradora da Fundação Calouste Gulbenkian, tinha sido secretária de Estado do Planeamento durante governos de Cavaco Silva e era uma especialista na matéria europeia. Eu tinha acabado de assumir funções como secretário de Estado dos Assuntos europeus, depois de ter sido subdiretor-geral do setor e, simultaneanente, representante adjunto de Portugal no "grupo de reflexão" europeu para a revisão do Tratado de Maastricht. Muitos anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, ambos viríamos a encontrar-nos de novo numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.
O meu antecessor na secretaria de Estado dos Assuntos europeus, durante os governos de Cavaco Silva, havia sido, durante uma década, Vitor Martins, um técnico altamente qualificado, que fez um excelente lugar político e com quem eu colaborara intimamente (entre 1986/88 e 1994/95). Quando o substituí no cargo, muitas pessoas ficaram surpreendidas pelo facto de eu ter confirmado, no meu gabinete, alguns dos seus adjuntos, circunstância que julgo quase inédita nas transições de governos entre a esquerda e a direita em Portugal. Alguns desses técnicos manter-se-iam até ao termo das minhas funções, cinco anos e meio depois.
O meu diálogo com Isabel Mota consubstanciava-se numa troca regular de informações, tanto mais que o PSD acompanhava os mesmos temas no âmbito do Partido Popular Europeu. Isso fez-se, em especial, durante as negociações do Tratado de Amesterdão, em que me coube o papel de negociador português, e do quadro financeiro da União para os sete anos seguintes, a "Agenda 2000", cuja coordenação negocial cabia, como era de regra, ao secretário de Estado dos Assuntos europeus.
Esse diálogo, que sempre vi como muito proveitoso, não evitou algumas pequenas "accrochages" entre o governo e o PSD sobre temas europeus, quase sempre tituladas por mim, pelo lado do governo. Recordo-me de pequenas polémicas na imprensa envolvendo Luis Marques Mendes, Pacheco Pereira e o próprio Marcelo Rebelo de Sousa. Com Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", sobre a questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, agora confesso, não era muita.
Depois da saída de Marcelo Rebelo de Sousa da liderança do PSD, substituído por Durão Barroso, a minha interlocutora do lado do PSD passou a ser Maria Eduarda Azevedo. Devo dizer que construí um relação de boa amizade com ambas as minhas interlocutoras "laranja", que dura até hoje.
Creio que a revelação ontem feita por Marcelo Rebelo de Sousa trouxe para público, pela primeira vez, a existência dessa eficaz "ponte" europeia entre o governo socialista e o PSD, nos idos de 90. Uma relação que, nos últimos tempos do segundo governo Guterres acabou por ter algumas dificuldades, não apenas pela crescente crispação política interna, mas igualmente pelo facto das estruturas do PS, nomeadamente os seus deputados ao Parlamento europeu, serem, por esse mecanismo, como que excluídas desse diálogo. No período decisório sobre o Tratado de Nice, cuja negociação também titulei por parte de Portugal, o diálogo entre o governo e o PSD seria conduzido diretamente por António Guterres com Durão Barroso, acompanhados nesses contactos por Maria Eduarda Azevedo e por mim.
Nos dias que hoje correm, quando o antigo conceito de "arco da governação" não atravessa as suas melhores horas, não é com certeza muito popular defender que PS e PSD devem manter, entre si, um diálogo regular, como polos naturais de alternância política que nunca deixarão de ser. Contudo, acho que o cultivo desse diálogo se deve manter para as grandes questões de Estado, muito em especial para a política externa e, neste âmbito, para os grandes temas europeus. Quanto mais não seja para constatatar divergências...