Há algumas décadas, um amigo europeu, quase nórdico, fez-me notar que, em qualquer noite portuguesa, por mais campestre que ela fosse, havia sempre o risco de se ouvir, ao longe, o som irritante de uma motorizada. E que os portugueses também já davam por adquirido esse acervo antropológico consuetudinário que eram os sinos horários das igrejas ou o som difuso das festas de verão. Enfim, para esse meu amigo, os portugueses haviam já perdido o prazer do silêncio.
Nunca havia atentado muito nisso mas, a partir de então, fiquei a matutar um pouco mais no valor dos silêncios. E passei a dedicar-me à sua procura quase militante e a racionalizar o gozo que, na realidade, deles sempre retirava. Trazia-os comigo da adolescência, quando Vila Real tinha madrugadas de intensa serenidade. Arquivei, depois, na memória, algumas noites norueguesas quase perfeitas, um certo silêncio de uma madrugade no Mussulo, uma insónia na varanda de um hotel incómodo em Fergana, no Usebequistão, e, maravilha das maravilhas!, uma absoluta ausência de ruídos no deserto de Wadi Rum, no sul da Jordânia.
Mas continua a haver na minha vida um silêncio especial, que nunca esquecerei: uma noite, no oeste da Escócia, na Isle of Skye, nos anos 90. Tinha ido por lá em busca de um "bed & breakfast" que me diziam ter um restaurante soberbo (de um antigo cozinheiro do Martins - escreve-se assim, sem apóstrofo, à portuguesa - de Edimburgo) e, também, para tentar confirmar uma teoria sobre o aumento do teor de "pit" nos whiskies de malte, de oriente para ocidente da região, o que me obrigou a uma peregrinação de estudo por destilarias escocesas, que quase doutorou o meu fígado. Nessa noite, saí para passear a digestão algumas centenas de metros fora do hotel e, foi então que, pela primeira vez desde sempre, "ouvi" um verdadeiro silêncio. Nem motorizadas à distância, nem grilos nas bermas, nem vento nas ausentes árvores, nem nada. Apenas um magnífico e profundo silêncio, seco e chocante, como nunca tinha experimentado. Para um mortal não habituado, a força dele até soava a estranho.
Confesso que sou hoje um consumidor obsessivo de silêncios, que os procuro de forma ansiosa em todos os locais onde me alojo. Mas, geralmente, e porque passei a viver em cidades, onde sempre sobrevive um "bruá" de fundo, com maior ou menor intensidade, raramente tenho a sorte de me reencontrar com os grandes silêncios. Acho, aliás, que à maioria das pessoas, cidadãos urbanos, isto já nem é uma questão que se coloque, porque foram habituadas a viver assim, com esse residual cenário auditivo nas suas vidas. Pensei nisto quando morei em Nova Iorque, que tem um dos mais belos ruídos urbanos do mundo. Ou, pelo menos, é isso que nós somos levados a pensar, na relativização da inevitabilidade das coisas.
Mas ainda não desisti, por completo, de colecionar silêncios. Por isso, nas noites campestres que posso ir tendo, descontados os sons ínfimos da natureza, continuo um seu incurável consumidor.
Ontem, numa madrugada na varanda de uma certa casa, onde há anos me entretenho, pelos verões, a procurar essa suprema paz auditiva, fui surpreendido com a persistência de um certo som de fundo, contínuo, uma espécie de "zoeira" que poderia identificar-se a um ruído distante de um avião. Fiquei à espera que o som passasse. Qual quê! Continuava. Foi então que, olhando uma luz vermelha no alto do monte fui levado a concluir que esse ruído incontornável (desculpem o adjetivo jornalístico, tão feio como o ruído) era, nem mais nem menos, o som de uma dessas pás eólicas que fazem as delícias estatísticas das nossas energias alternativas.
Ontem, numa madrugada na varanda de uma certa casa, onde há anos me entretenho, pelos verões, a procurar essa suprema paz auditiva, fui surpreendido com a persistência de um certo som de fundo, contínuo, uma espécie de "zoeira" que poderia identificar-se a um ruído distante de um avião. Fiquei à espera que o som passasse. Qual quê! Continuava. Foi então que, olhando uma luz vermelha no alto do monte fui levado a concluir que esse ruído incontornável (desculpem o adjetivo jornalístico, tão feio como o ruído) era, nem mais nem menos, o som de uma dessas pás eólicas que fazem as delícias estatísticas das nossas energias alternativas.
Depois do meu carro ter sido, há semanas, proibido de circular na Baixa lisboeta por excesso de produção de CO2, ver o sagrado silêncio das minhas noites rurais poluído pelo ruído desses moínhos de nova geração coloca-me irreversivelmente em rota de colisão com o mundo "sustentável". Desculpem lá!
16 comentários:
Que se movam os mundos contanto que Deus não se cale!!!!!!!!!!
Abraço
Belo texto
Do mundo urbano da minha infância recordo, entre outros, os pregões das peixeiras e dos homens que vendiam hortaliças nas carroças, bem como as harmónicas dos amoladores que também reparavam guarda-chuvas. Mas hoje existe um ruído particularmente irritante que são as máquinas de varrer o lixo que muito vagarosamente percorrem as ruas quase sempre conduzidas por um imigrante que não tem, obviamente, culpa alguma da poluição sonora que é obrigado a fazer.
Há silêncios e silêncios. Poderá também haver quem não suporte o silêncio!
Como naquela aldeia em Arcos de Valdevez onde um citadino que comprou a casa muito perto da igreja e depois queria silenciar os sinos do relógio recorrendo à lei contra a poluição sonora que lhe dava razão e o resto da população protestou contra o silenciamento porque tinham contribuído para terem o relógio na torre a dar horas e queriam continuar a ouvi-lo.
E aqueles naturais de outra aldeia ao lado que aceitaram sem protesto aquele empreendimento turístico que agora ali leva turistas e ajudam a abafar os sons dos grilos a quem gostava de os ouvir nas noites serenas... Com aquele fatalismo do “deixe lá” permitem mesmo que ali se organizem festas de casamento a terminarem com fogo de artifício às duas horas da madrugada...
Agora as eólicas quem é que vai protestar contra? Deixe lá, são tão lindas lá no alto da serra...
E depois, se não fossem estes contrastes, como seria possível escreverem-se textos assim que gritam silêncios?
Não será no sul da Jordânia, o deserto?
importante o silencio na nossa vida diária e nosso bem estar. cada vez mais dificil de encontrar a não ser que nos tornemos eremitas.
Os moinhos eolicos para produção de electricidade devem ser colocados em zonas afastadas de casas ou desabitadas pois o silvo do bater das suas pás ( helices), e se são um conjunto ainda pior, é muito forte (mesmo para os animais perturba-os). Não poluem em emissões de gases, produzem energia limpa, mas incomodam sonoramente (há anos um vereador de lisboa queria pôr um no alto do parque eduardo vii).
Portugal é um país barulhento ou que não dá importancia aos ruidos, casas construidas junto às vias rápidas ou perto de autoestradas, mal isoladas, etc.
nos cafés e restaurantes o ruido do retirar, amontoar, lavar e colocar os pratos e talheres é um tremendo e permanente concerto de loiça a bater uma na outra. O mesmo serviço na alemanha (permita se me individualizar um país exemplar quanto ao controle de ruidos)tem um resultado completamene diferente, é trabalho praticamente silencioso.
Mas mesmo em lisboa felizmente se podem encontrar ruas maravilhosas para viver, onde não há quase transito.
Interessante entrada do blogue referindo um facto que é importante para a qualidade de vida(o silencio ou pouco ruido)mas que em portugal (e noutros paises europeus, espanha inclusivé) é menosprezado.
Ps. o ruido do escape das motoretas é irritantes, razão tinha o amigo quase nordico. Quanto aos campanários ou badalar dos relogios de torres de igrejas, não considero isso poluição sonora, são sons (timbres) benvindos.
De facto vivemos numa sociedade de ruídos vários. Além dos sons há ainda a perturbação das luzes artificiais que à noite limitam a visão do céu. Não recordo esse privilégio de um silêncio absoluto para além de uma forma artificial saída do choque pela perda irreversível de alguém muito querido. Então por um momento não houve nada, apenas o silêncio e a escuridão total da alma. Por outro lado aprecio sinfonias de sons especiais como a conjugação do vento e do mar a bordo de um pequeno veleiro em alto mar, ao leme durante a noite com os restantes companheiros de viagem em silêncio total: aí sim, senti harmonia com o mundo apesar de guardião do sono dos meus amigos e da tarefa de levar o naviozinho a bom porto...
Andam a tapar o sol com a peneira, depois dá nisto... este Mundo humano é feito de paradoxos...
Sr Embaixador, agora só falta dizer como certos americanos, que o uso e abuso das ventoínhas aeólicas, faz com que a Terra saia da sua órbita! :)))
Poluição... o Mundo tornou-se num caixote do lixo e não tarda nada, até pagamos imposto para respirar.
Um texto muito interessante e bonito. Deve ser maravilhoso ser-se tão viajado e conhecedor de outras paragens...
Temos em Lisboa, bem no centro um local altamente urbano mas completamente silencioso...
http://ricardojacinto.com/wp-content/uploads/2011/01/CAMARAANECOICA.jpg
Mas são preferíveis as noites de campo a ouvir as pás das ventanias ao longe...
Caro Anónimo das 10.26: tem toda a razão, foi na Jordânia. Em 2003 e 2004 participei em conferências da OSCE, respetivamente, na Jordânia e no Egipto. Ambas incluíram noites no deserto. Daí a confusão. A do Egipto foi mais barulhenta. Obrigado pela nota.
Não há, na definitiva cantilena dos grilos que se arrumam nas bermas das estradas poeirentas, qualquer espécie de incompatibilidade com o indescritível rumor do silêncio.
É então, quando o cheiro da madressilva se derrama nas coordenadas do crepúsculo, que a memória se projecta sobre a enigmática textura da saudade. Que a porosa substância do luar se aproxima das habitáveis estrofes dos sonhos adolescentes.
As palavras deixam de ser necessárias. Um sorriso que apenas o olhar entende, basta para que os caminhos voltem a ser naturalmente familiares. Como se o progresso não lhes tivesse subtraído a identidade e o fascínio.
Os grilos, porém, talvez por uma inexplicável cumplicidade com o absurdo, conduzem a noite pelos atalhos da alegria. Até à respiração dos búzios.
Nunca senti o silêncio do deserto e lamento.No entanto há alguns anos, no meio do Lago de Tiberíades,num barco com algumas pessoas, pude viver a intensidade de uns momentos de silêncio absoluto e em que uma ligeira neblina entre os tons azul e rosa dava um toque especial a um momento único de paz interior onde se definem todos os silêncios.
Lindissimo...
Obrigado!
Fiz link, claro! :)
Um abraço.
Silêncios
que só escutam
os sons
dos silêncios, tons nossos
São silêncios?
ou serão
de pensadores
que labutam
no ser,tons
silêncios vivos, sons mortos
Senhor Embaixador,
Quando comecei a ler este seu post estava eu aqui, numa destas aldeias isoladas, bem perto da sua/nossa Vila Real, precisamente a saborear o silêncio.
Coincidência ou não, foi neste momento que apareceu aqui uma carrinha com um altifalante ruidoso, a difundir música.
“É a piteira” diz a minha prima.
Afinal pior do a falta do silêncio é que afinal os “pitos” que por aqui se comem já chegam de camioneta...
Carlos Pereira
Um post tao "silencioso"...que eu nem ousei comentar antes da "rentrée" com medo de interromper alguma fase de pesquisa : ))
Por isso vou deixar o meu comentário agora...mas baixinho ; )
Caro embaixador, este seu hobby tem sido a matéria de trabalho da longa carreira do artista plastico britânico William Furlong que ao contrario de V. Exa nao acredita nos "silêncios puros".
Boa continuaçao de "silêncios monacais" ...shiuuu : )
Cara Julia Macias-Valet: eu também não, francamente...
Enviar um comentário