quarta-feira, maio 17, 2017

O arroz do padre

Ao ler na imprensa de hoje que um padre italiano, conluiado com a Mafia, desviava alimentação destinada a imigrantes, a expressão "arroz do padre" veio-me à memória.

Foi há mais de 60 anos, lá por Vila Real. Eu era muito miúdo mas recordo bem uma conversa em torno de um arroz que um dia foi servido na casa onde então vivia, com os meus pais e os meus avôs. Louvava-se a qualidade ímpar de um arroz que estava a ser servido - de uma textura que nunca ninguém tinha experimentado até então (agora, depois de uma vida como "arroseiro" militante, imagino que tivesse sido o primeiro arroz agulha que nos fora dado a provar). À volta da mesa, as pessoas perguntaram-se de onde tinha surgido aquela maravilha. Foi chamada a criada (o termo "empregada" é bem mais tardio, nesse tempo em que também não havia "colaboradores" nas empresas), inquirida sobre se aquela "especialidade" (um termo muito usado à época, para qualificar algo de muito bom) fora comprado no Mário Miranda ou no Sarreiro, tradicionais provedores alimentares da casa.

A senhora surpreendeu toda a gente: "Não, esse é arroz do padre", e passou a explicar. Uma colega de uma casa vizinha alertara-a para o facto de, na sacristia de uma igreja da cidade (que não refiro, para evitar especulações dos vilarrealenses com boa memória), vendia-se arroz ao quilo, que vinha depois naqueles cartuchos de papel grosso, acinzentado. "É muito mais barato!", esclarecia a criada, ufana com a poupança introduzida no rol das compras.

Arroz à venda numa sacristia era, no mínimo um mistério, a que a sua extraordinária qualidade somava uma interrogação mais! 

Horas depois, o enigma escareceu-se: o tal padre estava a vender ao público, a granel, imagina-se que para crédito das contas da paróquia (numa versão otimista), arroz de origem americana que tinha chegado pela Caritas, para ser distribuído pelos pobres. O "desvio" era para dos os adultos da casa um tanto obsceno, numa casa por onde chegou a "circular" a "sagrada família" e onde existia um mealheiro de cartão, de cor azul clara, distribuído pela paróquia, com a inscrição rimada "um tostão por dia para os padres da freguesia".

Não sei quantos quilos de "arroz do padre" tinham sido adquiridos, não tenho registo se o prazer em consumir aquela delícia compensou o remorso de estar dela a privar os seus naturais destinatários. Só sei que o conceito de "arroz do padre" passou a ser um "benchmark" referencial, quase inatingível, para qualificar um arroz  excecional. 

Um dia, na Noruega, confrontado com um prato acompanhado de um belo "Uncle Ben's" (um notável arroz americano), lembro-me do meu pai suspirar: "É muito bom, mas nada que se compare com o arroz do padre..." 

7 comentários:

Anónimo disse...

"que não refiro, para evitar especulações dos vilarrealenses com boa memória"

...

Anónimo disse...

Claro que a história se não tivesse à mistura um padre da província, o arrroz não seria tão bom.
Tanbém neste caso não se deve extrapolar no sentido em que todos os padres cometiam crimes observados por ateus. Porque com certeza que o resto da referida população saberia bem donde vinha o produto.
Parece, sim, que estamos no principio do século XIX ou mesmo antes de 1910 com as campanhas contra a egreja efectuadas pelos republicanos.

Anónimo disse...

Caro anonimo das 19.13

Vou ja rezar por si ali à minha estatueta do santo Afonso decorada com guirlandas e bolas de natal, e que tem por detras um triptico com uns recortes de umas pin ups antigas, ja amareladas.


Anónimo disse...

ao Anónimo das 19:13,

o imediatismo das extrapolações e os esqueletos no armário tornam difícil perceber qualquer história, não é verdade?...
recuar, por recuar, porque não até ao reinado de D. Manuel I? ups!...

Anónimo disse...

Arroz agulha americano? Ó senhor Embaixador, estranho que, como ilustre arrozólogo, não prefira antes o nosso excelente arroz carolino, ali do Baixo Mondego.

Joaquim de Freitas disse...

O blogue « Duas ou Três Coisas » tem muitas mais coisas que o que se pensa. E tem de tudo. Do mais grave ao mais normal, mas sempre muito bem escrito, qualquer que seja o tema. E é por isso que o aprecio.

Essa do arroz do padre, fez-me rir! Estou a vê-lo a arder no inferno, em cima dum monte de palha de arroz que, como sabe, é uma fonte alternativa de energia, utilizada na Ásia.

Fantástico arroz, que até foi produto de beleza e remédio para a queda do cabelo …

Acontece que eu também gosto muito de arroz, é mesmo o meu alimento favorito, e que, talvez por isso, nunca adoeci nas dezenas de anos de viagem na Ásia, onde comia arroz…todos os dias. Aliás, como todos os asiáticos. Arroz é água, portanto alimento leve para a digestão, e bem cozinhado pode ser delicioso.

No Vietname, diz-se: “ A água é a pátria, o arroz é ouro”.

Claro que na minha infância, comia arroz e “massa” todos os dias. Era o alimento de base.

E para coroar a minha história, a Mãe da minha Esposa, de origem francesa, é a filha dum Administrador das Colónias, como se dizia, na realidade era Director dos Correios de Saigão, Cochinchina Francesa (!) como ela dizia, e nasceu nesta cidade.

Trouxe com ela desse país a arte de cozinhar o arroz, que comia frequentemente lá em casa.

Quando casei, houve renhidas discussões entre a minha Mãe, e a minha sogra, sobre os méritos de cada receita… Nunca estiveram de acordo!

Agora que as duas se foram do Mundo, fica-me a nostalgia desse arroz, Português ou Francês, das lezírias do Vouga ou de Camargue, mas uma coisa é certa: a diferença era grande entre aquele arrozinho com feijão, que tem uns olhinhos pequeninos e que esqueci o nome, cozinhado pela minha Mãe, e o cozinhado à moda vietnamita.

E cada vez que penso ir a Portugal, quero voltar àquele restaurante da Pousada de Santa Maria do Bouro, perto de Braga, onde comi uma arroz de pato com o qual sonho de vez em quando. Aqui, em França, ninguém sabe fazer disso… Mas sabem fazer bem outras coisas…

alvaro silva disse...

As estórias do "arroz de padre" ainda se mantém bem vivas nos dias de hoje, cá pelas minhas bandas (Viana do Minho) ainda se vão comprando vitualhas que são oferecidas pelos bancos alimentares e afins (mercearias, óleos e manteigas). Algumas famílias ditas "carenciadas" de pedinchões profissionais, aproveitam os géneros oferecidos por vezes á força, para depois os venderem aos vizinhos mais lerdos para o negócio. Depois vão comer aos refeitórios sociais, da Misericórdia ou cantinas escolares, pela módica quantia de 1 € por cabeça, e assim ficam a ganhar na transação, pois não gastam água, gaz detergente. Enfim os burros somos nós.

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