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domingo, abril 29, 2012

Nóbrega (1942-2012)

Acabo de ler, num jornal, que morreu o Nóbrega, com 70 anos. Na minha juventude vila-realense, o Nóbrega era um ídolo da cidade, em particular depois de ter saído do nosso Sport Clube, onde o vi jogar por várias vezes. Um dia, um qualquer "olheiro" assinalou-o ao FC do Porto, onde viria a ganhar o lugar de "ponta esquerda". Por lá ficou uma dúzia de anos, nas décadas de 60 e 70, seguindo depois a habitual peregrinação que o destino aponta aos ex-jogadores, como treinador de pequenos clubes de província.

O Nóbrega era um futebolista muito rápido, com um excelente pé esquerdo, na época em que os "pontas" ("esquerda" ou "direita") corriam colados à linha, avançando, tão longe quanto possível, para centrarem "adiantados", evitando os fora-de-jogo (habituei-me, com o meu pai, até hoje, a dizer "off-side"), com cruzamentos sobre a área, onde os "pontas de lança" aproveitavam as suas jogadas. Julgo que o Nóbrega ganhou as suas quatro internacionalizações, de que a cidade muito se orgulhava, tirando o lugar ao Fernando Peres ou ao Oliveira Baptista, já não sei bem. Sei apenas que ambos eram do meu Sporting...

Lembro-me muito bem do pai do Nóbrega, o sr. Nóbrega, homem grande e com forte vozeirão, morador na Fontinha (ruela em que eu seguia para a minha primária "escola do trem"), logo à saída do "cabo da bila" (é assim, com "b"), famoso columbófilo e com fama de homem de esquerda, que tinha como profissão o ser artesão de pintura (ainda me recordo de ver, lá por casa, um tabuleiro metálico, com as armas da cidade, pintado pelo sr. Nóbrega, objeto de beleza mais do que discutível).

Quando o Nóbrega, o jogador, ao tempo em que era vedeta, se passeava pela cidade, esta olhava-o com evidente admiração. (Vila Real nunca teve muitos futebolístas conhecidos: com algum destaque, apenas o meu amigo Amaral e o Fraguito, ambos idos do Sport Clube... para o Sporting*). Recordo-me muito bem de ver o Nóbrega, de visita à cidade, um pouco curvado para a frente (ou talvez seja sugestão minha, pela forma como me habituei a vê-lo jogar), caminhando pela rua Direita (a maioria dos leitores não conhecerá a rua Direita, mas basta que saibam que é o "eixo" essencial da cidade), com o fácies grave e fechado que muitos adultos de Vila Real sempre exibem, creio que como forma de serem levados a sério. Nesses regressos, o Nóbrega, acolitado por alguns orgulhosos amigos locais, saudava, generoso, os conhecidos com quem se cruzava, que logo ficavam reconhecidos pela confiança recebida de um personagem famoso.

Era assim a minha cidade, a cidade do Nóbrega.

*(E Simão Sabrosa, que desconheço se jogou no SCVR e que foi... para o Sporting. E Paulo Alves, que, esse sim!, jogou no SCVR e teve êxito... no Sporting. E, claro!, o Costa, que foi para o FC do Porto, onde jogou vários anos).

quarta-feira, abril 25, 2012

Miguel Portas (1958-2012)

Acho que Miguel Portas, se tivesse podido determinar a data da sua saída deste mundo, gostaria que ela tivesse coincidido com um 25 de abril. Por algumas horas, isso não foi possível. Mas os cravos de hoje são para ele.

Conheci pessoalmente o Miguel há cerca de dez anos. Eu estava colocado em Viena, tínhamos amigos comuns e, um dia, recebi dele um e-mail, manifestando o desejo de trocarmos impressões sobre as questões europeias, numa ocasião em que eu passasse por Lisboa. Era um assunto em que eu trabalhara alguns anos e pelo qual me continuava a interessar, embora dele desligado profissionalmente. 

Convidou-me para almoçar, sugerindo, cuidadoso com os riscos para o meu "estatuto", aquilo que considerava um sítio "discreto": um pequeno restaurante na praça da Armada (ao lado das "espanholas"), que costumava frequentar (e que eu, por "milagre", não conhecia). Ri-me, intimamente, divertido com o que sabia ir ser o grau de "discrição" do lugar: minutos depois da nossa chegada, as escassas mesas foram invadidas por funcionários do ministério dos Negócios estrangeiros, os quais, nessa tarde de fins de 2002, devem ter espalhado, por uns claustros das Necessidades à época um tanto assombrados, terem sido testemunhas de uma conversa sigilosa entre um embaixador algo conhecido e um deputado do Bloco de esquerda. Recordo-me bem de preocupação do Miguel quando, bem disposto, lhe revelei as presumíveis consequências, em matéria de inevitável "gossip", desse nosso encontro. E sosseguei-o quanto à importância que eu próprio (não) dava ao facto.

O Miguel Portas que então conheci - e com quem, em anos futuros, apenas troquei bastantes e-mails, dada a nossa vida geograficamente distante - era um homem sereno, com um sorriso acolhedor, extremamente delicado, que transpirava honestidade e sentido de dedicação à coisa pública. Tinha seguido, desde bastante novo, um percurso político de grande dignidade, retratado de forma curiosa num pouco conhecido livro inglês, de 1975, que um dia descobri num "sebo" (alfarrabista) brasileiro. O Brasil, aliás, interessava-o bastante, como sempre sublinhava um amigo comum, que muito me falava dele - Tarso Genro, ministro da Justiça e agora governador do Rio Grande do Sul.

À época desse nosso encontro, o Miguel estava muito preocupado com o sentido que as coisas tomavam na Europa. Mas, contrariamente a mim,  angustiava-o menos a nova arquitetura institucional que se desenhava, e, muito mais, o sentido, que lia como quase totalitário, da deriva neoliberal que atravessava as políticas que iam fazendo o seu caminho em Bruxelas. Mal nós imaginávamos o que estava por aí para vir...

Recordo-me de, na conversa, o ter interrogado sobre a génese do Bloco de Esquerda, tentando perceber como era possível a convivência, no seu seio, de tradições trotskistas e maoístas, dimensões que eu julgava mais incompatíveis do que a água com o azeite. Contou-me o papel que as pessoas como ele, originárias do PCP e chegadas ao Bloco através da "Política XXI", representavam nesse (então) curioso projeto político. E recordo-me bem de uma frase que me disse: "No fundo, eu sou hoje considerado como situado na ala direita do Bloco".

Miguel Portas fez um trabalho notável no Parlamento Europeu, sem concessões, com imensa coragem, correndo mesmo o risco de afrontar as iras corporativas, de que é bem demonstrativa uma notável e quase histórica intervenção, que pode ser vista aqui. Ainda na passada semana, em Bruxelas, dele falei com amigos, que me avisaram do agravamento da sua doença.

É quase um lugar comum dizer que homens como Miguel Portas fazem muita falta à política portuguesa. Mas fazem-no muito mais à sua família - muito em especial à sua mãe, Helena Sacadura Cabral, estimada comentadora deste blogue, bem como ao seu irmão, Paulo, meu ministro - a quem deixo a expressão amiga e muito sincera do meu grande pesar por esta perda.

Este 25 de abril é muito mais triste sem Miguel Portas.

quinta-feira, abril 19, 2012

Benjamin Marques (1938-2012)

Faleceu, em Paris, o pintor português Benjamin Marques.

Há muitos anos residente em França, onde seguiu por vários percursos de vida, Benjamin Marques era uma figura muito respeitada e estimada no seio da comunidade cultural portuguesa. Reivindicando-se de uma herança surrealista, fruto de contactos na sua juventude lisboeta, a sua pintura mais recente seguia já abertamente por outros caminhos, como tive o ensejo de observar em exposições onde exibiu os seus trabalhos. Um dos seus hóbis de eleição era a história de arte, tendo proferido diversas conferências sobre o tema.

Benjamin Marques era um homem de alma grande, caloroso, de emoção fácil e verbo cuidado. Devo-lhe gestos de grande simpatia e vou sentir falta dos abraços com que sempre me acolhia. O coração traiu-o, na manhã de hoje. À sua família, bem como à sua grande amiga e colega artística Isabel Meirelles, deixo o testemunho do meu respeito pela sua memória.

quarta-feira, abril 18, 2012

Ardiles e Messi

Em Londres, em 1982, durante a guerra entre o Reino Unido e a Argentina, a propósito do arquipélago das Falkland/Malvinas, testemunhei o facto do fantástico jogador argentino Oswaldo Ardiles ter de ser cedido temporariamente pelo Tottenham, em face do ambiente hostil que se criou à sua volta.

A crise política que agora se instalou entre Madrid e Buenos Aires, por virtude da nacionalização conflitual de uma empresa petrolífera com capitais espanhóis, está, felizmente, muito longe de ter a dimensão do conflito desse mês de abril, há precisamente 30 anos. Por isso, tenho esperança em que um outro génio argentino do futebol, como Lionel Messi, não veja a sua brilhante carreira afetada por esta nova tensão. 

Será que o futebol pode escapar, por completo, à política?

sexta-feira, abril 13, 2012

Margarida Figueiredo

Só hoje me chamaram a atenção para a magnífica entrevista que a minha amiga e colega (do MNE e da mesa do "Procópio"), também embaixadora, Margarida Figueiredo concedeu à revista do "Público", no último domingo, muito bem conduzida por Anabela Mota Ribeiro.

Ficou ali um retrato muito livre e a quente de alguém que está de bem com a vida que teve e tem, contada de forma divertida, saudavelmente irónica e sem baias. Nela soube traduzir, em linguagem colorida e inteligente, aquele que foi o tempo da entrada das primeiras mulheres na carreira diplomática, tudo isso somado a flashs curiosos sobre a burguesia portuense de onde emanou e que, desde sempre, cuidou em abalar e provocar. Para quem conhece bem a Margarida - e eu faço parte desses eleitos -, imagina-se o tom divertido com que aquelas palavras foram ditas, envolvidas pelo fumo de muitos cigarros e com imenso chá à mistura, sempre longe da preocupação do "politicamente correto", porque esse nunca foi o seu estilo - ou melhor, essa é muita da sua graça.

Retenho o seu delicioso "filme" do MNE, ao tempo de início de funções de Mário Soares, como ministro, logo após o 25 de abril: "No dia em que Soares chegou, em menos de dois minutos, estava o MNE inteiro no átrio. Tudo a tirar o brasão do dedo e a descobrir a lavadeira na árvore genealógica".

Bravo, Margarida! 

quarta-feira, abril 04, 2012

Zé Guilherme

A "manga" do aeroporto de Orly que, no passado fim de semana, ligava ao avião da TAP para o Porto, fazia um cotovelo, o que permitia aos passageiros ler, com facilidade, o nome do aparelho: "Francisco d'Hollanda". À minha frente, dois "letrados", um tanto ajavardados, comentavam: "estes tipos até põem nomes de holandeses aos aviões da TAP, vê lá tu!". Ao que, quiçá premonitório, o outro respondeu: "daqui a uns tempos vão ter nomes chineses, ai vão, vão!"

Entendi não valer a pena explicar que Francisco d'Hollanda foi uma das figuras mais proeminentes da arte portuguesa no século XVI. Lembro-me bem de, no momento, ter pensado que o meu amigo e embaixador José Guilherme Stichini Vilela havia escrito um pequeno livro sobre Francisco d'Hollanda - coisa que eu descobri por acaso, um dia, numa livraria, e a que ele, para minha surpresa, nunca atribuiu grande importância.

Prestes a regressar a Paris, dois dias depois, já no aeroporto do Porto, recebi um telefonema, a dar-me conta da morte do Zé Guilherme.

Coincidimos em posto, em Luanda, nos anos 80, nesse tempo inesquecível em que, com António Pinto da França e Fernando Andresen Guimarães, todos juntos, conseguimos transformar um período profissional tenso e potencialmente abafante numa divertida aventura de vida - também com o Miguel Chalbert, a Ana Poppe, o António Vallera, a Élia Rodrigues, o Fernando Valpaços, os "Guedais" (Vasco, Sérgio e Zé Tó), a Bá e o Pedro, a Lena e o Bo Backstrom, a Alzira e o João Sobral Costa e tantos e tantos outros.

Até então, eu conhecia mal o Zé Guilherme. Desde aí, ficámos, para sempre, muito amigos e pelo mundo nos fomos encontrando, às vezes com alguma regularidade, outras vezes nem tanto - em Argel e em Londres, no Rio de Janeiro ou em Istambul. Fizemos magníficas férias juntos (lembras-te, Alda?) e, para sempre, o Zé Guilherme passou a ser um membro da nossa família. Era, para nós, como que um irmão mais velho, que às vezes parecia até bem mais novo. Era um congregador de afetos, generoso sem limites, dedicado aos outros, mesmo a alguns que o não mereceram. Muito culto, com um imenso bom gosto, tinha uma grande abertura ao novo e ao diferente, criando, com naturalidade e sem esforço, novos amigos e conhecidos, quase sempre gente muito diversa e interessante. E, às vezes, não.

Falámos pelo telefone, há muito pouco tempo. Desafiei-o a vir visitar-nos a Paris, onde tinha vivido, por duas vezes, no início da sua carreira. Respondeu-me com um discurso cansado e algo desiludido. Mas, depois, na ciclotimia de ânimo que era muito sua, mandou-nos um belo texto de ficção, que escreveu e que hesitava se devia ou não em publicar em livro. E, dias mais tarde, inscreveu-se como "amigo" no Facebook, com uma foto onde exibia um chapéu de palhinha, ao jeito da vida bem informal que agora levava.

O Zé Guilherme fazia parte daquelas pessoas de quem nos sentimos muitos próximos e que, porque não "frequentadas" com a regularidade que desejaríamos, em especial durante a nossa última década de permanência contínua no estrangeiro, tínhamos "reservado" para um convívio futuro mais assíduo, nos tempos mais calmos de ocupações que estão aí para vir. Mas não, já não vai ser possível usufruir do seu sorriso delicado e algo triste, das conversas serenas que alimentava, da sua imensa paciência para os erros dos amigos e, também, da sua crescente impaciência para as posturas dos idiotas. As amizades, como tenho vindo a aprender, não podem ter férias. Assumo a minha quota-parte de culpa nalguma solidão em que ele se foi fechando e em que acabou os dias.

Um imenso abraço, Zé Guilherme, até sempre. 

quinta-feira, março 29, 2012

Protocolo

O meu colega e amigo embaixador José Bouza Serrano publicou, há poucas semanas, o "Livro do Protocolo".

Muitos de quantos se interrogam, por vezes de forma irónica, sobre a "liturgia" do cerimonial oficial teriam vantagem em visitar esse volume, como forma de entenderem melhor a importância do protocolo na vida dos Estados e nas relações internacionais. E também para aprenderem algumas coisas básicas, que ajudam à convivência, permitem superar equívocos e facilitam as relações, dando indicações preciosas sobre comportamentos e práticas adequadas.

De Gaulle, bem atento aos símbolos, dizia que o protocolo era a "ordem da República". Na minha vida profissional, sendo embora muito atreito a olhar as coisas da forma mais simples e desformalizada que for possível, aprendi a ter um grande respeito pelas regras protocolares, porque elas são, imensas vezes, o esqueleto que permite manter - de forma muito distante do caráter fútil que se lhes atribui - um equilíbrio saudável na vida oficial. Também me dei conta, em muitas ocasiões, que essas regras são, muito para além disso, um modo discreto de suprir faltas de educação de muita (dita boa) gente.

Para olhares menos atentos, o protocolo surge uma atividade marcada pela "ligeireza", pelo "maneirismo", pelo snobismo impositivo. Não é nada disso. Nas relações internacionais, não damos conta do protocolo até ao momento em que uma falha nesse âmbito tenha lugar. Quanto tal acontece, é um "aqui d'el rei!" geral, um mal estar das personalidades políticas, comentários jocosos da imprensa, olhares enviezados de colegas menos atentos, por vezes com sensíveis efeitos na substância das relações políticas. Desde há muito que criei um profundo respeito pelos diplomatas e técnicos que se encarregam do protocolo de Estado português. E eles sabem-no.

Quando entrei para o serviço diplomático, a nossa "bíblia" protocolar era "o Serres", o "Manuel pratique du protocole", uma obra de Jean Serres, de 1965. Mais tarde, na tradição francesa que fez muita escola em Portugal, tornou-se-me útil (e mais divertido, pela sua escrita solta) o "Guide du protocole et des usages", de Jacques Gandouin, que até já tem uma "édition de poche". Mas, devo dizer, até porque tem uma vertente importante em matéria de Direito internacional, que continuo a ser um incondicional fã do britânico "Satow's guide for diplomatic practice", que já vai em muitas e renovadas edições, desde a original de 1917. Tenho, além disso, umas boas dezenas de outras obras sobre protocolo diplomático, em outras línguas - para além das que já encomendei, à luz da bibliografia citada neste novo "Livro do protocolo".

Havendo regras internacionais que enquadram as práticas protocolares, a verdade é que cada país cria também o seu próprio protocolo, pelo que as "liturgias" variam de Estado para Estado, para além de, naturalmente, evoluírem com os tempos. Em Portugal, o livro "Regras do cerimonial português", do embaixador Hélder Mendonça e Cunha, foi, durante muito tempo, a obra referencial. Todos tínhamos "o Hélder" nas nossas estantes, para resolver questões de precedências, colocação e ordem de condecorações, regras para os lugares à mesa em cerimónias, cartões e tipo de convites, etc. Mais tarde, o embaixador José Calvet de Magalhães, com o seu magnífico "Manuel diplomático" (uma espécie de "Satow's" em português), trouxe uma atualização sensata ao "Hélder", para além de ser uma obra com outro fôlego e justificada ambição.

Agora, o José Bouza Serrano, com cultura, inteligência e um insuperável bom-gosto e elegância, transpõe para livro o caldo da sua longa (e muito bem sucedida) experiência como diplomata e, em especial, como chefe do Protocolo do Estado. Por isso, este seu livro passa a ser uma nova "bíblia", embora talvez não tão laica e plebeia como eu gostaria que fosse (e ele sabe porque digo isto...). Mas trata-se, sem a menos sombra de dúvida, de uma obra muito importante, uma incontornável (como agora se diz) referência na matéria, cuja consulta - mesmo para gente fora "dos Estrangeiros" - fortemente recomendo.

Termino com uma frase significativa de Jaime Gama, no prefácio deste trabalho: "Vencer o preconceito em torno do protocolo é um ato de maturidade que aperfeiçoa as sociedades e lhes confere um acrescido grau de liberdade, porque lhes acrescenta civilização".

Humor

Há dias, foi-se o Chico Anísio. Agora, desaparece o Millôr Fernandes.

Deixa-nos tristes gente que nos punha alegres.

segunda-feira, março 19, 2012

Ramos Horta

O presidente de Timor-Leste, José Ramos Horta, que se candidatava a um novo mandato, foi ontem eliminado, pelo voto popular, da segunda volta das eleições.

Conheci Ramos Horta em 1992, em Londres, apresentado (por quem havia de ser?) por Ana Gomes, desde sempre a "alma" da mobilização diplomática portuguesa em favor da autodeterminação timorense. José Ramos Horta era então o infatigável promotor internacional da causa timorense, tecendo uma importante rede de contactos - junto de diplomatas, de políticos, da imprensa e das ONG's - que foi essencial para manter acesa a chama da luta contra a Indonésia. Jovem ministro dos Negócios Estrangeiros do governo auto-proclamado pela Fretilin, em 1975, exilou-se desde então, voltando a assumir esse cargo no novo governo criado em 2002, sendo, tempos mais parte, nomeado primeiro-ministro e, depois, eleito presidente da nova República.

aqui contei como, em 1999, com o bispo Ximenes Belo e com José Ramos-Horta, conseguimos ajudar à condenação da Indonésia na Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, depois dos trágicos acontecimentos posteriores ao referendo em Timor-Leste e já depois do comité Nobel lhe ter atribuído, em Oslo, o prémio Nobel da paz. E também como, meses depois, fui testemunha, em Nova Iorque, do trabalho diplomático de Jorge Sampaio e de Ramos Horta, com vista a consolidar a mudança de atitude da administração Clinton face ao processo timorense, num almoço com Richard Holbrooke.

Tempos mais tarde, quando representei Portugal nas Nações Unidas, tive ocasião de, por várias vezes, conversar longamente, também em Nova Iorque, com José Ramos Horta, e com ele articular, em estreita ligação com Sérgio Vieira de Melo, algumas iniciativas no âmbito da ONU, em especial com vista a manter a atenção da comunidade internacional para a necessidade de preservar a sua presença militar, num Timor-Leste ainda tocado por sérias ameaças à sua segurança. Voltei depois a encontrá-lo em Brasília, em 2008, num simpático almoço, a convite do presidente Lula, já na sua qualidade de presidente timorense.

José Ramos Horta é uma personalidade cuja ação não deixou de ser objeto de alguma controvérsia. Ao longo do complexo processo de luta internacional pela libertação de Timor, nem sempre as  posições portuguesas coincidiram, em absoluto, com as suas, não obstante o objetivo final da nossa comum atividade ter permanecido precisamente o mesmo. Parte dos seus amigos ficou também muito desapontada com o apoio público que, em 2003, concedeu à invasão angolo-americana do Iraque.

Mas, tudo somado, quero dizer que sempre mantive uma grande admiração pela figura de José Ramos Horta, pelo seu perfil de patriota e pela coerência global que, ao longo de décadas, sempre demonstrou, na perseverança numa luta justa em que, desde muito cedo, se empenhou. A independência de Timor deve-lhe imenso e a diplomacia portuguesa é disso uma das melhores testemunhas. A sua serena saída de cena, no auge deste novo processo eleitoral, expressa a maturidade do processo democrático pelo qual Ramos Horta sempre lutou.

Aqui deixo um abraço amigo a José Ramos Horta.  

domingo, março 11, 2012

Mário Melo Rocha (1957-2012)

Mário Melo Rocha, que ontem desapareceu, era um dedicado europeísta e um homem de cultura, para além da sua profissão de advogado e especialista em temáticas do ambiente.

Foi através dos temas europeus que nos conhecemos, tendo eu participado em algumas iniciativas que organizou, nomeadamente no âmbito da SEDES e da Universidade Católica, no Porto. Lembro-me, em especial, de um interessante debate que promoveu e em que intervim com a Teresa de Sousa e o José Barros Moura, nos tempos da negociação do Tratado de Amesterdão.

Recordo-o, também, pela sua simpatia pessoal, pelo modo entusiasmado como se dedicava às coisas e às causas. Sai de cena bem cedo.

sexta-feira, março 02, 2012

Manuel Sá Machado

Na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros português há um nome, pouco conhecido pelas atuais geração, a quem a carreira diplomática muito ficou a dever: Manuel Sá Machado. Ontem à noite, uma amiga estrangeira falou-me dele, com grande admiração.

Manuel Sá Machado estava a trabalhar no MNE, na secção do "Pacto do Atlântico", na altura do 25 de abril. Homem de conhecido perfil democrático, tinha travado conhecimento com o oposicionista Victor da Cunha Rego, ao tempo em que servira como diplomata no Brasil. Cunha Rego acabara de ser escolhido por Mário Soares, logo em Maio de 1974, para seu chefe de gabinete nas Necessidades. E, com naturalidade, chamou Sá Machado para trabalhar junto de si.

Como relata o embaixador Calvet de Magalhães no seu trabalho "O 25 de abril e as Necessidades", Manuel Sá Machado era "um funcionário excecional. Além das suas invulgares qualidades era uma pessoa de um enorme bom-senso, trato cordial e raras qualidades de caráter. O Dr. Cunha Rego indicou-o ao Dr. Mário Soares como a pessoa idónea para o informar sobre tudo o que respeitava ao ministério e aos seus funcionários".

Em vários livros e conversas, Mário Soares já revelou que a imagem que, até ao 25 de abril, criara do MNE e, na generalidade, da carreira diplomática portuguesa, não era muito lisonjeira. Porque a diplomacia aparecia ligada à primeira linha da ação internacional de defesa da política colonial do regime e porque também se suspeitava que a polícia política utilizava certas redes diplomáticas e consulares para espiar democratas no exílio, era perfeitamente natural que o MNE surgisse, aos olhos dos opositores do regime, como um núcleo funcional merecedor de muito escassa confiança. Em vários setores políticos do novo poder cedo surgiu a ideia de proceder a uma ampla "vassourada", que afastasse um grande número de diplomatas e, em sua substituição ou para um seu eficaz enquadramento, garantisse o rápido recrutamento de uma nova classe "diplomatas da democracia", oriunda dos meios políticos vitoriosos.

Ora foi precisamente a credibilização da carreira, ou melhor, a certificação do profissionalismo da grande maioria dos diplomatas portugueses, a tarefa de que se encarregou Manuel Sá Machado. Este nosso colega terá conseguido explicar a Mário Soares que, com algumas exceções, tinha ao seu dispor, para conduzir a política externa, um corpo dedicado e qualificado de funcionários de grande lealdade à causa pública, com sólida experiência, perfeitamente preparados para sustentarem o novo tempo internacional que se abria à diplomacia portuguesa. Mário Soares acreditou em Sá Machado e a carreira soube corresponder a essa confiança.

Nunca conheci pessoalmente Manuel Sá Machado, embora talvez o possa ter cruzado nos corredores do MNE, antes da sua prematura morte, creio que em 1977. Mas a conversa que ontem tive lembrou-me o dever de deixar aqui uma nota de admiração e de gratidão pela ação desse colega, que ajudou a que a carreira diplomática portuguesa não tivesse de passar por desnecessários tempos traumáticos. E, mais importante que tudo, que a diplomacia portuguesa pudesse preservar, para além dos ciclos políticos, o seu perfil de serviço público, competente e leal.

sábado, fevereiro 25, 2012

Selassie

O anedotário popular português durante a ditadura era feito de pequenas historietas, que se pretendiam ridicularizadoras do regime e das suas figuras. Vistas à luz do humor de hoje, essas graças aparecem de uma inocuidade quase infantil. Mas, à época, repetidas à boca pequena nos empregos e nos cafés, constituiam-se como um subtil discurso de resistência, denegridor da seriedade formal com que as personagens do poder sempre gostam de se revestir.

Uma dessas historietas dizia respeito à visita a Portugal, em 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassie. A visita, integrada numa frustrada sedução de líderes "do sul" para amenizar a pressão internacional sobre a política colonial portuguesa, processava-se cerca de um ano depois da grande "chapelada" eleitoral que havia colocado o contra-almirante Américo Tomaz no palácio de Belém. O sufrágio havia sido comprovadamente recheado de fraudes, o que, para muitos, terá inviabilizado a eleição do candidato opositor, o general Humberto Delgado. Por essa razão, a legitimidade política de Tomaz, como presidente, era, à época, ainda muito contestada em largos setores portugueses.

O Negus foi recebido no Cais das Colunas, em Lisboa, em "grande estadão", pelo novo presidente da República (não consegui encontrar uma foto conhecida desse encontro, com Tomaz de imponente bicórnio). E é assim que a pequena "história" regista o que teria sido o primeiro contacto entre os dois:

- Eu sou Américo Tomáz, presidente de Portugal.

- Eu Selassie (leia-se "sei lá se é)...

Ontem, ao verificar que a missão da troika vai passar a ser dirigida pelo etíope Abebe Selassie, não pude deixar de me lembrar da anedota. Com a certeza plena de que a curiosidade fonética do nome do novo "fiscal" não deixará de acordar entre nós, uma vez mais, o inesgotável e corrosivo poder do riso, qualidade essa que nunca ninguém nos conseguirá confiscar, por mais amarelo que ele possa andar, nos dias que correm.

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

José Afonso

Tive a sorte de poder assistir - de pé, bem à frente - ao espetáculo histórico que teve lugar no Coliseu dos Recreios, de Lisboa, em 29 de Março de 1974, pouco antes do 25 de abril.

Hoje, dia em que passam exatamente 25 anos sobre a morte de José (Zeca) Afonso, aqui fica uma imagem desse momento, na qual se podem ver, da esquerda para a direita, Barata Moura, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, Fausto, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Foi uma sessão memorável, mas, se bem recordo, uma noite em que Zeca Afonso não cantou nenhuma das suas principais canções, porque a isso não estava autorizado.

Da sua produção, e numa versão "pura", escolhi o tema de 1963 "Os Vampiros".

Baptista de Matos

"Nós não somos imigrantes, nós somos cooperantes, somos pessoas que viemos aqui para vos ajudar a aprender a fazer bem estas coisas" - terá sido esta a resposta de José Baptista de Matos a comentários xenófobos que, quando trabalhador dos caminhos de ferro franceses, recebeu de um responsável da obra em que operava, nos anos 70 do século passado.

Quem ontem nos contou isto, numa intervenção na embaixada de Portugal, foi o "maire" de Fontenay-sous-Bois, Jean- François Voguet, que conhece Baptista de Matos há mais de quatro décadas e que testemunhou a cena.

José Batista de Matos construiu um sólido prestígio, como dirigente associativo da comunidade e como ativista cívico em defesa dos interesses dos seus concidadãos. O reconhecimento disso já o tinha feito a "Cité nacionale de l'histoire de l'immigration", que ao seu exemplo de luta e sucesso pessoal dedica hoje em dia uma bela vitrina.

Ontem, com a significativa presença do secretário de Estado das Comunidades portuguesas, Baptista de Matos recebeu a ordem de Mérito com que foi agraciado pelo presidente da República portuguesa. Uma homenagem simples devida a um homem que, durante toda a sua vida, perseverou pela dignidade dos portugueses mas, igualmente, pela relação sempre fraterna com a França que o acolheu.

domingo, fevereiro 19, 2012

Igrejas Caeiro (1917-2012)

Imagino que a morte de Igrejas Caeiro possa deixar indiferente muita gente, que nunca nele ouviu falar e que nunca escutou a sua inconfundível voz, que é parte da história da rádio portuguesa.

Igrejas Caeiro, um homem perseguido pelo Estado Novo, pelas suas ideias democráticas, faz também parte da nossa história cívica, nomeadamente como deputado à Assembleia Constituinte.

É sempre triste constatar a morte de um dos nossos "Companheiros da Alegria". Particularmente num tempo em que, cada vez mais, "uma nota de quinhentos não se pode deitar fora".

terça-feira, fevereiro 14, 2012

Café Filho

Há uns dias, falei por aqui de Café Filho. Um colaborador da embaixada, antes de ir googlar as suas dúvidas, perguntou-me quem era.

Café Filho foi um presidente inesperado do Brasil. Sucedeu a Getúlio Vargas, depois do suicídio deste, em 1954. Foi presidente por menos de um ano e meio, tendo-se afastado do cargo por formais razões de saúde (morreu em 1970, com 71 anos). Nem por isso o Estado Novo português deixou de o convidar para uma deslocação a Lisboa, que ficou nos anais das grandes visitas de Estado realizadas a Portugal.

O objetivo de Lisboa era garantir o apoio do Brasil à sua política colonial, atitude que este país só viria a modificar depois da instauração da ditadura militar. Espera-se que que alguém tenha tido o cuidado de explicar a Café Filho que o banho de multidão que teve pelas ruas de Lisboa era menos a expressão da sua popularidade pessoal do que a mostra da imensa simpatia que Portugal tinha pelo país que representava.

Deve ser interessante procurar, nos arquivos do MNE o argumentário que terá estado subjacente ao convite para uma visita de Estado de tão efémero e transitório personagem. Mas a presciência na decisão deve ter sido, pelo menos, idêntica àquela que nos levou, anos mais tarde, a iniciar a construção do monumental palácio de S. Clemente, no Rio de Janeiro, para futura embaixada de Portugal, quando já estava praticamente tomada a decisão de mudar a capital do país para Brasília...

Voltando a Café Filho, foi-me muito interessante verificar, durante os anos que vivi no Brasil, que raramente alguém o identificava como um chefe de Estado da história do país. E que todos ficavam altamente surpreendidos quando eu lhes revelava que essa figura política havia atravessado em glória a rua Augusta, em Lisboa, em carro aberto, sob aplausos e chuva de papelinhos, como o mostram os jornais da época.

Um dia, ao visitar oficialmente a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, pedi para incluírem uma visita ao "Museu Café Filho". Todos os interlocutores locais ficaram surpreendidos, porque, sem exceção, desconheciam a existência desse museu e, alguns deles, do próprio Café Filho, que não identificavam como potiguar (designação dos naturais do Rio Grande do Norte). Teimosamente, lá consegui colocar a visita na agenda. O museu, afinal, era uma desilusão. Como detetei pelo livro de registo, os seus visitantes eram muito escassos. Recordo-me que havia algumas salas com móveis, estantes com livros e muito pouca documentação. Nesta faltavam fotografias da sua "apoteótica" visita a Portugal, que tanto havia marcado a minha memória de infância. 

sábado, fevereiro 11, 2012

Salvador

A cidade brasileira de Salvador da Bahia atravessou dias terríveis, com a greve da polícia a gerar uma onda inédita de criminalidade violenta. Lembrei-me muito dos bons amigos que tenho naquela que é a terra onde se cruzam, de forma mais visível, as principais componentes humanas que formaram o Brasil. Entre as quais a portuguesa, bem simbolizada no Gabinete Português de Leitura, de que fica a foto.

Durante muitos anos, a vida política da Bahia teve como figura tutelar António Carlos de Magalhães, uma das poucas personalidades que os brasileiros identificam pela sigla do seu nome: ACM (as outras duas são JK, Juscelino Kubitschek, e FHC, Fernando Henrique Cardoso, o que julgo significativo). 

Nascido para a vida cívica durante o regime militar, ACM foi aquilo que no Brasil se chama um "coronel", uma figura dominadora da política e da sociedade local, com uma força económica e mediática que garantiam o prolongamento da sua manutenção no poder. Fazer política, na Bahia, fora do controlo do clã ACM ou contra ele, era uma aventura, no mínimo, muito arriscada. Personagem controversa, arregimentou, ao longo da sua vida, imensos inimigos no Brasil mas, igualmente, uma legião de seguidores na Bahia. Tendo sido um dos políticos mais poderosos do seu país, teve quase tudo o que o destino lhe poderia dar: foi deputado estadual, prefeito, deputado federal, senador, presidente do senado, governador do Estado, ministro, etc. Conservador nas ideias, apoiou a ditadura militar e, no quadro democrático, integrou sempre as formações mais à direita do espetro político. De origem portuguesa, ACM tinha uma profunda ligação afectiva ao nosso país, cujos interesses no Brasil sempre cuidou em apoiar, quando a tal solicitado.

Em início de 2007, a vida política baiana deu uma imensa reviravolta: o clã ACM foi fortemente derrotado nas urnas, perdendo o governo do Estado, que passou para o PT. Na Bahia, Portugal tinha e tem importantes interesses na área empresarial, pelo que, logo após a sua posse, me desloquei a Salvador para encontrar o governador recém-empossado, Jacques Wagner. Nesse dia em que visitava oficialmente o novo poder, fiz questão de convidar António Carlos de Magalhães para um jantar público naquele que era - e não sei se ainda é - um dos locais mais "in" de Salvador: o Hotel Convento do Carmo, da rede das Pousadas de Portugal. O velho político ficou claramente agradado com o gesto do representante diplomático português, agora que os seus préstimos potenciais para o país onde estavam as suas origens ficavam muito mais reduzidos. Mas eu quis manifestar-lhe, num tempo que lhe era então muito adverso, a gratidão que devíamos a alguém que sempre mostrara gostar de nós. Para a história: ACM viria a morrer seis meses depois. 

Da manhã desse mesmo dia, recordo uma historieta que dá bem conta da complexidade da política brasileira. Eu seguia num carro cedido pelo governo da Bahia. A certo passo, decidi interrogar o motorista, um homem muito simples, sobre os novos rumos da política do país: Lula tomara posse para um segundo mandato, escassos dias antes. "Está satisfeito com a reeleição de Lula?". O homem sorriu, deliciado, e disse: "Eu votei Lula. Gosto muito dele. Fez muito por nós, pelos pobres". Um tanto curioso, inquiri: "E ACM? Que achava dele?". O motorista ia dando um salto no banco: "ACM? ACM é um santo! Está ver estes viadutos, estas estradas? Foi tudo feito por ele! Ele é o nosso pai".

Ver dois inimigos jurados serem adulados pela mesma pessoa é um milagre que só os orixás da Bahia poderiam fazer. Espero agora que esses mesmos orixás também possam ajudar a repor a calma na bela cidade de Salvador.

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Chipre

Ontem, ao receber a visita do meu novo colega cipriota, recordei-me de uma história passada em 1999, que se liga à existência das duas entidades que dividem, de facto, a ilha de Chipre. 

A República de Chipre é hoje um Estado membro da União Europeia. Cerca de 40% do seu território está sob controlo da chamada "República Turca de Chipre Norte", uma entidade criada em 1983, que só é reconhecida pela Turquia e que resultou de um conflito armado, em 1974, que opôs as comunidades cipriotas grega e turca. Nesse ano, uma invasão por tropas da Turquia, após uma tentativa de golpe de Estado para forçar uma anexação à Grécia, provocou a divisão forçada da ilha. Um complexo e não conclusivo diálogo entre as duas partes tem vindo a prolongar-se, desde então. A "linha verde" que divide ambos os espaços tem uma "buffer zone" controlada pela ONU, o que justifica a presença no terreno da sua mais antiga operação de manutenção de paz.

Nesse ano de 1999, fiz uma visita de trabalho a Nicósia, a fim de preparar a nossa presidência da União Europeia, no primeiro semestre do ano seguinte. Lembro-me de ter falado longamente com o então presidente da República, Glafcos Clerides, e com ministro dos Negócios Estrangeiros, George Kasoulides, sobre o processo de adesão do país à UE, muito apoiado pela Grécia, mas que, à época, tinha à sua frente alguns sérios escolhos, colocados por alguns parceiros. Desses interlocutores recolhi também a sua perspetiva sobre os problemas intra-comunidades na ilha.

Meses mais tarde, já no exercício da nossa presidência da União Europeia, visitei Ancara. Os turcos são a verdadeira e indisfarçada tutela de "Chipre Norte", pelo que o assunto faz parte integrante de qualquer diálogo seu com a UE. Para além da questão da sua própria adesão à UE, a Turquia deu sempre uma grande importância à questão cipriota e eu não me pude nem quis furtar-me a debater o assunto, quer com o meu homólogo, Mehmet İrtemçelik, quer com İsmail Cem, o ministro dos Negócios Estrangeiros. Cem, que já desapareceu, era um homem muito simpático e bem preparado, e conservo um livro com fotografias suas que então me ofereceu, várias da quais tiradas nos bairros populares de Lisboa. A visão de ambos esses políticos turcos era, como é óbvio, oposta à que eu recolhera em Nicósia.

Mas eu iria ter uma surpresa, nesta minha visita a Ancara. O primeiro-ministro turco, Bülent Ecevit, teve a a simpatia de me receber em audiência. Ecevit era um homem pequeno, com um ar antigo e um bigode proeminente. Era uma figura histórica da política turca, que alternou no poder executivo de Ancara com o seu grande rival conservador, Süleyman Demirel. Após as amabilidades introdutórias da praxe, colocou-me a seguinte questão: "Soube que esteve em Chipre há alguns meses. Por que razão não atravessou a "linha verde"?" Dito isto, ficou a olhar-me nos olhos, com um ar inquisitivo e profundo. Pelos vistos, estava bem informado sobre os passos dados em Chipre por alguém que mais não era do que um mero secretário de Estado de um país algo distante - um país que, no entanto, então como agora, defendia a presença plena da Turquia e de Chipre nas instituições europeias, sem que, contudo, deixasse de recusar abertamente o reconhecimento de "Chipre Norte". 

"Decidi não atravessar a "linha verde", senhor primeiro-ministro, porque estava em Nicósia a convite do governo da República de Chipre. Naturalmente, só visitei a parte da ilha que está sob o seu controlo".

Ecevit tinha, porém, uma hábil réplica preparada: "Mas o seu homólogo espanhol, poucas semanas depois da sua ida a Chipre, atravessou a "linha verde" e falou com as autoridades de "Chipre Norte"! Porque não fez o mesmo?"

Por um segundo, hesitei, mas respondi-lhe: "É verdade, mas o meu colega espanhol estava na ilha na sua capacidade de representante da presidência da União Europeia e, por essa razão, era natural que procurasse falar com todas as partes. No meu caso, estava numa visita de natureza bilateral à República de Chipre, com a qual assinei mesmo um acordo em Nicósia, pelo que não considerei que fosse esse o contexto adequado para atravessar a "linha verde"".

Ecevit não deu mostras de ter ficado muito convencido da racionalidade imbatível da minha resposta. E eu, confesso hoje, também não...

domingo, fevereiro 05, 2012

Ben Gazzara (1930-2012)

Nunca foi um ator de topo. As suas origens italianas revelavam-se naquela postura, andar e olhar de "matador" que conferiam, às vezes, um tom algo vulgar e repetitivo a algumas das suas interpretações, dando a impressão de que se estava a representar a si próprio, numa espécie de Humphrey Bogart alatinado.

Só John Cassavetes soube trazer ao de cima o seu melhor, em especial no "The killing of a Chinese bookie". E embora muito longe de ser o seu melhor filme, não esquecerei nunca a Nova Iorque de Gazzara e Audrey Hepburn, no "They all laughed", magistralmente dirigido por Peter Bogdanovich.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Paul Krugman

Há figuras que, de tanto as lermos, se nos tornam quase íntimas. Há dois dias, ao ouvir uma conferência do prémio Nobel da economia, Paul Krugman, senti algum "déjà vu", porque muitas das suas ideias, de tanto as ler nos artigos no "The New York Times", já se tornaram a sua imagem de marca. E, porque são conhecidas, essas ideias já quase não surpreendem, não deixando, contudo, de impressionar pela sua global coerência e racionalidade. 

(De há uns anos para cá, devo confessar que, sempre que me sinto tentado a concordar com as análises feitas por economistas, tenho, no segundo seguinte, uma reação de recuo e prudência. É que me lembro da definição: um economista é alguém que no futuro nos explicará a razão pela qual as previsões que fez no passado acabaram por não se confirmar no presente. Nem sempre é assim, mas...)

Durante a sua conferência, Krugman contou uma história a que assistiu, em 1999, numa conferência em Barcelona. Nela, o economista americano Larry Summers fez ver aos espanhóis os riscos que a sua economia sobre-endividada podia vir a correr, em especial pela "bolha" imobiliária que estava a gerar. A reação do auditório da conferência foi extremamente negativa, considerando alarmista e sem sentido a prevenção feita, nesse tempo em que se vivia uma onda de otimismo em Espanha, com saldo orçamental positivo. Para Krugman, esse momento ensinou-lhe que é praticamente impossível credibilizar alarmes quando a situação é lida pela generalidade das pessoas como estando a caminhar numa direção favorável. Isto é: só aprendemos à nossa própria custa.

Depois de amanhã!