Durante muitos anos, o conceito do federalismo europeu fez o seu caminho com base na ideia de que os cidadãos, satisfeitos com a Europa que já tinham, acabariam por ganhar a convicção de que terem ainda "mais Europa" seria a boa receita para um seu futuro de progresso, como até então tinha acontecido. Essa ideia não vingou a partir do momento em que a Europa "tocou" nas temáticas mais próximas do "core" da soberania dos Estados e em que, simultaneamente, se verificou que a dinâmica de certas políticas, por razões próprias ou conjunturais, não tinha um comportamento positivo.
A derrotada Constituição europeia não era - ao contrário do que alguns desatentos pensaram - um passo para um destino federal, mas simplesmente um modelo sofisticado de oligopólio que, com outras roupagens, acabou por resultar no Tratado de Lisboa. Este, tal como aquela, foi a forma de garantir a quantos se haviam habituado a controlar o processo europeu antes do "grande alargamento" que não veriam o seu poder relativo afetado após a concretização deste. Mas, para que tal fosse possível, era necessário reduzir drasticamente o papel do principal elemento proto-federal europeu, a Comissão europeia. O que foi feito.
A ideia do federalismo volta agora a surgir no discurso europeu, mas por um motivo completamente oposto: pela ineficácia das políticas europeias em vigor e pelo fracasso de vários aspetos do atual projeto, como sendo a solução, embora sectorialmente fixada no caso da moeda, que poderia permitir encontrar uma saída para a crise. A grande ironia do atual debate é que se pretende "federalizar" a Europa, num tempo em que muitos Estados se sentem, à sua escala nacional interna, confortáveis com a deriva intergovernamental que entretanto ocorreu, muito por via do Tratado de Lisboa.
A ideia do federalismo volta agora a surgir no discurso europeu, mas por um motivo completamente oposto: pela ineficácia das políticas europeias em vigor e pelo fracasso de vários aspetos do atual projeto, como sendo a solução, embora sectorialmente fixada no caso da moeda, que poderia permitir encontrar uma saída para a crise. A grande ironia do atual debate é que se pretende "federalizar" a Europa, num tempo em que muitos Estados se sentem, à sua escala nacional interna, confortáveis com a deriva intergovernamental que entretanto ocorreu, muito por via do Tratado de Lisboa.
O caráter contraditório de tudo isto é que, no primeiro caso, o passo federal iria corresponder à evolução da vontade democrática dos povos e, no caso presente, ele configuraria apenas a consagração de um voluntarismo, forçado por um imperativo de um estado político de necessidade, em contra-ciclo com a própria dinâmica dominante no projeto europeu.
A politica não se faz de "fezadas". Mas, devo dizer, não acredito que seja possível instituir um modelo alternativo ao que temos, com um grau de integração ou "federalização" superior, se se pretender que ele venha a abranger todos os "sócios" atuais. E, mesmo nesse modelo mais restrito, essa "federação" nunca passaria de uma espécie de "condomínio" de oportunidade, uma espécie de "cooperação reforçada" de natureza sui generis.
Mas aguardemos, para ver.
Mas aguardemos, para ver.
15 comentários:
Desconheço os detalhes das motivações económicas e políticas que levaram ao alargamento a leste. Suponho que fosse uma maneira de defender a Europa do "monstro" russo e, ao mesmo tempo, trazer para o seio da UE recursos e competências. Mas, a verdade é que a sensação de "clube de eleitos/família" que antes existia desapareceu e hoje é preciso puxar pela memória para conseguir dizer os nomes de todos os países que fazem parte da UE.
Quanto mais gente, quanto mais diversidade, menor a hipótese de conseguir consensos e lutar por objetivos comuns. E ainda há quem, loucamente, defenda a entrada da Turquia!
Talvez um dia a abertura a leste seja catalogada como o princípio do fim da UE.
Excelente análise, na sua concisão. Faz-me até (confesso) repensar algumas ideias que eu (federalista do piorio) mantinha àcerca da contradição entre a imaculada brancura de Lisboa e o cinzentismo fosco de Nice ...
Senhor Embaixador:
O tempo parece ter posto a nu alguns não-ditos da construção europeia, mostrando o quanto eles pesavam. Falo da invisibilidade dos projectos políticos nacionais desaparecida com a reunificação alemã, do apoio americano que as sucessivas guerras e a desconfiança minaram, da mitologia que perdeu a sua capacidade mobilizadora no momento em que deixou de ser confirmada pela realidade.
A meu ver, é necessária a coragem de dar um grande passo atrás, num caminho em que corremos o risco de destruir, na confusão geral, o muito que de bom ainda resta deste projecto.
Nuno Matos
Sou sincera
Estava à espera de uma gastronomia de férias(...)Assim mais leve
Até porque faz bem abstrair
Mas a proposta de reflexão é interessante, mas obriga a background
Entretanto podemos pensar numa saladinha de bacalhau com azeitonas e pão centeio...
Isabel Seixas
Caríssimo Embaixador Francisco Seixas da Costa,
Fiz uma hiperligação deste blogue no meu último “post”, relativo aos meus blogues predilectos e aos recentemente descobertos, intitulado “Selecção 2011 – blogosfera e qualidade”.
Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt ( Crónicas do Professor Ferrão )
Senhor Embaixador, com o devido respeito, gostaria que indicasse os aspectos o levam a concluir que, em vez de um passo (embora curto, convenhamos) para o federalismo, a "derrotada Constituição europeia", tal como, embora com "outras roupagens" o tratado de Lisboa,representava "simplesmente um modelo sofisticado de oligopólio" como "forma de garantir a quantos se haviam habituado a controlar o processo europeu antes do "grande alargamento" que não veriam o seu poder relativo afetado após a concretização deste"?
Que elementos lhe permitem concluir que o a Constituição, ou o TL significam essa tentativa comparativamente, por ex., ao Tratado de Nice? Que há em Lisboa que traia essa tentação do "oligopólio" que não estivesse já em Nice?
Finalmente, embora comprenda a lógica da sua reflexão quanto à destruição da Comissão, acha que esta se deve mais às modificações introduzidas pelo TL ou à prática política seguida pelos dirigentes europeus, mais particularmente pelos Chefes de Estado ou de Governo (pelo menos os de alguns importantes países) e pelo próprio Presidente da Comissão europeia?
Caro HY: julgo reconhecer no seu questionamento a tecla de quem fez Lisboa com devoção. Só lhe fica bem. Eu, cá por mim, só fiz Nice (e Amesterdão) por obrigação.
Independentemente das boas intenções de quem ajudou a construir o Tratado de Lisboa (e do profissionalismo de quem se dedicou à sua conclusão), esse texto revelou-se uma despudorada tomada do poder pelo Conselho (figura do presidente permanente do Conselho, imposição de uma figura do Conselho como VP da Comissão - caso da AR). Basta olhar para o modo como a UE hoje funciona (quem manda e como) para se perceber logo isso.
Quanto a Nice, que estava longe de ser um grande tratado, foi o possível e permitiu que, em troca da perca do seu 2º comissário, os países maiores fossem ligeiramente reforçados no seu poder de voto. Em Nice, Portugal tinha 12 votos e a Alemanha 29. O sistema de decisão do Tratado de Lisboa, ao assumir o fator demográfico como essencial, coloca-nos a nós (com 10 milhões, ao lado da Alemanha com mais de 80 milhões). Como alguém diria, "é fazer as contas..."
O Tratado de Lisboa foi o resultado da liquidação da Constituição Europeia em 2005 pelos povos francês e holandês.
Não penso que o reforço do factor demográfico, que foi o salto de Nice para Lisboa, tenha alterado muito as coisas para pior, sobretudo do ponto de vista de Portugal.
O problema é que essa inovação no equilíbrio demográfico, aliada ao reforço do pendor intergovernamental (diminuição do poder da Comissão e reforço do poder do Conselho), sem a caução ("checks and balances") das cláusulas, apesar de tudo mais federalistas, da defunta Constituição Europeia, conduziram a esta relação de poderes, cujo resultado está à vista.
Mas isto é uma opinião... mera "doxa", caros especialistas! Fala o sofista, vocês são os filósofos.
Continua a eterna questão desde que se passou da CECA para a CEE: as duas velocidades da Europa. Uma seca.
Os ricos continuam a ser ricos, os pobres são os outros. Europeísta convicto, os Ecofins e os Conselhos Europeus em que participei (como ajudante de auxiliar de praticante), os trabalhos em que também meteram quanto à criação da Moeda Única, mais me fizeram considerar que na actual UE somos todos iguais, só que há uns mais iguais do que os outros.
E cada vez mais parece que não há volta a dar. Os PIGS, que agora quase são já PIIGS, são o atestado dessa diferença, com uma classificação no mínimo pouco... lisongeira.
Por isso, os Tratados desde o de Paris até ao de Lisboa, no meu modesto entender, não representam um progresso; diria até serem mais um des...progresso, ou seja um retrocesso.
Alinho com o Alcipe: os especialistas é que sabem destas coisas. Sou, apenas, um franco atirador de terceira velocidade, para não dizer mesmo de marcha-atrás...
Isto porque continuo a acreditar na ideia europeia; mas, já são tantas que nem sei escolher qual é a melhor dentre elas.
Meu caro Alcipe
O Tratado de Lisboa nunca me encantou. E por boas razões que seria longo explicar.
Mas como não sou especialista e muito menos filósofa fico-me pelo sofisma...
Exceptuando a afirmação de que o primeiro federalismo correspondia "à evolução da vontade democrática dos povos", estou inteiramente de acordo com o seu texto,caro Sr. Embaixador.
É uma bela abertura para o "REQUIEM PELA U.E.", que espero tencione escrever (letra e música, obviamente).
V
Sou um federalista convicto, desde que a globalização se tornou cada vez mais inevitavel, acho que nós Europeus não temos alternativa.
Como se verifica actualmente, os ataques dos mercados aos paises periféricos, vem demonstrar que a sós dificilmente um país consegue ser competitivo.
É certo que podemos perder alguma independencia, mas os tempos dos impérios já lá vão, cairam com o muro de Berlin
Entretanto, chega-nos hoje a notícia (via RTP) de que a Turquia vai cortar relações com a UE a partir do momento em que o Chipre assumir a presidência. Será que devemos agradecer aos dirigentes turcos mais este pretexto para não abrir as portas do bar aos "Otomanos" ?
Caro Sr Embaixador,
Felicito-o pela perspicácia. Há de facto devoção, mas esta acompanhou a obrigação (ainda bem, aliás, não creio que se possa fazer bem aquilo em que não se acredita).
Permito-me usar o mesmo raciocínio: não creio que no tom dos seus comentários esteja apenas reflectida a obrigação. Há qualquer coisa mais que perpassa quando se refere a Nice...o que lhe fica igualmente bem.
É bem visível, por ex., no modo como se refere a Nice como o tratado "possível" (não o será Lisboa?) e nos qualificativos utilizados para descrever as mudanças trazidas por cada um dos tratados.
Tem razão quando se refere que a criação do Presidente do Conselho Europeu pode abrir a porta a maior protagonismo deste órgão (mais do que do Conselho, diga-se). Mas não é inevitável: o compromisso possível obtido em Lisboa forneceu os dados suficientes para impedir o novel Presidente (e o Conselho Europeu) de se arrogar o papel de "chefe da banda". Um ex: ficou claramente definido que o Conselho Europeu não exerce poderes legislativos. (continua)
(continuação) O que o TL não pode é impedir que, perante a passividade de quem tinha o dever de tomar a dianteira na definição das orientações da política da UE e defender o método comunitário, o novel Presidente ocupe o espaço...tal como a natureza, a política parece ter horror ao vazio. A questão que se deve colocar é na verdade a seguinte: se quem devia bater-se por fazer avançar a integração europeia com base no método comunitário não o faz, é melhor fazê-la avançar com base no intergovernamental ou não o fazer de todo? Creio que o TL tem pouco a ver com a resposta a esta questão... E em meu entender, o que se passa hoje na Europa não deriva de Lisboa mas sim das escolhas políticas dos dirigentes políticos europeus.
Uma nota adicional: não por acaso, o TL proibiu que o Presidente do Conselho Europeu exerça qualquer cargo político nacional, mas não proibiu que o faça ao nível europeu: é a porta aberta para que o Presidente da Comissão seja um dia também o Presidente do Conselho Europeu, provavelmente a única forma de reduzir os inconvenientes do bicefalismo do executivo europeu... caminhar para lá depende da vontade política, não do TL.
A criação da VP/AR não foi uma imposição contra a Comissão. Foi o resultado híbrido da tentativa de harmonizar a dimensão política externa e de segurança comum (claramente intergovernamental) com a um dimensão comunitária da acção externa da UE (comércio externo, ajuda ao desenvolvimento, etc). Talvez seja demasiado ambicioso e na prática não funcione como previsto. Mas, em si, não tira qualquer competência à Comissão, a qual no sistema anterior era irrelevante no que respeita à componente intergovernamental da política externa. Pelo contrário, recordo que, embora escolhida pelo Conselho Europeu por 2/3 dos seus membros, a/o AR/VP tem que ter o aval do Presidente da Comissão (e ser aceite pelo PE enquanto membro do colégio de comissários). O que o TL não prescreve é que aquele aceite passivamente quem os governos lhe queiram impor...
Quanto ao argumento demográfico e ao presumível poder reforçado dos grandes, permito-me recordar um elemento essencial: a demografia não surgiu com Lisboa. Já Nice consagrava o critério demográfico para as decisões no Conselho...e em termos ainda mais favoráveis à Alemanha do que Lisboa! Em Nice, a Alemanha podia recorrer ao elemento demográfico e bloquear qualquer decisão desde que tivesse o apoio de outro grande e de qualquer pequeno maior do que o Luxemburgo. Em Lisboa são necessários pelo menos 4 Estados para vetar. O que o critério demográfico fez, em minha opinião, foi contribuir para que a decisão seja mais fácil. E a análise de várias das (quase infinitas) combinações possíveis de votos no Conselho demonstra que não houve qualquer apropriação de poder pelos grandes. É só verificar...
Com o devido respeito, a sua comparação entre os números de votos antes de Lisboa e as populações equivale a comparar batatas com feijões. Há que ver os sistemas de voto no seu todo, pois eles são profundamente diferentes. Se o fizer, verificará que no de Lisboa (no qual também é necessário garantir 55% dos Estados membros para adoptar uma decisão, recordo), a decisão fica marginalmente mais facilitada e o veto mais difícil. Atrever-me-ia mesmo a dizer que o peso dos grandes Estados-membros diminui: ao contrário do exemplo citado acima, mesmo com mais de 35% da população, a Alemanha, a França e o Reino Unido, por exemplo, não poderiam bloquear uma decisão).
De todo o modo, nunca poderiam ser as modificações no sistema de voto no Conselho as responsáveis pela situação actual, porque ainda não estão em vigor...
Peço desculpa pelo longo arrazoado. É o que acontece quando se mistura devoção com obrigação.
Enviar um comentário