segunda-feira, janeiro 25, 2010

Lusos


Devíamos ter desconfiado. Por aquele preço, uma viagem Oslo-Paris e volta, com uma semana de hotel, não podia augurar grande coisa. E a prova aí estava: o Hotel des Messageries, na rue des Messageries, a que acabáramos de chegar, num autocarro ido do longínquo aeroporto de Beauvais, onde o charter pousara, era absolutamente infrequentável, mesmo que só por uma noite.

O bando de noruegueses que nos acompanhava parecia de tal modo deslumbrado com a cidade que nem notava a flagrante falta de qualidade do soit-disant hotel. A julgar pelos caixotes cheios de garrafas vazias que enchiam a portaria, despojos do grupo anterior que regressara a Oslo no nosso avião, a semana nórdica em Paris iria ter uma predominante componente etílica.

Por isso, o problema era apenas nosso. Colocámos a questão ao guia norueguês, solicitando-lhe ajuda para encontrar um alojamento alternativo, naturalmente pagando algum diferencial de preço. Acomodada que foi a excursão "viking", conduziu-nos, alguns quarteirões adiante, a um outro hotel. Tinha muito melhor aspeto, vi que aceitavam "American Express", o que me pareceu ser, desde logo, um bom sinal.

Mas a desilusão foi imediata: estavam completamente cheios. O cavalheiro da recepção foi seco e peremptório. Explicou-nos que havia clientes em espera, para a improvável hipótese de vir a surgir uma vaga. Depois de alguma insistência, o guia norueguês, simpático e prestável, confessou-se impotente para, nessa manhã de domingo, resolver o nosso problema. Talvez segunda-feira se conseguisse algo...

Lembrei-me de tentar, eu próprio, obter uma vaga em algum dos hotéis parisienses que conhecia. E pedi ao recepcionista se podia guardar a nossa mala, apenas por umas horas. Deu-me um recibo e tomou nota do meu nome. Ao ouvi-lo, perguntou: "Vous êtes portugais, par hasard?".

Quando disse que sim, a cara do homem, até então seca e formal, abriu-se num sorriso. E o nosso excelente senhor Correia, de Balsemão, perto de Lamego, sossegou-nos: "Sr. Costa, vou-lhe dar o quarto 322. Tem pouca vista, mas é o que se pode arranjar".

O curto diálogo teve lugar perante a incomprensão do guia, que passou de perplexo a quase ofendido, quando viu a chave de um quarto na minha mão. Tentou "tirar satisfações" ao recepcionista: então, perante a anterior démarche dele, não havia nenhum quarto e agora, depois de um minuto de conversa numa língua bizarra, o quarto já aparecia?! Expliquei, como pude, que aquela fora uma solução que emergira de uma vetusta solidariedade lusitana, quiçá incompreensível à luz da righteousness nórdica.

Durante essa semana em Paris, o senhor Correia, que "fazia" os domingos e as noites, passou a aguardar-nos para uma charla no hall do hotel.

Há uns tempos, num fim de semana, passámos pela área. O Hotel des Messageries desapareceu, o que muito terá "debilitado" o património de apoio turístico em Paris... Mas ainda não conseguimos descortinar o hotel onde o senhor Correia nos arranjou o miraculoso quarto.

Como esta história se passou há precisamente 30 anos, presumo que o senhor Correia tenha regressado a Balsemão, onde lhe desejo uma ótima e merecida reforma.

9 comentários:

Alexandra disse...

Sr. Embaixador,
Gosto imenso de ler o seu blog! São vários os motivos, desde a forma como escreve (as palavras, a pontuação) como as histórias que relata, tão ricas em actualidade como em cultura e humanismo. Faz-nos sentir melhor no mundo e em Portugal!
Muitos parabéns e muito obrigada!
Sílvia Alexandra Quadros

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador
Quantas "estórias" destas não guarda cada um de nós, em trinta anos de vida? Muitas, de certo!
O que mais me maravilha é haver um espaçozinho na sua memória e no seu coração para as guardar e depois partilhar connosco.
Bem haja por nos continuar a mostrar que não há carreira profissional ou sucesso pessoal que nos façam esquecer quem fomos!

Anónimo disse...

Esta história fez-se lembrar uma outra, passada comigo há uns anos, quando viajava de Banguecoque para Lisboa, com escala em Amesterdão. Eram uns voos a bom preço que a KLM decidira passar a promover, mas que implicavam uma noite e um dia em Amesterdão. Estava já instalado no meu quarto, depois de uma longa viagem da capital tailandesa até ali, preparando-me para descansar a fim de no dia seguinte “rumar” a Lisboa, quando ouço uma pancadas violentas na porta do quarto. Ocorreu-me, felizmente, olhar primeiro através do óculo da porta e vi um sujeito com ar estranhíssimo, meio tresloucado que obstinadamente “agredia” (positivamente) a porta do meu quarto. Perguntei-lhe, de dentro, o que é que se passava, enfim, o que pretendia de mim. A resposta do maluco deixou-me perplexo: “ quero a minha mulher. Ela está aí consigo, eu sei. Abre a porta, ou rebento com ela e vai ser uma chatice!” (mais ou menos traduzido do que ouvi e ainda hoje recordo, divertidamente). Procurei sossega-lo, dizendo que não era verdade, que estava só no quarto e que me deixasse em paz, pois queria dormir. Caso contrário chamaria a recepção. Não adiantou e não só continuou a “espancar-me” a porta, como redobrou de violência, acrescentando: “estou a ouvi-la, abre a porta. Devolve-me a mulher!” Como tinha a TV ligada, deduzi que era dali e desliguei o aparelho. Disse-lhe que a voz era da TV, mas não acreditou. Decidi-me então em ligar para a recepção, explicar a situação e pedir que mandassem alguém rápido a fim de resolver aquele assunto. Pergunta do fulano da recepção: “e o senhor não está de facto com a mulher desse indivíduo no seu quarto?” Com certeza que não, ou acha que lhe estava a ligar se ela estivesse aqui comigo? Retorqui-lhe. Lá veio o sujeito da recepção e foi um sarilho para manter o homem fora do quarto e não atentar contra a minha integridade física. Lá de fora, dava “instruções” ao recepcionista onde procurar a “desaparecida”. E num misto de alguma irritação e divertimento, assisti a um “vasculhar” de mulher pelo quarto fora: debaixo da cama, dentro do armário, na casa de banho, atrás do reposteiro. Completada a “busca” e garantida que ficara perante o pobre tonto que a mulher dele não se encontrava ali a aconchegar-me os pés, lá fui dormir descansado. No dia seguinte de manhã procurei, por curiosidade, saber do desfecho da história. Se a mulher sempre fora encontrada. Vim então a saber que tinha partido com outro indivíduo, de avião e que o pobre maluco se encontrava num estado deplorável, tristíssimo: “olhe, ali está ele, naquele sofá, ali ao fundo! Pelos vistos ele deve ter feito alguma confusão com o seu quarto, que maçada!” – disse-me o recepcionista. Encolhi os ombros, mas ocorreu-me uma pequena maldade: como vi o maluco a olhar naquele momento para mim, sorri-lhe e acenei-lhe a despedir-me.
P.Rufino

margarida disse...

Um quadro memorável.
Uma ternura.

Teresa Nesler disse...

Adorei mais esta história, tão caricata e tão real. Na minha 1ª visita aos Estados Unidos, há uns 30 e tal anos, passei por um episódio, não direi semelhante, mas cujo resultado terá sido obtido de forma idêntica, através dum britânico lá residente que me disse (e nunca mais esqueci): «In America it doesn't matter who you are, but who you know», que no final de contas se aplica a qualquer lugar...

Helena Sacadura Cabral disse...

Não há dúvida que quando se viaja muito, as histórias se multiplicam.
Em NY, há alguns anos - já tinha, à época, o hábito de fechar por dentro a corrente da porta - um americano, bem bebido, tentava por todos os meios abrir a do meu quarto. Espero que julgasse que era o dele. Nunca apurei o motivo. Mas, a certa altura, comecei a ver a corrente ficar mais solta
e liguei para a recepção que, num hotel de 300 quartos, não me pareceu muito motivada. Salvou-me um diplomata nosso, homem entroncado e rápido, que ocupava um quarto no mesmo andar e fazia parte da missão onde eu era a única mulher.
Um forte e abençoado murro lusitano pôs o desgraçado não em em sentido, mas no chão. Eu, jovem ainda, não ganhei para o susto. Hoje, rio-me da história!

Anónimo disse...

Adorei a história Basicamente porque eu acho que é uma mensagem de esperança e ternura patriótica para os Portugueses, embora obviamente que no Seu caso especifico é também o Sr. ser bem afeiçoado(mérito de família )Simpático, grande capacidade de estabelecer empatia, Excelente comunicador...Enfim

O candidato do género masculino Ideal.

Do género feminino não abdico
A doutora Helena Sacadura Cabral.

Bem a história do P. Rufino... fez-me rir a sério... Hum!Quem diria que não conseguiu ser convincente com o cavalheiro abandonado(que deveria ter algum defeito, as mulheres não abandonam ninguém de ânimo leve)
já, permita-me P.Rufino, para relatar as suas histórias/vivências tem um jeitão, gosto imenso de o ler também.
Isabel Seixas

Helena Oneto disse...

A primeira vez que fui aos EUA, reservei 3 noites no hotel Renaissance em Washington (fiquei a saber pelo motorista do taxi que foi nesse hotel, que fica a umas centenas de metros da Casa Branca, que Bill Clinton se encontrava com a jovem estagiaria... ainda se lembram do escândalo ?)e 6 noites num hotel em Nova Iorque que encontrei, in extremis, devido à afluência de turistas para a Maratona anual em Novembro.
Chegadas em frente do hotel, que se situa em plena Little Italy, a minha filha perguntou-me se não estavamos enganadas... O concierge do hotel, onde tinha reservado 6 noites (3 das quais foram imediatamente debitadas no momento da reserva) perguntou-me a mesma coisa... Fui ver o quarto. Dois minutos depois estava na recepção a pedir que me encontrassem qualquer coisa melhor. O "concierge" respondeu-me que tudo em NI estava "over booked". Resignei-me a ficar là, tanto mais que as primeiras 3 noites ja estavam mais que bem pagas. No fim da tarde do quarto dia, chegadas ao hotel estafadissimas, ao abrir a porta do quarto (com a chave que não tinha deixado na recepção) tivemos a grande surpresa de ver quatro (!)"guys" na "minha cama"!!! consegui arranjar coragem e protestei pela invasão mas não me valeu de nada...
O "concierge", respondeu-me num ton seco que eu so tinha pago três noites... Depois de muitas negociações e ameaças, consegui encontrar outro hotel que me custou "os olhos da cara" e que nos privou do show na Broadway!

Helena Sacadura Cabral disse...

Ai, Helena isto deve ser "sina" das Helenas. Apesar de termos começado bem, com a de Tróia!

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...