O caso do diplomata brasileiro Eduardo Saboia, o qual, desrespeitando instruções do seu governo, decidiu auxiliar à retirada da embaixada brasileira em La Paz de um refugiado político, é um interessante "cas de figure". Simples mas instrutivo.
Perante uma situação como a que se vivia naquela embaixada, um profissional da diplomacia - e Eduardo Saboia era "encarregado de negócios", na ausência de um embaixador, logo, o principal responsável - tinha a estrita obrigação de (1) transmitir às suas autoridades a sua avaliação sobre o caso em apreço, bem como as soluções que, a seu ver, se impunham e, após isso feito, (2) deveria ter obedecido às legítimas instruções dessas autoridades, que eram emanadas do governo de um país democrático e que é internacionalmente reconhecido como atento aos Direitos humanos.
Admitamos, porém, que o diplomata, por razões que considerou mais relevantes, entendeu que essas instruções ofendiam os seus princípios e a sua consciência. Nesse caso, duas alternativas se lhe ofereciam: (1) demitir-se ou (2) contrariar as ordens, eventualmente denunciando-as, mas, neste caso, tendo a consciência de que iria arrostar com todas as consequências disciplinares daí decorrentes. O ato de Eduardo Saboia configura esta última opção.
O que não é admissível é que um profissional da diplomacia, abusando da confiança do Estado que o mantinha no lugar, no pressuposto de que cumpriria escrupulosamente as suas instruções, se possa arrogar o direito de proceder a seu bel-prazer, fazendo a sua interpretação pessoal sobre a melhor forma de agir, abusando assim do estatuto de que usufruía. Se acaso este procedimento fosse aceite como regra, isso significaria uma absurda transigência com uma cultura de descricionariedade, com a qual nenhuma ordem político-jurídica pode conviver.
Podemos ter toda a simpatia para com as motivações humanitárias que estiveram subjacentes ao ato de Eduardo Saboia. Não me parece, contudo, que deva haver uma complacência disciplinar com o seu comportamento, salvo alguma atenuante que possa decorrer de uma perturbação no seu estado de espírito, fruto do peso psicológico que a situação nele estava a provocar.
13 comentários:
Muito bem. Mas há filósofos que não concordam...
"Os filósofos só interpretaram o mundo; trata-se agora de o transformar" - Karl Marx, tese 11 in "´Críticas das teses de Feuerbach"
Senhor Embaixador,
Ocorre-me, ao pensamento, um caso passado em Banguecoque no ano de 1994 de quando de uma Cimeira Ministerial da ASEAN realizada num hotel da capital tailandesa.
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Drs. José Ramos Horta e Mari Alkatiri movimentavam-se para a autodeterminação de Timor-Leste, viajando a Banguecoque e se juntarem a outros movimentos, de países, em manifestações de sensibilização.
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Os dois políticos sabendo de antemão que seriam expulsos desde que as autoridades tailandesas tivessem conhecimento da sua presença, em Banguecoque, pediram asilo/hospedagem à missão diplomática portuguesa durante os três dias da Cimeira.
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Seria impensável que a Tailândia desse apoio aos dois políticos timorenses quando a Indonésia era o maior parceiro do club ASEAN.... A polícia, tailandesa, movimentava-se para lhes dar com o paradeiro não para os deter mas levá-los ao aeroporto enviá-los de volta à procedência.
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Pela calada da noite, em carro diplomático, deslocavam-se para conferências, de imprensa e ao outros dia, fotos em grande plano circulavam nas primeiras páginas dos jornais em língua inglesa e tailandesa o que irritava as autoridades.
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No último dia da Cimeira estava agendada uma conferência de imprensa nos arredores do aeroporto onde esperavam, os políticos timorenses, a fina flor do jornalismo, estrangeiro, sediada em Banguecoque.
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Da embaixada e no meu “latas de 25 anos” seguia uma jornalista e um operador de câmara da TDM (televisão de Macau); Drs. Ramos Horta e Mari Alkatiri, instalados no banco de trás no Mercedes da missão com o motorista fardado e de boné branco na cabeça.
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Chegados ao local, já ali com a polícia à civil que não lhe colocaram entraves de falarem à imprensa, no final seguiram para o aeroporto, livremente, com uma legião de jornalistas atrás deles de que a polícia para evitar mais fotos e entrevistas encaminhou-os para uma das salas VIP e dali partiram directos para avião.
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Não houve problemas e tudo rolou em cima de rodas só, que ao outro dia, num jornal americano de grande tiragem, chapou a foto do Mercedes da missão, a chapa CD e os políticos a sairem dele.
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O chefe de missão (não designo nome) foi então chamado ao MFA da Tailândia e informou-o: “o senhor embaixador não volta a fazer isto porque se tal acontecer as relações amistosas de 500 anos, entre Portugal e a Tailândia podem deteriorarem-se.”
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Porém o embaixador não deu conta às Necessidades que tinha acolhido, durante a Cimeira, os dois políticos (claro com passaporte português) na residência e fê-lo, fielmente, depois de ter regressado do MFA e levar o recado do ministro tailandês.
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Tudo passou. Hoje as relações entre os dois países Portugal e Timor-Leste são as melhores.
Saudações de Banguecoque
José Martins
Como vê o senhor embaixador, à luz destes princípios, o caso da desobediência de Aristides de Sousa Mendes?
Saboia será promovido tão logo esse episódio esteja esquecido. Seja lá quem tenha sido o real articulista dessa manobra (duvido que fora o tal encarregado de negócios), ele resolveu o busílis a contento de todas as partes. E não seria essa uma função da diplomacia?
Senão vejamos.
A presença do senador Molina em La Paz era desconfortável a Evo; vê-lo no Brasil assegura ao presidente boliviano uma grata distância do adversário durante o pleito eleitoral e, de brinde, mais um argumento de campanha, visto que bater no Brasil rende votos por lá (daí a razão para Dilma e Lula relevarem as sucessivas hostilidades de Evo aos interesses brasileiros).
O que é bom para Evo é bom para Dilma: assistimos aqui a um pastiche digno do Teatro dell'Arte, com Evo discursando falsos rancores, Dilma sapateando um flamenco de Granada, a plateia ideologizando o resultado, mas o fato é que na coxia não há drama algum, ao contrário, a única pendenga - o Pierrot Molinô - está resolvido e em breve só o Google lembrará seu nome.
Alguém poderia argumentar: mas e Patriota? Convenhamos que trocar Brasília por NY está longe de ser uma punição, ainda mais a quem tem relações íntimas com os USA. Consideremos também que Patriota será muito mais útil ao Brasil na ONU, distante o suficiente para não ouvir zurro atordoante de um certo assessor especial que não atualiza o grau de seus óculos desde a adolescência.
Dirá-se a favor de Saboia, em eventual processo de reintegração ao cargo público, que: a) ele pediu remoção e lhe foi negada; b) ele teve assegurada, pelas autoridades bolivianas, a livre circulação do bode pelo território; os adidos militares informaram seus chefes e não receberam contraordem; se o senador não pode dizer ter sido vítima de tortura, o diplomata indiscutivelmente o pode: afinal, ninguém merece passar 455 dias ouvindo lamúrias em castelhano.
É como voto.
Caro Anónimo das 6.07: o governo que dava as ordens que contrariaram a consciência de ASM era uma ditadura (um regime sem liberdade, desrespeitador dos Direitos humanos, com presos políticos), pelo que a sua legitimidade não é comparável.
Mas Sabóia diz que se "vierem para cima dele" tem muito pra contar e para se defender. É provável que nem todos os elementos sejam ainda públicos.
ASM não deveria ter aceitado a nomeação da ditadura!
Mas ainda bem que aceitou, ainda bem que passou os vistos (já agora, quantos mais, melhor seria), ainda bem que a ditadura não repatriou os refugiados e ainda bem que a ditadura cumpriu os princípios que enuncia e que concordo (como certamente também concordam alguns filósofos).
Desobedecer a uma ordem do poder legítimo só é admissível quando a ordem viola princípios normativos superiores à regulamentação hierárquica. Só quem, como o embaixador Carlos Fernandes em obra recente, sustenta que "os judeus não corriam qualquer perigo em França durante a invasão alemã de 1940" sustenta o contrário relativamente a Sousa Mendes. Quanto a este caso, Assange está há mais de um ano na embaixada do equador e Londres, Humberto Delgado esteve meses na embaixada do Brasil em Lisboa à espera de uma solução, nenhum embaixador se lembrou de o passar às escondidas para fora do país. Istodito, em linhasgerais, não pressupõe que o Brasil e a Bolívia tenham gerido bem a questão. Quer apenas dizer que a desobediência é demasiado séria para ser um pretexto para a notoriedade.
Sr. Embaixador
Não sei quem é o refugiado politico que o diplomata Eduardo Saboia auxiliou, e aí reside a minha dificuldade em classificar o acto, porque o diplomata Aristides de Sousa Mendes também abusou do estatuto de que usufruía, e esse abuso salvou a vida de muita gente.
Caro Anónimo das 11.27: nunca o refugiado boliviano correu o menor perigo de vida. Só se pode comparar o comparável, o que está muito longe de ser o caso.
Ouvindo o discurso de posse do novo ministro das relações exteriores brasileiro, veio algumas dúvidas: a) a diplomacia seria uma função de Estado, de Governo, ou de ambos? b) no último caso, há doutrina explicando como conciliar os deveres dos diplomatas no exercício das delegações conferidas pelo Estado (natureza constitucional) com as políticas do Governo? c) os diplomatas, no Brasil, juram defender a Constituição; todavia, muitas são as interpretações acerca dos dispositivos constitucionais, estando com a Corte Suprema a última palavra: o diplomata, a fim de cumprir seu juramento, deve observar qual interpretação: a do ministério das relações exteriores (Governo), a da Corte Suprema (Estado) ou alguma doutrina específica?
"Os filósofos só interpretaram o mundo; trata-se agora de o transformar" - Karl Marx, tese 11 in "´Críticas das teses de Feuerbach"
Pois a mim pareceu-me que era esse exatamente o paradigma e o pressuposto que condicionou a linha de conduta do diplomata brasileiro Eduardo Saboia...
Também acho bem que o dito Sr. tenha direito a uma avaliação Psicológica que lhe confira desde logo uma possibilidade de alegar perturbação psíquica...
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