Nas eleições americanas, o debate sobre política externa não costuma ser muito sofisticado. Em regra, as posições assumidas pelos candidatos têm algo de caricatural, como se houvesse necessidade de simplificar o discurso para um universo de eleitores que concentra nas questões internas as razões essenciais para a sua escolha. É na retificação das alegadas insuficiências da posição dos EUA no mundo, durante os mandatos anteriores, que se situa o eixo das propostas dos candidatos.
Obama não deixa um mundo mais seguro do que aquele que encontrou. Pode dizer-se que se confrontou com uma desastrosa herança de George W. Bush, que teve de defrontar um Congresso hostil e que tentou desenhar uma agenda internacional de retificação da imagem intrusiva e irresponsável que o seu antecessor titulara. Outros dirão que não se pode criticar Obama por ter mostrado uma atitude menos intervencionista quando, precisamente, o mundo havia criticado Bush por assumir uma agenda oposta.
Não subscrevo esta tese desculpabilizante. Obama é presidente de um país que se arroga o direito de intervir onde e quando julga útil, através do mundo, para defesa do que entende ser o direito à sua segurança, que sempre procura que seja identificada com o interesse global. Um país que assim atua tem de ser responsabilizado pelos efeitos que as políticas que desencadeia acabaram por produzir. Ao mundo que as sofre, para o mal ou para o bem, é indiferente o nome do ocupante da Casa Branca.
Pode colocar-se a crédito de Obama (e de John Kerry) a diplomacia persistente que levou ao acordo nuclear com o Irão, a distensão incompleta com Cuba, mas pouco mais, a menos que queiramos incluir como feitos o seu fabuloso discurso do Cairo e a recente e inspiradora intervenção em Hannover.
Obama decidiu manter os EUA fora dos conflitos que não traziam uma ameaça direta à segurança americana e, não abandonando uma prática vetusta, optou pela ação multilateral quando com ela podia garantir os interesses americanos, mas não hesitou em usar a ação unilateral quando entendeu necessário para os mesmos fins. Pelo caminho, não cumpriu o que prometera sobre o fecho da prisão de Guantanamo, ajudou (com Hillary Clinton) a incendiar a Líbia, manteve uma estratégia errática para o Iraque e para a Síria (o que facilitou a criação do ISIS) e deixa o Afeganistão num caos, com o Paquistão nuclear com danoi colateral. A questão israelo-palestiniana não deve a Obama nenhum avanço e, no Golfo, criou aos seus aliados tradicionais uma inédita orfandade estratégica.
A opção pelo Pacífico alertou a China e reforçou as suas tentações armamentistas, ao mesmo tempo que criou à Europa uma sensação de abandono. Na NATO e com a “nova Europa”, acabou por ser co-responsável pela desastrosa política para a Ucrânia, que deram à Rússia pretextos de segurança, “metendo no bolso” a Crimeia e sentindo-se à vontade para intervir militarmente na Síria.
Por muita simpatia que o cidadão Barack Obama nos mereça, pelas fantásticas lições de humanidade que nos deu, a sua política externa, vista de fora, foi simplesmente medíocre.
E depois de Obama? Que farão os “presidentes” Trump e Clinton?
Por entre o “bullying” discursivo de Donald Trump não se consegue detetar uma linha clara do que faria, se eleito. Para além da ideia de restaurar a “paz global”, reconstruir o poderio militar americano e “destruir o ISIS”, o programa de Trump inclui “sair” (!) da NATO, se acaso os seus aliados não partilharem melhor as responsabilidades. Recusa ainda promover o “nation building”, limitando-se os EUA a “instituir estabilidade”. Convenhamos que é pouco e longe da qualidade habitual da agenda tradicional republicana. Claro que, com o tempo, o programa será refinado, mas, por ora, é um mundo de confusões.
A “presidente” Clinton tem outras ambições, muitas delas assentes numa clara retificação das políticas de Obama, de quem, convém não esquecer, foi o primeiro chefe da diplomacia.
Com ela, a América não caminhará para o modelo relativamente isolacionista de Trump, mas para uma afirmação de liderança americana à escala global. Desde logo, contrariando as intenções russas, com um reforço militar substancial junto aos aliados no leste europeu. Os sinais vão no sentido de fazer presumir que uma administração Clinton utilizaria a Turquia como instrumento de contenção regional, em especial na Síria, num modelo novo que pode provocar uma reação russa. Fala-se da possibilidade de um investimento forte na reconstrução da Líbia, o que seriam muito boas notícias para a Europa e poderia ajudar a travar o islamismo no Sahel.
Clinton será, ao que tudo indica, uma presidente “republicana”, com uma agenda seguramente bastante tensa com Moscovo. Quer isto dizer que, com ela, o continente europeu pode sofrer tensões internas, que a “nova Europa” de que falava Rumsfelt, poderá ressurgir como o “amigo americano” europeu preferencial. Nada de novo: para quem não se lembrar, Clinton votou ao lado de George W. Bush em favor da invasão unilateral no Iraque.
(Artigo publicado hoje na edição "online" da "Sábado")
4 comentários:
Monsieur l’Ambassadeur : Creio que podemos resumir assim : a política estrangeira americana é a maior ameaça para a paz mundial, a prosperidade e o ambiente. E quando se trata de política estrangeira, Hilary Clinton é um verdadeiro desastre. Como muito bem escreveu, apoiou a invasão do Iraque, e devemos-lhe a triste situação desta parte do mundo que não está assim tão longe de nós, do Iraque e a Síria à Líbia. E mesmo o Honduras, que acompanhei de maneira particular por ai ter amigos. Foi uma vergonha. Sem esquecer que Hilary apoiou a acção dos esquadrões da morte, os famosos “Contras” na Nicarágua.
Ao ver a TV ontem à noite e descobrir mais um drama no Mediterrâneo, com dezenas de mortos, migrantes que tinham partido da Líbia, pensei claro na destruição deste país, um Estado Providência moderno e laico, transformado num caos, que conduziu à dispersão de todo o arsenal de Kadhafi , cujas armas mataram talvez em Bruxelas e Paris, e que é agora um refugio para Al-Qaïda e ISIS, que Kadhafo tinha combatido . Não era um santo mas tinha alguns pontos positivos.
Francamente, devia ser considerada criminosa de guerra. Quanto às questões interiores, quando se recebe 675 000 $ de Goldman Sachs, uma das sociedades mais reaccionárias, anti sociais neste triste mundo, por quatro discursos, que podemos esperar desta loba feroz.
E quando se sabe que ela fazia parte do conselho de administração de Walmart, a tal sociedade que proíbe os sindicatos no seu seio, e pratica os salários mais baixos na distribuição nos EUA, enquanto que o seu marido era governador do Arkansas!
Se fosse americano, teria dificuldade a escolher um “bom” candidato! Mas quando o principal magazine americano escreve” Businesse Loves Hilary”, está tudo dito!
E que Kagan, o famoso ultra conservador Robert Kagan declara : “ A única escolha será de votar Hilary”! A escolha está feita!
27 de maio de 2016 às 09:02
Eliminar
Concordo que a política externa de Obama foi medíocre, mas se olharmos para os episódios que enumera, eles caracterizaram-se sobretudo pelo intervencionismo, mesmo se por 'proxy', e Clinton não está isenta de responsabilidades em relação ao que se passou no primeiro mandato de Obama, como é óbvio. Da minha parte, desejo claro que Clinton seja eleita, mas simplesmente porque a considero um mal menor em relação a um 'Presidente Trump'. Aliás, ambos os putativos candidatos (Trump já assegurou a nomeação, Clinton ainda não, mas é uma questão de tempo), são muito mal-vistos pela maioria dos americanos, por via das posições que tomaram ou tomam no momento, no caso de Trump, e por via disso e das decisões que tomou, no caso de Hillary. Para não falar das ligações de ambos à oligarquia que de facto governa os EUA...
Senhor Jaime Santos : Bom dia. Não venda a pele do urso Senders já! Espere que a hiena Trump acabe de morder Clinton até ao fim! Ele faz doer e para mais tem razão no que ele diz de Clinton ! Embora os dois sejam da pior espécie!
Sr. Joaquim de Freitas: Boa tarde. Sanders teria que ganhar todas as primárias daqui até ao fim por margens esmagadoras para conseguir ultrapassar Clinton e há ainda os super-delegados e nesses Clinton leva uma vantagem imensa. Mais, não acredito que Trump vá fazer papa com Clinton já. Vai aguardar até que ela seja nomeada e então a chuva de lama irá começar... Claro que Clinton tem provavelmente a sua reserva de truques na manga, pelo que a campanha vai ser mesmo feia de se ver...
Enviar um comentário